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_ e volução

A Galápagos brasileira
Os lagartos das dunas do São Francisco – alguns parecendo cobras
– expressam histórias evolutivas próprias

texto Carlos Fioravanti  fotos Miguel Rodrigues

T
rinta e dois anos depois da primeira em que o rio – ali, com 200 a 300 metros de
expedição às dunas do rio São Fran- largura – as separou.
cisco, o biólogo Miguel Trefaut Ur- Da primeira viagem já trouxe uma espécie no-
bano Rodrigues, da Universidade de va de lagarto, hoje chamada de Eurolophosaurus
São Paulo (USP), ainda se surpreen- amathites, que só vive ali. Em outras expedições,
de com “aquela fauna maluca”, como ele diz. ele e sua equipe encontraram animais que ainda
Em 1980, aos 27 anos, ainda mais magro que ho- não haviam sido descritos, como uma cobra de
je, ele percorreu os arredores de Santo Inácio, duas cabeças e uma cobra subterrânea, ambas
município então com 200 moradores no norte com espécies-irmãs do outro lado do rio. No Saa­
da Bahia, sob um sol impiedoso, e se admirou ra brasileiro, com 7 mil quilômetros quadrados
com a diversidade de animais semelhantes: as ao longo de 120 quilômetros do rio, já identifi-
espécies irmãs, com pequenas diferenças de caram quase 30 espécies e oito gêneros novos de
aparência ou constituição genética. Os bichos lagartos exclusivos (endêmicos): é mais do que
quase iguais entre si viviam nas dunas de cada nos desertos norte-americanos ou africanos. Ali
lado do rio, depois de terem se diferenciado a – e só ali – vive também um roedor de 20 cen-
partir de um ancestral comum e seguido cami- tímetros, o rabo-de-facho, e um bacurau de 20
nhos evolutivos próprios a partir do momento centímetros de altura igualmente adaptados às

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dunas do São Francisco. As dunas exibem uma uma evolução de novo, porque os dedos que rea-
diversidade biológica comparável ao arquipélago parecem não são exatamente iguais”, diz Tiana.
de Galápagos, em cuja fauna Darwin se baseou Ela, Rodrigues e colegas da Universidade Yale,
para elaborar a teoria da evolução dos seres vivos. dos Estados Unidos, apresentaram essas conclu-
Nos últimos anos, Rodrigues e sua equipe de sões em 2006 na revista Evolution. Receberam
20 pesquisadores estão elucidando os mecanis- tantas críticas, que tiveram de contra-argumentar,
mos genéticos e evolutivos que nortearam a di- em 2010, também na Evolution, acalmando o de-
ferenciação de lagartos de no máximo 5 centíme- bate. “Com base nas ferramentas de análise es-
tros de comprimento. As espécies mais antigas de tatística que desenvolvemos”, diz Tiana, “grupos
um mesmo gênero taxonômico de lagartos ainda de outros países começaram a mostrar reversão
parecem lagartos, com o corpo curto e membros, de asas em insetos e em outros animais”.
digamos, normais. As espécies que começaram a Enquanto o debate corria, os biólogos da USP
se formar nos últimos milhares de anos, porém, verificaram que em pelo menos dois gêneros de
foram perdendo dedos, os membros encolheram lagartos exclusivos das dunas, Calyptommatus e
ou desapareceram e o corpo se alongou, a ponto Nothobachia, a perda de membros é irreversível:
de algumas espécies de lagartos parecerem uma os animais guardam apenas minúsculos apên-
cobra apenas com pequenos apêndices do que te- dices do que já foram membros anteriores e se
riam sido as patas dianteiras em seus ancestrais. parecem muito com cobras. “Não sabemos por
Os biólogos acreditavam que a perda de es- que só as Bachias conseguem reverter a perda de
truturas complexas como os membros não tinha membros”, reconhece Tiana.
volta – é a chamada lei da irreversibilidade da Juliana Rossito, pesquisadora do grupo de Ro-
evolução ou Lei de Dollo, em homenagem ao na- drigues, examinou embriões e adultos de Calyp-
turalista belga Louis Dollo, que a apresentou em tommatus em vários estágios de desenvolvimento
Seres das areias 1890. No entanto, uma das linhagens de lagartos para entender como a perda de membros poderia
do norte da Bahia, com membros reduzidos mostrou que a volta é ter ocorrido. Ela observou que o fêmur começa a
com e sem patas
possível. Em colaboração com Rodrigues, Tiana se formar no embrião, entre o quinto e o décimo
(da esquerda para a
direita): Tropidurus Kohlsdorf, com sua equipe da USP de Ribeirão sexto dia, mas depois desaparece. Suas análises in-
amathites, de Santo Preto, estudou 15 espécies de lagartos do gênero dicaram que os lagartos desse gênero estão pron-
Inácio; Nothobachia Bachia, que vivem por toda a América do Sul; as tos para nascer em um mês – e não seis, como os
ablephara e
mais antigas tinham membros com cinco dedos e das espécies mais próximas –, talvez por efeito da
Calyptommatus
leiolepis, de Alagoado; as mais recentes, com quatro, três, dois – e nova- temperatura ou da escassez de água. “Por meio da
Tropidurus pinima, mente três. “Há uma reversão, já que a informa- seleção natural”, diz Rodrigues, “essa espécie en-
de Santo Inácio ção genética não se perdeu, mas é como se fosse controu uma forma de acelerar o desenvolvimento”.

pESQUISA FAPESP maio de 2012  _ 95


S
egundo ele, a redução de patas e o alon- entre os lagartos comparando 10 genes. Muitas
gamento do corpo podem ter surgido na vezes as análises de DNA indicam que as aná-
história evolutiva dos lagartos da família lises obtidas com base em caracteres externos
Gymnophtalmidae, com 45 gêneros, incluindo Ba- precisam ser revistas.
chia e Calyptommatus, como uma consequência Rodrigues e seu grupo de trabalho estão vendo
de adaptações que lhes permitiram evitar tem- como ambientes restritos podem limitar a for-
peraturas extremas. Desse processo resultaram mação de espécies novas, com características e
espécies que conseguem se enterrar, fugindo de hábitos únicos. Os bichos que vivem nas dunas
predadores, do frio ou do calor, que pode chegar são tão especializados que não sobrevivem – nem
a 50 graus sobre a areia. Estima-se que em toda a entram – na caatinga vizinha; os animais típicos
história dos lagartos essas transformações devem da caatinga, por sua vez, só entram marginal-
ter ocorrido pelo menos duas dezenas de vezes, mente nas dunas. Mesmo ali dentro os animais
favorecendo a origem de lagartos peculiares, às se especializaram em ambientes diferentes. Al-
vezes um tanto repugnantes, e um grupo de ani- gumas espécies de lagartos vivem apenas sobre
mais com fama e hábitos próprios – as serpentes. grupos de rochas e não atravessam as áreas de
Para entender como e por que os lagartos estão caatinga que separam os afloramentos rochosos.
se tornando capazes de viver enterrados em túneis
ou cavernas, Agustín Camacho filmou e analisou do outro lado do Atlântico
centenas de testes comparando a locomoção, a Rodrigues observou o mesmo fenômeno – popu-
capacidade de fuga e os hábitos alimentares de lações isoladas de Platysaurus, lagartos de outra
12 espécies de lagartos da família Gymnophtal- família, mas muito parecidos com os de um dos
midae em câmaras com areia em laboratório. “O grupos de Tropidurus, que também têm corpo
corpo alongado e a ausência de patas parecem fa- achatado e só vivem entre pedras – em Moçam-
vorecer o desempenho dos lagartos fossoriais, que bique, para onde foi pela primeira vez em 2007.
conseguem fugir de predadores mais rapidamente, Seu plano é voltar em 2013 e fazer um levanta-
se alimentam mais e se enterram mais facilmen- mento de lagartos e cobras de norte a sul do país,
te que os com patas”, ele concluiu. “Mas ainda não com outros biólogos brasileiros e moçambicanos.
é possível dizer qual o morfotipo mais adaptado Querem ver se as populações de lagartos desse
à vida na areia, porque mesmo as espécies com gênero na África teriam se originado na mesma
quatro patas são abundantes, sobrevivem bem e época que os do Nordeste brasileiro; se sim, po-
podem ser vistas às dezenas nas dunas.” Segun- deriam contar histórias paralelas de terras que
do ele, lagartos de desertos da Austrália viveram estiveram próximas há milhões de anos.
uma história evolutiva semelhante.
Camacho representa a segunda geração de bió-
logos na trilha dos bichos esquisitos das areias do
norte da Bahia. Ele estudou biologia na Andalu- Os lagartos da Bahia
zia, Espanha, mas “estava louco para vir para os
trópicos”, ele conta. Veio para um curso rápido pernambuco
piauí
sobre animais peçonhentos e lagartos em 2002
Toca da Cabocla
em São Paulo, voltou à Espanha, terminou o curso (Serra das Confusões)

e no final de 2003 se mudou para Salvador pa-


ra fazer o mestrado na Universidade Federal da
Bahia. Seu orientador, Pedro Rocha, tinha feito Alagoado
co
o doutorado sobre ecologia de lagartos das du- ncis
Fra
nas do São Francisco, orientado, por sua vez, por São
Rio
Rodrigues. No final de 2007, ele se mudou para
São Paulo e agora trabalha em seu doutorado em
um mezanino sobre a sala de Miguel Rodrigues. bahia
Rodrigues mantém o mesmo método de tra- Campo de dunas
Serra do Estreito

Calyptommatus
balho de quando começou estudar cobras e la- Xique-Xique Queimadas confusuionibus
gartos, há 40 anos, comparando características
Calyptommatus
externas como o número e a forma de escamas, Vacaria leiolepis
o comprimento do corpo e a forma dos olhos, Mocambo Ibiraba
Calyptommatus
do Vento Ilha do Gado Bravo
para reconhecer uma nova espécie e construir nicterus
a filogenia – a ordem de aparecimento de um Barra Lagoa de Itaparica
Calyptommatus
Gameleira do Assuruá
grupo de animais semelhantes, começando pe- sinebrachiatus
los mais antigos. Kátia Pellegrino, professora na Santo Inácio Nothobachia
Universidade Federal de São Paulo, se vale de ablephara

outra abordagem e começou a ver o parentesco

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Os projetos

1. Estudos sobre a ecologia


e diferenciação da fauna
de répteis das dunas do
médio rio São Francisco
(Lepidosauromorpha,
squamata) –
nº 1996/03554-0
(1997-2002)
2. Sistemática e evolução
da herpetofauna neotropical
– nº 2003/10335-8
(2004-2011)
3. Filogeografia comparada,
filogenia, modelagem
paleoclimática e taxonomia
e répteis e anfíbios
neotropicais –
nº 2011/50146-6 (2012-2016)
Modalidade
1. 2. e 3. Projeto Temático
Coordenador
1. 2. e 3. Miguel Trefaut
Urbano Rodrigues – IB/USP
Investimento
As dunas em Santo Inácio: espaço único que abriga espécies-irmãs, com histórias evolutivas distintas
1. R$ 388.398,04
2. R$ 975.589,35
3. R$ 1.747.802,04

B
ichos parecidos, porém, podem ter histórias pírito Santo, antes consideradas próximas, não
bem diferentes. Em 2008, comparando tre- se mostraram mais tão próximas, uma tem 38 e Artigos científicos
chos do DNA de 10 populações de lagartos outra 40 cromossomos. 
1. KOHLSDORF T. e
do gênero Eurolophosaurus, José Carlos Passoni, Antoine Fouquet, francês que fez o pós-dou- WAGNER G. P. Evidence for
Maria Lúcia Benozzati e Rodrigues, todos da USP, torado com Rodrigues, concluiu que as florestas the reversibility of digit loss:
mostraram que uma das espécies, o Eurolopho- da Guiana foram um refúgio biológico importan- a phylogenetic study of limb
evolution in Bachia
saurus divaricatus, um lagarto de 25 centímetros te para a diferenciação da fauna amazônica nos (Gymnophthalmidae:
de comprimento que vive na margem esquerda últi­mos milhares de anos. Curiosamente, veio das Squamata). Evolution. v. 60,
do São Francisco, teria surgido há 5,5 milhões Guianas a primeira espécie de cobra que Rodri- n. 9, p. 1896-912, 2006.

de anos. Os habitantes da margem oposta seriam gues identificou, em 1978, quando ainda cursava 2. FOUQUET, A. et al.
Molecular phylogeny and
mais recentes, o E. nanuzae com 3,5 milhões de biologia em Paris (ele fez a graduação no exterior morphometric analyses
anos e o E. amathites com pelo menos 1,5 mi- e a pós-graduação no Brasil). A primeira espé- reveal deep divergence
lhão de anos. cie brasileira, em 1980. Foram quantas, no total? between Amazonia and
Atlantic Forest species of
Os cálculos sobre a origem dessas espécies “Nunca contei”, desconsidera, entre a modéstia Dendrophryniscus. Molecular
de lagartos superaram largamente os modes- e a impaciência para cálculos. Em 2010, Peter Phylogenetics and Evolution.
tos 15 mil anos antes concluídos com base em Uetz, do J. Craig Venter Institute, dos Estados v. 62, p. 826-38, 2012.
dados geo­morfológicos. Teria sido nessa época Unidos, teve paciência e contou. Resultado: em 3. AMARO, R. C. et al.
que o rio, à medida que o relevo se modificava, um artigo na revista Zootaxa sobre os 40 biólo- Demographic processes in
the montane Atlantic
teria desviado seu curso do interior para o mar. gos que mais descreveram espécies de répteis no rainforest: Molecular and
As lagoas internas em cujas margens os lagar- mundo desde o século XVIII, Rodrigues é o único cytogenetic evidence from
tos tomavam sol podem ter se desfeito ou o rio brasileiro da lista, em 35º lugar, com 53 espécies the endemic frog
Proceratophrysboiei.
incorporado parte da margem esquerda ao se- descritas – hoje são mais de 60. Molecular Phylogenetics
guir para leste e não mais para oeste. Segundo Miguel Trefaut Rodrigues já pegou malária, and Evolution. v. 62,
Rodrigues, a separação entre as margens norte dengue e muitas outras doenças por andar no p. 880-88, 2012.

e sul deve ter se completado entre 10 milhões mato, geralmente à noite, atrás dos bichos que o
mapa tiago cirillo, Fonte: Miguel Trefaut Rodrigues/IB-USP

e 8 milhões de anos. deixam feliz; uma parte das agruras das viagens e De nosso arquivo
Agora lhe parece claro que os rios – e não só o da produção intelectual desse grupo está no site
Entre cobras e lagartos
São Francisco – funcionam como barreira geo­ do laboratório: www.ib.usp.br/trefaut. Ele sabe Edição nº 169 –
gráfica para a formação de novas espécies de que fez muito, mas também se inquieta diante do março de 2010
répteis e anfíbios. Anos atrás, Kátia, Rodrigues e que está por ser feito e do que já pode ter sido Aos pés dos dinossauros
outros biólogos mostraram a validade dessa idéia perdido. “Não sabemos nada. Cada vez mais per- Edição nº 154 –
dezembro de 2008
com uma espécie de lagartixa da mata atlântica, cebo que somos completamente ignorantes”, ele
a Gymnodactylus darwinii. As populações des- diz. “Há espécies irmãs de lagartos nos Andes e Um tesouro à beira
do Velho Chico
sa espécie encontradas ao norte e ao sul do rio na restinga da floresta atlântica. Cadê o resto? Edição nº 57 –
Doce, que drena áreas de Minas Gerais e do Es- Desapareceu!” n setembro de 2000

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