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RESUMO

O corpo humano traz em si uma permanente auto-organização gerada pela busca constante
do equilíbrio na posição de pé. Esta posição, naturalmente instável, favorece a manutenção
de um estado de tensão permanente nos músculos. A instabilidade é natural e permanente
na movimentação corporal; o movimento gera uma instabilidade precária da qual advém a
sobrevivência e inteligência humanas.

A vida humana traz consigo um importante componente psicomotor, no qual o


desequilíbrio é um estado permanente. A aparente estabilidade que é possível ser vista no
movimento ou na posição de pé, é na verdade gerada pelo uso direcionado do corpo por um
reequilíbrio constante, o que contribui para a operacionalidade deste corpo.

Em todas as tentativas de codificação da representação no teatro e na dança, construíram-se


“leis” do equilíbrio que se podem ver em exercícios de dança e teatro. Um exemplo é a
deformação da marcha humana, movimento que gera uma alteração de equilíbrio possível
de ser vista em várias possibilidades de trabalho corporal. Eugênio Barba, em sua
Antropologia Teatral, sugere o abandono do equilíbrio cotidiano na busca por um equilíbrio
precário, ou de “luxo” como possibilidade de trabalho corporal. Como exemplos deste tipo
de trabalho, temos, no balé clássico, posições de corpo como o arabesque, que levam a um
maior esforço corporal, que gera uma ampliação do tônus muscular que traz consigo uma
expressividade ampliada, anterior àquela do trabalho de interpretação do ator, que Barba
chama de pré-expressividade. Essa pré-expressividade só é possível na compreensão da
unidade corpo-mente na representação. No equilíbrio precário, o esforço muscular
intensificado na recuperação do reequilíbrio leva à percepção do corpo como um sistema de
contrapesos (formado por ossos, articulações, ligamentos e músculos) que também pode ser
visto como parte essencial da sobrevivência humana.

Este é um drama humano elementar. O estado de equilíbrio no corpo humano é gerado por
um conjunto de forças musculares que se anulam. No entanto, o afastamento do centro de
gravidade do corpo de uma “linha de gravidade” perpendicular ao chão, gera um esforço
muscular para equilibrar as forças opostas que estão atuando no desequilíbrio. A tensão
muscular gerada por este esforço é maior que aquela do equilíbrio econômico, quando o
eixo central se alinha ao da linha de gravidade.

A posição vertical econômica e cômoda, com a linha da gravidade perpendicular ao chão,


requer ações musculares e de ligamentos, já que o esqueleto é formado por partes móveis
sustentadas. O equilíbrio instável pode ser compreendido como um equilíbrio em ação, que
traz consigo um conflito de forças contrárias no qual a ação dos músculos é superior à dos
ligamentos. Este equilíbrio dinâmico mostra, no ator, uma musculatura trabalhada por
equilíbrios precários, diferente da ação muscular necessária ao equilíbrio da estática
cotidiana.

O treinamento com equilíbrios precários, que coloca o corpo do ator em instabilidade e


imprevisibilidade, é interessante para diretores de atores que entendem que este trabalho
pode trazer para o organismo do ator uma atenção constante e reações não convencionais
que contribuem para o jogo teatral.

O diretor Meyerhold, em seu treinamento corporal para o ator, baseia-se no movimento da


biomecânica que usa da reação automática ao desequilíbrio para gerar o equilíbrio dinâmico
através de ajustes musculares. A tensão gerada pela queda e recuperação do equilíbrio
também baseia técnicas de dança contemporâneas e da mímica moderna. Decroux, para
conquistar a dilatação da presença cênica, usa o desequilíbrio para gerar esse equilíbrio
instável.

O diretor brasileiro Antunes Filho também usa da alteração do equilíbrio cotidiano em seu
treinamento para o ator. Para ele, a desestruturação a partir do desequilíbrio como
tratamento do corpo do ator pode ajudar a eliminar traços maniqueístas, favorecendo novas
situações para diminuir o condicionamento físico e os impedimentos no corpo para criar
nesse corpo a matéria expressiva.

Para ele, o desequilíbrio do corpo humano ajuda a quebrar as couraças do corpo do ator,
seus complexos e traumas: desequilibrar é, assim, romper com essa estrutura.

Para a coreógrafa estadunidense Humphrey, o princípio que estrutura sua teoria da dança é
a sistematização da trajetória do corpo humano ao tentar compensar o desequilíbrio. Para
ela, a vida e a dança se definem também no ajustamento do corpo entre a posição vertical e
a queda para a posição horizontal. Isso se vê, por exemplo, no passo humano, um modelo
de ajuste entre o corpo caindo e se recuperando constantemente. Sustentar o peso e o eixo
do corpo têm uma relação muito próxima com a força da gravidade: essa relação traz ricas
possibilidades de se trabalhar ritmicamente a expressividade nas mudanças de eixo e peso
proporcionadas pela luta contra a gravidade. O esforço físico gerado pela recuperação do
equilíbrio traduz o fluxo da vida: resistir e se entregar, cair e se recuperar diz das relações
de vida e expressão humanas.

A ampliação das questões de equilíbrio e desequilíbrio são frequentes na dança


contemporânea, na qual o risco é explorado não apenas no cair naturalmente, mas ainda na
descoberta de uma nova relação com esse desequilíbrio proporcionada por quedas abruptas
e pela exploração de novas formas de se portar com relação ao equilíbrio do eixo central. A
ideia de Barba sobre o equilíbrio precário pode, assim, ser vista contemporaneamente como
uma investigação das situações que se encontram fora do equilíbrio cotidiano.

Na concepção de Prigogine, em sua teoria a respeito de sistemas afastados do equilíbrio


(que embora aplicada à química e física aceita implicações em outras esferas como
biológica, social e econômica), o autor fala de uma nova visão de ciência que admite o
potencial inovador da natureza na criação e evolução a partir da desordem e do caos para
gerar uma nova organização e a complexidade.

Os fenômenos químico-físicos do não equilíbrio nos ajudam a entender os processos de


criação e inovação presentes no desequilíbrio que se encontra dentro da natureza. Como
somos seres inseridos nesta natureza, nosso fazer teatral também se manifesta dessa
forma. A atividade humana não é estranha à natureza; assim, o fazer criativo representa a
ampliação e intensificação de um mundo físico que a descoberta dos processos de não
equilíbrio ajuda a decifrar.

A manifestação criativa da natureza tem relação direta com os processos irreversíveis do


tempo, aspecto crucial para essa criatividade e propriedade emergente desta, ligado à
assimetria e ao desequilíbrio. A simetria leva à estagnação e morte do sistema.

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