Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
FIGUEIREDO escreveu
FREDERICO
KIKOLER ilustrou
ÍNDICE GERAL
P refácio 3
Definição 5
Etimologia 7
Origem, evolução, tiradas filosóficas
e outras chateações 15
De como identificar o chato 35
Classificação geral dos chatos 40
Os bonzinhos 42
Os agressivos 66
Etilometamórficos 67
Da mulher chata 69
Dos homens chatos na opinião das mulheres 82
Da criança chata 84
Dos adultos chatos em relação às crianças 89
Das coisas chatas 91
Da relatividade do chato 92
Dos indícios 94
Do emprêgo da classificação geral 102
Exercícios de classificação 105
Problemas 107
Do chato benigno 119
Proposições relativas aos chatos 122
Sísifo e Catilina 129
Franklin e o raio 132
Biógrafo e biografado 136
A prece e o milagre 138
Do folclore ao embalo 142
O cão de Ulisses ou o chato mnemônico 146
A bússola e o vento 152
A torcida e o telespectador156
Minha terra tem palmeiras 159
Da medicação drástica 163
Como livrar-se do chato 166
ÍNDICE GERAL (Ú O S c h a t o s ) 175
Prefácio
(à primeira edição)
3
outros autores. No caso presente, as citações dos
especialistas da matéria poderíam envolver uma
perfídia( * ) ; logo, cabe-me apenas mostrar meu
reconhecimento aos que, involuntàriamente, ins
piraram êste volume. Sem êles, eu não teria
escrito o meu Tratado; em compensação, sem
êles a Humanidade seria mais feliz.
O autor deseja prevenir aos graciosos que será
inútil considerá-lo chato, ou ao seu Tratado: a
facilidade da piada não indicará senão que tais
graciosos são chatos.
4
Definição
5
indisposição passageira do paciente, por motivos
esporádicos e mesmo perdoáveis. Chatos espo
rádicos somos todos nós, numa ou noutra ocasião;
mas. a reprodução ou repetição do fenômeno da
chatice é que a caracteriza.
No presente Tratado preocupamo-nos com os
chatos consuetudinários, os que, variando apenas
de objeto-paciente, têm sôbre terceiros a faculda
de de imprimir e inocular os sentimentos a que
se refere a definição. Por pura questão de fé no
gênero humano, deixamos de parte o chato-ab-
soluto, o chato incurável, contra o qual sêres e
coisas são inermes e desamparadas. Existem; mas,
como qualquer enfermidade incurável ou temor
da morte, nos levariam ao homicídio ou ao suicí
dio, únicas fugas possíveis.
Etimologia
7
Muito antes de se atribuir o sentido vil à palavra, o
ser, coisa, evento ou indivíduo já recebiam a designação
d e “Chato”.
o dicionaristas escoimar suas obras de tão ofensi
vos significados para os animais, que afinal de
contas recebem a injúria de seus nomes precisa
mente porque, do modo mais honesto, se parecem
com os homens.
“Chato” do grego ffXarós e do latim
“plattus”, sempre teve a acepção empregada neste
Tratado: sinônimo de maçador, maçante, impor
tuno, enfadonho, inconveniente, aborrecido, apor-
rinhador, vulgar, rasteiro, amolador, cabuloso, ca
cete, caceteiro, cricri, estopador, estopante, cace-
teador, pau, pêto, enzampo, escôva, xarope,
peroba, piúva, sequista, secador, seringador, en-
chedor (v., entre outras obras, o Pequeno Dicio
nário Brasileiro da Língua Portuguêsa, de A uré
lio B uarque de H olanda F err eira ) . A s mesmas
raízes deram “plat” èm francês, o verbo “to plat”
em inglês ( “adular”, hoje raramente empregado),
e “Plat” em alemão (insípido).
Já na Grécia encontramos rXaVoXÓ7 os
(platológos), parolador; vXaTvp^ouaiv-q (pla-
tyremosyne), prolixidade, palavra encontrada no
Timeu de P latão : o próprio P latão , IlXárco^
que tanto quer dizer “ombros largos” como “O
Chato”, de onde provém “amor platônico” segu
ramente “amor chato”. Apolodoro se refere a
iryarvKètpaXos (platyképnalos), isto é, “cabeça
chata”.
Em frencês, “plat” (desprovido de sabor, de
atrativos), é empregado por Voltaire : __
On ne se déchaine pas contre le médiocre et le plat.
9
Chato, do grego t \ o, t bs e do latim plattus, sempre
teve a acepção empregada neste "Tratado” sinônimo d e
maçador, importuno etc.
10
Amor platônico — Amor chato.
11
Na linguagem popular se diz, de longa data,
faire le plat (ra z e r o prato” ou “fazer ò chato” )
no sentido de adular; un vin plat, vinho a que
faltam verdor e acidez. Molière usa a palavra
com o sentido duplo de prato e chato:
12
Cabeça chata ,
13
Na linguagem corrente, flatter e flatterer são
sinônimos de “adulador”.
No Brasil, o mais respeitável exemplo que
encontrei foi em Machado de Assis. “Perdoai a
chateza das minhas palavras” ( * ) .
A erudição exaustiva é uma das formas sob
as quais apresenta o chato ( Sempre que alguém,
quer esgotar um assunto, esgota a paciência do
leitor — O s c a r W ilde ). Por isso, encerramos o
capítulo aqui.
14
,
Origem evolução,
tiradas filosóficas
e outras chateações
^ ^ u a l q u e r q u e s e j a a doutrina cos-
mogônica, ou hipótese, adotada pelo estudioso,
posição filosófica ou religiosa, reconhece-se que o
chato surgiu com o aparecimento do ser vivo, e o
ser que tomou consciência do chato foi o Homem
(ou a Mulher). No princípio era o caos, diz o Gê
nesis — e no entanto o Homem não conseguiu,
através dos milênios, mais do que organizar o caos,
isto é, torná-lo chato. Ou, a se admitir o primeiro
pecado, causador da expulsão do Homem dum lu
gar não-chato, o Paraíso, pode o leitor decidir
quem tenha sido o chato do conflito inicial. Admi
tido o conceito idealista, existe um Chato Ideal,
15
uma essência de chato, para o qual tendem os cha
tos reais; aceita a tese materialista, a matéria está
sempre supurando chateação, isto é, consciência
de si mesma; adotada a evolução darwiniana, o
Homem é um estágio superior da escala zoológica,
provindo portanto do inseto intermediário, sem ter
perdido, através dos tempos, seus atributos atávi
cos; e tomada a tese existencialista, a existência
da chatice antedata à sua essência.
Conjecturas, principalmente chatas. O que
cabe à ciência é constatar a existência do chato
sob suas diversas formas; e, tanto quanto podem
ser cridas as fontes históricas, não houve um só
período da Humanidade em que o chato não esti
vesse presente e atuante. O uso do tacape na era
das cavernas prova que o Homem sempre desejou
achatar o chato. A figura de Morfeu nos tempos
mitológicos indica que já então se conhecia o tédio
do'chato. Os poetas moralistas da Grécia, H e -
síodo nos Trabalhos e os Dias, P itágoras, nos Ver
sos de Ouro, T eognis, nas elegias em que acon
selha Cimos, mostram certa preocupação em evi
tar que seus leitores se tomem chatos; os come-
diógrafos gregos e romanos, A ristófanes, P lauto
e T erêncio , apenas incidentalmente retratam a
chateação, talvez por mêdo de cair nela; longo
exemplo da dita é o método socrático registrado
por P latão nos Diálogos, infindável questionário
para demonstrar que ninguém sabe nada. J uve
nal , nas Sátiras e M arcial , nos Epigramas, esbo
çam aqui e ali tipos de chatos e de chateações; mas
foi P etrônio , no Satiricon (cap. XVL e seguinte),
quem primeiro descreveu um chato de linguagem
carregada de lugares-comuns e provérbios —. o
que leva o autor a exclamar, a seu amigo Aga-
memnon: “Quid iste argutat m olestus! Quia tu,
qui potes loquere, non loquis” — e o acusa de estar
entupido de literatura ( scimus te prae litteris fa~
iuum esse). Cabe a C ícero a glória de insinuar
uma primeira definição do chato, ao invectivar Ca-
tilina — do que cabe inferir que o orador e mora-
ralista podería ter dito: Plattus est qui patientia
nostra abutat.
Na Idade Média ninguém se preocupou com
o problema. Na Idade Média todos eram chatos
— com exceção de um pré-renascentista, D ante ,
que afinal não soube onde colocar os chatos, se
no Inferno, no Purgatório, ou no próprio Céu.
Além de Dante, sòmente o poeta Gu u xa u m e Al e -
cis mais ou menos os retrata em Les feintes du
monde, e V illo n , que sempre viveu às voltas com
eles, reconhece que não há nada melhor do que
livrar-se deles, ao dizer: “11 n est trésor qúe de vi-
vre à son aise".
Os sonetistas conceituosos do Renascimento,
Du Bellay, Christophe Plantin, talvez porque já
conscientes da chateação medieval, rimaram o
prazer de não serem chateados. Mais, porém, que
óles, V a u q u eijn des Y veteaux , que num sonêto
menciona como alegria da vida avoir peu de pú-
rents, tem mêdo de s’engager à rien qui méçon-
tente e deseja Être estimé du Prince et le voir ra-
rement. Numa resposta ao dito soneto, outro
poeta, V a l l é e d e s B a r r e á u x , desfila as alegrias da
não-chateação:
N 9estre ny magistrat, ny marié ny prestre,
Avoir un p eu de bien, Vappliquer tout à soyy
Et, sans affecter d 9estre un docteur d e la Loy,
S9estudier bien plus à joüir q u à connoistre;
18
Pregador da tolerância, M o n t a ig n e , quando
trata dos pedantes, da moderação da vaidade das
palavras, das sutilezas vãs, dos presunçosos (num
onsaio onde há curiosa menção dos cacoetes cha
tos de homens célebres), retrata os perobas de
seu tempo e do passado, neles descobrindo que
a maneira de ser resulta de sestim er trop, et de
ríestimer pas assez âutrúy. Cabe, porém, a Mo- ,
l i è r e , a glória de observar que os fâcheux são de
várias espécies (Et fen vois chaque jour quelque
nouvelle esp èee) e a arriscada proeza de fixá-las
numa comédia sem que esta se tornasse chata.
Chefe de grupo teatral ambulante, às voltas com
o dinheiro curto, perseguido e preso por dívidas,
protegido do rei a quem devia adular, caluniado
em sua honra pelos invejosos, assaltado pelas ca-
19
baias que pretendiam liquidá-lo como autor, ator
e valido, Molière atribui a Éraste o seu próprio
grito:
Sous quel astre, bon D ieu, faut-il q u e je sois né,
Pour être d e fâcheux toujours assassinê?
20
tem mas oferece sempre alguma coisa ( . . . d e ces
gens qui non rien |Et vous viennent toujours pro-
mettre tant de bieri.) e que, para dizer um segrê-
do, il sapproche de Voreille aÊraste, pedindo-lhé
emprestado, afinal, duas pistolas; Filinte, que vem
prevenir contra ameaças e se oferece como anjo-
-da-guarda; os mascarados do final da comédia,
cjue o importuno faz repelir chamando os
* suisses”.
Estarão aí todos ? Não, falta a própria amada
Orphise, chata desconfiada e coquete, de quem Ju
venal, o satírico, podería dizer: por que tomar mu
lher se ainda há tanta corda para se enforcar ?
Se os clássicos se preocuparam com os chatos,
os românticos não lhes deram importância, tão
preocupados estavam consigo mesmos, e tanto
prazer sentiam em sofrer a vida e a chateação da
vida. Foi um realista, B alzac, quem, voltando à
realidade, voltou aos chatos, nas Scènes de La Vie
P olitiqu eO , ao retratar um certo Simon Giquet,
no L e Deputé d’Areis: “Este pobre rapaz perten
cia a essa espécie de cacetes que pretendem tudo
explicar, mesmo as coisas mais simples. Explicava
a chuva; explicava as causas da Revolução de Ju
lho; explicava também as coisas impenetráveis;
explicava a Campanha; explicava 1789; explicava
a tarifa das alfândegas e os humanitários: o mag
netismo e a economia da lista civil”. O realismo e1
21
o naturalismo, na ficção e no palco, voltaram a
empregar o chato, mas sempre em pequenas doses,
como personagem passageira: o Vieirinha de As
asas de um anjo de José de A lencar , que Ma
chado de Assis glosou(23), como chato-literário,
chamando-lhe ‘o vampiro da paciência humana”;
o major Lopo Alves de A chinela turca, Claudina
e Rosa de As primas da Sapucaia, ambos de M a
chado de Assis; antes mesmo de Alencar e Ma
chado, M artins P ena já fixarg. um chato, o meló-
mano, em O Diletante; e depois dêles, A rtur
A zevedo, naquele sogro de O Dote, que pergunta
sempre: “Como direi ?”
22
indivíduos ? ” ( 5 6).
R . M a g a l h ã e s J ú n i o r considera
mais importante teórico entre os
F r a n ç a I d e m “o
precursores da chatologia”(e) e apresenta a sua
( dêle, Idem —raio de idioma português!) enume
ração de categorias: l . a) a dos maçantes que têm
mania de contar histórias a propósito de tudo, em
geral indivíduos de mais de 50 anos, pouco ver-
bosos, desmemoriados e surdos; 2.a) os maçantes.
retóricos, que escolhem têrmos pedantes quando
falam, que gostam de se ouvir e, em vez de con
versarem, discursam, 3.a) os que, faladores, dão
por paus e por pedras; 4.a) os maçantes que não
falam ( chatos tácitos), ou se limitam a ouvir o que
os outros dizem, reavivando a conversação bruxu-
leante com expressões como “É o que lhe digo”,
“O senhor é quem pode”, “Êste mundo é uma
bola”, “A vida está para o senhor” etc.; 5.a) o ma-
çante lírico, que adora em excesso a música, e
passa a vida cantarolando ou assobiando pedaços
de opereta”( 7); 6.a) os maçantes que obrigam as
filhas a cantar e a tocar para. . . obsequiarem as
visitas; 7.a ) os maçantes que se julgam atacados
tôdas as doenças e que interpretam como tais quer
a palidez, quer as boas côres dos amigos; 8.a) os
maçantes valentões; 9.a) as solteironas; 10.a)
os que consomem o tempo a indagar da vida
alheia e que fazem a conhecidos e desconhecidos
(5 ) F rança J únior, apud R aymundo Magalhães I dem
Ibiderrt.
(6 ) R aymundo M agalhães J únior, ibid.
(7 ) R aymundo M agalhães J únior, ibid; Martins P ena ,
"O Diletante"'.
23
perguntas como estas: ‘Onde compraste esta cor
rente ?”, “Estás empregado ?, “Quanto ganhas ?”,
“Que faz tua mulher todo o dia à janela ?” etc. ( 8)
F r a n ç a J ú n io r propunha, afinal, a criação duma
sociedade como a da Resgate dos Cativos, para
libertar as vítimas dos maçantes; e acabava clas
sificando-se numa l l . a categoria, a dos escritores
insípidos, que têm a mania de escrever folhe-
tins ( 9).
Embora os seres humanos nasçam sempre
chatos, um número alentador é recuperável, e
outro, bastante grande, não conseguiu qualquer
cura desenvolvida pela própria inteligência huma
na. O fato, porém, de não se observar uma here
ditariedade constante na chateação, e o fato de
existirem curas até agora espontâneas, nos condu
zem a reconhecer qúe a Humanidade não deve
desesperar.
Defeitos de educação, traumas, fixações, fa
tores endógenos e exógenos, falta de dinheiro ou
excesso dêle, imperialismo e anti-imperialismo (v.
C l á u d io d e A r a ú jo L im a , in Imperialismo e An
gústia), a consciência do envelhecimento do ho
mem, o temor da morte, estas e muitas outras são
as causas da chateação. Encontram-se chatos em
Paris, em Moscou, em New York, em Washington,
na Polinésia, em Tanganica; em clubes milioná-
(8) Coleção completa da revista Confidencial.
(9) As notas ao pé da página aqui feitas servem apenas
para mostrar como é chata a erudição. Em tais casos, basta usar
aspas ( Honny soít. . .
24
Os seres humanos nascem sem pre chatos.
25
rios e favelas; em cultos e ignorantes; em nutridos
e subdesenvolvidos; em crentes e ateus; em assé-
ticos e promíscuos — o que tem levado o pes
quisador a um total desnorteamento.
A psicologia constata que há chatos de mêdo
de serem chatos; outros que impõem sua chatea
ção por ignorá-la; outros que, psicanalisados ou
não, sentem prazer de ostentá-la. No estado atual
da Giência — que no assunto está dando seus
primeiros passos — os fatores que levam o indi
víduo a ser, tornar-se ou deixar de ser chato não
são totalmente conhecidos. Pessoalmente, subme-
ti cobaias a discursos parlamentares, sem qual
quer resultado manifesto, enquanto outros parla
mentares cabeceavam de tédio; mas a simples
visita de um chato silencioso extinguiu os moti-
mentos e logo a vida das mesmas cobaias. A
aproximação do chato pode ser acusada pelo
murchar de plantas (os seca-pimenteiras) ou a
mudez dos animais (os cala-sabiás ) ; mas o ho
mem não tem tão grande capacidade de premu
nição. Verifiquei o comportamento de pessoas
que, sem causa manifesta, tomavam-se chatas,
e de outras que oscilam em períodos de chatice
e normalidade (os ciclochatos), e de outras ainda
que, sem razão aparente, perdem a capacidade
atuante.
Dado, porém, que a chateação é sempre uma
violência, maior ou menor, contra a liberdade
alheia, uma correlação se impõe: o índice da en
fermidade aumenta onde e quando a liberdade
26
diminui. Por conseguinte, o chato é, consciente
ou inconscientemente, um ser totalitário, isto é,
um ser que se opõe à liberdade de outrem. Neste
terreno, o homem público deve marchar ao lado
do médico, do jurista, do sociólogo (com a con
dição de não serem, êles mesmos, chatos) — e
caberia uma estatística mundial da incidência de
chateação ativa e passiva. Estaria a o n u disposta
a tal investigação ? Estariam seus membros dis
postos a permiti-la ?
Observa-se também, com a evolução — de
agrária a industrial — de uma sociedade humana,
o aparecimento de tôda uma gama de tipos de
chatos: o chato-pra-xuxu, essencialmente agríco
la, transforma-se no chato-à-bessa intermediário,
muda-se em chato-de-galocha, já industrial, al
cança o nível mais industrializado de chato-side-
túrgico, e tenderá fatalmente para o astrochato.
Cabe à investigação científica determinar se tais
ou quais tipos são mais ou menos chatos que
outros.
A sensação de “estar sendo chateado” (que,
aceita pela vítima, leva ao estado de “chatisfa-
ção” ) provém de um cerceamento da liberdade,
com o concomitante desejo de escapar à causa da
chateação. Quanto mais a causa da chateação
atua contra â livre-arbítrito, a capacidade de ir
o vir, a possibilidade de fazer ou deixar de fazer,
de estar presente ou ausentar-se, de dizer ou calar,
mais intensa é a sensação. O perigo não reside
únicamente no enleiamento provocado pelo chato,
27
O “Chato-pra-xuxu”, essencialmente agrícola
28
i ' transforma-se
no “chato-à-bessa” intermediário.
29
... m uda-se em “chato-de-galocha”y já industrial, alcança
o nível mais industrializado d e “chato siderúrgico” e . ..
m
.. .tenderá fatalmente para o “astrochato”.
31
mas numa possibilidade de domesticação do pa
ciente, uma espécie de impregnação do “apare
lho” receptor, isto é, a “chaturação”: as cotias do
Campo de Santana, quando ali foram postas, cer
cadas de grades, ao tempo do Império, fugiam e
eram esmagadas pelas caleches na rua; mas acos
tumaram-se de tal modo que, retiradas as grades
da praça, nunca pensaram em preferir a liberda
de. Do mesmo modo, há esposos que jamais pen
sam em separar-se, homens que jamais deixam o
emprego, crianças que nunca abandonam o lar,
cães que só saem com os donos. A dependência
de um chato — dependência psicológica, senti-
mentál, econômica ou por pura inércia — toma
o paciente, também, um chato passivo e solidário
com a chateação do próximo. A preocupação do
fim de mês, a falta de dinheiro, as más condições
caseiras e do trabalho podem produzir ciclocha-
tos, como o temor metafísico produz chatos per
manentes. Neste último caso, os estudos de
Geniatria deviam ligar-se intimamente aos da cha
teação: as enfermidades cardíacas, o câncer, as
lesões vasculares, a osteoporose, o artritismo, as
atrofias musculares, a arteriosclerose, a impotên
cia sexual precisam ser analisados como causas de
chatice — no chato, na vítima ou — quem sabe ?
— como conseqüência da chatice que pouco a
pouco se manifesta. Como sempre, em tais assun
tos científicos, os .escritores de ficção chegam
primeiros do que o csientistas. P roust escreveu:
Ainsi les hommes peuvent avoir plusieurs sortes
32
33
de plaisirs. Le véritable est celui pour lequel ils
quittent Tautre. Com isto, aflorou um ângulo do
problema. E quando o homem não pode mais
escolher üm prazer por outro ? Quando só lhe
resta condenar o prazer que já não alcança ? É
este o momento em que se policia — o que é rela
tivamente fácil, dadas as suas condições físicas —
e policia os demais, o que é uma forma de chatea
ção, ao interpor-se à escolha alheia.
Segue-se que a Humanidade, considerada
num todo, só encontra dois caminhos contra o
chato: submeter-se à chateação — chaturar-se —
* ou rebelar-se contra ela. Acontecendo, porém, que
a enfermidade é relativa (os meus chatos podem
não ser os seus chatos) e se manifesta em forma
crônica ou passageira (o “ser chato” e o “estar
chato” ), é difícil determinar os dois campos de
luta, colocando-se, de um lado, os que devem sal
var-se, e de outro os que devem ser liquidados.
Acreditamos que, ao fim deste Tratado, apresen
tamos a solução do problema.
$4
De como
identificar o chato
55
Co a pouco ou repentinamente, assaltam o pacien
te, ante a presença, a voz, a menção, a lembrança
do chato.
Suponha-se o leitor em um dia que chamamos
ideal: levantou-se sem rescaldos da véspera; o
sol brilha lá fora; respirou fundamente o ar; o
chuveiro verteu água; a empregada deu café à
hora; o lotação não assustou; havia lugar no bon
de; o trabalho será pouco e rendoso; depois dêle,
as horas vagas prometem alegrias de ambos os
^ sexos; a conta do banco está em regra; a consciên
cia tranqüila; os jornais e o rádio nada disseram
de alarmante; a humanidade anônima, ao redor,
roçou por ele cordialmente; nenhuma dor física,
de dente ou calo, o afligiu; o patrão foi cordato,
o empregado exímio; a temperatura não subiu
mais que a vinte graus; governo e oposição estão
sem assunto; a patroa melhorou o grude; as crian
ças, mansas e cordialmente alegres, anunciaram
dez nas provas, foram dormir cedo; em todos os
instantes a música da vida cantou em seus ouvi
dos, nascida de tudo, do semelhante, de si mesmo.
De repente, alguma coisa começa a materializar-
se. Não se apresenta de chofre (porque se o faz
logo nos assusta). Vem inofensiva, incolor, ino
dora, transparente, como parte do dia ideal. Mas
lentamente se ensombrece. Um nada, um gesto,
uma palavra, uma contração fisionômica, um som;
e logo o ser imponderável cresce em substância.
Há, dentro da vítima, uma como que adivinhação
de morte de pessoa querida, uma compressão no
36
peito, uma vaga impossibilidade de prestar aten
ção, um esquecimento de vocábulos, a dormência
dalgum músculo, um vazio de queda no estômago,
ou obesidade de dispnéia, um aceleramento de
pulsações, ou um retardamento, uma perturbação
metabólica, uma tonteira de nuvem nos olhos, um
apertar de colarinho invisível, um não saber onde
põe as mãos, um estrelar de vermes esvoaçantes
dentro do globo ocular, a cadeira endurece se
está sentado, o sapato aperta se está de pé, odores
ignorados se desprendem da rua e das casas, a
música distante se distorce, os ombros pesam o
pêso do mundo, chega-se a pensar em aspirina e
sais efervescentes, mas é inútil, tudo vem de fora
para dentro e já agora do mais secreto da máquina
humana irradiando por tôdas as delicadas peças
do organismo, os cabelos eletrizados, as unhas roí-
das, um recuar de batráquio diante do ofídio, um
rosnar hidrófobo de cães invisíveis, noite dentro
de si, povoada de morcegos, de aranhas tecendo
um campo de concentração, um bracejar de náu
frago, um emparedamento de ar, um desabar das
arestas das coisas, gosma despejada do alto, vi
brar de lâminas cravadas, pântano sumidouro gor-
golejante, asa tatalante de anjo negro, e tambores
crescendo no coração, um silvo ininterrupto nas
trompas de Eustáquio, um escovar de areia nas
pupilas, a consciência do despertar dos órgãos ve-
eetativos, coroa de espinhos de suor, um lixar em
feridas novas, um tropel de centopéias nas veias,
um desenroscar de tênia tomada sucuri no pesa-
37
. . . de repente , alguma coisa começa
a materializar-se. .. e Êíe.
38
delo, o desabrochar de abacaxi onde não cabia e
um deglutir de escamas de peixe, um desejo de
grito inútil em casa mal-assombrada, um ímpeto
de esmurrar fantasmas, pedaços de preces nos lá
bios espumantes, promessas súbitas de dedos cru
zados, a lembrança do esquecimento de alguma
coisa essencial que ainda não sabemos o que seja,
mêdo de continuar, de ser, velhice fluindo na
ampulheta do destino, adeuses de amigos sôbre
as mãos entrelaçadas no peito, odor póstumo de
flores, retângulo de madeira que desce, ruído do
revertere do pó, céu fechado sôbre o nariz, odor
de si mesmo liquefeito e putrefato, e o nada sem
pre e o sempre nada, a certeza daquela eternidade
segundo por segundo, o desfazer-se da carne e da
alma dentro dela numa erosão de tôdas as células,
o não-ser, o não-ser com a consciência daquele
outro ser que nos chupou a vida por um canudi-
nho, como se nos bebesse em refrigerante, como
se no-la aspirasse ventas a dentro, e apenas acom
panhássemos o nosso jazer desvanecendo-se.
É Êle.
Classificação
geral dos chatos *
D e n t r o d a s c o n d iç õ e s estabelecidas
na definição, chega-se a um postulado importan
te: Todo o chato é bonzinho. Não o fôsse, e não
teria tempo de ser chato. Há uma exceção: o
chato agressivo, que é o desesperado de ser bon-
zinho ou que deseja converter-nos, por coação
física, à sua bondade. Ou destruir fisicamente a
nossa maldade. O chato bonzinho trabalha na
desintegração da personalidade moral, intelectual,
afetiva; age de dentro para fora. O agressivo pro
cura a coação muscular. Mas, bonzinho ou agres
sivo, o chato ataca sempre por um ângulo que
40
O chato “catalítico” ou "subliminar”, o que age por
ação d e presença, sem falar, sem mover-se m esm o .. .
41
julgar ser o da afetividade — o que já sentia Vol-
taibe ao suplicar que o livrassem dos seus amigos,
pois dos inimigos êle próprio se livraria. O chato,
bonzinho ou agressivo, imagina-se amigo. E.
por piedade, inércia, temor ou burrice, nós às
vezes o deixamos nessa ilusão.
42
Irados, erros profissionais. As suas irradiações não
penetram apenas o paciente, mas se refletem ou
ricocheteiam, atingindo as coisas ao redor, ou vol
tam-se sobre o que a vítima está fazendo ou vai
fazer. Enquanto os catalíticos simples infiltram
chateação como um escapamento de gás, os cata-
líticos-barógenos só são reconhecíveis depois que
produziram o desastre. Existe um tipo de barç-
geno muito difundido por suas particularidades:
é o “heautontimoroumenos”, o “carrasco de si
mesmo”, de ação reflexa. São os supersticiosos,
os consultadores de horóscopos, os que têm mêdo
ou amor por números (o 13, o 7 ), por datas (o 13
de agosto, a sexta-feira .13), os que apostam men
talmente consigo mesmo que se fizerem tais ou
quais coisas outras tantas coisas necessàriamente
acontecem ou deixam de acontecer. Ainda que,
à primeira vista, parecendo apenas “autochatos”,
sem risco para terceiros, na verdade contaminam
as vítimas porque lhes atribuem o “azar” ou a
“sorte” a cujo encalço andam. O chato que conclui
mentalmente que “Fulano dá sorte” é tão perigoso
quanto o que conclui que “Fulano dá azar” (a
menos que Fulano dê mesmo azar); no primeiro
caso, gruda-se cataliticamente a Fulano; no se
gundo, afugenta os amigos de Fulano. Incluam-se
nos catalíticos os axilares e odoríferos em geral.
O catalítico, caracterizando-se pelo silêncio
ou pelo laconismo, é um penetra da solidão da
vítima, um violador do que cada homem possui
em si mais sagrado: o direito de chatear-se ou
43
O chato “catalítico-barógeno”
do tipo “heautontimoroumeno
44
deschatear-se sozinho — treinamento que lhe per
mitirá, no transcorrer da vida, correr para o pique
de si mesmo.
O chato catalítico possui um complexo de
inferioridade resultante de aflitiva imodéstia: êle
se crê invisível e, por conseguinte, não-contunden-
te. Em sua forma larvar é o tímido que, para não
incomodar ninguém ao sair dum ônibus superlo
tado, acaba acotovelando a todos, por pura deli
cadeza; é um Rim baud(*) que, par delicatesse,
não teria perdido sa vie, mas a vida alheia. Tal es
pécie de chato acaba sendo um exibicionista capaz
de praticar um ato fisiológico em nossa presença
porque a sua forma de chateação é a convicção
de que não está perturbando ninguém. Os des
leixados no traje, os sujeitos de barba-por-fazer,
os que recebem à porta em trajes menores são
dados â chateação catalítica.
2. Logotécnicos, subdivididos em diversas
espécies: pronominais, proparoxítonos, filóxenos
(atacados de filoxenia, isto é, o acendrado amor
a palavra, citações e expressões estrangeiras), os
trocadilhisas, os charadistas, os cefaloclastas
( amantes de quebra-cabeças), os sideropígios
( cdf). Em geral se subdividem em omnílogos
e unílogos, conforme versem sôbre vários assun
tos (alta porcentagem no Brasil) ou um só assun
to ( “profissionários”, que só tratam da mesma
profissão: colecionadores; haedeckerianos, de pre
45
cisão em pormenores turísticos; prendados-domés-
ticos, dados a falar de crianças, remédios, receitas,
empregadas; balipódicos, que se subdividem pelos
clubes de futebol a que pertencem). O maior
índice de unílogos se verifica entre americanos,
altamente especializados e preocupados com a
técnica de suas profissões ( * ) .
Os logotécnicos compreendem ainda os cali-
fásicos ou bocas de foro; que estu-daram emposta-
ção da voz e, quando no banheiro, cantam para
embalar-se; e os cambronnofágicos ou escatolos-
sádicos, cujo palavreado é o que se escuta nos
filmes franceses “nouvelle vague” e que não está
traduzido nas legendas em português. Há califá-
sicos profissionais, como os recitadores em geral
(* ) A extrema especialização técnica a que chegou a civi
lização americana tornou grande massa de americanos comple
tamente uníloga, o que se pode constatar em qualquer catálogo
de edições de livros sobre “know-how’7, que reunem milhares
de títulos comportando profissões, “hobbies”, manias, curiosidades,
anedotas, ciência, e apresentando pràticamente um volume para
eada problema cotidiano a enfrentar. Postos em ordem cronoló
gica os problemas do homem, assim teríamos uma biblioteca
básica de “know-how”: Como caçar passarinhos (F. C. Pellet );
Como obter uma bicicleta (C. G. F erguson); Como reconhecer
os mamíferos (E. S. Both ); Como vencer a timidez (P. W.
T itus ); Como dançar (F. E. P arson ); Como desenvolver o auto-
confiança (D. Carnege ); Como fazer uma esperiência (P.
H ogeund); Como bater em retirada (I. I parraguirre ); Como
evitar ò casamento (H. F ray ); Como dominar o seu mêdo (P.
G. Steinrohn ); Como ser pai (F. B. Gelbreth ); Como arranjar
e conservar um marido (K ate Constante ); Como organizar
uma perfeita cerimônia de casamento (L . Kelley ); Como obter
o primeiro emprêgo (G. Leeds ); Como ananjar um emprêgo
(W. K. e E. A. Richards); Como ser delirantemente feliz (I.
W allach ); Como arrumar a casa ( M. D. G illies ); Como
ganhar dinheiro (H. e I. E isenberg ); Como fiz um milhão de
dólares (A. F. T aylor); Como multipliquei minha renda e minha
46
Logotécnico-unílogo da espécie norte-americana.
47
e os cantores napolitanos. E há cambronnofágicos
que usam partículas vocais próprias como artifí
cios de pontuação: vírgulas, exclamações, interro
gações, interjeições( * ) . O Chico Pacheco da no
vela de J o r g e A m a d o é um desses. Outros vão
mais além e usam gestos, principalmente o pla-
tanus ( de plattus, chato), designação botânica da
banana, e a circunferência feita com dois dedos,
que os americanos pensam que quer dizer “Tudo
azu l!”.
3. Os unílogos não devem ser confundidos
com os ex-officio, cuja ação pode provir da pro-
48
Chato da classe “ex-officio”.
49
fissão que exercem, embora discorram sôbre vá
rios assuntos: barbeiros, calistas, locutores, den
tistas, massagistas, humoristas, alfaiates — no
momento em que exercem suas profissões. Ou
podem ser ex-officio-unílogos, quando forçosa-
mente abordam o assunto a que a profissão os
obriga: vendedores, oferecedores de amostras,
cobradores, demonstradores, “camelots”. Em mi
nhas observações pessoias, só encontrei um indi
víduo infenso à chateação ex-officio. Foi uma
senhora que me confessou: “Adoro ir ao dentis
ta 1” Essa mesma senhora ouviu durante duas
horas e meia, entremeando de perguntas perti
nentes, um vendedor-demonstrador de enceradei
ra elétrica — o qual deixou afinal o aparelho para
ulteirores experiências e nunca mais foi buscá-lo.
Quanto ao dentista, arrancou os dentes da dama,
plantou-lhe uma dentadura dupla, promoveu o
boicote da senhora no Sindicato e mudou de pro
fissão, de nome e de cidade. Mas êste é caso
raríssimo, porque via de regra ninguém consegue
chatear um chato-
50
pomos onde nós estamos” — lem aqu e tomo de
V ic e n t e d e c a r v a l h o para a classe. De todas
as espécies de hamletianos, a máis difundida é a
dos gaffeurs que, só êles, mereciam um tratado
à parte.
51
Pirotécnicos da classe dos “chatimbancos”:
os que fazem gracinhas, eepractical jokes”.
52
“Vivissectólogos”. . . quando lêem, fazem-no de
lápis na mão para corrigir os erros do tipógrafo .
6. Vivissectólogos, que nos cortam a carne
viva com o bisturi das palavras, reconhecíveis por
expressões de rigor quanto à veracidade da narra
tiva, tais como “Minto !”, “Espere a í . . . ”, “Era ir
mão da cunhada do tio daquele Pacheco, que se
casou pela segunda vez em 1897 com uma sobri
nha do ajudante de ordens de Floriano”. Os vivis
sectólogos cultivam a digressão; suas narrativas
são cheias de afluentes, subafluentes, árvores ge
nealógicas, retificações cronológicas; batem “xx”
em cima do que já disseram, como os maus dactiló-
grafos, e corrigem adiante. Quando leem, fazem-
no de lápis na mão, não para anotar, mas para
acertar as vírgulas, as concordâncias e as letras
trocadas do tipógrafo. A princípio chegam a im
pressionar às vezes mistificando a erudição, pro
duto da memória, pela cultura, produto da inte
ligência. Podem chegar ao sublime como P roust,
ou ao mero cacoete, como o escrevente que lança
várias vezes “digo”.
54
Chatos da espécie “Tartufocloclos” do tipo “self-serviçais”.
55
11. Sursumcordistas, cujo paradigma é a per
sonagem da anedota: “Agonizantezinho, hem ?”.
Expressões para identificação: “Não há de ser
n ad a!”; “Minha tia estava assim e ainda durou
dois anos !”; “A coisa vai melhorar !”; “Que guer
ra ? Estão todos de acordo !”; “Jânio vem a í !”.
São compradores de loteria, fazem promessas, an
dam na boleia da anedota, leem D a l e C a r n e g ie ,
fazem ginásticas no banheiro, tentam namorar a
aeromoça.
12. Gratitudinenses, categoria terrível: aque
les a quem devemos gratidão. ( “Salvei você de
morrer afogado, quando você tinha três anos !”;
“Se eu não tivesse falado com o Nonô, cadê o seu
cartório ?”). Dividem-se em proclamantes, os que
proferem as frases mencionadas, e os implícitos,
que não falam nada, mas apenas nos olham, sa
bendo que lhes somos gratos e nos torturam sem
lembrá-lo de viva voz. Esta classe mistura-se à dos
postulantes, e então se torna sinistra: é inútil
mostrar gratidão a um gratitudinense fazendo-lhe
vários favores; na hora que falhar um só dêles,
somos ingratos e êle o proclamará com a mais
deslayàda justiça. Brutus era gratitudinense.
César que o diga-
13. Confidenciais são os que sabem de notí
cias de primeira mão: palpiteiros de turfe ( bar-
badeiros ), boateiros, boas-fontes. Geralmente
seguram o paciente pela lapela, quando falam;
ou cospem-lhe no ouvido. Muitos contam o óbvio;
outros, o incrível, são cataclísmicos ou apocalíp-
60
“Você com pre uma válvula XP-003, que esta
michou”. (Chato da categoria dos “artesanais”).
61
ticos. Podem ser “com pedal” ou “sem pedal”,
conforme berrem ou sussurrem. Na realidade, a
maneira como falam permite indicações musicais:
“pianissimo”, “fortíssimo”, “smorzando”, “perden-
dosi”, “crescendo”.
62
Chato “donjuanesco” da espécie
aGracioso de beira de calçada9’.
63
15. Donjuanescos que, conforme a atitude de
elegância que assumem, podem ser dezmais ou
dezmenos. Numa escala cromática, vão dos encan
tadores de salão aos bolinas, inclusive os gracio
sos de beira de calçada. Quando não exercem
a chateação diretamente sôbre as damas, são con
fidenciais para os amigos: “Aquela, e u . .. Tás
me entendendo ?”
16. Otelos, que compreendem não apenas os
ciumentos amorosos mas, pior do que estes, os
ciumentos de amizades, que exigem participação
contante na vida do paciente e se zangam quando
a vítima os omite, voluntária ou involuntàriamen-
te, de um almoço, recepção ou programa. Há um
tipo que deseja impor suas estimas e inimizades
à vítima, e chega a excluir nomes de desafetos
numa conversação, preferindo dizer “O Coisa”,
“Aquêle Cara”, e batem na madeira para atribuir
“guigne” aos nossos amigos.
17. lagos. O louvável sentimento da inveja,
estimulante e emulador, pode tender para a cha
teação. Nesta categoria estão os despeitados, cujo
hábito é escolher uma vítima — escritor, músico,
político, milionário, nomeado, premiado — para
alvo permanente de ironia e maledicência. Como
não possuem voo à altura da vítima e, por isso
mesmo, lhes falta talento para a verrina sadia,
apenas supuram as próprias dôres. Frases típicas:
“Quando eu me aposentar, vou escrever um ro
mance e acabo com o cartaz do Jorge Amado!”;
“Êle assina mordendo a língua, e no entanto che
64
gou a tabelião !”. Quando mais sagazes, não che
gam a negar totalmente o objeto de suas iras:
trazem na bôca uma adversativa: “É m a s . . . ”.
Muitos críticos profissionais pertencem a esta cate
goria ( * ) , porque o não-gostar pode tornar-se uma
profissão com direito a livros dos editores, cadeiras
ae teatro, “cocktails” de “vernissage”, bilhetes de
futebol, convites de embaixadas.
18. Faisões, que não devem ser confundidos
com os pronominais, embora se identifiquem pelo
consumo do prone “eu”. Podem misturar-se aos
logotécnicos e aos donjuanescos, mas o que lhes
importa não é o bem falar ou a fama de conquis
tadores: é um certo glugú inaudível, um rama
lhete de penas douradas que estufam, o peito de
galináceo que adiantam, o andar processional, a
exigência do silêncio quando cantarolam “E u . . . ”,
o ar condecorado, o olhar além do horizonte, o
conhecimento de datas de vinhos e de restauran
tes do “Guide Michelin”, que mencionam como
se tivessem sido engarrafados e fundados em sua
homenagem. Mesmo quando procuram dar natu
ralidade de rotina a essas citações, pronunciam-
-nas em itálico ou em caixa-alta; a pompa, o “côté
de Guermantes”, a coluna social e o lugar-comum
são os seus lugares; demonstram certo talento/para
espalhar o boato de sua inteligência e firiura, a
tal ponto que ninguém se espanta se ganham o
Prêmio Nobel de Química ou da Paz.
(° ) O crítico-iago é um ctelo que, não tendo conseguido
esganar Desdêmona, trata de esganar Shakespeare.
65
Os agressivos
66
grande homem ! Hem ? Que é que me diz dis
to ? !”. Às vezes a ação não passa de argumentos
em contradita, silêncios de irônica superioridade,
riso zombeteiro, ou mesmo apartes. “Nesta é que
eu não caio !; “Que esperança!” etc. São polê
micos não no sentido helênico da palavra, no senti
do de luta; mais propriamente deveríam chamar-se
agonistas, disputadores de torneio, provocadores
de agonia. Podem tomar-se agressores físicos,
quando derrotados na discussão ou quando não
conseguem captar os favores do auditório. Então
usam expressões como “É a mãe !” e seus super-
lativos-pejorativos, de que conhecem farta sinoni-
mia. Enfrentados, valem-se da turma do deixa-
disso. Assuntos prediletos: política e futebol. Um
tipo de polêmico muito conhecido é o retroativo,
o que, a uma ocorrência infausta, exclama: “Eu
não disse ?” — embora nada tenha dito. Outra
forma: “Bem feito !”, sua única maneira de con
cordar, geralmente usada pelas damas e adama-
dos, com bater de mão fechada na palma da outra
ou de salto do sapato no chão.
Etilometamórficos
67
O chato “etilometamórfico* ( . . . de que o indivíduo
sai para outro estágio perigoso, a ressaca).
68
usar, e que no entanto ouvimos de qualquer don
zela pudica: “Hoje estou eufórica!” ). Temas:
frustrações de amor, de trabalho, de êxito na vida.
Mas o álcool ou o calor da controvérsia produz
às vezes uma exaltação de confiança, de promessa
de empreendimentos, de planos, de que o indi
víduo sai para outro estágio perigoso, a ressaca.
Ou para a agressividade total, o quebra-quebra.
Aí qualquer tema serve: pagou ou não pagou,
paguei ou não paguei, amo ou não amo, ama ou
não ama, sei ou não sei, sabe ou não sabe, quero
ou não quero, quer ou não quer, é com amigo
ou desconhecido. Convém notar que neste caso
particularíssimo as mulheres são ainda mais estu
pendas do que os homens.
Da mulher chata
69
Exemplar típico de uma “chatânica .
72
Protótipo de “Canibal” ou “Devoradora
de carne humana masculina”.
73
“Macrobiohroto”, “sexagerada” ou “velha assanhada”.
74
rona é um tipo logo identificável, pela mania de
ordem que a torna sempre ranzina).
Cumpre, entretanto, observar que o atributo
de chato (ou chata) é tremendamente relativo,
de vez que cada indivíduo tem o chato que merece
— e é esta a razão pela qual a esposa chata que
o espôso abandonou pôde encontrar outro esposo
que não a julgue chata, e então viveram muito
felizes e tiveram muitos chatinhos.
Em relação aos homens em geral as mulhe
res se classificam, e só elas, em protótipos só en
contrados em seu sexo.
1. As feias, de várias espécies: a feia que,
sabendo-se tal, desenvolve o intelecto como com
pensação e se toma uma cabeça-chata (que não
deve ser confundida com a pessoa normal, de
um ou outro sexo, oriunda do Nordeste); a bene
ficente, cuja bôlsa contém sempre listas para pas
sar, bilhetes, rifas, subscrições, propostas de sócio
etc.; a chatânica, canibal ou peixe-abissal, devo-
radora de came humana masculina; a hylea, vir
gem, sombria e úmida; a macrobiodiana, que se
raz acompanhar de efebos; a macrobiobroto, ou
sexagerada, ou velha assanhada.
À primeira vista, em relação aos homens, só
as mulheres feias são chatas. Na realidade tal
não acontece, o que permite subdividir as chatas
em casadas e solteiras. Mas as feias podem per
tencer a um e outro grupo, dependendo do auxílio
prestado pelo infeliz que lhe mudou o estado civil.
As vezes é esse mesmo infeliz que atuará de modo
75
"L ogorreicíf do tipo “uxoricida”.
7Q
Exemplo da espécie “telefonômana
77
a que a sua chata se torna, diante dos demais
homens, uma beneficente, uma canibal, uma
hylea ou um macrobiobroto. Quanto à cabeça-
chata, nunca foi levada a manifestações intelec
tuais pelo homem que lhe caiu nas garras(1) : sol
teira ou casada, já dava à luz livros de poemas, ro
mances, quadros, noturnos de Chopin — fenômeno
de fecundação espontânea com que a Natureza, ou
a divindade, se adianta à perpetuação da espécie.
Seguem-se as
2. Logorreicas, que só se revelam tais depois
de casadas, situando-se quase sempre como sol
teironas. O tipo mais comum é a uxoricida, que
mata o marido de tanto falar(2); mas existem as
telefonômanas, que ocupam as linhas telefônicas;
as vizinhas; as PRabecedárias, únicas a falar em
reuniões ( ou nos cinemas, teatros); as prendadas-
-domésticas (criança, doença, remédio, emprega
da, receita); as enredadeiras, que contribuem para
desquites, separações, anulações, divórcios, e são
altamente prestigiadas pelos escrivães das varas
de família.
S. Alices (do “Pais das Maravilhas” ), que
usam diminutivos: “bonzinho”, “amorzinho”, “de-
dinho”, “dormindinho”, “passarinhozinho”.
4. Proverbiais ou aforismáticas: “A gente
julga os outros por si”, “Quem ama o feio bonito
lhe parece”, “Se não fôsse o mau gosto, que seria
(1 ) Juvenal, Satura VI: “Soloecismum liceat fecisse marito”:
“Que seja permitido ao marido praticar o solecismo”.
(2 ) Juvenal, Satura VI: “Clytemnestram nullus non vicus
habebit”: “Não há rua que não tenha sua Clitemnestra”.
78
Peguei com a hõca na botija” (exemplar da
classe das “proverbiais” ou “aforismáticas”).
79
Da criança chata
84
curas dos pais: seduções, casamentos, guerra, di
vórcio, nôvo casamento, promissórias, amores à
próxima e desamor ao próximo etc.
A considerável extensão dos tipos de chatea
ção infantil não permite uma classificação perfeita.
Aqui apresentamos uma tentativa, a ser corrigida,
ampliada ou substituída por outras, à medida que
progredirem os estudos especializados:
1 — as diarreicas ou à milanesa;
2 — as zurradoras ou mario-lanzas;
3 — as insones ou dráculas;
4 — as prurídicas ou pestilentas;
5 — as remelentas ou miguel-strogoffs;
6 — as pegajosas ou jacas;
7 — as desaforadas ou bocages;
8 — as ludoexaustivas, campeãs olímpicas ou
robots;
9 — as pedinchonas ou curiós;
10 — as graciosas ou frankensteins;
11 — as prodigiosas (einsteinianas, mozartianas,
bertassingescas, violônicas etc.);
12 — as queixosas ou calabares;
13 — as ludoclastas, destruidoras de brinquedos,
ou megatônicas;
14 — as piranhas, também chamadas acrídios;
15 — as insaciáveis ou hitlerianas;
85
5 — os padrinhos;
6 — as babás;
7 — os professores;
8 — os médicos;
9 — os hóspedes;
10 — as visitas;
11 — os bedéis;
12 — os polícias;
13 — o curador de menores;
14 — o secretário de Educação;
15 — o ministro da Educação.
1 — sabonete;
2 — escova de dentes;
3 — pente;
4 — hora certa;
5 — colégio;
6 — diade chuva;
7 — dia útil;
8 — remédios;
9 — pátrio poder;
10 — falta de dinheiro;
11 — castigo;
90
12 — cartilha;
13 — regresso de pique-nique;
14 — música erudita;
15 — cam a(x);
16 — brinquedo alheio;
17 - lar(2).
91
Da relatividade
do chato
92
a dizer que os vivos são sempre e cada vez mais
governados pelos mortos, o que se desmente ao
verificar-se que os vivos são sempre e cada vez
mais governados pelos mais vivos, isto é, os que
se aproveitam de chatos mortos — por exemplo:
Marco Antônio.
Quanto aos chatos relativos, de existência pal
pável, reconhecível em maior ou menor dose. —
são os que nos levam a concluir que “cada indi
víduo tem o chato que merece”, pois cada indi
víduo é mais ou menos receptivo ou refratário
a tal ou qual tipo de chateação. O chato relativo,
cuja ação provoca reação em cadeia, de paciente
para paciente, tem, assim, oportunidade de atuar
am vários “aparelhos”, que armazenam suas emis
sões e as conduzem mais além, até diluir-se a fôrça
atuante. Ao tempo de N e w t o n , verificava-se a
lei segundo a qual o chato chateia na razão direta
das massas e a inversa do quadrado da distância;
em nossos dias, com o correio aéreo, o telefone,
o rádio, a televisão, o cabo submarino, o telé
grafo, o telex, e tôda a cibernética, a lei só se
aplica quando nenhum engenho mecânico, elé
trico ou eletrônico reduz a distância e o tempo
de entrada em ação do chato ( * ) .
93
Dos indícios
94
Sempre se espera pela pior figura! ( e va
riantes. )
. . . Voltando à vaca fria. . .
. . . Pra encurtar a história. . .
Conhece aquela do papagaio que entrou no
galinheiro ? ( ou qualquer outra história, iniciada
sempre com o “Conhece aquela”. )
95
Aí está Fulano que não me deixa mentir.
A gente julga os outros por si. ( Conseqüência
do Innosce te ipsum .)
Amor com amor se paga. (Esperança de me
gera.)
. . . E agora, que vai ser de mim ?
(Ameaça de queixa-crime contra curió vitorioso.)
Rogamos a presença de V. Sa. para liquidar o
débito. . .
Saibam quantos a presente virem ou desta co
nhecimento tiverem. . .
Estou certo ? (Em fim de frase. Variantes:
Visto ? Entendeu ? Percebeu ? Tá ? Não ? etc.)
Ora muito b e m . .. (Até aí muito b e m . . . )
Não fala com os pobres ?
Não é pra querer me gabar ...
É com a voz em bargada...
. . . a imerecida homenagem que me pres
tais . . .
. . . o humilde orador que vos f a l a . . . (não-
apoiados.)
Daqui por diante, seremos como dois irmãos.
Que é que você vai pensar de mim ?
96
Vamos fazer de conta que nada aconteceu.
Telefonei só pra saber notícias. . .
Há um tipo de chato que você esqueceu.
Isto é na opinião de Vossa Excelência 1
(clar o!)
Dá licença para um aparte ?
Eu não disse ?
A senhora não estava ontem no Bolero ? Puxa,
como parece !
... P ô !...
O indício sintomático do chato pode não des
pontar mediante palavras mas por simples gestos,
de que damos alguns exemplos•
Não espalmada para quem fala, como quem
diz: “Espere, deixe-me f al ar. . Ou mão espal
mada enquanto fala, acompanhada da expressão:
“Vou chegar l á . . . ”
97
Mão no ombro do interlocutor sacudindo-lhe
o corpo, como a acondicionar os argumentos num
saco. (Variantes: dedos segurando a lapela, mão
travando o braço o cotovelo. Variante de inten
ção sexual: mão que não larga a da interlocutora
à hora da apresentação ou durante conversa des-
cuidadosa.)
Indicador e polegar unidos em circunferên
cia, os três outros deds no ar, para sublinhar a
frase em pequenos compassos da anão.
98
vagões nada têm a ver propriamente com “elegân
cia". Alguns exemplos:
Gravata borboleta preta ( salvo em “garçons”
e “smokings” ) •
Gravata preta comprida conjugada com barba
por fazer.
Guarda-chuva fechado com abas abertas.
Terno azul-marinho, sapato marrom, meia
branca.
Boina no trópico (Exceção: pessoas de
idade.)
Paletó permanentemente desabotoado (e
principalmente ao andar por entre os bancos do
ônibus.)
Nó de gravata saltando para a frente do co
larinho alto.
Casaco de quadrados, lenço de fantasia gra
vata ouro-azul, meias escocesas, sapatos de camur
ça e calça cinza ou marrom ( o chato policrômico.)
99
Emblema na lapela comemorativo de anos de
bons serviços.
Vestido com cheiro da estação anterior e do
perfume atual.
Condecoração de país subdesenvolvido. Co
leção das ditas no peito ou em escrínio.
100
Piano de cauda aberto com música aberta na
estante.
Coleção de paliteiros.
Garrafas lapidadas contendo chá ou anilinas,
na sala.
Fralda no parapeito.
Livro arrevessado, visivelmente colocado com
espátula dentro, para visita ver.
Compoteira com doce de jaca.
Vinho tinto gelado (indício de conversa de
padrão rasteiro).
“Serenata” de Toselli na vitrola ( sinal do pa
drão da hora de arte).
Dístico: “Nesta casa só entra o amor”, e
outros.
Escrínio de condecorações de países subde
senvolvidos.
Fruta-pão, cajás, maracujás, carambolas na
fruteira.
Whiskey” em copo de pé.
101
Do emprego da
classificação geral
102
E m certos casos, para evitar uma absorção perigosa
durante a análise, convem usar óculos pretos, luvas de
borracha, entupidores de ouvido e roupa d e asbestos.
103
entupidores de ouvido e roupas de asbestos. Em
casos de menor virulência uma figa da Bahia pode
produzir algum resultado imunizante.
Analisando suficientemente o indivíduo, alis-
tam-se um a um seus componentes puros, assim:
104
E xercícios de classificação
105
de pessoas desinteressadas, rádios, vitrolas, televisões,
etc. A experiência tem, entretanto, a vantagem de mudar
o clima de chateação geral do momento. Por exemplo:
quando feita durante um velório, uma conferência, uma
aula, uma solenidade, etc.
106
Problem as (“story cases”)
107
. . . e então fizeram êle engolir o apito dizendo que se
não engolisse dum lado ia ser pelo vice-versa m esm o . . .
108
2 ) — Classificar os induvíduos autores da mes
ma narrativa em diversas versões:
a) “Dir-se-ia o caos. A multidão enfurecida
precipitou-se para o ajuizador e o invectivou dura
mente, com palavras soezes, e logo, passando à
ação, agrediu-o, no que foi ajudada pelos jovens
atletas ae ambas as hostes. Os mantenedores da
ordem não intervieram, no que foram exprobados
pelos menos exaltados, enquanto a ira popular
empolgava o seu objeto, lançava-o ao solo, espe
zinhando-o, produzindo-lhe equimoses e contu
sões, destroçando-lhe as vestes, fazendo-o deglutir
o instrumento com que silvara o prélio e amea
çando introduzi-lo em partes menos decorosas.
b) Aí o pessoal virou, pegou e mandou o
esculacho no cara, e então era mãe pra cá e mãe
pra lá, e êle, pô, não podia fazer neca, e então
a turma não teve disso, mandou a mão e a maca
cada, safada da vida, entrou no bolo. Seu mano,
cadê cosme-e-damião ? Até os distintos do deixa-
-disso disseram que êles eram mesmo era da mole
za e aí o resto entrou de sola, esculhambaram êle
e até tiraram o calção, dêle e então fizeram êle
engulir o apito dizendo que se não engulisse dum
lado ai ser pelo vice-versa mesmo.
c) Comunico-vos que, às 17 horas de hoje,
no campo do X, sito à . . . , ocorreu grave e repro
vável desavença entre grupos de marginais que
disputavam uma partida do chamado esporte bre
tão, o que se iniciou com o emprêgo de palavras
109
de baixo calão, seguindo-se a agressão ao juiz.
A Autoridade, chamada a intervir, foi impotente,
mesmo concitada por uns poucos populares. Os
perturbadores da ordem feriram a vítima, coa
gindo-a a engolir o apito, sob ameaça de outras
sevícias mais degradantes, ameaças consubstancia
das na imposição de descer o calção da dita vítima.
Outrossim, saúde e fraternidade.
110
“Les amants terribles”, não, esperem, “Les enfants
terribles” não, espera aí, “Phèdre”, é isto, de
Corneille.
4 — Classificar:
5 — Classificar:
111
. . . “mas onde é que eu estava mesmo P Ah, cavalo de
corrida. D e corrida. Pois aquêle Inácio tinha uma filha
que era uma uva. No “poker” en tã o .. .
112
dela. Namorou também o Chico. O Chico, o
nosso Chico, ora ! Como era mesmo o nome dele ?
Você sabe, êle me disse até que você ficou de
vendo mil cruzeiros a êle. Não pagou e fêz muito
bem, o Chico está podre de rico, quinta em Por
tugal, filho que não acaba mais. Filho que não
acaba mais. Estive lá, me mostrou a adega. Olhe:
o melhor vinho que já provei. O melhor. Só.
perde para um que vendiam no Monteiro, nos bons
tempos. Você tem estado lá ? Não é a mesma
coisa. Não, não é. Capaz. Também, deram de
misturar, querer enganar a gente. . . A mim nin
guém engana: basta cheirar a rolha e . . . Quer
apostar? Olhe: uma vez ganhei uma aposta do
Bemardino — se lembra ? O Bemardino, cara
gozado, Bemardino Cunha, da Drogaria Cunha.
Pois êsse Bemardino achou que eu não entendia
— besteira, êle nem sabia que meu avô, Barão de
Aratimbó, importava vinhos franceses — franceses,
hem ? Não era pouca porcaria! — que eu até
cheguei a provar quando era pequeno, na fazenda.
Me lembro até que êle gostava de preparar uma
sangria, mas só com francêses, sabe como é: água,
açúcar e vinho. Foi quanto tomei meu primeiro
pileque. Meu primeiro pileque. Mamãe, coitada,
ficou, com perdão da palavra, . . . Mas onde é
que eu estava mesmo? Ah, cavalo de corrida.
De corrida. Pois aquêle Inácio tinha uma filha
que era uma uva, eu quis até casar com ela, mas
não deu certo, mas de qualquer modo o papai
aqui se defendeu. Bom, o Inácio era o tipo de
sujeito que não perdia. No “poker” então... Não
113
0
114
perdia. Uma vez bateu um “four” de ases, assim,
pá ! — porque pensaram que ele estava blefando.
Ganhou cinco pacotes do Alfredo, lembra-se ? —
um casado com uma tetéia — e que quando come
çava uma história não acabava nunca. . . O tal
que.. . Acho até graça. Ouça que é boa. O
Alfredo. . .
6 — Classificar:
7 — Classificar:
— Vamos, que é isto ? Nada de chôro ! Mu
lher é assim mesmo: vai uma, vem outra! Olhe:
115
quer saber duma coisa ? Foi até bom que a Er-
nestina largasse você. No fundo, uma chata. E
um bofe, saiba disto ! Todos achavam. Eu sem
pre me dizia: como é que você, um cara tão legal,
foi se casar logo com a Ernestina ? Miss Brasil,
tá certo — mas um canhão, cá pra nós. Rica e
tudo — mas uma chata. Bolas, pare com êsse
chôro! Vamos dar um giro pelo mulherio e isto
passa. Você vai até se sentir melhor sem a Emes-
tina ! E não pense que ela era batata assim como.
você está pensando. Pergunte ao Jerônimo. Agora,
que vocês se separaram, você pode saber. Olhe,
vou lhe dizer como amigo: até comigo e l a . .. Eu
é que não, que comigo mulher de amigo é irmão
— nem irmã. Pipocas, você vai ou não vai parar
com a bobagem dêsse chôro ?
8 — Classificar:
— Vamos, sente-se aqui ao lado do doutor.
Modos, hem ? Cumprimente o doutor, que trouxe
até bala pra você. Juquinha faça o que estou
mandando ! Não ligue, não, doutor, no princípio
êle é assim mesmo mas depois perde a cerimô
nia. Vamos Juquinha fique ali e recite bonitinho.
Bala só depois. Não quer recitar ? Olhe que o
doutor come tôdas as balas. Não quer fazer nada,
vá lá pra dentro que a mamãe quer conversar
com o doutor. Não quer ? Que fe io ! Vai se
esntar no colo do doutor ? Faça uma festinha
nêle. Vamos, se você não fizer, mamãe é que
vai fazer. Juquinha, não puxe o bigode do dou-
116
“Juquinha, fique aí na sala comendo bala,
com modos, que mamãe vai enxugar o doutor
117
t o r ! Veja, doutor, já está começando a ficar
íntimo... Juquinha, olhe o que você fêz no colo
do doutor ! Oh, doutor, por favor, não ligue, sabe
como é criança; vamos lá dentro e eu passo um
pano com água quente. O senhor é de casa. Ju
quinha, fique aí na sala comendo bala, com modos,
que mamãe vai enxugar o doutor. Entre, doutor,
a casa é sua. Juquinha, fique aí até mamãe voltar.
118
Do chato benigno
119
— Mas você podia ter trazido aquele chato
para ver a minha p e ça !
Podia; mas teria adicionado dois chatos e mais
a peça. O segundo chato me livrou de duas cha
teações, impondo-me só a sua. Quando tais coi
sas ocorrem, o difícil é saber optar. No caso,
porém, não me livrei de nôvo convite do primeiro
chato mas, de qualquer modo, ganhei o direito
de adiar uma chateação maior.
Contou-me um amigo que, num dia de angús
tia financeira, caminhava cabisbaixo pela Avenida
Rio Branco quando avistou um chato em embos
cada. Desviou, decidiu cruzar para a calçada
oposta; mas o chato, implacável, saiu-lhe no ras
tro, alcançou-o. Meu amigo resignou-se a aturá-lo
e, supondo que a participação de suas preocupa
ções pelo menos chatearia o chato (o que nunca
é verdade, porque o chato se encanta em tais mo
mentos e passa a atuar com mais apetite), con
tou-lhe o problema que o afligia. O chato tomou
meu amigo pelo cotovelo, fê-lo assinar algumas
promissórias a 5 por cento ao mês e sua vítima
se livrou da crise. Em tal ocasião é preciso reco
nhecer que o chato foi benigno, embora, a prazo
mais longo — e não tão longo assim — passasse
a chatear o paciente com a cobrança das promis
sórias vencidas.
Certa dama, de louváveis dotes físicos, era
perseguida por um chato donjuanesco, que de lon
ga data lhe dirigia palavras envolventes e eviden
temente chatas. Uma tarde, ao tomar um sorvete
120
uuma confeitaria, o chato ousou acercar-se. A um
movimento de indignação da dama, um cavalhei
ro, que se achava sentado a uma mesa próxima,
pediu licença para acompanhar a dama no sorvete
em questão, o que afugentou o chato. Casaram-se.
Embora hoje a dama se encontre, às escondidas,
com o chato inical, seu espôso é um chato
benigno.
Outro cavalheiro de minhas relações foi for
çado, por circunstâncias de ordem mundana, a
levar pêsames a um conhecido, na capela em que
êste velava um parente. Ao entrar, surge um
chato, em lágrimas, que cai nos braços do cava
lheiro, manifestando-lhe enorme gratidão por vê-lo
ali e supondo que êle comparecera para lhe trazer
condolências pela morte de seu pai. O cavalheiro
não teve coragem para desfazer o equívoco — e
daí por diante passou a receber as maiores provas
de consideração do chato, que o colocou até como
gerente-geral de suas indústrias.
Tais exemplos demonstram a benignidade
relativa dos chatos, em determinadas circunstân
cias. Mas não provam que o chato deva ser culti
vado, à esperança de que dele surjam benesses,
alegrias ou milagres. Provam, sim, a vitória do
chato, a mais perigosa das vitórias, pois envolve
uma mistificação' e uma falsa propaganda em
favor da espécie.
121
Proposições
relativas aos chatos
122
Dois chatos da mesma espécie não se chateiam.
123
Mentiroso só é chato quando diz a verdade.
A Terra só não é chata nos polos.
Um chato mergulhado num fluido recebe um
impulso vertical, de baixo para cima, que o situa
em nível de chatear proporcionalmente todos os
indivíduos imersos no mesmo fluido. Consequên
cia: Inútil servir bebidas quando houver um chato
presente, na esperança de evitar ou diminuir sua
chateação: ele continuará a chatear todos os de
mais, qualquer que seja o fluido servido.
O grau de chateação proporcionado por
vários chatos simultâneamente é igual à linha
vetorial do conjunto de forças chateantes. Con-
seqüência: Em presença de vários chatos, o pa
ciente e seus amigos não podem decidir entre um
cinema, um teatro ou um passeio de automóvel.
Certamente irão todos a um lugar inesperado e
chato.
Pode-se medir o grau de chateação, por inter
médio de um detetor a que denominei, modesta
mente, “chateômetro de F i g u e i r e d o A unidade
da chateação ( C h)é igual à porção de partículas
capaz de encher, num segundo, um saco de 1 litro
(10 cm X 10 cm X 10 cm), submetido ao vácuo
absoluto.
As subunidades e múltiplos do Ch são:
Decichato ( deCH ) — 0,1
C entichato ( ceCH ) — 0,10
124
O “Chateômetro de Figueiredo”.
125
Milichato ( m Ch) — 0,001
Decachato ( DCh ) — 10
Hectochato ( H Ch) — 100
Quilochato ( KCh) — 1000
Megachato (MCh) — capaz de encher o
Saco de São Francisco.
Problemas
126
Pergunta-se:
a) Se você vier no primeiro trem, a que dis
tância de A deve saltar para não ser eliminado
pelo conjunto vetorial dos dois chatos ?
b) Se você vier no trem B, que quantidade
de chateação adquirirá ao se cruzarem os dois
trens ?
4 — Um chato mudou-se para Brasília (den
sidade dê chateação de 5 atmosferas). Que den
sidade de chateação trará para o Rio depois de
uma legislatura, se para lá foi com 25 deCh ?
5 — Que quantidade de chateação precisa
ter um “sputnik” a 300 Km da terra para eliminar
a humanidade ? Considere-se a Terra um ponto
no espaço).
6 — Um menino foi a um baleiro, um sor-
veteiro e um jomaleiro, sucessivamente, permane
cendo 1 minuto em cada um. Dado que o baleiro
era um chato de 2 ceCh, o sorveteiro um chato
de 5 ceCh, o jomaleiro um chato de 6 mCh, e o
menino um chato de 370 KCh, que quantidade
de chateação absorveu cada um ?
7 — Um infeliz casou-se com uma chata de
55 DCh. Que quantidade de chateação absorveu
ao comemorar as bodas de prata? (N. Cálculos
ao nível do mar).
8 — Um dançarino inadvertido tirou para
dançar uma valsa uma chata de 5 HCh. Ao fim
127
da música (2 minutos e 30 segundos), que grau
de chateação adquiriu? (N. Cálculos à altura
de São Paulo).
9 — Duas amigas chatas, d'e 15 e 25 deCh
respectivamente, se encontram numa confeitaria.
Se a primeira come um bolinho em 15 segundos
e a segunda come um bolinho em 5 segundos,
quantos bolinhos comerão antes de morrerem de
chateação ?
10 — Um professor chato, de 15 HCh, ini
ciou-se no magistério aos 21 anos e se aposentou
aos 60. Que quantidade de chateação distribuiu
aos alunos ?
11 — Um chato de 12 ceCh estuda piano 5
horas por dia. Qual o limite de tempo para que
o vizinho se mude ainda vivo ?
12 — Uma mulher chata contou, em 25
minutos, uma história que uma pessoa normal
contaria em 3. Qual o índice de chateação da
mulher ?
128
Sísifo e Catilina
129
do primeiro amor. Tem que vencer tudo isto para
moer os afluentes do Amazonas, as capitais da
Ásia e da África, a aridez do rebatimento duma
épora no espaço, a transformação duma raiz gra
matical através dos tempos, os percalços da sintaxe
nas décádas d'e Camões. E tais viagens, a do rio
no mapa, e das cidades na memória, a das linhas
imaginárias no imaginário, a do étimo, a dos decas
sílabos, êle as repete ano após ano. O seu auditó
rio muda; difere do auditório do marido que conta
sempre as mesmas anedotas diante da mesma es
posa diluída sempre entre os ouvintes de primeira
vez. No caso da esposa, o convívio conjugal é que
é a moenda das anedotas; no caso do professor,
é êle mesmo quem automatiza a habilidade Cati-
lina de dissorar, gota a gota, o seu conhecimento.
E então a voz da cigarra, o riso no pátio, o sabor
do açúcar, o sol da praia, a recordação do cigarro,
o arrepio da disputa da bola, o arrepio maior a
inaugural lembrança do amor dominam a cantilena
da aula. Se isto acontece, o homem é um chato,
e ensinará o que os alunos lhe dirão: Quosque
tandem, Catilina. . . ?
Porque se esqueceu de soprar a aventura e
o entusiasmo naquilo que ensina. Porque nas ri
mas camoneanas quer que se busque apenas o
sujeito e o predicado, nunca a adolescente peripé
cia de um grupo de homens a adivinhar os hori
zontes e os mundos em barcos de madeira, proeza
bela como fita em série ou história em quadri
nhos. E quando fala das cidades e dos países, des
fia nomes esdrúxulos e números estatísticos, sem
ISO
lhes dar a carne e o sangue de gente viva, suas
grandezas e misérias, as colunatas do passado e os
dramas do presente, a cor das roupas e dos olhos
femininos, o gôsto dos manjares, o cheiro das plan
tas e das vielas, a dor da pobreza e o fausto dos
ricos. E nas linhas pontilhadas, encimadas de
letras, e no desenrolar dos logaritmos e do número
pi, nos braços perdidos da hipérbole e no enroscar
da circunferência sobre si mesma não coloca o des
lumbramento dos astros em rondó e procissão, o
desejo de descobrir outras galáxias. Tudo consiste
em que Sísifo cante enquanto empurra a pedra;
e a pedra brilhe enquanto volta a rolar.
131
Franklin e o raio
132
— Absolutamente. Queria mesmo conhecê-
lo. Se tem algum tempo e se não acha que sou
cha to.. .
E o funcionário me contou que, cada vez que
se abria a porta do salão, e aparecia uma parte,
esta circundava o olhar e, se era chata, imediata
mente se dirigia à sua mesa. A princípio pensou
ue isto se devia à localização da mesa. Pediu
3iscretamente ao chefe que a fizesse mudar para
mais longe. A estranha preferência continuava.
Novamente mudou de lugar, para o fundo da sala.
Tudo permanecia igual. Notava, por exemplo, que
mulheres interessantes jamais se aproximavam;
mas os varões cabulosos logo a êle se dirigiam.
Que aconselhava eu ?
Na falta de melhor conselho, disse-lhe que
obtivesse transferência para um serviço que não
o de atender às partes.
— Não, não é possível. Isto me acontece na
rua, quando espero o bonde, em qualquer fila,
quando vou a uma festa, a um clube. . .
Estava descoroçoado.
O caso desse paciente é o resultado de um fe
nômeno semelhante ao que se observa com os do-
madores de animais: graças a um odor que exa
lam, imperceptível a certas pituitárias, mas agudís-
simo para outras, atraem os chatos como o equi-
tador submete o cavalo, o caçador faz voltar o
cão, o cornaca chama o elefante, São Francisco de
Assis chamava as aves, e Tarzan comove as feras.
133
— O senhor funciona como uma espécie de
para-raio de chatos. O senhor é um Franklin que,
tendo inventado um para-raios de uso pessoal, não
pode livrar-se dele.
— E então ?
— Incurável.
O homem desalentou-se. Continuei:
— Inútil disfarçar o rosto, com barbas, bigo
des, perucas. Inútil receber mal, mudar o tom da
voz, ser grosseiro, fingir de surdo, fingir de louco.
O senhor tem o dom de imantar os chatos; se o
senhor fôsse um canário, devia ser posto numa
gaiola ao lado do alçapão.
— Nenhuma esperança ?
— Nenhuma.
— Segue-se daí que minha mulher é chata,
meus amigos são chatos. . .
— Tudo indica. Mas. . .
Ao meu “mas”, houve um lampejo de ansie
dade nos olhos do homem.
— Mas o senhor pode ser utilíssimo. Con
verta a desgraça em profissão. Explique sua fa
culdade ao ministro, peça-lhe que o coloque para
atender aos postulantes, na sala dos oficiais-de-
gabinete. Resigne-se à sua condição e tire pro
veito dela.
Soube depois que o funcionário encetou uma
carreira brilhante, servindo exemplarmente a vá
rios superiores, a vários ministros. Louvaram-lhe
134
a paciência, a afabilidade, a capacidade de con
tornar as situações difíceis, de contentar chatos
exigentes, do tipo sabe-com-quem-está-falando.
Mas a sua sorte não foi nada invejável. O
para-raio de chatos precisa submeter-se a um rigo
roso regime, como o dos diabéticos em relação ao
açúcar e o dos urêmicos em relação ao sal. Deve
robustecer-se de inquebrantável força de vontade
e auto-domínio; deve aprender a representar um
papel de que não gosta. Para êle, não apenas os
chatos autênticos se revelam, mas, ao fim de certo
tempo, desconfia de que as pessoas são chatas, à
simples aproximação. Torna-se levantador de cha-
tos-lebres e, como resultado duma deformação
mental, convence-se de que todos são chatos. Res
ta-lhe a solidão, que poderá fazer acompanhar de
um copo, um salão vazio de museu ou exposição,
uma vitrola, uma estante de livros. Se a misantro
pia lhe permite sublimar-se, ou se a ela se entrega,
tanto faz: em pouco tempo o para-raio de chatos
será também um chato. E fatalmente tenderá para
o chato-de-si-mesmo. Em desespêro de causa,
confraternizará com os demais chatos que atraiu.
Então poderá ser relativamente feliz, esquecida a
sua condição de para-raio. Ou terrivelmente in
feliz: os outros o acharão definitivamente
chato ( * ) .
135
Biógrafo
e biografado
1S6
nunca está sozinho. Admira o seu chato, ama-o,
ama suas histórias, suas peripécias, suas chatices.
Acaba por biografá-lo. O Doutor Johnson tinha
em Boswell um ajudante chato, como Goethe o
tinha em Eckermann, como Napoleão o teve em
Las Cases, como Sócrates o teve em Platão.
O ajudante de chato pode ser do tipo larvar,
que apenas nos pergunta:
— Conhece a última do Fulano ?
E conta de Fulano uma história que podería
ser boa, mas que passa a ser chata. Ou se toma
um tipo genial, o paciente taquígrafo do gênio.
Às vezes, o chato e seu ajudante se confudem
numa só pessoa, e então pode produzir obras gran
diosas: o Diário de P epys, a Viagem ao redor
do meu quarto de De Maistre, o À la recherche
du temps perdu de Proust.
137
A
prece
e o milagre
138
de curió. A prece, o soneto, o ditirambo não pas
sam de veículos mais ou menos felizes para lo
grar o êxito. Não sei (e isto dirão os teólogos)
até onde a prece alcança a graça almejada, se a
sua insistência nas órbitas do têrço ou o fervor
com que parte para o Altíssimo. Sei de casos
que tocam as raias do milagre, e no entanto igno
ro até onde o milagre foi obra da fé contida na
oração ou de um estado de chateação do Sobre
natural. Quanto ao sonêto (forma literária de
petição, como a balada e o é de oferta), nem sem
pre é da melhor qualidade quando obtém a be
nesse suplicada em suas catorze súplicas. Estou
mesmo a aceitar que a melhor literatura é feita de
graças não alcançadas. Beatriz, Laura, Natércia,
Heloísa e tôdas as “donne” e musas só o são pelo
mérito da resistência. Ou porque não tiveram
sensibilidade bastante para perceber que ali esta
vam Dante, Petrarca, Camões, Abelardo. Ou por
que sua virgindade os pariu Deuses. Dulcinéia,
guardadora de porcos, passa à imortalidade; o
seu contrário, Circe, não levou homem algum à
antologia, mas transformou em porcos os que
quis.
What should b e of PetrarcKs sonnets in his life
If Madonna Laura should be his wife ? ( 0 )
139
parta, e Don Juan, o Burlador de Sevilha, em
nada contribuíram para as letras. Do primeiro,
Homero não registra um só modelo de petição
— e no entanto tôda a guerra de Tróia resultou
de um cochicho nos ouvidos de Helena. Do se
gundo, Tirso de Molina só copiou o fato consu
mado; e a Serenata que Mozart lhe atribuiu é de
dois séculos após, e portanto apócrifa. A conversa
do sentinela do cemitério de Éfeso com a virtuosa
matrona mal está indicada no Satiricon; Pe-
trônio apenas registrou o êxito dela. Pedir em
vão pode ser obra de chato, mas também obra de
gênio: a Appassionata é uma frustração.
O pedido, por todas as vias amigáveis e
admissíveis, daí à petição inicial litigiosa até o re
curso extraordinário, pode exercê-los douto ou
chato, ou ambos, ou inepto — e a graça é sempre
alguma coisa que nada poderá ter a ver com a
justiça, ou com o acaso. Mas o pedido que en
volve o ditirambo, seja o cartão de visita para o
pistolão, seja a carta de imundos adjetivos, seja
o discurso sabujo, seja a “corbeille” natalícia ou
a cesta de Festas, contém sempre uma dose de Ch,
perceptível ou não à vítima. Também não é o
melhor ditirambo, o de mais altas qualidades li
terárias, o que logra o êxito. O Conselheiro dos
Amantes é mais eficaz que os “lieder” de Schu-
bert. Porque o êxito depende da vaidade ou da
capacidade de chaturação do destinatário, do seu
bom ou mau gôsto. Pedir é chato; tudo consiste
em saber pedir gostoso para quem pode dar, ou
140
pedir tanto que não haja outro remédio senão dar.
O caminho do chato e o caminho do sedutor le
vam ao mesmo fim: mão de donzela, amor, sine-
cura, empréstimo, voto, tabelionato. O uirapuru
e o curió chegam à vitória: o que dizem não
chega a ser Canto — é cantada. O que cantam é
o efêmero, mas alcançam o que desejam. Pai
rando sobre eles está o humilde tico-tico: “Perdi
o dia à-toa, à-toa, à -to a .. Perdeu. Mas ficou
seu subproduto, a Arte.
141
Do folclore
ao embalo
P r i m e ir o servirambebidas e canapés
aos convidados, em pé, e os “garçons” faziam ques
tão de não nos deixar de copos vazios.
Depois, a dona da casa conduziu-nos para o
jantar, em mesinhas alegres na varanda — e foi
um desfilar de pratos e vinhos, entre risos e con
versas que se desdobravam, em francês, em inglês.
Porque — só então eu soube — tratava-se de
ministrar folclore e alguns estrangeiros recém-
chegados, dêsse que ficam loucos pelos nossos
ritmos, as nossas melodias, e querem que a gente
traduza e explique o que vem a ser “muié rendá”
e outras expressões cavilosas do populário.
O cavalheiro e a dama que me tocaram eram
dêste topo: ela trauteava músicas, êle abria um
caderninho e tomava notas.
142
Depois da sobremesa, depois do café — eu
devia ter previsto — haveria folclore para os con
vidados. Uma senhora arfante e agitada sacou um
violão, que se achava escondido por trás duma pol
trona, e repenicou-o. A dona da casa bateu palmas
graciosas, disse que a outra ia cantar. Com o copo
de “cognac” na mão, fui esconder-me num canto
da sala, na penumbra deixada por um abujar. O
casal também veio. E a dama arfante começou:
143
— Indeed? Well, go on. Please, translate.
— “Muié rendá” . .. Well, this is a joke. A
poetical licence, just to rhyme.
— O h!
— “Tu me ensina a fazê renda. . . ” This
means “you teach me to make laces”. . .
— Oh, it is another lady who doesnt know
the joh and sings to her, isnt?
— Não, pipocas ! lt’s a man! Um homem!
— A man ? —But it’s a lady who is singing. . .
— Mas isto é uma canção de homem. It’s a
mans song. Morou ?
— O h! Why does he want to learn to make
laces ? Is he a sissy ?
— Que sissy! Macho pra burro ! Canção de
Lampião ! Sei lá prá que êle quer aprender a fazer
renda. . . Oh, yes . . . A resposta está no verso se
guinte: “Que eu te ensino a n a m o rá ...” This
means: “And I teach you t o . .. t o . .. (E u ia dizer
“to flirt” mas achei fraco.) . . . to make love”.
O homem abriu os olhos, a dona dele também.
O homem tomou nota e murmurou:
— So the man wants to leam to make laces in
order to make love to her P It is absolutely neces-
sary to make laces to practice such a biological
function ?
144
Desisti. Fingi que estava dormindo. E acabei
dormindo mesmo. E de repente o copo de
“cognac” deslizou-me dos dedos e estalou no chão.
Acordei, num sobressalto, bati palmas. Todos se
voltaram para mim. A cantora suspendeu o acor
de no ar. Mas o casal de chatos folclóricos solida-
rizou-se comigo, bateu palmas também, exclamou:
— Very n ice! Very n ice!
145
O cão de Ulisses
ou o chato mnemônico
146
A pergunta já vinha com um tom de queixa,
de injustiça que eu estava cometendo. Alguém a
quem eu devesse um favor ? É da natureza hu
mana esquecer as pessoas a quem se deve um fa
vor. Alguém que me mordera ? É da natureza
humana guardar sempre a fisionomia do faca-
dista. Alguém com quem privei ? É da natureza
humana guardar apenas a memória dos bons mo
mentos, ainda que em condição dantesca: “nella
miséria”. Alguém que me tivesse, em alguma cir-
constância, contado algo que julgou interessar-
-me ? É da natureza humana ouvir sem escutar,
quando se tem na cabeça outro assunto, promissó
ria, dona, hora do bicho. Colega de turma ? É
espantoso como envelhecem, nas rugas e na men
talidade, os colegas de turma, até se tomarem irre
conhecíveis e antidiluvianos. Há um pânico den
tro de mim, que procuro disfarçar...
— Não se lembra ?
Aí já o chato se revela chato; mas tem espe
ranças na nossa cordialidade, esperanças já aba-
lançadas. Talvez sinta mesmo um secreto receio
de dizer seu próprio nome, o que pode ocasionar
outra expressão de desilusão de minha parte. En
tão sai pela tangente:
— Como vamos de pesca ?
É alguém que deve associar-me a pescarias.
Não sou de pesca. Uma cocoroca aqui, um ba-
dejete além, mas esmpre em ocasiões precisas. Per
corro mentalmente tôdas as minhas pescarias dos
últimos dez anos e vejo que foram quatro; e me
147
lembro dos companheiros de tôdas as quatro. Mas
o homem liga-me à pesca, a minha fisionomia lhe
recorda esse esporte que não é o meu. Res-
148
Rodou nos calcanhares e derreteu na multi
dão.
O faro do cão de Ulisses é faro de chato; mas
quando falha também o é. Pois com o meu amigo
Aloysio aconteceu coisa igualmente trágica. An
dava pela Galeria Cruzeiro, ao bom tempo da Ga
leria Cruzeiro, quando lobrigou um antigo compa
nheiro de escola, dos idos de garoto. Amigo velho,
boa praça. Resolveu surpreendê-lo, veio-lhe por
detrás, tapou-lhe os olhos com as mãos, disfarçou
a voz e perguntou, já prelibando a alegria do en
contro:
— Adivinha quem é !
O outro, assim fisicamente dominado, achou
de melhor alvitre topar a brincadeira. Levantou
as mãos, colocou-as sôbre as de Aloysio, apalpou-
as lentamente, enquanto ia dizendo:
— Deve ser de sujeito casado, porque está de
aliança. . . E freqüenta manicure e usa unhas
compridas. . . Pelo sedoso das mãos, desconfio até
de sua masculinidade. . . Desconfio, não: não te
nho a menor dúvida !
A piada começava a ser chata para a Aloysio,
que tratou de retirar as mãos, rodar o corpo da ví
tima, encará-la com um sorriso aberto — que logo
se desvaneceu em vergonha e “gaffe”:
— O senhor me desculpe ! Pensei que fôsse
um amigo meu I Por favor, me perdoe !
E tratou de disparar, amargurado consigo
mesmo. A amargura levou-o a alguns “chopps”, os
149
“chopps” o levaram à Cinelândia; e lá, quando
flanava diante dos cinemas, deparou-se com o
amigo, o colega de infância, precisamente aquele
boa praça, companheiro de escola e de moleca
gens. Partiu para êle, braciaberto, boquiaberto:
— Fulano, imagine você que ainda há pouco
encontrei um (censurado pela Liga dos Pais de
Família) que era a sua cara !
O outro riu, condescendente:
— Pois esse ( censurado pela Liga dos Pais de
Família) era eu !
O chato mnemônico nos leva às últimas conse-
qüências da tortura mental e até à tortura física.
Conta-se de um bravo militar, mau fisionomista
como tôda a gente que se preza menos os políticos
eleitoreiros, e que chegou a diretor da Central do
Brasil, que um dia, precisamente quando era dire
tor, e portanto alvo de saudações lucrativas, foi
abordado por um chato mnemônico na Rua do
Ouvidor. O homem embandeirou-se, saudou-o,
sacudiu a cauda de cão de Ulisses, enquanto o ge
neral se desdobrava para reconhecê-lo.
— Vejo que o meu caro general não está me
reconhecendo. . .
— Bem, eu. . .
— Veja lá ! De onde ?
— E u . ..
— Confesse.. .
— O amigo. . . Espera l á . . . Como é mesmo
o seu nome todo ?
150
— Diga o pedaço que o senhor sabe. . .
Sorriso desconcertado, pausa.
— Então ? Minha fisionomia não lhe lembra
nada ?
Nada. Mas aí o chato sente pena de ser chato,
ou não quer perder a chance de intimidade, e de
cide lançar uma tábua salvadora:
— Ê natural que o senhor não se lembre. . .
Tou mais queim ado...
O general ilumina todas as centelhas do rosto
e dos bordados:
Oh, Senhor Tómas Queimado! Como tem
passado ?
E aperta efusivamente os ossos daquele es
queleto desconhecido.
151
A bússola
e o vento
152
Chaby. O manuscrito não mereceu leitura, apesar
das várias visitas do autor; até que Chaby, já não
tendo como desculpar-se, falou ao tragediógrafo:
— Meu Senhor, a tragédia, depois dos clás
sicos, caiu em desuso. Mas aqui há o material
para um drama, que é o que a burguesia pede
agora. Transforme sua obra em drama.
E acreditou que o autor compreendería, ou se
diluiría. Algum tempo depois o tragediógrafo
voltou, já dramaturgo, apresentando os originais
de “Um drama na Beira”.
E foram novas visitas e novas desculpas. Até
que Chaby se decidiu por outro conselho:
— Meu prezado Senhor, os tempos mudaram.
Ninguém mais quer saber de drama* O público
quer rir. A crítica acha que não sou ator dramá
tico, mas cômico. Tome a sua obra, reduza os ana
crônicos cinco atos a três; faça dela uma comédia,
que é o que pede a velocidade dos dias de hoje.
O dramaturgo desapareceu e voltou comedió-
grafo. A “Comédia na Beira” esperou eu vão a
leitura de Chaby que, desesperado com o cerco,
tornou a opinar:
— Meu amigo, no momento não há possibili
dade de montar uma comédia. O meu repertório
é bastante para várias temporadas mas acho que,
se o amigo encurtar o que escreveu, extraindo
dêste material um “léver de rideau”, poderei com
êle completar um espetáculo.
153
La se foi o autor e ressurgiu com um “Episó
dio na Beira”, destinado a esperar em vão a lei
tura de Chaby, que afinal sentenciou:
— Ouça, querido amigo, o teatro vai mal. Já
ninguém o preza. As salas de espetáculos estão
vazias. Não creio que esteja aí a sua carreira. Ao
que sei, porém, o público se inclina agora para o
violino. Não há quem não adore o violino. Por que
o amigo não se dedica ao violino ?
Oferecendo tão longa perspectiva, de anos se
guidos de curso, julgou livrar-se para sempre do
chato. Mas, passado algum tempo, êle reaparece:
— Segui seu conselho, comprei um violino,
tomei professor, enfrentei o Conservatório, for
mei-me. Venho pedir-lhe que patrocine o meu pri
meiro concerto.
Chaby Pinheiro afirmava que o homem era
um chato; R. Magalhães Júnior assim o toma. In
dago, porém, se não teria sido chato o próprio Cha
by e se, por um desses milagres da natureza, não
havería transformado um autor-chato num violi
nista não-chato. São mistérios que a ciência ainda
não revelou. O violino de Ingres pode ser uma for
ma de Ingres ser pintor; a pintura de Churchill
pode ser uma forma de Churchill ser estadista. A
opinião do sapateiro sobre a pintura de Apeles é
uma forma de o sapateiro ser mau pintor e Apeles
um mau sapateiro. Todos temos, escondidos atrás
do que nos foi possível ser, os desejos frustrados
do que não fomos, nem somos, nem seremos;
154
atrás de cada um desses desejos, os sonhos do va-
galume e da estrela de Machado de Assis, está o
lado chato da nossa personalidade — o lado chato
que pode ser o estimulante do lado não-chato.
Tanto chateou Colombo para que lhe dessem
meios de ir às Índias que acabou descobrindo a
América ( * ) .
155
A
torcida
e o telespectador
156
Que falta, para que tal não aconteça ? O di
reito à solidão, mesmo a solidão diante do vídeo
na emocionante partida: o direito de olhá-la ou
desligá-la; e o direito da torcida, de ir ao estádio,
mergulhar na turba e bradar impropérios contra
a mãe do juiz, sem estar obrigado a acenar uma
bandeirinha. Sem isto, a justiça do pão equitati-
vamente distribuído, o direito de possuir uma tele
visão ou de ir ao estádio são nada.
157
Perdão, pode-se fugir para o devaneio, tele
visão invisível e de olhos fechados. Mas, ai, a in
sônia, como o sono, é causa e conseqüência da cha
teação. Bocejar de tédio ou ser assaltado por irre
primível vigília tanto resultam da ação do chato
sôbre nós como podem infundir chatice ao redor.
Há chatos de dar sono e chatos de tirar o
sono; há sonos e insônias de provocar chatice.
Insônia e sono podem provir igualmente do
bombardeio iônico de outrem ou podem ser o
nosso bombardeio iônico sôbre outrem. Outrem,
ser ou Estado, só evitará a chatice e não a promo
verá, na medida em que eu, ser ou parte do
Estado, puder ser, por meu desejo, torcida e teles
pectador.
158
Minha terra
tem palmeiras
O sw a ld de numa tentativa
A n drad e,
teatral intitulada “O Homem e o Cavalo”, põe na
boca de uma das Onze Mil Virgens êste suspiro,
dito às demais: “Céu é chato! . . Não tomo a
piada como condenação da virtude; levo-a a sério
aqui, em nosso mundo, para reconhecer a chatice
da extrema organização e admitir que afinal de
contas, o pecado não é chato, mas sim suas conse-
qüências, pelo menos às vezes. Coisa que Tartufo
já sabia:
159
No que diz respeito à Utopia, a todas as Uto
pias, da República platônica ao “1984” de George
Orwell, imaginadas a vera ou a brinca, são chatas.
As organizações sociais perfeitas sugerem um
imenso bocejo.
Um sociólogo amável podería partir daí para
escrever um “Elogio da Bagunça”, explorando o
que ela traz de divertido e emocionante à vida.
E teria, creio, escrito o retrato do Brasil. Não
quero afirmar com isto que vivamos na organiza
ção política-social ideal, mas no único país do
mundo em que os acontecimentos, por mais fu
gazes, bastando que não sejam chatos — uma vi
tória no Campeonato Mundial de Futebol, a che
gada dum astro de cinema ou dum tetrarca amigo,
o carnaval, um concurso de beleza — nos fazem es
quecer as agruras proporcionadas pelas institui
ções encarregadas de distribuir chatice: govêrno,
oposição, tubaronato, inflação, escassez de gêne
ros, de água, de vergonha. É espantosa esta nossa
capacidade de nos deschatearmos com a fuga co
letiva da realidade, de confraternizarmos à mar
gem da polícia e dos códigos, de inventarmos o
jeitinho salvador. Não temos e temos o divórcio e
segundas núpcias, temos e não temos preconceitos
de raça, temos e não temos intransigência partidá
ria, temos e não temos crédito bancário, temos e
não temos ao mesmo tempo a estabilidade do grã-
fino e a instabilidade social do “deraciné”. O mais
sizudo dos brasileiros é capaz de trautear Noel
Rosa diante de um microfone de “boite” à madru
160
gado ou vestir-se de Nega Maluca para o Munici
pal; a mais casta das nossas jovens sonha com a
passarela e a câmera de televisão. É espantoso o
número de viajantes e turistas brasileiros ( inclusi
ve diplomatas) que regressam dizendo que New
York é chata, que Paris é chata, que Londres é
chata, que Moscou é chata. Patriotismo ? Sim, e
algo mais: aliamos à saudade de Gonçalves Dias o
desejo de feijoada quando nos sentamos à Table
du Roi, em Paris.
A generosa ausência de autocrítica, misturada
com o fogoso complexo de inferioridade, dá-nos
uma ciclotimia comandada ao sabor dos ventos.
Uasmos a palavra indicativa dessa inconstância:
biruta. Mas nos sentimos orgulhosos quando nos
consideram birutas. Divertimo-nos: erguemos as
mãos ao céu, em plena via pública, em trajes fe
mininos, e bradamos em uníssono e para os assis
tentes, cantando, no auge da felicidade, estas infe-
licidades: “Minha mulher me abandonou !” “Coi
tado do seu Oscar !”; “Quero morrer no carnaval!”
Fundamos mentalmente a nossa Utopia, não
uma Utopia permanente, mas constituída de oásis
e de miragens de oásis, graças ao que vamos le
vando . . . Vivemos “à beira do abismo” mas é essa
vertigem que nos embriaga e que acaba embria
gando o estrangeiro, o recém-chegado de nariz
torcido e pouco a pouco aclimado, integrado, des-
paisado, liquifcito no “melting-pot” em que o cha
coalharam a cada segundo. Graças a essa capaci
dade de mimetismo, não somos chatos, se tomados
161
como um todo, e os chatos que contemos, como o
ponche que contém algumas uvas azedas, são até
perdoados e saboreados na rarefeita dieta com
que nos empilecamos. Somos tolerantes; e se isto
permite a existência de chatos tolerados, também
permite que a atuação deles não nos leve a ponto
de explodir. No Brasil, os mesmos chatos que
proclamam “Precisamos de uma revolução san
grenta” fazem parte da Turma do Deixa Disso.
Felizmente.
162
Da medicação
drástica
163
conhecerá. É da natureza do chato elogiar a be
bida e pedir logo uma segunda dose; ou, caso tal
não acontece, faça-se-lhe passar uma bandeja de
“appetizers” extremamente salgados. Ao chegar-
se à segunda dose da bebida, proceda-se da se
guinte maneira:
a) deite-se-lhe, ao servir, discretamente, uma
bem calculada porção de sedativo, em pó, líquido
ou pílula, com cuidado para não haver troca de
copos e para que o entorpecente não leve o outro
entorpecente a dormir na própria casa da vítima.
Em seguida, ponha na vitrola a “Arte da Fuga” de
Bach; ou leia para o chato excertos de sua (do
paciente) autoria. É o chamado “processo de Ar-
sène Lupin”.
b ) Em casos mais graves, proceda do modo
descrito acima, substituindo-se o sedativo por uma
dose generosa de laxativo, método a ser empre
gado com os chatos ditos “de cerimônia”, isto é,
que não se encorajam a usar as dependência ínti
mas da casa. É o chamado “processo de Feydeau”.
c) Em casos agudos, proceda do mesmo
modo, substituindo-se o sedativo ou laxativo por
uma pitada de arsênico ou ácido prússico. E o
chamado “processo de Lucrécia Bórgia”.
À falta de “whisky”, sirva mesmo um cafèzi-
nho, já com a poção escolhida.
Caso o chato o aborde fora do domicílio (e
caso o paciente não se precavenha, trazendo sem
164
pre consigo algumas doses de sedativo, laxativo ou
tóxico), alguns expedientes podem, momentanea
mente, vir em seu auxílio:
a ) Peça imediatamente dinheiro emprestado
ao chato (cuidado ao escolher a quantia, porque
às vezes o chato empresta e então a chateação au
menta);
b) Diga-lhe que o acha muito mal de saúde
( com cuidado, porque às vezes o chato trata então
de contar suas mazelas, reais, ou imaginárias, as
dos parentes, dos conhecidos ou desconhecidos);
c) Recorde imeditamente um fato desagra
dável, vexatório ou pecaminoso da biografia do
chato (com cuidado, porque o chato tem a ten
dência de justificar-se, e já traz a justificação lon
ga a minuciosamente elaborada);
d) Convide-o a ir a algum lugar particular
mente chato ( com cuidado, porque na maioria das
vezes o chato aceita o convite);
e ) Ofenda-o ( com cuidado, porque ou o cha
to se humilha e apela para a piedade, ou reage fisi
camente daí resultando outras chateações, a me
nos que você o trucide ou o ponha sumàriamente
fora de combate).
165
Como livrar-se
do chato
D u r a n t e t ô d a a v id a , o indíviduo
está submetido a uma quantidade enorme de coi
sas e seres chatos, cuja ação varia com o meio, a
capacidade de resistência etc., enquanto êle pró
prio emite suas partículas de chateação. Por con
seguinte, vivemos imersos num caldo de cultura,
um universo de maior ou menor densidade mo
mentânea, o que nos obriga a pequenos gestos às
vêzes inconscientes, tais como ir beber água, ir
lá dentro, acender um cigarro, fingir que não vê
ou não ouve, dar o bôlo, fugir da rotina, esquecer
nomes de pessoas, tirar férias, viajar e outros pa
liativos. Para nossa própria existência, tudo con
siste em rarefazer cientificamente a chateação
circulante, evitar as camadas onde é mais densa
166
etc. Infelizmente, até hoje foi impossível inven
tar um artefato, aspirador, aerador, renovador de
ar, borrifador que suprima ou diminua a densida
de de chateação ambiente. A Humanidade con
serva —e usa — vestígios totêmicos da luta contra
os chatos: amuletos, dedos de isolar, vassouras
viradas, figas — ou “simpatias”, como bater na
madeira. Não há, tampouco, qualquer repelente
eficaz contra o chato, a não ser formas inúteis de
medicina primitiva: ramos de arruda, ou supersti
ções, como ferraduras, ícones, pés-de-coelho etc.
Existem processos elementares de evitar o
chato, como o “fingir que não vê”, o “passar de
nariz empinado”, empregados pelas mulheres.
Mas, quaisquer que sejam as medicinas, truques,
despachos, fórmulas à base de ddt, só podem ser
aplicados, com êxito muito relativo, após a iden
tificação do chato, de vez que êle se caracteriza
pelo fato de não se mostrar chato ao primeiro
instante. O chato se revela chato. Desabrocha
em chato, exibindo, aos poucos ou de repente, o
Mister Hyde oculto detrás do simpático Doutor
Jekyll. Só depois dessa manifestação inequívoca,
reconhecemos a presença do chato e podemos
identificá-lo. Êle é sempre resistente, paciente,
persistente. Logo, a vítima só pode saber-se ex
posta ao chato quando êle se revela — ou pela
nomeada que o chato adquiriu, mas que é sempre
relativa.
Há alguns anos, um autor americano, preo
cupado com o problema vital de evitar o chato,
167
escreveu um pequeno volume empírico, “How to
bore bores”. O sistema pretendia funcionar mais
ou menos como o método Ogino e Knauss, mas
as falhas demonstradas na prática já não podiam
ser levadas ao rol das exceções ou do azar. Por
que o chato é o próprio azar; manifestado, já nos
contamina. A simples observação evidenciou
ainda que o método de “como chatear os chatos”
nada tinha de científico — porque é de natureza do
enfêrmo o axioma segundo o qual o chato não se
chateia. Por mais que lancem revides contra a
sua atuação, está sempre protegido: emite suas
partículas de Ch, constantemente, afetando com
maior ou menor intensidade um ou outro indiví
duo; mas, logo que atacado propositalmente por
um não-chato, faz funcionar uma espécie de apa
relho eletro-celular (do mesmo modo que os rá-
dio-amadores quando dizem “Câm bio!” ) e iso-
lam-se em invisível carapaça crustácea ou deitam
em torno de si uma nuvem de camuflagem, como
as lulas.
Mesmo se lhe descobrimos o ponto fraco, o
calcanhar do chato, êle se protege. O paciente
pode, por exemplo, a duras penas de investigação,
que também faz parte da arte que o chato tem
para chatear, perceber que o seu perseguidor não
gosta de Bach. Decide então aplicar-lhe doses
maciças de Bach. Em pouco tempo o chato está
convertido a Bach — e passa a freqüentar o pa
ciente mais amiüdamente, para deleitar-se e para
prosseguir na sua obra de chateação. O chato
168
comensal suporta a má comida ou a falta dela;
o chato palrador resiste à má conversa ou ao silên
cio; a chata amorosa resiste ao mau amor; o chato
conquistador enfrenta o desdem ou o ciúme.
É de sua natureza o não chatear-se. Logo, a fór
mula “seja o chato de seu chato” não corresponde
à realidade, com a grave circunstâncias de, uma
vez empregada, obrigar a vítima a “chatisfazes-
se”, tomando-a momentâneamente chata, o que,
com o correr do tempo, tomará crônico o mal.
Chatear o chato é a maneira fatal de o indivíduo
acabar tomando-se chato.
Existem providências drásticas, já menciona
das, contra o chato: mudar de bairro, de cidade,
de país, de planêta, matar-se ou matá-lo. Tôdas,
porém, envolvem complicações econômicas ina
cessíveis à maioria das pessoas.
Acresce ainda outra circunstância importan
tíssima: o prestígio do chato. Mesmo nos países
que adotam a pena de morte, a lei não a esta
belece para o criminoso de chateação. Nos países
divorcistas, o divórcio não é solução contra o côn
juge chato, pois fica o caminho aberto a nôvo
casamento. Observe-se ainda que o chato é gre
gário. Consciente ou inconsciente de sua con
dição, reune-se em assembléias com seus con
frades, em clubes, em organizações oficiais, em
estabelecimentos de difusão da chatice, em mil
empreendimentos agrícolas, industriais e comer
ciais. O instinto gregário leva o chato a aglutinar-
se com o semelhante e formar invisíveis ordens
169
secretas, que influenciam em decisões importan
tes para a vida do cidadão, do Estado e da espécie
humana. Acomodado ao tipo de lugar-comum
a que se dá o nome de bom-senso, ou apaixonado
pela idéia estapafúrdia a que dá o nome de ino
vação, de um ou outro modo, age sobre os cir
cundantes, conduzindo-o a decisões isoladas ou
de grupo que pecam pela falta de utilidade, falta
de imaginação, falta de juízo, falta de caráter,
falta de tolerância, falta de democracia.
Recentemente, em alguns países, têm-se fabri
cado e vendido abrigos à prova de bombas atô
micas, com grande aceitação, e se sabe que a
maioria dos compradores os usam menos contra
projéteis espaciais do que para esconder-se dos
circunstantes e do próximo. As casas de campo
e de férias, outrora empregadas como breves refú
gios (aliás inúteis) contra os chatos, são aban
donadas em favor dos “shelters”. Pode-se prever
como resultado, num futuro próximo, que a super
fície terrestre ficará abandonada aos chatos, en
quanto o resto da humanidade passará a viver a
vida subterrânea das minhocas como supra-sumo
da civilização, privando-se voluntàriamente da
liberdade. O temor do estrôncio, o temor às irra
diações, é menor d'o que esse outro tipo de terror,
que afinal contém a sua parte de chateação pro
vocada pela tensão do perigo atômico. Mas que
acontecerá aos não-chatos que não disponham de
posses para a migração às cavernas ? Serão ato-
mizados pelos chatos, antes mesmo das explosões
170
Use processos mnemônicos, nas paredes do quarto, por
debaixo do vidro da mesa do escritório e t c . . .
171
na crosta do planêta, a menos que emigrem para
os polos, onde por enquanto a Terra ainda não
é chata.
Deve-se ter como princípio de fé que a cha
teação não é mal incurável. Têm-se visto chatos
que, sem qualquer motivo aparente, tomam-se
suportáveis e mesmo sãos. A ciência ainda não
atinou com as causas de tão otimistas recupera
ções, mais a cura reside numa auto-análise cons
tante, partindo da comparação da própria perso
nalidade com a dos chatos que identificamos e
classificamos.
Experimente o leitor alguns exercícios diários.
Ao deitar-se, pergunte a si mesmo:
172
. . . e mais: distribua-o aos seus am igos!
173
tem”; "Sem chatear, a vida é uma alegria”; e
quando vacilar, volte a este Tratado. E mais:
distribua-o aos amigos, não para aconselhar que
eles se identifiquem, é claro, mas para que apren
da a identificar terceiros. Só assim você estará de
senvolvendo uma verdadeira cadeia da felicida
de contra a chateação.
174
Índice Geral (dos chatos)
( Classificações pessoais )
175