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GUILHERME

FIGUEIREDO escreveu

FREDERICO
KIKOLER ilustrou
ÍNDICE GERAL

P refácio 3
Definição 5
Etimologia 7
Origem, evolução, tiradas filosóficas
e outras chateações 15
De como identificar o chato 35
Classificação geral dos chatos 40
Os bonzinhos 42
Os agressivos 66
Etilometamórficos 67
Da mulher chata 69
Dos homens chatos na opinião das mulheres 82
Da criança chata 84
Dos adultos chatos em relação às crianças 89
Das coisas chatas 91
Da relatividade do chato 92
Dos indícios 94
Do emprêgo da classificação geral 102
Exercícios de classificação 105
Problemas 107
Do chato benigno 119
Proposições relativas aos chatos 122
Sísifo e Catilina 129
Franklin e o raio 132
Biógrafo e biografado 136
A prece e o milagre 138
Do folclore ao embalo 142
O cão de Ulisses ou o chato mnemônico 146
A bússola e o vento 152
A torcida e o telespectador156
Minha terra tem palmeiras 159
Da medicação drástica 163
Como livrar-se do chato 166
ÍNDICE GERAL (Ú O S c h a t o s ) 175
Prefácio
(à primeira edição)

U m bom livro tem como primeira


obrigação não ser chato. Com mais forte razão
quando se intitula Tratado Geral dos Chatos. Pre­
fácio é chato. Esta obra não devia ter prefácio.
Mas quem acredita em erudição sem prefácio,
estas palavras que se escrevem justamente depois
que o livro está pronto, para que alguém talvez
leia depois que leu o livro ?
Geralmente, nos prefácios, dá-se o “plano da
obra” (que o leitor aqui encontrará no índice) e
agradecem-se as contribuições e colaborações de

3
outros autores. No caso presente, as citações dos
especialistas da matéria poderíam envolver uma
perfídia( * ) ; logo, cabe-me apenas mostrar meu
reconhecimento aos que, involuntàriamente, ins­
piraram êste volume. Sem êles, eu não teria
escrito o meu Tratado; em compensação, sem
êles a Humanidade seria mais feliz.
O autor deseja prevenir aos graciosos que será
inútil considerá-lo chato, ou ao seu Tratado: a
facilidade da piada não indicará senão que tais
graciosos são chatos.

( * ) Na segunda edição, o autor decidiu incluir o mate­


rial fornecido por estudiosos da matéria, aos quais apresenta seus
agradecimentos.

4
Definição

D efinir já é chato, previnem os me­


lhores autores. Omnis definitio platta est. Entre­
tanto, arriscaríamos uma primeira proposição:
Chato é o indivíduo, ser, coisa ou evento cuja
presença, existência, atitude, ação ou lembrança,
continuadamente, tem a capacidade d e inspirar
sentimentos contrários à alegria d e viver, à paz
d e espirito e à Paz Mundial.
É condição que tais sentimentos resultem de
uma continuidade, pois fôrça é reconhecer a exis­
tência de indivíduos, sêres, coisas e eventos que,
não sendo pròpriamente chatos, tomam-se tais por
circunstâncias alheias à vontade do agente, por

5
indisposição passageira do paciente, por motivos
esporádicos e mesmo perdoáveis. Chatos espo­
rádicos somos todos nós, numa ou noutra ocasião;
mas. a reprodução ou repetição do fenômeno da
chatice é que a caracteriza.
No presente Tratado preocupamo-nos com os
chatos consuetudinários, os que, variando apenas
de objeto-paciente, têm sôbre terceiros a faculda­
de de imprimir e inocular os sentimentos a que
se refere a definição. Por pura questão de fé no
gênero humano, deixamos de parte o chato-ab-
soluto, o chato incurável, contra o qual sêres e
coisas são inermes e desamparadas. Existem; mas,
como qualquer enfermidade incurável ou temor
da morte, nos levariam ao homicídio ou ao suicí­
dio, únicas fugas possíveis.
Etimologia

E u m ê r r o , que demonstra grosseria


de imaginação, e por conseguinte situa o indiví­
duo como adicto a um tipo de chatice, assegurar-
se que designação geral “chato” provém do nome
vulgar dado a certo inseto conhecido cientifica­
mente por phtirius púbis ou pediculus púbis.
Muito antes de se atribuir o sentido vil à palavra,
o ser, coisa, evento ou indivíduo já recebiam a
designação de “chato”. Ao contrário, o são ver­
náculo de proveniência igualmente grega e latina
é que se abastardou na voz do vulgo, conferindo
ao inseto o qualificativo, e logo o substantivo, que
pertence antes de tudo ao ser humano. O inseto
passou a ser chato quando o indivíduo descobriu
nêle o atributo humano da chateação, do mesmo
modo <^ue “porco”, “burro”, “cachorro”, “hiena”,
“chacal são pejorativos quando empregados em
relação ao homem. Caberia aqui aos linguistas

7
Muito antes de se atribuir o sentido vil à palavra, o
ser, coisa, evento ou indivíduo já recebiam a designação
d e “Chato”.
o dicionaristas escoimar suas obras de tão ofensi­
vos significados para os animais, que afinal de
contas recebem a injúria de seus nomes precisa­
mente porque, do modo mais honesto, se parecem
com os homens.
“Chato” do grego ffXarós e do latim
“plattus”, sempre teve a acepção empregada neste
Tratado: sinônimo de maçador, maçante, impor­
tuno, enfadonho, inconveniente, aborrecido, apor-
rinhador, vulgar, rasteiro, amolador, cabuloso, ca­
cete, caceteiro, cricri, estopador, estopante, cace-
teador, pau, pêto, enzampo, escôva, xarope,
peroba, piúva, sequista, secador, seringador, en-
chedor (v., entre outras obras, o Pequeno Dicio­
nário Brasileiro da Língua Portuguêsa, de A uré ­
lio B uarque de H olanda F err eira ) . A s mesmas
raízes deram “plat” èm francês, o verbo “to plat”
em inglês ( “adular”, hoje raramente empregado),
e “Plat” em alemão (insípido).
Já na Grécia encontramos rXaVoXÓ7 os
(platológos), parolador; vXaTvp^ouaiv-q (pla-
tyremosyne), prolixidade, palavra encontrada no
Timeu de P latão : o próprio P latão , IlXárco^
que tanto quer dizer “ombros largos” como “O
Chato”, de onde provém “amor platônico” segu­
ramente “amor chato”. Apolodoro se refere a
iryarvKètpaXos (platyképnalos), isto é, “cabeça
chata”.
Em frencês, “plat” (desprovido de sabor, de
atrativos), é empregado por Voltaire : __
On ne se déchaine pas contre le médiocre et le plat.

9
Chato, do grego t \ o, t bs e do latim plattus, sempre
teve a acepção empregada neste "Tratado” sinônimo d e
maçador, importuno etc.

10
Amor platônico — Amor chato.

11
Na linguagem popular se diz, de longa data,
faire le plat (ra z e r o prato” ou “fazer ò chato” )
no sentido de adular; un vin plat, vinho a que
faltam verdor e acidez. Molière usa a palavra
com o sentido duplo de prato e chato:

C ’est un fort méchant plat, q u e sa sotte personne.

O francês moderno apresenta uma vasta sino-


nimia: assomant, embêtant, encomhrant, ennuy-
eux, fâckeux, importun, emmerdeur, emmerdant,
barbant, raseur, caffouilleur, gaffeur, casse-couil-
les, casse-olives, casse-pieds, conard, con, emmous-
cailleur, enflanqueur, enquiquineur, lardeur, tan-
nant, palavras cujo exato emprêgo é puramente
topográfico, podendo algumas ser ditas na Rue de
Lappe e outras no Hôtel georges V .( ° )
A língua inglêsa substitui a explosiva p da
raiz pela fricativa f (como em português deu-se
a substituição pela sibilante ch), de que resultou
flat, como sinônimo de dull, uninteresting, insipid,
monotonous, tasteless, bore, tedious, tiresome,
ennuyant, annoy, wearing person. Já Shakes-
peare emprega:

How weary, stale, flat and unprofitable


Seern ti m e all the uses of this world.(*)

( * ) E também morpion. A língua francesa é a única, além


da portuguêsa, que atribui ao inseto a faculdade humana de
chatear.

12
Cabeça chata ,

13
Na linguagem corrente, flatter e flatterer são
sinônimos de “adulador”.
No Brasil, o mais respeitável exemplo que
encontrei foi em Machado de Assis. “Perdoai a
chateza das minhas palavras” ( * ) .
A erudição exaustiva é uma das formas sob
as quais apresenta o chato ( Sempre que alguém,
quer esgotar um assunto, esgota a paciência do
leitor — O s c a r W ilde ). Por isso, encerramos o
capítulo aqui.

( * ) "Chato” e seus derivados eram tidos, pelas toas famí­


lias e conceituados lingüistas, como palavras chulas e vulgares,
pelo êrro já explicado no início deste capítulo. Hoje, porém, entra­
ram no uso comum do idioma, o que representa ao mesmo tempo
uma conquista vernácula e uma alarmante prova da necessidade
dessas palavras.

14
,
Origem evolução,
tiradas filosóficas
e outras chateações

^ ^ u a l q u e r q u e s e j a a doutrina cos-
mogônica, ou hipótese, adotada pelo estudioso,
posição filosófica ou religiosa, reconhece-se que o
chato surgiu com o aparecimento do ser vivo, e o
ser que tomou consciência do chato foi o Homem
(ou a Mulher). No princípio era o caos, diz o Gê­
nesis — e no entanto o Homem não conseguiu,
através dos milênios, mais do que organizar o caos,
isto é, torná-lo chato. Ou, a se admitir o primeiro
pecado, causador da expulsão do Homem dum lu­
gar não-chato, o Paraíso, pode o leitor decidir
quem tenha sido o chato do conflito inicial. Admi­
tido o conceito idealista, existe um Chato Ideal,

15
uma essência de chato, para o qual tendem os cha­
tos reais; aceita a tese materialista, a matéria está
sempre supurando chateação, isto é, consciência
de si mesma; adotada a evolução darwiniana, o
Homem é um estágio superior da escala zoológica,
provindo portanto do inseto intermediário, sem ter
perdido, através dos tempos, seus atributos atávi­
cos; e tomada a tese existencialista, a existência
da chatice antedata à sua essência.
Conjecturas, principalmente chatas. O que
cabe à ciência é constatar a existência do chato
sob suas diversas formas; e, tanto quanto podem
ser cridas as fontes históricas, não houve um só
período da Humanidade em que o chato não esti­
vesse presente e atuante. O uso do tacape na era
das cavernas prova que o Homem sempre desejou
achatar o chato. A figura de Morfeu nos tempos
mitológicos indica que já então se conhecia o tédio
do'chato. Os poetas moralistas da Grécia, H e -
síodo nos Trabalhos e os Dias, P itágoras, nos Ver­
sos de Ouro, T eognis, nas elegias em que acon­
selha Cimos, mostram certa preocupação em evi­
tar que seus leitores se tomem chatos; os come-
diógrafos gregos e romanos, A ristófanes, P lauto
e T erêncio , apenas incidentalmente retratam a
chateação, talvez por mêdo de cair nela; longo
exemplo da dita é o método socrático registrado
por P latão nos Diálogos, infindável questionário
para demonstrar que ninguém sabe nada. J uve ­
nal , nas Sátiras e M arcial , nos Epigramas, esbo­
çam aqui e ali tipos de chatos e de chateações; mas
foi P etrônio , no Satiricon (cap. XVL e seguinte),
quem primeiro descreveu um chato de linguagem
carregada de lugares-comuns e provérbios —. o
que leva o autor a exclamar, a seu amigo Aga-
memnon: “Quid iste argutat m olestus! Quia tu,
qui potes loquere, non loquis” — e o acusa de estar
entupido de literatura ( scimus te prae litteris fa~
iuum esse). Cabe a C ícero a glória de insinuar
uma primeira definição do chato, ao invectivar Ca-
tilina — do que cabe inferir que o orador e mora-
ralista podería ter dito: Plattus est qui patientia
nostra abutat.
Na Idade Média ninguém se preocupou com
o problema. Na Idade Média todos eram chatos
— com exceção de um pré-renascentista, D ante ,
que afinal não soube onde colocar os chatos, se
no Inferno, no Purgatório, ou no próprio Céu.
Além de Dante, sòmente o poeta Gu u xa u m e Al e -
cis mais ou menos os retrata em Les feintes du
monde, e V illo n , que sempre viveu às voltas com
eles, reconhece que não há nada melhor do que
livrar-se deles, ao dizer: “11 n est trésor qúe de vi-
vre à son aise".
Os sonetistas conceituosos do Renascimento,
Du Bellay, Christophe Plantin, talvez porque já
conscientes da chateação medieval, rimaram o
prazer de não serem chateados. Mais, porém, que
óles, V a u q u eijn des Y veteaux , que num sonêto
menciona como alegria da vida avoir peu de pú-
rents, tem mêdo de s’engager à rien qui méçon-
tente e deseja Être estimé du Prince et le voir ra-
rement. Numa resposta ao dito soneto, outro
poeta, V a l l é e d e s B a r r e á u x , desfila as alegrias da
não-chateação:
N 9estre ny magistrat, ny marié ny prestre,
Avoir un p eu de bien, Vappliquer tout à soyy
Et, sans affecter d 9estre un docteur d e la Loy,
S9estudier bien plus à joüir q u à connoistre;

Pour son repôs, n avoir ny maitresse ny maistre


N e voir que par rencontre ou la cour ou le roy
N e sçavoir point mentir mais bien garder sa foy,
N e vouloir estre plus que ce qu9on se voit estre.

Avoir Vesprit purge des erreurs populaires,


Porter tout le respect que Von doit aux mysteres,
N9avoir aucun remords, vivre morallement;

Posseder le present en pleine confiance,


N 9avoir pour Vavenir crainte ny esperance
Font attendre partout la mort tranquillem ent(*).

(* ) Pode-se traduzir assim o soneto de Vauquelin des Yve-


teaux:
Não dar bola a parente, estar quite na venda,
E sòmente buscar a honesta safadeza,
Fazer o que entender, cultivar a esbelteza,
Não procurar encrenca, ou vexame, ou contenda;
Não manter ambição que resulte em prebenda,
Tratar o pessoal com alguma firmeza
E, sem pedir favor, usar a livre emprêsa
De modo a não passar pelo imposto de renda.
A vitrola, o cinema, a boate, algumas donas,
Mesa farta de boia e escassa de caronas,
Não ouvir da mulher queixume ou estribilhos,
Ser faixa do graúdo e vê-lo raramente,
Ser de morte no amor sem que lhe venham filhos,
Não há nada que faça tanto bem à gente.

18
Pregador da tolerância, M o n t a ig n e , quando
trata dos pedantes, da moderação da vaidade das
palavras, das sutilezas vãs, dos presunçosos (num
onsaio onde há curiosa menção dos cacoetes cha­
tos de homens célebres), retrata os perobas de
seu tempo e do passado, neles descobrindo que
a maneira de ser resulta de sestim er trop, et de
ríestimer pas assez âutrúy. Cabe, porém, a Mo- ,
l i è r e , a glória de observar que os fâcheux são de
várias espécies (Et fen vois chaque jour quelque
nouvelle esp èee) e a arriscada proeza de fixá-las
numa comédia sem que esta se tornasse chata.
Chefe de grupo teatral ambulante, às voltas com
o dinheiro curto, perseguido e preso por dívidas,
protegido do rei a quem devia adular, caluniado
em sua honra pelos invejosos, assaltado pelas ca-

E o de Vallée des Barreaux:

Nem juiz, nem marido ou padre queira ser;


Ganhe dinheiro e gaste em tudo que o alegra;
E, em lugar de bancar defecador de regra,
Estude pra gozar e não para saber.

Neca de dona fixa ou patrão que aborreça;


Sòmente por azar esbarre num graúdo,
Não minta pra lucrar qualquer trôco miúdo, .
Não deixe que a ambição lhe perturbe a cabeça.

Dobre depressa a esquina ao avistar um téso,


Isole na madeira a evitar quem dá pêso,
Use, em vez do remorso, um discreto recato,

Trate só do presente e caia na gandaia,


Nunca perca o amanhã por um rabo de saia —
Isto, sim, é viver, velhinho ! O resto é chato.

19
baias que pretendiam liquidá-lo como autor, ator
e valido, Molière atribui a Éraste o seu próprio
grito:
Sous quel astre, bon D ieu, faut-il q u e je sois né,
Pour être d e fâcheux toujours assassinê?

M o lièr e foi o Linneu dos chatos. Les Fâ­


cheux é um catálogo, do qual só escapa o deses­
perado Éraste:
L e ciei veut qu’ici-bas chaeun ait ses fâcheux ,
E t les hommes seraient sans cela trop heureux.

Os chatos de Éraste desfilam por êle, em pal­


co aberto. Conta, na primeira cena da comédia,
como caiu nas garras dum chato espectador de tea­
tro; em seguida mencionam-se e vão aparecendo os
massacradores do pobre enamorado: Damis, tio
e tutor da amada Orphise, isto é, o chato-empata;
La Montagne, o criado obsequioso e de longas ex­
plicações; Alcidor, perseguidor do Orphise; Li-
sandre, que canta sua última composição musical;
Alcandre, que deseja que alguém o substitua num
desfôrço físico; jogadores de malha e curiosos
que cercam o atormentado amante; Alcippe, que
narra, lance por lance, numa partida de “piquet”;
Climène e Orante, que discutem os atributos do
amante perfeito e tomam Éraste para Juiz; Do-
rante, que descreve uma caçada; jogadores de
bola, pelota, lutadores, jardineiros que invadem a
cena; Caritidés, pedante que lhe pede que apre­
sente uma petição ao rei; Ormin, o chato que nada

20
tem mas oferece sempre alguma coisa ( . . . d e ces
gens qui non rien |Et vous viennent toujours pro-
mettre tant de bieri.) e que, para dizer um segrê-
do, il sapproche de Voreille aÊraste, pedindo-lhé
emprestado, afinal, duas pistolas; Filinte, que vem
prevenir contra ameaças e se oferece como anjo-
-da-guarda; os mascarados do final da comédia,
cjue o importuno faz repelir chamando os
* suisses”.
Estarão aí todos ? Não, falta a própria amada
Orphise, chata desconfiada e coquete, de quem Ju­
venal, o satírico, podería dizer: por que tomar mu­
lher se ainda há tanta corda para se enforcar ?
Se os clássicos se preocuparam com os chatos,
os românticos não lhes deram importância, tão
preocupados estavam consigo mesmos, e tanto
prazer sentiam em sofrer a vida e a chateação da
vida. Foi um realista, B alzac, quem, voltando à
realidade, voltou aos chatos, nas Scènes de La Vie
P olitiqu eO , ao retratar um certo Simon Giquet,
no L e Deputé d’Areis: “Este pobre rapaz perten­
cia a essa espécie de cacetes que pretendem tudo
explicar, mesmo as coisas mais simples. Explicava
a chuva; explicava as causas da Revolução de Ju­
lho; explicava também as coisas impenetráveis;
explicava a Campanha; explicava 1789; explicava
a tarifa das alfândegas e os humanitários: o mag­
netismo e a economia da lista civil”. O realismo e1

( 1 ) Apud J osué Montello , num artigo intitulado “Dois


Chatos", Jornal do Brasil, 17-5-1962, comentando generosamente
n primeira edição deste Tratado .

21
o naturalismo, na ficção e no palco, voltaram a
empregar o chato, mas sempre em pequenas doses,
como personagem passageira: o Vieirinha de As
asas de um anjo de José de A lencar , que Ma­
chado de Assis glosou(23), como chato-literário,
chamando-lhe ‘o vampiro da paciência humana”;
o major Lopo Alves de A chinela turca, Claudina
e Rosa de As primas da Sapucaia, ambos de M a­
chado de Assis; antes mesmo de Alencar e Ma­
chado, M artins P ena já fixarg. um chato, o meló-
mano, em O Diletante; e depois dêles, A rtur
A zevedo, naquele sogro de O Dote, que pergunta
sempre: “Como direi ?”

Tivemos, porém, a glória de um analisador


de chatos, mais que um simples retratista: F ran­
ça J únior que, nos “Folhetins”, dedicou um estudo
aos “maçantes” no qual diz: “Há na sociedade
uma classe perigosa de homens, cujos atos esca­
pam â ação da justiça, que cometem verdadeiros
crimes protegidos pelas leis, quando de há muito
deviam estar até fora do direito comum”(3); e
“Não há exemplo em nossos anais judiciários de
processos contra massantes ( 4). Já porventura al­
guém viu sentado no banco dos réus um só desses

(2) Apud R aymundo Magalhães J únior, em artigo intitu­


lado “Precursores da Chatologia”, in Correio da Manhã, 2-6-1962,
e do qual se vale o autor dêste Tratado para algumas preciosas
informações sôbre a matéria e seus cultores no Brasil.
( 3 ) R aymundo M agalhães J únior, op . cit .
( 4 ) Apud R aymundo Magalhães J únior, op. cit. Ao tempo,
com dois “ss’\

22
indivíduos ? ” ( 5 6).
R . M a g a l h ã e s J ú n i o r considera
mais importante teórico entre os
F r a n ç a I d e m “o
precursores da chatologia”(e) e apresenta a sua
( dêle, Idem —raio de idioma português!) enume­
ração de categorias: l . a) a dos maçantes que têm
mania de contar histórias a propósito de tudo, em
geral indivíduos de mais de 50 anos, pouco ver-
bosos, desmemoriados e surdos; 2.a) os maçantes.
retóricos, que escolhem têrmos pedantes quando
falam, que gostam de se ouvir e, em vez de con­
versarem, discursam, 3.a) os que, faladores, dão
por paus e por pedras; 4.a) os maçantes que não
falam ( chatos tácitos), ou se limitam a ouvir o que
os outros dizem, reavivando a conversação bruxu-
leante com expressões como “É o que lhe digo”,
“O senhor é quem pode”, “Êste mundo é uma
bola”, “A vida está para o senhor” etc.; 5.a) o ma-
çante lírico, que adora em excesso a música, e
passa a vida cantarolando ou assobiando pedaços
de opereta”( 7); 6.a) os maçantes que obrigam as
filhas a cantar e a tocar para. . . obsequiarem as
visitas; 7.a ) os maçantes que se julgam atacados
tôdas as doenças e que interpretam como tais quer
a palidez, quer as boas côres dos amigos; 8.a) os
maçantes valentões; 9.a) as solteironas; 10.a)
os que consomem o tempo a indagar da vida
alheia e que fazem a conhecidos e desconhecidos
(5 ) F rança J únior, apud R aymundo Magalhães I dem
Ibiderrt.
(6 ) R aymundo M agalhães J únior, ibid.
(7 ) R aymundo M agalhães J únior, ibid; Martins P ena ,
"O Diletante"'.

23
perguntas como estas: ‘Onde compraste esta cor­
rente ?”, “Estás empregado ?, “Quanto ganhas ?”,
“Que faz tua mulher todo o dia à janela ?” etc. ( 8)
F r a n ç a J ú n io r propunha, afinal, a criação duma
sociedade como a da Resgate dos Cativos, para
libertar as vítimas dos maçantes; e acabava clas­
sificando-se numa l l . a categoria, a dos escritores
insípidos, que têm a mania de escrever folhe-
tins ( 9).
Embora os seres humanos nasçam sempre
chatos, um número alentador é recuperável, e
outro, bastante grande, não conseguiu qualquer
cura desenvolvida pela própria inteligência huma­
na. O fato, porém, de não se observar uma here­
ditariedade constante na chateação, e o fato de
existirem curas até agora espontâneas, nos condu­
zem a reconhecer qúe a Humanidade não deve
desesperar.
Defeitos de educação, traumas, fixações, fa­
tores endógenos e exógenos, falta de dinheiro ou
excesso dêle, imperialismo e anti-imperialismo (v.
C l á u d io d e A r a ú jo L im a , in Imperialismo e An­
gústia), a consciência do envelhecimento do ho­
mem, o temor da morte, estas e muitas outras são
as causas da chateação. Encontram-se chatos em
Paris, em Moscou, em New York, em Washington,
na Polinésia, em Tanganica; em clubes milioná-
(8) Coleção completa da revista Confidencial.
(9) As notas ao pé da página aqui feitas servem apenas
para mostrar como é chata a erudição. Em tais casos, basta usar
aspas ( Honny soít. . .

24
Os seres humanos nascem sem pre chatos.

25
rios e favelas; em cultos e ignorantes; em nutridos
e subdesenvolvidos; em crentes e ateus; em assé-
ticos e promíscuos — o que tem levado o pes­
quisador a um total desnorteamento.
A psicologia constata que há chatos de mêdo
de serem chatos; outros que impõem sua chatea­
ção por ignorá-la; outros que, psicanalisados ou
não, sentem prazer de ostentá-la. No estado atual
da Giência — que no assunto está dando seus
primeiros passos — os fatores que levam o indi­
víduo a ser, tornar-se ou deixar de ser chato não
são totalmente conhecidos. Pessoalmente, subme-
ti cobaias a discursos parlamentares, sem qual­
quer resultado manifesto, enquanto outros parla­
mentares cabeceavam de tédio; mas a simples
visita de um chato silencioso extinguiu os moti-
mentos e logo a vida das mesmas cobaias. A
aproximação do chato pode ser acusada pelo
murchar de plantas (os seca-pimenteiras) ou a
mudez dos animais (os cala-sabiás ) ; mas o ho­
mem não tem tão grande capacidade de premu­
nição. Verifiquei o comportamento de pessoas
que, sem causa manifesta, tomavam-se chatas,
e de outras que oscilam em períodos de chatice
e normalidade (os ciclochatos), e de outras ainda
que, sem razão aparente, perdem a capacidade
atuante.
Dado, porém, que a chateação é sempre uma
violência, maior ou menor, contra a liberdade
alheia, uma correlação se impõe: o índice da en­
fermidade aumenta onde e quando a liberdade

26
diminui. Por conseguinte, o chato é, consciente
ou inconscientemente, um ser totalitário, isto é,
um ser que se opõe à liberdade de outrem. Neste
terreno, o homem público deve marchar ao lado
do médico, do jurista, do sociólogo (com a con­
dição de não serem, êles mesmos, chatos) — e
caberia uma estatística mundial da incidência de
chateação ativa e passiva. Estaria a o n u disposta
a tal investigação ? Estariam seus membros dis­
postos a permiti-la ?
Observa-se também, com a evolução — de
agrária a industrial — de uma sociedade humana,
o aparecimento de tôda uma gama de tipos de
chatos: o chato-pra-xuxu, essencialmente agríco­
la, transforma-se no chato-à-bessa intermediário,
muda-se em chato-de-galocha, já industrial, al­
cança o nível mais industrializado de chato-side-
túrgico, e tenderá fatalmente para o astrochato.
Cabe à investigação científica determinar se tais
ou quais tipos são mais ou menos chatos que
outros.
A sensação de “estar sendo chateado” (que,
aceita pela vítima, leva ao estado de “chatisfa-
ção” ) provém de um cerceamento da liberdade,
com o concomitante desejo de escapar à causa da
chateação. Quanto mais a causa da chateação
atua contra â livre-arbítrito, a capacidade de ir
o vir, a possibilidade de fazer ou deixar de fazer,
de estar presente ou ausentar-se, de dizer ou calar,
mais intensa é a sensação. O perigo não reside
únicamente no enleiamento provocado pelo chato,

27
O “Chato-pra-xuxu”, essencialmente agrícola

28
i ' transforma-se
no “chato-à-bessa” intermediário.

29
... m uda-se em “chato-de-galocha”y já industrial, alcança
o nível mais industrializado d e “chato siderúrgico” e . ..

m
.. .tenderá fatalmente para o “astrochato”.

31
mas numa possibilidade de domesticação do pa­
ciente, uma espécie de impregnação do “apare­
lho” receptor, isto é, a “chaturação”: as cotias do
Campo de Santana, quando ali foram postas, cer­
cadas de grades, ao tempo do Império, fugiam e
eram esmagadas pelas caleches na rua; mas acos­
tumaram-se de tal modo que, retiradas as grades
da praça, nunca pensaram em preferir a liberda­
de. Do mesmo modo, há esposos que jamais pen­
sam em separar-se, homens que jamais deixam o
emprego, crianças que nunca abandonam o lar,
cães que só saem com os donos. A dependência
de um chato — dependência psicológica, senti-
mentál, econômica ou por pura inércia — toma
o paciente, também, um chato passivo e solidário
com a chateação do próximo. A preocupação do
fim de mês, a falta de dinheiro, as más condições
caseiras e do trabalho podem produzir ciclocha-
tos, como o temor metafísico produz chatos per­
manentes. Neste último caso, os estudos de
Geniatria deviam ligar-se intimamente aos da cha­
teação: as enfermidades cardíacas, o câncer, as
lesões vasculares, a osteoporose, o artritismo, as
atrofias musculares, a arteriosclerose, a impotên­
cia sexual precisam ser analisados como causas de
chatice — no chato, na vítima ou — quem sabe ?
— como conseqüência da chatice que pouco a
pouco se manifesta. Como sempre, em tais assun­
tos científicos, os .escritores de ficção chegam
primeiros do que o csientistas. P roust escreveu:
Ainsi les hommes peuvent avoir plusieurs sortes

32
33
de plaisirs. Le véritable est celui pour lequel ils
quittent Tautre. Com isto, aflorou um ângulo do
problema. E quando o homem não pode mais
escolher üm prazer por outro ? Quando só lhe
resta condenar o prazer que já não alcança ? É
este o momento em que se policia — o que é rela­
tivamente fácil, dadas as suas condições físicas —
e policia os demais, o que é uma forma de chatea­
ção, ao interpor-se à escolha alheia.
Segue-se que a Humanidade, considerada
num todo, só encontra dois caminhos contra o
chato: submeter-se à chateação — chaturar-se —
* ou rebelar-se contra ela. Acontecendo, porém, que
a enfermidade é relativa (os meus chatos podem
não ser os seus chatos) e se manifesta em forma
crônica ou passageira (o “ser chato” e o “estar
chato” ), é difícil determinar os dois campos de
luta, colocando-se, de um lado, os que devem sal­
var-se, e de outro os que devem ser liquidados.
Acreditamos que, ao fim deste Tratado, apresen­
tamos a solução do problema.

$4
De como
identificar o chato

ò & existem dois meios de identificar o


chato: pela fama, conceito, reputação; pela expe­
riência própria. O chato não permite reconheci­
mento imediato pelo biótipo, estrutura física ou
“facies” lombrosiano.
No primeiro caso, a notoridade não obriga
a qualquer esfôrço de reconhecimento. O nome
e a fisionomia já pertencem ao nosso universo
conhecido. A simples menção do nome, o simples
aparecimento da fisionomia nos põem em alarma
e inútil sobreaviso.
Quanto à experiência própria, o “estar sendo
chateado”, a que já nos referimos, resulta de uma
série de estados emocionais e sintomas que, pou-

55
Co a pouco ou repentinamente, assaltam o pacien­
te, ante a presença, a voz, a menção, a lembrança
do chato.
Suponha-se o leitor em um dia que chamamos
ideal: levantou-se sem rescaldos da véspera; o
sol brilha lá fora; respirou fundamente o ar; o
chuveiro verteu água; a empregada deu café à
hora; o lotação não assustou; havia lugar no bon­
de; o trabalho será pouco e rendoso; depois dêle,
as horas vagas prometem alegrias de ambos os
^ sexos; a conta do banco está em regra; a consciên­
cia tranqüila; os jornais e o rádio nada disseram
de alarmante; a humanidade anônima, ao redor,
roçou por ele cordialmente; nenhuma dor física,
de dente ou calo, o afligiu; o patrão foi cordato,
o empregado exímio; a temperatura não subiu
mais que a vinte graus; governo e oposição estão
sem assunto; a patroa melhorou o grude; as crian­
ças, mansas e cordialmente alegres, anunciaram
dez nas provas, foram dormir cedo; em todos os
instantes a música da vida cantou em seus ouvi­
dos, nascida de tudo, do semelhante, de si mesmo.
De repente, alguma coisa começa a materializar-
se. Não se apresenta de chofre (porque se o faz
logo nos assusta). Vem inofensiva, incolor, ino­
dora, transparente, como parte do dia ideal. Mas
lentamente se ensombrece. Um nada, um gesto,
uma palavra, uma contração fisionômica, um som;
e logo o ser imponderável cresce em substância.
Há, dentro da vítima, uma como que adivinhação
de morte de pessoa querida, uma compressão no

36
peito, uma vaga impossibilidade de prestar aten­
ção, um esquecimento de vocábulos, a dormência
dalgum músculo, um vazio de queda no estômago,
ou obesidade de dispnéia, um aceleramento de
pulsações, ou um retardamento, uma perturbação
metabólica, uma tonteira de nuvem nos olhos, um
apertar de colarinho invisível, um não saber onde
põe as mãos, um estrelar de vermes esvoaçantes
dentro do globo ocular, a cadeira endurece se
está sentado, o sapato aperta se está de pé, odores
ignorados se desprendem da rua e das casas, a
música distante se distorce, os ombros pesam o
pêso do mundo, chega-se a pensar em aspirina e
sais efervescentes, mas é inútil, tudo vem de fora
para dentro e já agora do mais secreto da máquina
humana irradiando por tôdas as delicadas peças
do organismo, os cabelos eletrizados, as unhas roí-
das, um recuar de batráquio diante do ofídio, um
rosnar hidrófobo de cães invisíveis, noite dentro
de si, povoada de morcegos, de aranhas tecendo
um campo de concentração, um bracejar de náu­
frago, um emparedamento de ar, um desabar das
arestas das coisas, gosma despejada do alto, vi­
brar de lâminas cravadas, pântano sumidouro gor-
golejante, asa tatalante de anjo negro, e tambores
crescendo no coração, um silvo ininterrupto nas
trompas de Eustáquio, um escovar de areia nas
pupilas, a consciência do despertar dos órgãos ve-
eetativos, coroa de espinhos de suor, um lixar em
feridas novas, um tropel de centopéias nas veias,
um desenroscar de tênia tomada sucuri no pesa-

37
. . . de repente , alguma coisa começa
a materializar-se. .. e Êíe.

38
delo, o desabrochar de abacaxi onde não cabia e
um deglutir de escamas de peixe, um desejo de
grito inútil em casa mal-assombrada, um ímpeto
de esmurrar fantasmas, pedaços de preces nos lá­
bios espumantes, promessas súbitas de dedos cru­
zados, a lembrança do esquecimento de alguma
coisa essencial que ainda não sabemos o que seja,
mêdo de continuar, de ser, velhice fluindo na
ampulheta do destino, adeuses de amigos sôbre
as mãos entrelaçadas no peito, odor póstumo de
flores, retângulo de madeira que desce, ruído do
revertere do pó, céu fechado sôbre o nariz, odor
de si mesmo liquefeito e putrefato, e o nada sem­
pre e o sempre nada, a certeza daquela eternidade
segundo por segundo, o desfazer-se da carne e da
alma dentro dela numa erosão de tôdas as células,
o não-ser, o não-ser com a consciência daquele
outro ser que nos chupou a vida por um canudi-
nho, como se nos bebesse em refrigerante, como
se no-la aspirasse ventas a dentro, e apenas acom­
panhássemos o nosso jazer desvanecendo-se.
É Êle.
Classificação
geral dos chatos *

D e n t r o d a s c o n d iç õ e s estabelecidas
na definição, chega-se a um postulado importan­
te: Todo o chato é bonzinho. Não o fôsse, e não
teria tempo de ser chato. Há uma exceção: o
chato agressivo, que é o desesperado de ser bon-
zinho ou que deseja converter-nos, por coação
física, à sua bondade. Ou destruir fisicamente a
nossa maldade. O chato bonzinho trabalha na
desintegração da personalidade moral, intelectual,
afetiva; age de dentro para fora. O agressivo pro­
cura a coação muscular. Mas, bonzinho ou agres­
sivo, o chato ataca sempre por um ângulo que

(* ) Como a matéria nunca foi compendiada, cada leitor


pode ter a sua própria classificação, ou melhorar a que aqui
apresentamos. Ao fim do volume, deixamos algumas páginas em
branco para as classificações pessoais e o aperfeiçoamento das
sugeridas.

40
O chato “catalítico” ou "subliminar”, o que age por
ação d e presença, sem falar, sem mover-se m esm o .. .

41
julgar ser o da afetividade — o que já sentia Vol-
taibe ao suplicar que o livrassem dos seus amigos,
pois dos inimigos êle próprio se livraria. O chato,
bonzinho ou agressivo, imagina-se amigo. E.
por piedade, inércia, temor ou burrice, nós às
vezes o deixamos nessa ilusão.

Na classificação geral dos bonzinhos encon­


tram-se os seguintes:

1. Catalicos, também chamados sublimina­


res. Os que agem por ação de presença (de per­
to, os chatélites; de longe, os telechatos), sem
falar, sem mover-se mesmo, emitindo apenas on­
das de partículas imponderáveis que nenhum
computador, a não ser a própria vítima, consegue
captar, e que giram em tômo do chato, donde se­
rem chamados “anéis de Chatumo”. Às vezes, en­
tretanto, tais irradiações bombardeiam outros sêres
e até objetos inanimados, antes mesmo de
atingido o paciente: canários param de cantar,
cães rosnam, copos se quebram, quadros despen­
cam, fenômenos que, na linguagem comum, se
chamam ‘avisos’. Entre os catalíticos a espécie
mais atuante é a dos barógenos, também conheci­
dos como pesados ou azarentos. Embora, na prá­
tica, os chatos de qualquer categoria possam emi­
tir partículas de “jettatura”, os barógenos têm
como atributo a causa de maléficos de tôda natu­
reza: quedas, atropelamentos, empregos perdidos,
dinheiro roubado, maus negócios, programas frus-

42
Irados, erros profissionais. As suas irradiações não
penetram apenas o paciente, mas se refletem ou
ricocheteiam, atingindo as coisas ao redor, ou vol­
tam-se sobre o que a vítima está fazendo ou vai
fazer. Enquanto os catalíticos simples infiltram
chateação como um escapamento de gás, os cata-
líticos-barógenos só são reconhecíveis depois que
produziram o desastre. Existe um tipo de barç-
geno muito difundido por suas particularidades:
é o “heautontimoroumenos”, o “carrasco de si
mesmo”, de ação reflexa. São os supersticiosos,
os consultadores de horóscopos, os que têm mêdo
ou amor por números (o 13, o 7 ), por datas (o 13
de agosto, a sexta-feira .13), os que apostam men­
talmente consigo mesmo que se fizerem tais ou
quais coisas outras tantas coisas necessàriamente
acontecem ou deixam de acontecer. Ainda que,
à primeira vista, parecendo apenas “autochatos”,
sem risco para terceiros, na verdade contaminam
as vítimas porque lhes atribuem o “azar” ou a
“sorte” a cujo encalço andam. O chato que conclui
mentalmente que “Fulano dá sorte” é tão perigoso
quanto o que conclui que “Fulano dá azar” (a
menos que Fulano dê mesmo azar); no primeiro
caso, gruda-se cataliticamente a Fulano; no se­
gundo, afugenta os amigos de Fulano. Incluam-se
nos catalíticos os axilares e odoríferos em geral.
O catalítico, caracterizando-se pelo silêncio
ou pelo laconismo, é um penetra da solidão da
vítima, um violador do que cada homem possui
em si mais sagrado: o direito de chatear-se ou

43
O chato “catalítico-barógeno”
do tipo “heautontimoroumeno

44
deschatear-se sozinho — treinamento que lhe per­
mitirá, no transcorrer da vida, correr para o pique
de si mesmo.
O chato catalítico possui um complexo de
inferioridade resultante de aflitiva imodéstia: êle
se crê invisível e, por conseguinte, não-contunden-
te. Em sua forma larvar é o tímido que, para não
incomodar ninguém ao sair dum ônibus superlo­
tado, acaba acotovelando a todos, por pura deli­
cadeza; é um Rim baud(*) que, par delicatesse,
não teria perdido sa vie, mas a vida alheia. Tal es­
pécie de chato acaba sendo um exibicionista capaz
de praticar um ato fisiológico em nossa presença
porque a sua forma de chateação é a convicção
de que não está perturbando ninguém. Os des­
leixados no traje, os sujeitos de barba-por-fazer,
os que recebem à porta em trajes menores são
dados â chateação catalítica.
2. Logotécnicos, subdivididos em diversas
espécies: pronominais, proparoxítonos, filóxenos
(atacados de filoxenia, isto é, o acendrado amor
a palavra, citações e expressões estrangeiras), os
trocadilhisas, os charadistas, os cefaloclastas
( amantes de quebra-cabeças), os sideropígios
( cdf). Em geral se subdividem em omnílogos
e unílogos, conforme versem sôbre vários assun­
tos (alta porcentagem no Brasil) ou um só assun­
to ( “profissionários”, que só tratam da mesma
profissão: colecionadores; haedeckerianos, de pre­

(* ) Na primeira edição saiu “Verlaine\ Chato, não ?

45
cisão em pormenores turísticos; prendados-domés-
ticos, dados a falar de crianças, remédios, receitas,
empregadas; balipódicos, que se subdividem pelos
clubes de futebol a que pertencem). O maior
índice de unílogos se verifica entre americanos,
altamente especializados e preocupados com a
técnica de suas profissões ( * ) .
Os logotécnicos compreendem ainda os cali-
fásicos ou bocas de foro; que estu-daram emposta-
ção da voz e, quando no banheiro, cantam para
embalar-se; e os cambronnofágicos ou escatolos-
sádicos, cujo palavreado é o que se escuta nos
filmes franceses “nouvelle vague” e que não está
traduzido nas legendas em português. Há califá-
sicos profissionais, como os recitadores em geral
(* ) A extrema especialização técnica a que chegou a civi­
lização americana tornou grande massa de americanos comple­
tamente uníloga, o que se pode constatar em qualquer catálogo
de edições de livros sobre “know-how’7, que reunem milhares
de títulos comportando profissões, “hobbies”, manias, curiosidades,
anedotas, ciência, e apresentando pràticamente um volume para
eada problema cotidiano a enfrentar. Postos em ordem cronoló­
gica os problemas do homem, assim teríamos uma biblioteca
básica de “know-how”: Como caçar passarinhos (F. C. Pellet );
Como obter uma bicicleta (C. G. F erguson); Como reconhecer
os mamíferos (E. S. Both ); Como vencer a timidez (P. W.
T itus ); Como dançar (F. E. P arson ); Como desenvolver o auto-
confiança (D. Carnege ); Como fazer uma esperiência (P.
H ogeund); Como bater em retirada (I. I parraguirre ); Como
evitar ò casamento (H. F ray ); Como dominar o seu mêdo (P.
G. Steinrohn ); Como ser pai (F. B. Gelbreth ); Como arranjar
e conservar um marido (K ate Constante ); Como organizar
uma perfeita cerimônia de casamento (L . Kelley ); Como obter
o primeiro emprêgo (G. Leeds ); Como ananjar um emprêgo
(W. K. e E. A. Richards); Como ser delirantemente feliz (I.
W allach ); Como arrumar a casa ( M. D. G illies ); Como
ganhar dinheiro (H. e I. E isenberg ); Como fiz um milhão de
dólares (A. F. T aylor); Como multipliquei minha renda e minha

46
Logotécnico-unílogo da espécie norte-americana.

47
e os cantores napolitanos. E há cambronnofágicos
que usam partículas vocais próprias como artifí­
cios de pontuação: vírgulas, exclamações, interro­
gações, interjeições( * ) . O Chico Pacheco da no­
vela de J o r g e A m a d o é um desses. Outros vão
mais além e usam gestos, principalmente o pla-
tanus ( de plattus, chato), designação botânica da
banana, e a circunferência feita com dois dedos,
que os americanos pensam que quer dizer “Tudo
azu l!”.
3. Os unílogos não devem ser confundidos
com os ex-officio, cuja ação pode provir da pro-

sorte nas vendas (F. Bettger); Como transformei mil dólares


em um milhão em negócios imobiliários nas horas vagas (W.
N ickerson); Como não ficar nunca zangado (J. Rodale); Como
ajudar meu marido a descansar (B. M. W heller ); Como fazer
roupinhas de boneca (Bí R. D o w ); Como ajudar seus filhos a
crescerem (A. P atri); Como falar a seus filhos sobre sexo (C.
N arramore); Como tornar um sucesso o seu casamento (E .
Chessner ); Como viver com um neurótico . em casa ou no tra­
balho (A. E llis ); Como ser ofensivo pràticamente com todos
(P. S pitner ); Como produzir um terremoto (R. Kraus ); Como
bater em retirada, 2.° capítulo, (I. Iparraguirre ); Como pro­
teger-se contra as mulheres e outras vicissitudes (C. Morton );
Como viver na floresta com dez dólares por semana (B. Angier);
Como perder amigos e afugentar pessoas (I. D. T ressler); Como
dormir bem (S. Gutwirth ); Como ter juízo (R. F lesch ); Como
gozar a vida depois dos sessenta (P. B ouchron); Como viver
com seu broto (D . W. Baruch ); Como ter sucesso nos negócios
sem realmente tentar (S. M ead ); Como levantar dinheiro ( K.
W ood ); Como parar de beber (H . Brean ); Como viver com
diabetes (H . e B. S. D olger); Como deixar que Deus o ajude
(M. F illmore ); Como ser um eremita (W. Cu p py ); Como
pode Deus responder a uma prece (W. E. D ieterwolf); Como
viver? (E . G. W h ite ); Como ser uma mulher rica (H arriet
P almer ); Como ser uma viúva de sucesso (R. L. Zalk ).
(* ) " . . . non miror, merdas si libet caní* Marcial, Epi-
grammaton, Liber I.

48
Chato da classe “ex-officio”.

49
fissão que exercem, embora discorram sôbre vá­
rios assuntos: barbeiros, calistas, locutores, den­
tistas, massagistas, humoristas, alfaiates — no
momento em que exercem suas profissões. Ou
podem ser ex-officio-unílogos, quando forçosa-
mente abordam o assunto a que a profissão os
obriga: vendedores, oferecedores de amostras,
cobradores, demonstradores, “camelots”. Em mi­
nhas observações pessoias, só encontrei um indi­
víduo infenso à chateação ex-officio. Foi uma
senhora que me confessou: “Adoro ir ao dentis­
ta 1” Essa mesma senhora ouviu durante duas
horas e meia, entremeando de perguntas perti­
nentes, um vendedor-demonstrador de enceradei­
ra elétrica — o qual deixou afinal o aparelho para
ulteirores experiências e nunca mais foi buscá-lo.
Quanto ao dentista, arrancou os dentes da dama,
plantou-lhe uma dentadura dupla, promoveu o
boicote da senhora no Sindicato e mudou de pro­
fissão, de nome e de cidade. Mas êste é caso
raríssimo, porque via de regra ninguém consegue
chatear um chato-

4. Hamletianos, atacados de idéia fixa, mas


indecisos no comportamento para alcançar o fim
que almejam. Pertencem a esta categoria os de­
sastrados, respingadores de môlho, derrubadores
de jarras, tropeçadores em tapête e os gaffeurs.
Matam involuntàriamente Polonius, levam Ofélia
à loucura, assassinam amigos e a própria mãe,
tudo “por bem”, mas sem saber onde está o bem,
que “está sempre onde nós o pomos, e nunca o

50
pomos onde nós estamos” — lem aqu e tomo de
V ic e n t e d e c a r v a l h o para a classe. De todas
as espécies de hamletianos, a máis difundida é a
dos gaffeurs que, só êles, mereciam um tratado
à parte.

5. Pirotécnicos, identificáveis por expressões


como “Você é quem brilha 1”, “Como vai essa bi-
zarria ?, “Você cada-vez mais cada-vez!”, “Você
vai bem-obrigado ?”, “Venham de lá êsses ossos !”.
No Brasil, usam um abraço empinado, barriga con­
tra barriga; palmadas nas costas ( “Salve ê le !”).
Na categoria estão os genitlíacos, que dão a co­
bram parabéns, reparam quando faltamos a quais­
quer manifestações e fazem questão de com­
parecer; os ganimedianos, gentis, prestativos
(encontrados entre diplomatas, homens de rela­
ções públicas, parentes pobres); os filogenéti-
cos, amigos da família; os arqueomíticos, conta­
dores de anedotas manjadas que festejam com a
melhor gargalhada (há um tipo que ri antes mes­
mo de contar a anedota e os da má ironia ou
chatíricos); os entronizantes, oradores de festas,
casamentos, batizados, posses, os angariadores de
assinaturas para homenagens e manifestações —
espécie designada comumente por puxa-sacos;
e os que fazem gracinhas, practicàl-jokes, pri-
meiros-de-abril, os conhecidos “sujeitos gozados”,
ou seja os chatimbancos. Na prática, os pirotéc­
nicos podem conter alguma coisa de postulantes
(v. adiante), pois acabam cobrando o incenso que
gastam.

51
Pirotécnicos da classe dos “chatimbancos”:
os que fazem gracinhas, eepractical jokes”.

52
“Vivissectólogos”. . . quando lêem, fazem-no de
lápis na mão para corrigir os erros do tipógrafo .
6. Vivissectólogos, que nos cortam a carne
viva com o bisturi das palavras, reconhecíveis por
expressões de rigor quanto à veracidade da narra­
tiva, tais como “Minto !”, “Espere a í . . . ”, “Era ir­
mão da cunhada do tio daquele Pacheco, que se
casou pela segunda vez em 1897 com uma sobri­
nha do ajudante de ordens de Floriano”. Os vivis­
sectólogos cultivam a digressão; suas narrativas
são cheias de afluentes, subafluentes, árvores ge­
nealógicas, retificações cronológicas; batem “xx”
em cima do que já disseram, como os maus dactiló-
grafos, e corrigem adiante. Quando leem, fazem-
no de lápis na mão, não para anotar, mas para
acertar as vírgulas, as concordâncias e as letras
trocadas do tipógrafo. A princípio chegam a im­
pressionar às vezes mistificando a erudição, pro­
duto da memória, pela cultura, produto da inte­
ligência. Podem chegar ao sublime como P roust,
ou ao mero cacoete, como o escrevente que lança
várias vezes “digo”.

7. Tartufoclocos (da personagem de M oliè -


re e da personagem Clo-Clo, de Jean de la Lune
de M arcel A chard) são os que se instalam em
casa alheia, os parentes do interior, os que che­
gam sem prevenir (ectoplásmicos) , os que mexem
na geladeira ( self-serviçais) ou na vitrola; os
anfitriônicos (ativos e passivos), isto é, os pene­
tras (Romeu era anfitriônico-ativo) e os apareça-
-sempre; os esparadrápicos ou aglutinantes, tam­
bém chamados “empatas”, dê que o tipo mais
comum é o que anda com o copo na mão, nas

54
Chatos da espécie “Tartufocloclos” do tipo “self-serviçais”.

55
11. Sursumcordistas, cujo paradigma é a per­
sonagem da anedota: “Agonizantezinho, hem ?”.
Expressões para identificação: “Não há de ser
n ad a!”; “Minha tia estava assim e ainda durou
dois anos !”; “A coisa vai melhorar !”; “Que guer­
ra ? Estão todos de acordo !”; “Jânio vem a í !”.
São compradores de loteria, fazem promessas, an­
dam na boleia da anedota, leem D a l e C a r n e g ie ,
fazem ginásticas no banheiro, tentam namorar a
aeromoça.
12. Gratitudinenses, categoria terrível: aque­
les a quem devemos gratidão. ( “Salvei você de
morrer afogado, quando você tinha três anos !”;
“Se eu não tivesse falado com o Nonô, cadê o seu
cartório ?”). Dividem-se em proclamantes, os que
proferem as frases mencionadas, e os implícitos,
que não falam nada, mas apenas nos olham, sa­
bendo que lhes somos gratos e nos torturam sem
lembrá-lo de viva voz. Esta classe mistura-se à dos
postulantes, e então se torna sinistra: é inútil
mostrar gratidão a um gratitudinense fazendo-lhe
vários favores; na hora que falhar um só dêles,
somos ingratos e êle o proclamará com a mais
deslayàda justiça. Brutus era gratitudinense.
César que o diga-
13. Confidenciais são os que sabem de notí­
cias de primeira mão: palpiteiros de turfe ( bar-
badeiros ), boateiros, boas-fontes. Geralmente
seguram o paciente pela lapela, quando falam;
ou cospem-lhe no ouvido. Muitos contam o óbvio;
outros, o incrível, são cataclísmicos ou apocalíp-

60
“Você com pre uma válvula XP-003, que esta
michou”. (Chato da categoria dos “artesanais”).

61
ticos. Podem ser “com pedal” ou “sem pedal”,
conforme berrem ou sussurrem. Na realidade, a
maneira como falam permite indicações musicais:
“pianissimo”, “fortíssimo”, “smorzando”, “perden-
dosi”, “crescendo”.

14. Artesanais são os que pretendem conser­


tar nossos isqueiros, relógios, e transformam
estas gentilezas em prejuízos econômicos. Habi­
lidosos, desentopem pias, trocam lâmpadas, fusí­
veis, religam comutadores, interessam-se pelos
defeitos do rádio, da televisão, da vitrola, do liqui­
dificador. Sabem fazer tudo aquilo com o que a
dona da casa humilha o marido quando diz: “Pre­
ciso chamar um homem”. O artesanal é o Homem,
voluntário: pede chaves inglêsas, martelos, para­
fusos, põe-se em mangas de camisa, destripa o ce-
ceptor, transforma-o num “pogroom” de intestinos,
sacode válvulas, estala em vagidos o altofalante,
descobre a causa do mal: “Você compre uma vál­
vula XP-003, que esta michou”. E deixa no chão os
fios, os metais, as ferramentas — e mais o compe­
tente diagnóstico. Aqui se incluem, é claro, os
mecânicos amadores de automóvel, que mandam
parar o carro no meio da Belém-Brasília para lim­
par uma vela; e também as fazedoras de flores de
miolos de pão, de cortinas de papel enrolado, de
“pierrots” de casca de ôvo, os amadores de canto
que arrasta mo pianista amigo para acompanhá-
los, os prestigiadores, os que nos oferecem
pinturas de sua lavra.

62
Chato “donjuanesco” da espécie
aGracioso de beira de calçada9’.

63
15. Donjuanescos que, conforme a atitude de
elegância que assumem, podem ser dezmais ou
dezmenos. Numa escala cromática, vão dos encan­
tadores de salão aos bolinas, inclusive os gracio­
sos de beira de calçada. Quando não exercem
a chateação diretamente sôbre as damas, são con­
fidenciais para os amigos: “Aquela, e u . .. Tás
me entendendo ?”
16. Otelos, que compreendem não apenas os
ciumentos amorosos mas, pior do que estes, os
ciumentos de amizades, que exigem participação
contante na vida do paciente e se zangam quando
a vítima os omite, voluntária ou involuntàriamen-
te, de um almoço, recepção ou programa. Há um
tipo que deseja impor suas estimas e inimizades
à vítima, e chega a excluir nomes de desafetos
numa conversação, preferindo dizer “O Coisa”,
“Aquêle Cara”, e batem na madeira para atribuir
“guigne” aos nossos amigos.
17. lagos. O louvável sentimento da inveja,
estimulante e emulador, pode tender para a cha­
teação. Nesta categoria estão os despeitados, cujo
hábito é escolher uma vítima — escritor, músico,
político, milionário, nomeado, premiado — para
alvo permanente de ironia e maledicência. Como
não possuem voo à altura da vítima e, por isso
mesmo, lhes falta talento para a verrina sadia,
apenas supuram as próprias dôres. Frases típicas:
“Quando eu me aposentar, vou escrever um ro­
mance e acabo com o cartaz do Jorge Amado!”;
“Êle assina mordendo a língua, e no entanto che­

64
gou a tabelião !”. Quando mais sagazes, não che­
gam a negar totalmente o objeto de suas iras:
trazem na bôca uma adversativa: “É m a s . . . ”.
Muitos críticos profissionais pertencem a esta cate­
goria ( * ) , porque o não-gostar pode tornar-se uma
profissão com direito a livros dos editores, cadeiras
ae teatro, “cocktails” de “vernissage”, bilhetes de
futebol, convites de embaixadas.
18. Faisões, que não devem ser confundidos
com os pronominais, embora se identifiquem pelo
consumo do prone “eu”. Podem misturar-se aos
logotécnicos e aos donjuanescos, mas o que lhes
importa não é o bem falar ou a fama de conquis­
tadores: é um certo glugú inaudível, um rama­
lhete de penas douradas que estufam, o peito de
galináceo que adiantam, o andar processional, a
exigência do silêncio quando cantarolam “E u . . . ”,
o ar condecorado, o olhar além do horizonte, o
conhecimento de datas de vinhos e de restauran­
tes do “Guide Michelin”, que mencionam como
se tivessem sido engarrafados e fundados em sua
homenagem. Mesmo quando procuram dar natu­
ralidade de rotina a essas citações, pronunciam-
-nas em itálico ou em caixa-alta; a pompa, o “côté
de Guermantes”, a coluna social e o lugar-comum
são os seus lugares; demonstram certo talento/para
espalhar o boato de sua inteligência e firiura, a
tal ponto que ninguém se espanta se ganham o
Prêmio Nobel de Química ou da Paz.
(° ) O crítico-iago é um ctelo que, não tendo conseguido
esganar Desdêmona, trata de esganar Shakespeare.

65
Os agressivos

Os chatos acima mencionados, embora se cha­


mem bonzinhos, contêm sempre uma dose de
agressividade, a de sua própria natureza de chatos.
Os agressivos puros levam o assalto físico além da
simples presença, do atracar pelo cotovelo ou pela
lapela, do barrar na rua até que o paciente perca
a condução, do obrigá-lo a sentar-se para ouvir,
e do uso de outros pequenos recursos contra o
corpo humano que não chegam a ser mencionados
no “Código Penal” como “agressão”. Quando
muito, não vão além da figura do “cárcere pri­
vado”, como, por exemplo, os anfitriões de “week
end”. O chato que nos gruda o braço não violou
propriamente a lei penal; quando muito transgre­
diu o artigo 141 da Constituição Federal, no que
estabelece que somos livres de ir e vir, ou de
deixar falar (os do tipo “São João da Barra”:
“Largue-me! Deixe-me gritar!” ). Contra eles
cabe “habeas corpus”, “mandado de segurança” ou
simples notificação. Contra os fisicamente agres­
sivos cabe queixa-crime, nunca apresentada.
Os agressivos são polêmicos ou etilometamór-
ficos. Os primeiros se identificam imediatamente
pelas expressões “Nada disto !’”, “Cê é bésta!”,
“Uma o v a !”, “Sai da í . . “Não me venhas de
carrinho!” (variante: “de borzeguins ao leito” )
com que preparam a agressão. Há um tipo de
polêmico, o mais genuíno, cujo início de conversa
já é um revide ao nosso silêncio: “Rui era um

66
grande homem ! Hem ? Que é que me diz dis­
to ? !”. Às vezes a ação não passa de argumentos
em contradita, silêncios de irônica superioridade,
riso zombeteiro, ou mesmo apartes. “Nesta é que
eu não caio !; “Que esperança!” etc. São polê­
micos não no sentido helênico da palavra, no senti­
do de luta; mais propriamente deveríam chamar-se
agonistas, disputadores de torneio, provocadores
de agonia. Podem tomar-se agressores físicos,
quando derrotados na discussão ou quando não
conseguem captar os favores do auditório. Então
usam expressões como “É a mãe !” e seus super-
lativos-pejorativos, de que conhecem farta sinoni-
mia. Enfrentados, valem-se da turma do deixa-
disso. Assuntos prediletos: política e futebol. Um
tipo de polêmico muito conhecido é o retroativo,
o que, a uma ocorrência infausta, exclama: “Eu
não disse ?” — embora nada tenha dito. Outra
forma: “Bem feito !”, sua única maneira de con­
cordar, geralmente usada pelas damas e adama-
dos, com bater de mão fechada na palma da outra
ou de salto do sapato no chão.

Etilometamórficos

Começam a agressividade após certa dose de


álcool, ou como se a tivessem bebido. No pri­
meiro estágio da embriaguez efetiva, permanecem
bonzinhos, ficam tristes, fazem confidências, dor­
mem, ou tornam-se eufóricos (no sentido grego,
anatômico, que nenhuma pessoa educada deve

67
O chato “etilometamórfico* ( . . . de que o indivíduo
sai para outro estágio perigoso, a ressaca).

68
usar, e que no entanto ouvimos de qualquer don­
zela pudica: “Hoje estou eufórica!” ). Temas:
frustrações de amor, de trabalho, de êxito na vida.
Mas o álcool ou o calor da controvérsia produz
às vezes uma exaltação de confiança, de promessa
de empreendimentos, de planos, de que o indi­
víduo sai para outro estágio perigoso, a ressaca.
Ou para a agressividade total, o quebra-quebra.
Aí qualquer tema serve: pagou ou não pagou,
paguei ou não paguei, amo ou não amo, ama ou
não ama, sei ou não sei, sabe ou não sabe, quero
ou não quero, quer ou não quer, é com amigo
ou desconhecido. Convém notar que neste caso
particularíssimo as mulheres são ainda mais estu­
pendas do que os homens.

Da mulher chata

Os tipos até agora classificados podem ser de


um e outro sexo. É evidente que a mulher pode
ser catalítica, logotécnica, ex-officio, hamletiana,
pirotécnica, vivissectóloga, tartufochcla, catequé-
tica, postulante, ofertante, sursumcordista, grati-
tudinense, confidencial, califásica, cambronnofá-
gica, artesanal, donjuanesca, faisã. Em alguns
destes casos, porém, convém mudar a nomencla­
tura. De uma donjuanesca se dirá, com mais pro­
priedade, que é uma bovaryana ou polanegrina
(em geral abrem lentamente o cílios como asas
de borboleta); de uma hamletiana dir-se-á que
é uma solteirona. ( Mesmo casada, a chata-soltei-

69
Exemplar típico de uma “chatânica .

72
Protótipo de “Canibal” ou “Devoradora
de carne humana masculina”.

73
“Macrobiohroto”, “sexagerada” ou “velha assanhada”.

74
rona é um tipo logo identificável, pela mania de
ordem que a torna sempre ranzina).
Cumpre, entretanto, observar que o atributo
de chato (ou chata) é tremendamente relativo,
de vez que cada indivíduo tem o chato que merece
— e é esta a razão pela qual a esposa chata que
o espôso abandonou pôde encontrar outro esposo
que não a julgue chata, e então viveram muito
felizes e tiveram muitos chatinhos.
Em relação aos homens em geral as mulhe­
res se classificam, e só elas, em protótipos só en­
contrados em seu sexo.
1. As feias, de várias espécies: a feia que,
sabendo-se tal, desenvolve o intelecto como com­
pensação e se toma uma cabeça-chata (que não
deve ser confundida com a pessoa normal, de
um ou outro sexo, oriunda do Nordeste); a bene­
ficente, cuja bôlsa contém sempre listas para pas­
sar, bilhetes, rifas, subscrições, propostas de sócio
etc.; a chatânica, canibal ou peixe-abissal, devo-
radora de came humana masculina; a hylea, vir­
gem, sombria e úmida; a macrobiodiana, que se
raz acompanhar de efebos; a macrobiobroto, ou
sexagerada, ou velha assanhada.
À primeira vista, em relação aos homens, só
as mulheres feias são chatas. Na realidade tal
não acontece, o que permite subdividir as chatas
em casadas e solteiras. Mas as feias podem per­
tencer a um e outro grupo, dependendo do auxílio
prestado pelo infeliz que lhe mudou o estado civil.
As vezes é esse mesmo infeliz que atuará de modo

75
"L ogorreicíf do tipo “uxoricida”.

7Q
Exemplo da espécie “telefonômana

77
a que a sua chata se torna, diante dos demais
homens, uma beneficente, uma canibal, uma
hylea ou um macrobiobroto. Quanto à cabeça-
chata, nunca foi levada a manifestações intelec­
tuais pelo homem que lhe caiu nas garras(1) : sol­
teira ou casada, já dava à luz livros de poemas, ro­
mances, quadros, noturnos de Chopin — fenômeno
de fecundação espontânea com que a Natureza, ou
a divindade, se adianta à perpetuação da espécie.
Seguem-se as
2. Logorreicas, que só se revelam tais depois
de casadas, situando-se quase sempre como sol­
teironas. O tipo mais comum é a uxoricida, que
mata o marido de tanto falar(2); mas existem as
telefonômanas, que ocupam as linhas telefônicas;
as vizinhas; as PRabecedárias, únicas a falar em
reuniões ( ou nos cinemas, teatros); as prendadas-
-domésticas (criança, doença, remédio, emprega­
da, receita); as enredadeiras, que contribuem para
desquites, separações, anulações, divórcios, e são
altamente prestigiadas pelos escrivães das varas
de família.
S. Alices (do “Pais das Maravilhas” ), que
usam diminutivos: “bonzinho”, “amorzinho”, “de-
dinho”, “dormindinho”, “passarinhozinho”.
4. Proverbiais ou aforismáticas: “A gente
julga os outros por si”, “Quem ama o feio bonito
lhe parece”, “Se não fôsse o mau gosto, que seria
(1 ) Juvenal, Satura VI: “Soloecismum liceat fecisse marito”:
“Que seja permitido ao marido praticar o solecismo”.
(2 ) Juvenal, Satura VI: “Clytemnestram nullus non vicus
habebit”: “Não há rua que não tenha sua Clitemnestra”.

78
Peguei com a hõca na botija” (exemplar da
classe das “proverbiais” ou “aforismáticas”).

79
Da criança chata

Axioma de H erodes: Toda criança é chata.


Desde o embrião, a criança armazena, do
meio ambiente a que está coagida, uma quanti­
dade de chatice que chamaríamos a “chateação
originar, que os pais, amigos, vovós, parentes,
babás etc. tratam de desenvolver em constantes
e continuados exercícios. Daí a carga de chatea­
ção apresentada pelas crianças, o que só o tempo,
a reação contra o meio e a idade poderão eliminar
ou minorar.
A relatividade da chateação infantil leva os
pais a se reunirem em grêmios mundanos para se
infligirem mütuamente a chateação dos rebentos,
em noras de arte, bandinhas, programas de tele­
visão, festas de fim de ano, e para se consolarem
com a chateação alheia. Daí decorre o sucesso que
faz em muitas tertúlias o soneto “A vinguança da
porta” de Alberto de Oliveira, recitado por
criança, principalmente quando o pai ouve o fi­
nal: “A mulher como louca e a filha m orta!”.
A criança muda de chateação, com o tempo,
ao perceber, pouco a pouco, que com a estratégia
de chatear consegue o que quer do meio ambiente.
Na adolescência, surgem dois tipos de chateação:
a imposição de independência e o vácuo mental.
A primeira é um estado permanente de vingança
contra a chateação paterna; a segunda é um esta­
do de enciclopedismo de páginas em branco, gra­
ças ao qual cometerá, no futuro, as mesmas lou-

84
curas dos pais: seduções, casamentos, guerra, di­
vórcio, nôvo casamento, promissórias, amores à
próxima e desamor ao próximo etc.
A considerável extensão dos tipos de chatea­
ção infantil não permite uma classificação perfeita.
Aqui apresentamos uma tentativa, a ser corrigida,
ampliada ou substituída por outras, à medida que
progredirem os estudos especializados:

1 — as diarreicas ou à milanesa;
2 — as zurradoras ou mario-lanzas;
3 — as insones ou dráculas;
4 — as prurídicas ou pestilentas;
5 — as remelentas ou miguel-strogoffs;
6 — as pegajosas ou jacas;
7 — as desaforadas ou bocages;
8 — as ludoexaustivas, campeãs olímpicas ou
robots;
9 — as pedinchonas ou curiós;
10 — as graciosas ou frankensteins;
11 — as prodigiosas (einsteinianas, mozartianas,
bertassingescas, violônicas etc.);
12 — as queixosas ou calabares;
13 — as ludoclastas, destruidoras de brinquedos,
ou megatônicas;
14 — as piranhas, também chamadas acrídios;
15 — as insaciáveis ou hitlerianas;

Como se vê, a lista é imperfeita e provisória.


Cabe notar que a criança pode passar ràpidamen-

85
5 — os padrinhos;
6 — as babás;
7 — os professores;
8 — os médicos;
9 — os hóspedes;
10 — as visitas;
11 — os bedéis;
12 — os polícias;
13 — o curador de menores;
14 — o secretário de Educação;
15 — o ministro da Educação.

A mesma investigação permitiu verificar tam­


bém as coisas, fatos, fenômenos e ações que as
crianças acham chatas, todas elas relacionadas com
os adultos ou por eles de certo modo produzidas:1234567890

1 — sabonete;
2 — escova de dentes;
3 — pente;
4 — hora certa;
5 — colégio;
6 — diade chuva;
7 — dia útil;
8 — remédios;
9 — pátrio poder;
10 — falta de dinheiro;
11 — castigo;

90
12 — cartilha;
13 — regresso de pique-nique;
14 — música erudita;
15 — cam a(x);
16 — brinquedo alheio;
17 - lar(2).

Das coisas chatas

Não apenas as pessoas, mas os seres vivos


(papagaios, cães, canários do vizinho etc.) e coi­
sas (rádios, vitrolas e televisão dos vizinhos, auto­
móveis), ou acontecimentos ( “week ends”, enter­
ros, faltas d’água, solenidades, livros(3), falta de
mulher, pedra no caminho ( v. C arlos D rummond
de A ndrade ) ou abstrações (mêdo de morrer,
pesadelo com bomba-atômica, dúvida quanto ao
vencimento da letra — ou certeza) podem ser
chatos. Mas, detrás de cada coisa, animal, vege­
tal, mineral, abstração, angústia que nos chateiem,
há sempre um ser humano chato. Quando as cha­
madas subchateações o assaltarem, classifique-as
de acordo com o chato humano de que provêm.123

(1) Com a idade a criança mudará de opinião,


(2 ) V. Silveira Sampaio , A garçonnière de meu marido
— Editora Civilização Brasileira S. A., Rio de Janeiro, 1961.
(3) Usá-los como “de cabeceira”, contra insônia. Alguns
não precisam nem ser abertos: coloque-os a seu lado e inale.

91
Da relatividade
do chato

O primeiro esquema de divisão que


apresentamos compreende os chatos absolutos e
relativos. O chato absoluto, também chamado
Chatanás, é incurável, irremediável, irrecuperá­
vel, irreversível, inevitável, inenarrável, retroati­
vo, infinito, indiscutível, indivisível, implacável e
imortal. É aquele chato reconhecido por toda a
comunidade de chatos e não-chatos. Contra êle
só se podería, como medida profilática, aplicar
o cárcere incomunicável, o assassínio — ou o sui­
cídio da vítima. Através da História, vemo-lo
não poucas vezes sucumbir ao linchamento e a
diversas espécies de morte violenta. Não morre:
suas partículas continuam desprendendo-se e
atuando. Tais chatos levaram Augusto C omte

92
a dizer que os vivos são sempre e cada vez mais
governados pelos mortos, o que se desmente ao
verificar-se que os vivos são sempre e cada vez
mais governados pelos mais vivos, isto é, os que
se aproveitam de chatos mortos — por exemplo:
Marco Antônio.
Quanto aos chatos relativos, de existência pal­
pável, reconhecível em maior ou menor dose. —
são os que nos levam a concluir que “cada indi­
víduo tem o chato que merece”, pois cada indi­
víduo é mais ou menos receptivo ou refratário
a tal ou qual tipo de chateação. O chato relativo,
cuja ação provoca reação em cadeia, de paciente
para paciente, tem, assim, oportunidade de atuar
am vários “aparelhos”, que armazenam suas emis­
sões e as conduzem mais além, até diluir-se a fôrça
atuante. Ao tempo de N e w t o n , verificava-se a
lei segundo a qual o chato chateia na razão direta
das massas e a inversa do quadrado da distância;
em nossos dias, com o correio aéreo, o telefone,
o rádio, a televisão, o cabo submarino, o telé­
grafo, o telex, e tôda a cibernética, a lei só se
aplica quando nenhum engenho mecânico, elé­
trico ou eletrônico reduz a distância e o tempo
de entrada em ação do chato ( * ) .

(* ) Após o aparecimento da primeira edição dêste Tratado,


lançou-se no espaço um engenho cósmico denominado “Telstar”
que inaugura para a Humanidade a era da Chatelevisão.

93
Dos indícios

E mbora o chato nunca o seja à pri­


meira vista, isto é, nunca se mostre imediatamen­
te, mas se revele aos poucos, há certas locuções
e frases que o identificam, ou pelo menos servem
como indícios de que poderá estar-se materiali­
zado diante de nós. O lugar-comum é o lugar do
chato, por excelência. A linguagem evolui da
metáfora inaugural à chatice, isto é, ao estágio em
que a metáfora se cristaliza em lugar-comum, em
propriedade dos chatos. Pode-se organizar uma
lista, sempre incompleta, de expressões, ditos,
locuções, que permitem, senão diagnosticar o cha­
to, pelo rnenos colocar os que as usam em pru­
dente quarentena• Algumas vão aqui abaixo.

Quem é vivo sempre aparece !


Chega-te aos bons e serás um deles !

94
Sempre se espera pela pior figura! ( e va­
riantes. )
. . . Voltando à vaca fria. . .
. . . Pra encurtar a história. . .
Conhece aquela do papagaio que entrou no
galinheiro ? ( ou qualquer outra história, iniciada
sempre com o “Conhece aquela”. )

. . . Dois surdos iam pescar e se encontra­


ram . . . Conhece esta ? (O “Conhece esta”, após
iniciada a história, é sintomático. Sempre que
você quiser contar uma anedota, vá até o fim,
sem indagar se alguém a conhece. O mérito da
anedota não está no ineditismo mas sobretudo na
interpertação.)
Pois é como eu ia dizendo. . .

Dá licença para um ? (Variantes: para o de-


gas, para o papai, para o maioral, etc.)*

. . . Seu mano, aí não te conto nada. . .


Segunda, sem falta, eu pago.
Cá pra nós. . . ( Que ninguém nos ouça etc.)
Essa vida é um buraco !
. . . bolando as trocas. . .
Não sei onde vamos parar!
Ai então êle pegou, virou e disse. . .

95
Aí está Fulano que não me deixa mentir.
A gente julga os outros por si. ( Conseqüência
do Innosce te ipsum .)
Amor com amor se paga. (Esperança de me­
gera.)
. . . E agora, que vai ser de mim ?
(Ameaça de queixa-crime contra curió vitorioso.)
Rogamos a presença de V. Sa. para liquidar o
débito. . .
Saibam quantos a presente virem ou desta co­
nhecimento tiverem. . .
Estou certo ? (Em fim de frase. Variantes:
Visto ? Entendeu ? Percebeu ? Tá ? Não ? etc.)
Ora muito b e m . .. (Até aí muito b e m . . . )
Não fala com os pobres ?
Não é pra querer me gabar ...
É com a voz em bargada...
. . . a imerecida homenagem que me pres­
tais . . .
. . . o humilde orador que vos f a l a . . . (não-
apoiados.)
Daqui por diante, seremos como dois irmãos.
Que é que você vai pensar de mim ?

96
Vamos fazer de conta que nada aconteceu.
Telefonei só pra saber notícias. . .
Há um tipo de chato que você esqueceu.
Isto é na opinião de Vossa Excelência 1
(clar o!)
Dá licença para um aparte ?
Eu não disse ?
A senhora não estava ontem no Bolero ? Puxa,
como parece !
... P ô !...
O indício sintomático do chato pode não des­
pontar mediante palavras mas por simples gestos,
de que damos alguns exemplos•
Não espalmada para quem fala, como quem
diz: “Espere, deixe-me f al ar. . Ou mão espal­
mada enquanto fala, acompanhada da expressão:
“Vou chegar l á . . . ”

Dedo apontando enquanto fala (sobretudo


em discursos) e respingando as afirmações, como
num mictório.
Mão coçando a nuca, em sinal de amnésia,
em relação a fato ou pormenor irrelevante.
Testa franzindo sobrolho alçado, olho arrega­
lado, para proferir o óbvio. (Ex.: “Bem disse
Dante: Lasciati ogni esperanza . . . ” )

97
Mão no ombro do interlocutor sacudindo-lhe
o corpo, como a acondicionar os argumentos num
saco. (Variantes: dedos segurando a lapela, mão
travando o braço o cotovelo. Variante de inten­
ção sexual: mão que não larga a da interlocutora
à hora da apresentação ou durante conversa des-
cuidadosa.)
Indicador e polegar unidos em circunferên­
cia, os três outros deds no ar, para sublinhar a
frase em pequenos compassos da anão.

Punhos fechados apoiados nos quadris, corpo


balançando nos pés, em atitude de suma satisfação
consigo mesmo.

Indicador puxando a pálpebra inferior do


ôlho em sinal de suma esperteza. ( “O papai aqui é
vivo !”)

Sucção e higiene lingual dos dentes à refeição;


estalidos da cavidade bucal aberta, enquanto den­
tes, língua e saliva preparam o mingau alimentar.

Mão por dentro do bôlso lateral da calça em


divagações inconscientes.

Polegares nas cavas do colête ( ou nas axilas.)

Cachimbo na bôca ao falar. Cigarro idem.

O indício sintomático do chato pode também


surgir de pormenores de traje, observada sempre
a condição necessária da repetição. Estas obser-

98
vagões nada têm a ver propriamente com “elegân­
cia". Alguns exemplos:
Gravata borboleta preta ( salvo em “garçons”
e “smokings” ) •
Gravata preta comprida conjugada com barba
por fazer.
Guarda-chuva fechado com abas abertas.
Terno azul-marinho, sapato marrom, meia
branca.
Boina no trópico (Exceção: pessoas de
idade.)
Paletó permanentemente desabotoado (e
principalmente ao andar por entre os bancos do
ônibus.)
Nó de gravata saltando para a frente do co­
larinho alto.
Casaco de quadrados, lenço de fantasia gra­
vata ouro-azul, meias escocesas, sapatos de camur­
ça e calça cinza ou marrom ( o chato policrômico.)

Vestido de cetim azul. (Mulher de funcioná­


rio nomeado para posto no exterior.)
Camisa de peito duro listada em forma de V.
Cinto aparecendo por debaixo do colete.
Nódoas axilares não recentes.

99
Emblema na lapela comemorativo de anos de
bons serviços.
Vestido com cheiro da estação anterior e do
perfume atual.
Condecoração de país subdesenvolvido. Co­
leção das ditas no peito ou em escrínio.

Há também objetos indicativos da chatice do


dono, caso usados permanentemente. Exemplos:
Caricatura emoldurada na parede (principal­
mente as de caricaturistas repentistas de rua.)
Coleção de auto-retratos.
Coleção de nus (sobretudo estampas).
Calendário em sala de visitas.
Patinhos de louça voando na parede.
Amolador de faca à mesa.
Tapete de jornais.
Cinzeiro no WC.
Panos de crochê nos encostos das cadeiras.
Adornos caseiros de prendas domésticas
(aquarelas familiares, cortinas de papel enrolado
ou tiras de meia de seda, jarros de “papier-maché”,
abajures de papel “crépon” etc.).
Escarradeira.

100
Piano de cauda aberto com música aberta na
estante.
Coleção de paliteiros.
Garrafas lapidadas contendo chá ou anilinas,
na sala.
Fralda no parapeito.
Livro arrevessado, visivelmente colocado com
espátula dentro, para visita ver.
Compoteira com doce de jaca.
Vinho tinto gelado (indício de conversa de
padrão rasteiro).
“Serenata” de Toselli na vitrola ( sinal do pa­
drão da hora de arte).
Dístico: “Nesta casa só entra o amor”, e
outros.
Escrínio de condecorações de países subde­
senvolvidos.
Fruta-pão, cajás, maracujás, carambolas na
fruteira.
Whiskey” em copo de pé.

101
Do emprego da
classificação geral

J À foi dito que, na vida real, os tipos


de chatos não se apresentam em estado de abso­
luta pureza. O indivíduo chato, salvo honrosas
exceções, é uma mescla. Só a observação acurada
do chato poderá permitir a sua análise completa,
determinados os componentes elementares. Veri­
fica-se, ainda, que certos chatos podem continuar
com resíduos de chateação infantil, como chatos
masculinos podem conter elementos de classifi­
cação feminina, ou crianças podem acusar par­
tículas de chateação adulta etc. Dado o caso con­
creto, o classificador tem que atentar para tôdas
as particularidades do analisado. Em certos casos,
para evitar uma absorção perigosa durante a aná­
lise, convém usar óculos pretos, luvas de borracha,

102
E m certos casos, para evitar uma absorção perigosa
durante a análise, convem usar óculos pretos, luvas de
borracha, entupidores de ouvido e roupa d e asbestos.

103
entupidores de ouvido e roupas de asbestos. Em
casos de menor virulência uma figa da Bahia pode
produzir algum resultado imunizante.
Analisando suficientemente o indivíduo, alis-
tam-se um a um seus componentes puros, assim:

Fulano d e Tal (classificação feita por mulher): —


pirotécnico genitlíaco, com vestígios de vivissectólogo;
mal-dançante axilar; na infância, provàvelmente calabar
e curió.
Fulana de Tal (classificação feita por homem): —
logorreica uxoricida, puxando para feia, com dose con­
siderável de masoquista adiposa e de retardatária; na
infância, acrídia e mario-lanza.
Sicrano (8 anos de idade) — ex-diarreico e pesti-
lencial, atualmente frankenstein prodigioso bertassinges-
co. Probabilidades adultas (a menos que outros fatôres
desconhecidos interfiram): logotécnico faisão com ten­
dências para iago.

Dissemos também que, dada a relatividade


do chato, a classificação apresentada não é fixa.
Qualquer pessoa poderá, mediante engenho e ex­
periência, elaborar outros esquemas, o que é mes­
mo aconselhável, como exercício espiritual contra
a autochatice e simpática vingança contra a
chateação alheia. Além disto, as classificações
amadorísticas feitas em reuniões sociais constituem
jogos de prendas divertidos, até que, por força
de sua própria condição e da matéria com que
lidam, ficam chatos.

104
E xercícios de classificação

1) Classificar os chatos contidos nas seguintes


peças literárias:
a) Sete anos de pastor etc., sonêto, C amões;
b ) A vingança da porta, sonêto, Alberto de
Oliveira;
c) Nunca morrer assim, poema, Olavo B ilac;
d) O caso do vestido, poema, Carlos Drum-
mond de Andrade.

2 ) Classificar uma personalidade histórica ou


uma personagem de ficção.
3) Classificar uma pessoa de suas relações.
4) Reunam-se várias pessoas, munidas de lápis
e papel, e, dado o nome de uma personalidade,
cada qual procede à sua classificação. As clas­
sificações obtidas serão depois examinadas pelo
grupo de trabalho. (Êste exercício permite
amplas demonstrações de erudição e cultura).
5) Reunido o grupo de trabalho, escolha-se uma
pessoa do conhecimento dos componentes ( pa­
rente, amigo, inimigo, personalidade em evi­
dência etc.) e proceda-se como no exercício
anterior.

Observação. Nestes exercícios, convém evitar a


interferência de outras fontes de chateação: conversas

105
de pessoas desinteressadas, rádios, vitrolas, televisões,
etc. A experiência tem, entretanto, a vantagem de mudar
o clima de chateação geral do momento. Por exemplo:
quando feita durante um velório, uma conferência, uma
aula, uma solenidade, etc.

6) Reunido o grupo de trabalho, cada qual clas­


sifique os demais componentes, evitando-se,
ou não, a identificação ao papel de cada clas-
sificador.
O bservação. A experiência se torna particularmen­
te interessante quando o grupo de trabalho convida, para
participar, uma pessoa reconhecidamente chata no con­
ceito das demais. É óbvio, a qualidade de chato não
deve ser revelada ao chato.

7 ) Convide vários chatos para uma reunião social,


dizendo a cada um deles, em segredo e sepa­
radamente, que a festa se destina à observação
do comportamento de certa quantidade de
chatos, o que será feito pelo anfitrião e mais
pela pessoa a quem se contou o segredo. A
reunião, evidentemente, trará para sua casa
uma atmosfera altamente carregada de par­
tículas Ch, mas será proveitosa para se saber
como cada chato julga os demais.
8) Classifique, em relação às pessoas encontra­
das, assuntos conversados etc., um logradouro
público, um bar, a casa dum amigo, um reci­
tal, um jôgo de futebol etc.

106
Problem as (“story cases”)

1 — A T. jornalista, solteiro, de 30 anos de


idade, de salário razoável, estava em seu aparta­
mento e se preparava para receber uma amável
visita, para o que trouxera uma garrafa de “cham-
pagne” e “marrons-glacés” em estilo clássico. À
hora aprazada, ou segundos antes, a campainha
tocou. A. T. abriu a porta e era seu conhecido
R. C., que precisava consultar urgentemente uma
“Encyclopaedia Britannica”, e foi logo dizendo
que o outro não se incomodasse, que ele ficaria
na biblioteca o tempo estritamente necessário,
sem perturbar o jornalista. Antes que este pudesse
devolver R. C. ao ôlho da rua, soou novamente a
campainha e apresentou-se a amável visita, A. V.,
Polidamente, R. C. passou à biblioteca e ali per­
maneceu duas horas e 16 minutos, enquanto A. T.
e A. V., na sala contígua, tiveram de simular uma
conversação neutra, decidindo depois sairem am­
bos para um cinema. De regresso, sozinho, A. T.,
depois de depositar A. V. num táxi (ela viera
solicitar uma carta de apresentação para um sena­
dor), não encontrou R. C. no apartamento, mas
um seu autógrafo, em que agradecia a consulta
à “Encyclopaedia”, o “champagne” e os “marrons-
glacés”, e anunciava que voltaria breve, para de­
volver o décimo-oitavo volume que levava consigo
para estudar sem incomodar o amigo. No bilhete,
R. C. pedia a A. T. o número do telefone de
A. V. Pede-se a classificação dos dois.

107
. . . e então fizeram êle engolir o apito dizendo que se
não engolisse dum lado ia ser pelo vice-versa m esm o . . .

108
2 ) — Classificar os induvíduos autores da mes­
ma narrativa em diversas versões:
a) “Dir-se-ia o caos. A multidão enfurecida
precipitou-se para o ajuizador e o invectivou dura­
mente, com palavras soezes, e logo, passando à
ação, agrediu-o, no que foi ajudada pelos jovens
atletas ae ambas as hostes. Os mantenedores da
ordem não intervieram, no que foram exprobados
pelos menos exaltados, enquanto a ira popular
empolgava o seu objeto, lançava-o ao solo, espe­
zinhando-o, produzindo-lhe equimoses e contu­
sões, destroçando-lhe as vestes, fazendo-o deglutir
o instrumento com que silvara o prélio e amea­
çando introduzi-lo em partes menos decorosas.
b) Aí o pessoal virou, pegou e mandou o
esculacho no cara, e então era mãe pra cá e mãe
pra lá, e êle, pô, não podia fazer neca, e então
a turma não teve disso, mandou a mão e a maca­
cada, safada da vida, entrou no bolo. Seu mano,
cadê cosme-e-damião ? Até os distintos do deixa-
-disso disseram que êles eram mesmo era da mole­
za e aí o resto entrou de sola, esculhambaram êle
e até tiraram o calção, dêle e então fizeram êle
engulir o apito dizendo que se não engulisse dum
lado ai ser pelo vice-versa mesmo.
c) Comunico-vos que, às 17 horas de hoje,
no campo do X, sito à . . . , ocorreu grave e repro­
vável desavença entre grupos de marginais que
disputavam uma partida do chamado esporte bre­
tão, o que se iniciou com o emprêgo de palavras

109
de baixo calão, seguindo-se a agressão ao juiz.
A Autoridade, chamada a intervir, foi impotente,
mesmo concitada por uns poucos populares. Os
perturbadores da ordem feriram a vítima, coa­
gindo-a a engolir o apito, sob ameaça de outras
sevícias mais degradantes, ameaças consubstancia­
das na imposição de descer o calção da dita vítima.
Outrossim, saúde e fraternidade.

3 — Classificar o autor do trecho:

“Lá por cinqüenta e um, minto, cinqüenta e


dois, a Cidade Luz completava seu duplo milênio.
Desembarquei na Gare du Nord — ou foi em St.
Lazare ? — já não sei agora, mas digo em pouco.
E, como acontece sempre com quem teve contacto
com a cultura gaulesa, graças à leitura proveitosa
de Michel Zevaco e outros, me sentia, como se
diz, era casa: acolá estava o Sena, separando a
Rive Gaúche da Droite; aqui a Tour Eiffel, além
o Arc du Triomphe e eu me sentia pisar sôbre
as “oubliettes” e as “catacombes” dos Pardaillan.
Você já estêve em Paris, não ? Há ali perto do
Ange um “bistro”, logo quem dá a volta pela Peri-
gourdine — vou buscar o mapa para vocês acom­
panharem — aqui, o h !, estão vendo ? — pois a
dona se chamava Louisette, o “endroit” é Chez
Louissette e ali se come uma famosa “piperade”,
“comme il faut”, acompanhada ao “cassis”. Pois
quando levanto os olhos, quem estava ali senão
Margueritte Jamois em pessoa — aquela que fêz

110
“Les amants terribles”, não, esperem, “Les enfants
terribles” não, espera aí, “Phèdre”, é isto, de
Corneille.

4 — Classificar:

— Você, hem ? Você é que é o t a l ! Tenho


acompanhado... Gostei muito, mas muito mes­
mo, daquela sua — como se chama ? Diabo de
memória! Aquela do beijo. Não, aquela é do
Nelson, que rata, desculpe. Enfim, um troço que
você escreveu, rapaz, que me deixou bêsta. Pa­
lavra, não esperava. . . E além de tudo, poeta.
Eu queria saber como é que você encontra tempo
pra isto ! Comprei até um volume, dei prá peque­
na, ela já sabe quase todo o “Nós”, é isto, agora
me veio à memória. Qualquer dia eu levo ela lá
pra você ouvir. Bem, vou chegando, meu caro
Guilherme de Almeida, continue a brilhar. . .

5 — Classificar:

— Em matéria de cavalo de corrida, a melhor


que eu sei é a daquele tio do Inácio — um que
era joalheiro, minto, corretor, uma coisa assim. . .
Você se lembra: Inácio da Silva Tavares, não,
de Moraes, bom sujeito. Bom sujeito. Lá por
volta de 42, ou, para ser exato, em 1935, êle se
meteu num negócio de laranjas, ganhou dinheiro,
comprou casa em Botafogo — uma que era do
pessoal do Paranhos, aquêle que fugiu como a
cunhada, aliás ótima. Cá pra nós, fui namorado

111
. . . “mas onde é que eu estava mesmo P Ah, cavalo de
corrida. D e corrida. Pois aquêle Inácio tinha uma filha
que era uma uva. No “poker” en tã o .. .

112
dela. Namorou também o Chico. O Chico, o
nosso Chico, ora ! Como era mesmo o nome dele ?
Você sabe, êle me disse até que você ficou de­
vendo mil cruzeiros a êle. Não pagou e fêz muito
bem, o Chico está podre de rico, quinta em Por­
tugal, filho que não acaba mais. Filho que não
acaba mais. Estive lá, me mostrou a adega. Olhe:
o melhor vinho que já provei. O melhor. Só.
perde para um que vendiam no Monteiro, nos bons
tempos. Você tem estado lá ? Não é a mesma
coisa. Não, não é. Capaz. Também, deram de
misturar, querer enganar a gente. . . A mim nin­
guém engana: basta cheirar a rolha e . . . Quer
apostar? Olhe: uma vez ganhei uma aposta do
Bemardino — se lembra ? O Bemardino, cara
gozado, Bemardino Cunha, da Drogaria Cunha.
Pois êsse Bemardino achou que eu não entendia
— besteira, êle nem sabia que meu avô, Barão de
Aratimbó, importava vinhos franceses — franceses,
hem ? Não era pouca porcaria! — que eu até
cheguei a provar quando era pequeno, na fazenda.
Me lembro até que êle gostava de preparar uma
sangria, mas só com francêses, sabe como é: água,
açúcar e vinho. Foi quanto tomei meu primeiro
pileque. Meu primeiro pileque. Mamãe, coitada,
ficou, com perdão da palavra, . . . Mas onde é
que eu estava mesmo? Ah, cavalo de corrida.
De corrida. Pois aquêle Inácio tinha uma filha
que era uma uva, eu quis até casar com ela, mas
não deu certo, mas de qualquer modo o papai
aqui se defendeu. Bom, o Inácio era o tipo de
sujeito que não perdia. No “poker” então... Não

113
0

“Em agrecer é como eu faço: Sauna, m eu velho, sauna!”

114
perdia. Uma vez bateu um “four” de ases, assim,
pá ! — porque pensaram que ele estava blefando.
Ganhou cinco pacotes do Alfredo, lembra-se ? —
um casado com uma tetéia — e que quando come­
çava uma história não acabava nunca. . . O tal
que.. . Acho até graça. Ouça que é boa. O
Alfredo. . .

6 — Classificar:

— Você precisa se abster desse negócio de


regime pra emagrecer. Minha cunhada começou
assim e acabou em Campos do Jordão, píssica.
Emagrecer é como eu faço: sauna, meu velho,
sauna! Você entra, nu,.oitenta e cinco graus,
senta quinze minutos, sai, banho, entra outra vez,
sai, banho, entra outra vez, b an h o... A gente
agüenta, o pessoal fica contando anedota. E olhe
o meu colarinho ! Quase no peito! Perco um
quilo por vez. Deixe ver aqui essas pílulas e essa
sacarina que você tem no bôlso. Não lhe devolvo
mais. E você vai fazer uma hora de sauna todos
os dias comigo. É divertido, a gente fica conver­
sando, quando vê acabou. Amanhã vou buscar
você no escritório — e só largo você quando você
tiver perdido quinze quilos. Um mês, é sopa.
E depois, o prazer da companhia!

7 — Classificar:
— Vamos, que é isto ? Nada de chôro ! Mu­
lher é assim mesmo: vai uma, vem outra! Olhe:

115
quer saber duma coisa ? Foi até bom que a Er-
nestina largasse você. No fundo, uma chata. E
um bofe, saiba disto ! Todos achavam. Eu sem­
pre me dizia: como é que você, um cara tão legal,
foi se casar logo com a Ernestina ? Miss Brasil,
tá certo — mas um canhão, cá pra nós. Rica e
tudo — mas uma chata. Bolas, pare com êsse
chôro! Vamos dar um giro pelo mulherio e isto
passa. Você vai até se sentir melhor sem a Emes-
tina ! E não pense que ela era batata assim como.
você está pensando. Pergunte ao Jerônimo. Agora,
que vocês se separaram, você pode saber. Olhe,
vou lhe dizer como amigo: até comigo e l a . .. Eu
é que não, que comigo mulher de amigo é irmão
— nem irmã. Pipocas, você vai ou não vai parar
com a bobagem dêsse chôro ?

8 — Classificar:
— Vamos, sente-se aqui ao lado do doutor.
Modos, hem ? Cumprimente o doutor, que trouxe
até bala pra você. Juquinha faça o que estou
mandando ! Não ligue, não, doutor, no princípio
êle é assim mesmo mas depois perde a cerimô­
nia. Vamos Juquinha fique ali e recite bonitinho.
Bala só depois. Não quer recitar ? Olhe que o
doutor come tôdas as balas. Não quer fazer nada,
vá lá pra dentro que a mamãe quer conversar
com o doutor. Não quer ? Que fe io ! Vai se
esntar no colo do doutor ? Faça uma festinha
nêle. Vamos, se você não fizer, mamãe é que
vai fazer. Juquinha, não puxe o bigode do dou-

116
“Juquinha, fique aí na sala comendo bala,
com modos, que mamãe vai enxugar o doutor

117
t o r ! Veja, doutor, já está começando a ficar
íntimo... Juquinha, olhe o que você fêz no colo
do doutor ! Oh, doutor, por favor, não ligue, sabe
como é criança; vamos lá dentro e eu passo um
pano com água quente. O senhor é de casa. Ju­
quinha, fique aí na sala comendo bala, com modos,
que mamãe vai enxugar o doutor. Entre, doutor,
a casa é sua. Juquinha, fique aí até mamãe voltar.

118
Do chato benigno

A relatividade do chato permite


que, em certas circunstâncias, êle se apresente
como benigno.
Cito aqui exemplos da ines perada e benigna
intervenção do chato.
Certa vez fui convidado por um autor teatral
chato a assistir à sua peça, òbviamente chata. Ante
a coação, não tive outra saída senão aceitar o con­
vite. Ao preparar-me, surge em minha casa um
segundo chato que, atuando dentro de sua capa­
cidade, me obrigou a não comparecer ao teatro.
No dia seguinte, é claro, o primeiro chato estava
furioso. Para justificar-me, contei-lhe a incômoda
e inoportuna visita do segundo chato. Compre­
endeu o primeiro chato que o segundo era chato;
e me disse, com a getileza que o caracteriza:

119
— Mas você podia ter trazido aquele chato
para ver a minha p e ça !
Podia; mas teria adicionado dois chatos e mais
a peça. O segundo chato me livrou de duas cha­
teações, impondo-me só a sua. Quando tais coi­
sas ocorrem, o difícil é saber optar. No caso,
porém, não me livrei de nôvo convite do primeiro
chato mas, de qualquer modo, ganhei o direito
de adiar uma chateação maior.
Contou-me um amigo que, num dia de angús­
tia financeira, caminhava cabisbaixo pela Avenida
Rio Branco quando avistou um chato em embos­
cada. Desviou, decidiu cruzar para a calçada
oposta; mas o chato, implacável, saiu-lhe no ras­
tro, alcançou-o. Meu amigo resignou-se a aturá-lo
e, supondo que a participação de suas preocupa­
ções pelo menos chatearia o chato (o que nunca
é verdade, porque o chato se encanta em tais mo­
mentos e passa a atuar com mais apetite), con­
tou-lhe o problema que o afligia. O chato tomou
meu amigo pelo cotovelo, fê-lo assinar algumas
promissórias a 5 por cento ao mês e sua vítima
se livrou da crise. Em tal ocasião é preciso reco­
nhecer que o chato foi benigno, embora, a prazo
mais longo — e não tão longo assim — passasse
a chatear o paciente com a cobrança das promis­
sórias vencidas.
Certa dama, de louváveis dotes físicos, era
perseguida por um chato donjuanesco, que de lon­
ga data lhe dirigia palavras envolventes e eviden­
temente chatas. Uma tarde, ao tomar um sorvete

120
uuma confeitaria, o chato ousou acercar-se. A um
movimento de indignação da dama, um cavalhei­
ro, que se achava sentado a uma mesa próxima,
pediu licença para acompanhar a dama no sorvete
em questão, o que afugentou o chato. Casaram-se.
Embora hoje a dama se encontre, às escondidas,
com o chato inical, seu espôso é um chato
benigno.
Outro cavalheiro de minhas relações foi for­
çado, por circunstâncias de ordem mundana, a
levar pêsames a um conhecido, na capela em que
êste velava um parente. Ao entrar, surge um
chato, em lágrimas, que cai nos braços do cava­
lheiro, manifestando-lhe enorme gratidão por vê-lo
ali e supondo que êle comparecera para lhe trazer
condolências pela morte de seu pai. O cavalheiro
não teve coragem para desfazer o equívoco — e
daí por diante passou a receber as maiores provas
de consideração do chato, que o colocou até como
gerente-geral de suas indústrias.
Tais exemplos demonstram a benignidade
relativa dos chatos, em determinadas circunstân­
cias. Mas não provam que o chato deva ser culti­
vado, à esperança de que dele surjam benesses,
alegrias ou milagres. Provam, sim, a vitória do
chato, a mais perigosa das vitórias, pois envolve
uma mistificação' e uma falsa propaganda em
favor da espécie.

121
Proposições
relativas aos chatos

Todo indivíduo tem o chato que merece.


Ê impossível chatear o chato.
A série dos chatos é ilimitada.
A chato (abstraído qualquer instrumento
mecânico ou elétrico de comunicação ) chateia na
razão direta de sua carga de Ch e na inversa dd
quadrado da distância da vítima.
A ordem dos chatos não altera o produto.
.. Em terra de chato que tem um ôlho é cego.
Ninguém se exime alegando ignorar o chato
(Cód'. Penal).
Dois chatos da mesma espécie não se
chateiam.
De noite todos os chatos são tardos.

122
Dois chatos da mesma espécie não se chateiam.

123
Mentiroso só é chato quando diz a verdade.
A Terra só não é chata nos polos.
Um chato mergulhado num fluido recebe um
impulso vertical, de baixo para cima, que o situa
em nível de chatear proporcionalmente todos os
indivíduos imersos no mesmo fluido. Consequên­
cia: Inútil servir bebidas quando houver um chato
presente, na esperança de evitar ou diminuir sua
chateação: ele continuará a chatear todos os de­
mais, qualquer que seja o fluido servido.
O grau de chateação proporcionado por
vários chatos simultâneamente é igual à linha
vetorial do conjunto de forças chateantes. Con-
seqüência: Em presença de vários chatos, o pa­
ciente e seus amigos não podem decidir entre um
cinema, um teatro ou um passeio de automóvel.
Certamente irão todos a um lugar inesperado e
chato.
Pode-se medir o grau de chateação, por inter­
médio de um detetor a que denominei, modesta­
mente, “chateômetro de F i g u e i r e d o A unidade
da chateação ( C h)é igual à porção de partículas
capaz de encher, num segundo, um saco de 1 litro
(10 cm X 10 cm X 10 cm), submetido ao vácuo
absoluto.
As subunidades e múltiplos do Ch são:
Decichato ( deCH ) — 0,1
C entichato ( ceCH ) — 0,10

124
O “Chateômetro de Figueiredo”.

125
Milichato ( m Ch) — 0,001
Decachato ( DCh ) — 10
Hectochato ( H Ch) — 100
Quilochato ( KCh) — 1000
Megachato (MCh) — capaz de encher o
Saco de São Francisco.

Problemas

1 — Num bar, estão sentados, em mesas dife­


rentes, 3 chatos, A, B e C, respectivamente a uma
distância de 1, 2 e 3 metros de uma mesa vazia,
cada qual com uma carga de chateação de 5 ceCh,
8 HCh e 20 DCh. Se você se sentar à mesa
vazia, pergunta-se em quanto tempo poderá tomar
uma garrafa de cerveja sem absorver uma quanti­
dade mortal de chateação.
2 — Num submarino a 10 atmosferas de pro­
fundidade há um chato de 250 KCh. A que altura
mínima deve passar o aviador que bombardeará
o submarino para não ser, ele próprio, derrubado
pelo chato ?
3 — Dois trens correm em direção oposta, um
a 100 Km por hora, outro a 120 Km por hora, par­
tidos ao mesmo tempo, das estações A e B, que
distam, uma da outra, 100 Km. No primeiro trem
há um chato de 250 KCh; no segundo, um de
55 HCh.

126
Pergunta-se:
a) Se você vier no primeiro trem, a que dis­
tância de A deve saltar para não ser eliminado
pelo conjunto vetorial dos dois chatos ?
b) Se você vier no trem B, que quantidade
de chateação adquirirá ao se cruzarem os dois
trens ?
4 — Um chato mudou-se para Brasília (den­
sidade dê chateação de 5 atmosferas). Que den­
sidade de chateação trará para o Rio depois de
uma legislatura, se para lá foi com 25 deCh ?
5 — Que quantidade de chateação precisa
ter um “sputnik” a 300 Km da terra para eliminar
a humanidade ? Considere-se a Terra um ponto
no espaço).
6 — Um menino foi a um baleiro, um sor-
veteiro e um jomaleiro, sucessivamente, permane­
cendo 1 minuto em cada um. Dado que o baleiro
era um chato de 2 ceCh, o sorveteiro um chato
de 5 ceCh, o jomaleiro um chato de 6 mCh, e o
menino um chato de 370 KCh, que quantidade
de chateação absorveu cada um ?
7 — Um infeliz casou-se com uma chata de
55 DCh. Que quantidade de chateação absorveu
ao comemorar as bodas de prata? (N. Cálculos
ao nível do mar).
8 — Um dançarino inadvertido tirou para
dançar uma valsa uma chata de 5 HCh. Ao fim

127
da música (2 minutos e 30 segundos), que grau
de chateação adquiriu? (N. Cálculos à altura
de São Paulo).
9 — Duas amigas chatas, d'e 15 e 25 deCh
respectivamente, se encontram numa confeitaria.
Se a primeira come um bolinho em 15 segundos
e a segunda come um bolinho em 5 segundos,
quantos bolinhos comerão antes de morrerem de
chateação ?
10 — Um professor chato, de 15 HCh, ini­
ciou-se no magistério aos 21 anos e se aposentou
aos 60. Que quantidade de chateação distribuiu
aos alunos ?
11 — Um chato de 12 ceCh estuda piano 5
horas por dia. Qual o limite de tempo para que
o vizinho se mude ainda vivo ?
12 — Uma mulher chata contou, em 25
minutos, uma história que uma pessoa normal
contaria em 3. Qual o índice de chateação da
mulher ?

128
Sísifo e Catilina

S ísifo empurra a pedra ao alto da mon­


tanha e a pedra volta a rolar no vale; e o tra­
balho se repete através dos milênios. Quem é o
chato: Sílifo ou a pedra ? Estou em que ambos.
Sísifo condena-se ao rochedo, e este ao seu trans­
portador. Nenhum se livra do outro mas como,
dos dois, Sísifo é o ser, é a ele que cabe a culpa
da chatice. O chato é a continuidade — cujo dom
é tomar chatos os que a ela se submetem.
Não sei de caso mais típico do que o do pro­
fessor: está incumbido de apossar-se de algumas
horas da vida de um inquieto grupo humano, para
o qual a sala de aula, o quadro-negro, a voz do
mestre são muralhas de cárcere contra a liberdade
do recreio, a saudade das férias, a borboleta que
voa, a cigarra que canta, o desejo do caramelo, o
frêmito do futebol, o cigarro escondido, o crepitar

129
do primeiro amor. Tem que vencer tudo isto para
moer os afluentes do Amazonas, as capitais da
Ásia e da África, a aridez do rebatimento duma
épora no espaço, a transformação duma raiz gra­
matical através dos tempos, os percalços da sintaxe
nas décádas d'e Camões. E tais viagens, a do rio
no mapa, e das cidades na memória, a das linhas
imaginárias no imaginário, a do étimo, a dos decas­
sílabos, êle as repete ano após ano. O seu auditó­
rio muda; difere do auditório do marido que conta
sempre as mesmas anedotas diante da mesma es­
posa diluída sempre entre os ouvintes de primeira
vez. No caso da esposa, o convívio conjugal é que
é a moenda das anedotas; no caso do professor,
é êle mesmo quem automatiza a habilidade Cati-
lina de dissorar, gota a gota, o seu conhecimento.
E então a voz da cigarra, o riso no pátio, o sabor
do açúcar, o sol da praia, a recordação do cigarro,
o arrepio da disputa da bola, o arrepio maior a
inaugural lembrança do amor dominam a cantilena
da aula. Se isto acontece, o homem é um chato,
e ensinará o que os alunos lhe dirão: Quosque
tandem, Catilina. . . ?
Porque se esqueceu de soprar a aventura e
o entusiasmo naquilo que ensina. Porque nas ri­
mas camoneanas quer que se busque apenas o
sujeito e o predicado, nunca a adolescente peripé­
cia de um grupo de homens a adivinhar os hori­
zontes e os mundos em barcos de madeira, proeza
bela como fita em série ou história em quadri­
nhos. E quando fala das cidades e dos países, des­
fia nomes esdrúxulos e números estatísticos, sem

ISO
lhes dar a carne e o sangue de gente viva, suas
grandezas e misérias, as colunatas do passado e os
dramas do presente, a cor das roupas e dos olhos
femininos, o gôsto dos manjares, o cheiro das plan­
tas e das vielas, a dor da pobreza e o fausto dos
ricos. E nas linhas pontilhadas, encimadas de
letras, e no desenrolar dos logaritmos e do número
pi, nos braços perdidos da hipérbole e no enroscar
da circunferência sobre si mesma não coloca o des­
lumbramento dos astros em rondó e procissão, o
desejo de descobrir outras galáxias. Tudo consiste
em que Sísifo cante enquanto empurra a pedra;
e a pedra brilhe enquanto volta a rolar.

131
Franklin e o raio

N a grande sala da repartição, a gente


que entrava, parava, olhava um e outro dos trinta
funcionários que se inclinavam sôbre os processos
— e se encaminhava para este ou aquele. Notei
que um considerável número de pessoas se decidia
a falar com determinado cavalheiro, que era arran­
cado do exame dos papéis burocráticos e atendia
a um e um, suspendendo os óculos à altura da
testa. Decidi-me também por êle, em vez de qual­
quer outro, na presunção de que a preferência
observada indicava ser aquele o mais polido, o
mais urbano, o mais prestativo dos funcionários.
Êle me encarou e sorriu:
— O senhor não é aquele escritor especiali­
zado em chatologia ?
— Sim, mas não creia. . .

132
— Absolutamente. Queria mesmo conhecê-
lo. Se tem algum tempo e se não acha que sou
cha to.. .
E o funcionário me contou que, cada vez que
se abria a porta do salão, e aparecia uma parte,
esta circundava o olhar e, se era chata, imediata­
mente se dirigia à sua mesa. A princípio pensou
ue isto se devia à localização da mesa. Pediu
3iscretamente ao chefe que a fizesse mudar para
mais longe. A estranha preferência continuava.
Novamente mudou de lugar, para o fundo da sala.
Tudo permanecia igual. Notava, por exemplo, que
mulheres interessantes jamais se aproximavam;
mas os varões cabulosos logo a êle se dirigiam.
Que aconselhava eu ?
Na falta de melhor conselho, disse-lhe que
obtivesse transferência para um serviço que não
o de atender às partes.
— Não, não é possível. Isto me acontece na
rua, quando espero o bonde, em qualquer fila,
quando vou a uma festa, a um clube. . .
Estava descoroçoado.
O caso desse paciente é o resultado de um fe­
nômeno semelhante ao que se observa com os do-
madores de animais: graças a um odor que exa­
lam, imperceptível a certas pituitárias, mas agudís-
simo para outras, atraem os chatos como o equi-
tador submete o cavalo, o caçador faz voltar o
cão, o cornaca chama o elefante, São Francisco de
Assis chamava as aves, e Tarzan comove as feras.

133
— O senhor funciona como uma espécie de
para-raio de chatos. O senhor é um Franklin que,
tendo inventado um para-raios de uso pessoal, não
pode livrar-se dele.
— E então ?
— Incurável.
O homem desalentou-se. Continuei:
— Inútil disfarçar o rosto, com barbas, bigo­
des, perucas. Inútil receber mal, mudar o tom da
voz, ser grosseiro, fingir de surdo, fingir de louco.
O senhor tem o dom de imantar os chatos; se o
senhor fôsse um canário, devia ser posto numa
gaiola ao lado do alçapão.
— Nenhuma esperança ?
— Nenhuma.
— Segue-se daí que minha mulher é chata,
meus amigos são chatos. . .
— Tudo indica. Mas. . .
Ao meu “mas”, houve um lampejo de ansie­
dade nos olhos do homem.
— Mas o senhor pode ser utilíssimo. Con­
verta a desgraça em profissão. Explique sua fa­
culdade ao ministro, peça-lhe que o coloque para
atender aos postulantes, na sala dos oficiais-de-
gabinete. Resigne-se à sua condição e tire pro­
veito dela.
Soube depois que o funcionário encetou uma
carreira brilhante, servindo exemplarmente a vá­
rios superiores, a vários ministros. Louvaram-lhe

134
a paciência, a afabilidade, a capacidade de con­
tornar as situações difíceis, de contentar chatos
exigentes, do tipo sabe-com-quem-está-falando.
Mas a sua sorte não foi nada invejável. O
para-raio de chatos precisa submeter-se a um rigo­
roso regime, como o dos diabéticos em relação ao
açúcar e o dos urêmicos em relação ao sal. Deve
robustecer-se de inquebrantável força de vontade
e auto-domínio; deve aprender a representar um
papel de que não gosta. Para êle, não apenas os
chatos autênticos se revelam, mas, ao fim de certo
tempo, desconfia de que as pessoas são chatas, à
simples aproximação. Torna-se levantador de cha-
tos-lebres e, como resultado duma deformação
mental, convence-se de que todos são chatos. Res­
ta-lhe a solidão, que poderá fazer acompanhar de
um copo, um salão vazio de museu ou exposição,
uma vitrola, uma estante de livros. Se a misantro­
pia lhe permite sublimar-se, ou se a ela se entrega,
tanto faz: em pouco tempo o para-raio de chatos
será também um chato. E fatalmente tenderá para
o chato-de-si-mesmo. Em desespêro de causa,
confraternizará com os demais chatos que atraiu.
Então poderá ser relativamente feliz, esquecida a
sua condição de para-raio. Ou terrivelmente in­
feliz: os outros o acharão definitivamente
chato ( * ) .

(* ) Bilhete muito sincero de um chato desse tipo: Amélia:


descobri que sou chato. Adeus. Bebeu formicida. O Pronto Socorro
salvou-o. Não reincidiu. Amélia à cabeceira.

135
Biógrafo
e biografado

L u i z J akdim possui uma personagem


que não explora na ficção e da qual não tirou
ainda todas as analogias. A personagem é o aju-
dante-de-mentiroso, o amigo que se posta ao lado
do conversador, em silêncio atento, resignado ou
d'e admiração, enquanto o outro apela para o seu
testemunho:
— Está aqui Fulano que não me deixa mentir.
De modo geral, os mentirosos não são chatos,
porque o mito lhes dá certo encanto de fantasia.
Mas a personagem análoga é o ajudante de chato,
o subcnato, fiel Achates de outro. Êsse chatélite
de chato não chateia o chato, mas colabora numa
chateação secundária em relação à vítima. Tam­
bém não chateia, êle sozinho, a vítima. Porque

1S6
nunca está sozinho. Admira o seu chato, ama-o,
ama suas histórias, suas peripécias, suas chatices.
Acaba por biografá-lo. O Doutor Johnson tinha
em Boswell um ajudante chato, como Goethe o
tinha em Eckermann, como Napoleão o teve em
Las Cases, como Sócrates o teve em Platão.
O ajudante de chato pode ser do tipo larvar,
que apenas nos pergunta:
— Conhece a última do Fulano ?
E conta de Fulano uma história que podería
ser boa, mas que passa a ser chata. Ou se toma
um tipo genial, o paciente taquígrafo do gênio.
Às vezes, o chato e seu ajudante se confudem
numa só pessoa, e então pode produzir obras gran­
diosas: o Diário de P epys, a Viagem ao redor
do meu quarto de De Maistre, o À la recherche
du temps perdu de Proust.

137
A
prece
e o milagre

O chatò postulante aparece na rea­


lidade como um amálgama de espécies: há des­
de logo o postulante-catalítico ou subliminar, isto
é, o que, uma vez enunciado o pedido, passa a
acompanhar-nos silenciosamente, lembrando ape­
nas com a presença o obséquio solicitado; há o
postulante-pirotécnico, que imagina alcançar o fa­
vor à base de elogios; ná o postulante-faisão, de
tal sobranceria que nos faz o favor de receber o
favor que pede* Todos, porém, em máxima inten­
sidade, chegam a curiós: vencem a vítima pelo
cansaço.
Logo, o pedir-para-obter possui duas for­
mas: a do encanto de não ser chato — pio
de uirapuru —, e a insistência do chato — pio

138
de curió. A prece, o soneto, o ditirambo não pas­
sam de veículos mais ou menos felizes para lo­
grar o êxito. Não sei (e isto dirão os teólogos)
até onde a prece alcança a graça almejada, se a
sua insistência nas órbitas do têrço ou o fervor
com que parte para o Altíssimo. Sei de casos
que tocam as raias do milagre, e no entanto igno­
ro até onde o milagre foi obra da fé contida na
oração ou de um estado de chateação do Sobre­
natural. Quanto ao sonêto (forma literária de
petição, como a balada e o é de oferta), nem sem­
pre é da melhor qualidade quando obtém a be­
nesse suplicada em suas catorze súplicas. Estou
mesmo a aceitar que a melhor literatura é feita de
graças não alcançadas. Beatriz, Laura, Natércia,
Heloísa e tôdas as “donne” e musas só o são pelo
mérito da resistência. Ou porque não tiveram
sensibilidade bastante para perceber que ali esta­
vam Dante, Petrarca, Camões, Abelardo. Ou por­
que sua virgindade os pariu Deuses. Dulcinéia,
guardadora de porcos, passa à imortalidade; o
seu contrário, Circe, não levou homem algum à
antologia, mas transformou em porcos os que
quis.
What should b e of PetrarcKs sonnets in his life
If Madonna Laura should be his wife ? ( 0 )

Os versos são de B yron — e Byron era um


conhecedor. O Príncipe Páris, Burlador de Es-(*)

(* ) Que queria dos sonetos de Petrarca em sua vida, se


Madona Laura tivesse sido sua mulher ?

139
parta, e Don Juan, o Burlador de Sevilha, em
nada contribuíram para as letras. Do primeiro,
Homero não registra um só modelo de petição
— e no entanto tôda a guerra de Tróia resultou
de um cochicho nos ouvidos de Helena. Do se­
gundo, Tirso de Molina só copiou o fato consu­
mado; e a Serenata que Mozart lhe atribuiu é de
dois séculos após, e portanto apócrifa. A conversa
do sentinela do cemitério de Éfeso com a virtuosa
matrona mal está indicada no Satiricon; Pe-
trônio apenas registrou o êxito dela. Pedir em
vão pode ser obra de chato, mas também obra de
gênio: a Appassionata é uma frustração.
O pedido, por todas as vias amigáveis e
admissíveis, daí à petição inicial litigiosa até o re­
curso extraordinário, pode exercê-los douto ou
chato, ou ambos, ou inepto — e a graça é sempre
alguma coisa que nada poderá ter a ver com a
justiça, ou com o acaso. Mas o pedido que en­
volve o ditirambo, seja o cartão de visita para o
pistolão, seja a carta de imundos adjetivos, seja
o discurso sabujo, seja a “corbeille” natalícia ou
a cesta de Festas, contém sempre uma dose de Ch,
perceptível ou não à vítima. Também não é o
melhor ditirambo, o de mais altas qualidades li­
terárias, o que logra o êxito. O Conselheiro dos
Amantes é mais eficaz que os “lieder” de Schu-
bert. Porque o êxito depende da vaidade ou da
capacidade de chaturação do destinatário, do seu
bom ou mau gôsto. Pedir é chato; tudo consiste
em saber pedir gostoso para quem pode dar, ou

140
pedir tanto que não haja outro remédio senão dar.
O caminho do chato e o caminho do sedutor le­
vam ao mesmo fim: mão de donzela, amor, sine-
cura, empréstimo, voto, tabelionato. O uirapuru
e o curió chegam à vitória: o que dizem não
chega a ser Canto — é cantada. O que cantam é
o efêmero, mas alcançam o que desejam. Pai­
rando sobre eles está o humilde tico-tico: “Perdi
o dia à-toa, à-toa, à -to a .. Perdeu. Mas ficou
seu subproduto, a Arte.

141
Do folclore
ao embalo

P r i m e ir o servirambebidas e canapés
aos convidados, em pé, e os “garçons” faziam ques­
tão de não nos deixar de copos vazios.
Depois, a dona da casa conduziu-nos para o
jantar, em mesinhas alegres na varanda — e foi
um desfilar de pratos e vinhos, entre risos e con­
versas que se desdobravam, em francês, em inglês.
Porque — só então eu soube — tratava-se de
ministrar folclore e alguns estrangeiros recém-
chegados, dêsse que ficam loucos pelos nossos
ritmos, as nossas melodias, e querem que a gente
traduza e explique o que vem a ser “muié rendá”
e outras expressões cavilosas do populário.
O cavalheiro e a dama que me tocaram eram
dêste topo: ela trauteava músicas, êle abria um
caderninho e tomava notas.

142
Depois da sobremesa, depois do café — eu
devia ter previsto — haveria folclore para os con­
vidados. Uma senhora arfante e agitada sacou um
violão, que se achava escondido por trás duma pol­
trona, e repenicou-o. A dona da casa bateu palmas
graciosas, disse que a outra ia cantar. Com o copo
de “cognac” na mão, fui esconder-me num canto
da sala, na penumbra deixada por um abujar. O
casal também veio. E a dama arfante começou:

Olé, muié rendera. . .


Olé, muié r e n d á ...
Tu m e ensina a fazê renda
Que eu te ensino a nam orá.. .

Repito aqui a estorfe manjadíssima porque ela


é necessária ao que vai acontecer. Mal a dona
gorda acabou de apitar o que está escrito acima,
o homem indagou:
— What does it mean ?
Cocei a cabeça:
— Bom, “olé” means “olé” mesmo. Now,
“muié rendera” means a woman who makes laces-
— Why ?
— Well, w h y . . . Because this is her j ob. . .
— O h ! Why doesnt she buy the laces at the
drugstore as everybody does ?
— There are no drugstores in the State of
Ceará.

143
— Indeed? Well, go on. Please, translate.
— “Muié rendá” . .. Well, this is a joke. A
poetical licence, just to rhyme.
— O h!
— “Tu me ensina a fazê renda. . . ” This
means “you teach me to make laces”. . .
— Oh, it is another lady who doesnt know
the joh and sings to her, isnt?
— Não, pipocas ! lt’s a man! Um homem!
— A man ? —But it’s a lady who is singing. . .
— Mas isto é uma canção de homem. It’s a
mans song. Morou ?
— O h! Why does he want to learn to make
laces ? Is he a sissy ?
— Que sissy! Macho pra burro ! Canção de
Lampião ! Sei lá prá que êle quer aprender a fazer
renda. . . Oh, yes . . . A resposta está no verso se­
guinte: “Que eu te ensino a n a m o rá ...” This
means: “And I teach you t o . .. t o . .. (E u ia dizer
“to flirt” mas achei fraco.) . . . to make love”.
O homem abriu os olhos, a dona dele também.
O homem tomou nota e murmurou:
— So the man wants to leam to make laces in
order to make love to her P It is absolutely neces-
sary to make laces to practice such a biological
function ?

144
Desisti. Fingi que estava dormindo. E acabei
dormindo mesmo. E de repente o copo de
“cognac” deslizou-me dos dedos e estalou no chão.
Acordei, num sobressalto, bati palmas. Todos se
voltaram para mim. A cantora suspendeu o acor­
de no ar. Mas o casal de chatos folclóricos solida-
rizou-se comigo, bateu palmas também, exclamou:
— Very n ice! Very n ice!

145
O cão de Ulisses
ou o chato mnemônico

A proximou- se, festivo, já de braços


abertos:
— Venha de lá !
Fui de cá. Mas quem era ? Por entre as fuma­
ças da memória aquele rosto se distorcia e não me
dizia nada do passado. Ou melhor: dizia e não
dizia. Vocês conhecem a situação: a gente fica
numa terra de ninguém de lembranças e esqueci­
mentos, com mêdo de cometer uma indelicadeza
e com mêdo de avançar uma insincera e imerecida
cordialidade.
O rosto do homem esperava minha reação,
sorrindo franco. E lançou a pergunta fatal:
— Não se lembra de mim ?

146
A pergunta já vinha com um tom de queixa,
de injustiça que eu estava cometendo. Alguém a
quem eu devesse um favor ? É da natureza hu­
mana esquecer as pessoas a quem se deve um fa­
vor. Alguém que me mordera ? É da natureza
humana guardar sempre a fisionomia do faca-
dista. Alguém com quem privei ? É da natureza
humana guardar apenas a memória dos bons mo­
mentos, ainda que em condição dantesca: “nella
miséria”. Alguém que me tivesse, em alguma cir-
constância, contado algo que julgou interessar-
-me ? É da natureza humana ouvir sem escutar,
quando se tem na cabeça outro assunto, promissó­
ria, dona, hora do bicho. Colega de turma ? É
espantoso como envelhecem, nas rugas e na men­
talidade, os colegas de turma, até se tomarem irre­
conhecíveis e antidiluvianos. Há um pânico den­
tro de mim, que procuro disfarçar...
— Não se lembra ?
Aí já o chato se revela chato; mas tem espe­
ranças na nossa cordialidade, esperanças já aba-
lançadas. Talvez sinta mesmo um secreto receio
de dizer seu próprio nome, o que pode ocasionar
outra expressão de desilusão de minha parte. En­
tão sai pela tangente:
— Como vamos de pesca ?
É alguém que deve associar-me a pescarias.
Não sou de pesca. Uma cocoroca aqui, um ba-
dejete além, mas esmpre em ocasiões precisas. Per­
corro mentalmente tôdas as minhas pescarias dos
últimos dez anos e vejo que foram quatro; e me

147
lembro dos companheiros de tôdas as quatro. Mas
o homem liga-me à pesca, a minha fisionomia lhe
recorda esse esporte que não é o meu. Res-

— Vamos pescando por a í. . .


Seria de alguma conversa de pesca a que eu
estivesse presente ? Recordo almoços, jantares,
salas, bares, reuniões, confidências. Nada. Lanço
um anzol:
— E você ? Tem pescado ?
O chato sorri: obteve sobre mim uma vitória.
— Nunca pesquei.
Agora a prova de que não me lembro está
feita, mas ele me é superior: sabe que eu pesco,
lembra-se de que eu já sei que êle nunca pescou.
Obtida essa vantagem ética, êle se apieda de mim
e quer me libertar da angústia:
— Não se lembra ? Da casa do Nono!
Que Nonô ? Desfilo mentalmente tôdas as
pessoas a quem trataria de Nôno: lembro-me só
do Doutor Juscelino, mas não tive, helàs !, a pro­
veitosa ventura dessa intimidade. Já aí a minha
testa está franzida, em esforço. O chato vê:
— Nonô, do Beco das Garrafas !
Era tal a sua precisão, a convicção com que
falava, que eu já me decidia a exclamar: “Ah, sim,
o Nonô, ora essa ! Como vai êle ?” — o meu feste-
jante interlocutor encarou-me, sério, encabulado,
murmurou:
— O senhor me desculpe. Eu me enganei.

148
Rodou nos calcanhares e derreteu na multi­
dão.
O faro do cão de Ulisses é faro de chato; mas
quando falha também o é. Pois com o meu amigo
Aloysio aconteceu coisa igualmente trágica. An­
dava pela Galeria Cruzeiro, ao bom tempo da Ga­
leria Cruzeiro, quando lobrigou um antigo compa­
nheiro de escola, dos idos de garoto. Amigo velho,
boa praça. Resolveu surpreendê-lo, veio-lhe por
detrás, tapou-lhe os olhos com as mãos, disfarçou
a voz e perguntou, já prelibando a alegria do en­
contro:
— Adivinha quem é !
O outro, assim fisicamente dominado, achou
de melhor alvitre topar a brincadeira. Levantou
as mãos, colocou-as sôbre as de Aloysio, apalpou-
as lentamente, enquanto ia dizendo:
— Deve ser de sujeito casado, porque está de
aliança. . . E freqüenta manicure e usa unhas
compridas. . . Pelo sedoso das mãos, desconfio até
de sua masculinidade. . . Desconfio, não: não te­
nho a menor dúvida !
A piada começava a ser chata para a Aloysio,
que tratou de retirar as mãos, rodar o corpo da ví­
tima, encará-la com um sorriso aberto — que logo
se desvaneceu em vergonha e “gaffe”:
— O senhor me desculpe ! Pensei que fôsse
um amigo meu I Por favor, me perdoe !
E tratou de disparar, amargurado consigo
mesmo. A amargura levou-o a alguns “chopps”, os

149
“chopps” o levaram à Cinelândia; e lá, quando
flanava diante dos cinemas, deparou-se com o
amigo, o colega de infância, precisamente aquele
boa praça, companheiro de escola e de moleca­
gens. Partiu para êle, braciaberto, boquiaberto:
— Fulano, imagine você que ainda há pouco
encontrei um (censurado pela Liga dos Pais de
Família) que era a sua cara !
O outro riu, condescendente:
— Pois esse ( censurado pela Liga dos Pais de
Família) era eu !
O chato mnemônico nos leva às últimas conse-
qüências da tortura mental e até à tortura física.
Conta-se de um bravo militar, mau fisionomista
como tôda a gente que se preza menos os políticos
eleitoreiros, e que chegou a diretor da Central do
Brasil, que um dia, precisamente quando era dire­
tor, e portanto alvo de saudações lucrativas, foi
abordado por um chato mnemônico na Rua do
Ouvidor. O homem embandeirou-se, saudou-o,
sacudiu a cauda de cão de Ulisses, enquanto o ge­
neral se desdobrava para reconhecê-lo.
— Vejo que o meu caro general não está me
reconhecendo. . .
— Bem, eu. . .
— Veja lá ! De onde ?
— E u . ..
— Confesse.. .
— O amigo. . . Espera l á . . . Como é mesmo
o seu nome todo ?

150
— Diga o pedaço que o senhor sabe. . .
Sorriso desconcertado, pausa.
— Então ? Minha fisionomia não lhe lembra
nada ?
Nada. Mas aí o chato sente pena de ser chato,
ou não quer perder a chance de intimidade, e de­
cide lançar uma tábua salvadora:
— Ê natural que o senhor não se lembre. . .
Tou mais queim ado...
O general ilumina todas as centelhas do rosto
e dos bordados:
Oh, Senhor Tómas Queimado! Como tem
passado ?
E aperta efusivamente os ossos daquele es­
queleto desconhecido.

151
A bússola
e o vento

C haby P inheiro contava a história


com ele sucedida e que R. Magalhães Júnior me
forneceu, como contribuição a êste Tratado. É
o exemplo de um tipo chato encontradiço nos
meios teatrais, “o homem que escreveu uma peça”,
modelo de chato-inédito, visitante de editores,
autôres, empresários, que traz consigo seus origi­
nais para deflagrá-los a queima-roupa na primeira
oportunidade, versão universal de um espécime
muito encontrado na Colômbia onde, todos sendo
poetas, andam sempre com suas poesias e, quan­
do se esbarram, ameaçam-se: “Se me lees, te leo”.
Pois foi o caso do autor de uma “Tragédia na
Beira”, em cinco atos, que levou o manuscrito a

152
Chaby. O manuscrito não mereceu leitura, apesar
das várias visitas do autor; até que Chaby, já não
tendo como desculpar-se, falou ao tragediógrafo:
— Meu Senhor, a tragédia, depois dos clás­
sicos, caiu em desuso. Mas aqui há o material
para um drama, que é o que a burguesia pede
agora. Transforme sua obra em drama.
E acreditou que o autor compreendería, ou se
diluiría. Algum tempo depois o tragediógrafo
voltou, já dramaturgo, apresentando os originais
de “Um drama na Beira”.
E foram novas visitas e novas desculpas. Até
que Chaby se decidiu por outro conselho:
— Meu prezado Senhor, os tempos mudaram.
Ninguém mais quer saber de drama* O público
quer rir. A crítica acha que não sou ator dramá­
tico, mas cômico. Tome a sua obra, reduza os ana­
crônicos cinco atos a três; faça dela uma comédia,
que é o que pede a velocidade dos dias de hoje.
O dramaturgo desapareceu e voltou comedió-
grafo. A “Comédia na Beira” esperou eu vão a
leitura de Chaby que, desesperado com o cerco,
tornou a opinar:
— Meu amigo, no momento não há possibili­
dade de montar uma comédia. O meu repertório
é bastante para várias temporadas mas acho que,
se o amigo encurtar o que escreveu, extraindo
dêste material um “léver de rideau”, poderei com
êle completar um espetáculo.

153
La se foi o autor e ressurgiu com um “Episó­
dio na Beira”, destinado a esperar em vão a lei­
tura de Chaby, que afinal sentenciou:
— Ouça, querido amigo, o teatro vai mal. Já
ninguém o preza. As salas de espetáculos estão
vazias. Não creio que esteja aí a sua carreira. Ao
que sei, porém, o público se inclina agora para o
violino. Não há quem não adore o violino. Por que
o amigo não se dedica ao violino ?
Oferecendo tão longa perspectiva, de anos se­
guidos de curso, julgou livrar-se para sempre do
chato. Mas, passado algum tempo, êle reaparece:
— Segui seu conselho, comprei um violino,
tomei professor, enfrentei o Conservatório, for­
mei-me. Venho pedir-lhe que patrocine o meu pri­
meiro concerto.
Chaby Pinheiro afirmava que o homem era
um chato; R. Magalhães Júnior assim o toma. In­
dago, porém, se não teria sido chato o próprio Cha­
by e se, por um desses milagres da natureza, não
havería transformado um autor-chato num violi­
nista não-chato. São mistérios que a ciência ainda
não revelou. O violino de Ingres pode ser uma for­
ma de Ingres ser pintor; a pintura de Churchill
pode ser uma forma de Churchill ser estadista. A
opinião do sapateiro sobre a pintura de Apeles é
uma forma de o sapateiro ser mau pintor e Apeles
um mau sapateiro. Todos temos, escondidos atrás
do que nos foi possível ser, os desejos frustrados
do que não fomos, nem somos, nem seremos;

154
atrás de cada um desses desejos, os sonhos do va-
galume e da estrela de Machado de Assis, está o
lado chato da nossa personalidade — o lado chato
que pode ser o estimulante do lado não-chato.
Tanto chateou Colombo para que lhe dessem
meios de ir às Índias que acabou descobrindo a
América ( * ) .

(* ) P eregrino Júnior, em carta ao autor, lembra o tipo


de chato literário ( “Veja aqui o meu último poema! Vou ler para
você um artigo que escrevi sobre a literatura na Groenlândia!”
etc.). Trata-se, na classificação deste Tratado, do chato vivissectó-
logo-unílogo. Lembra, também, o que chama de “Chato acadê­
mico”, isto é, o pretendente à Academia de Letras que exerce o
cerco da chateação nos imortais. Estaria, em minha classificação,
nos postulantes-pirotécnicos.

155
A
torcida
e o telespectador

F u g ir do c h a t o é muitas vezes ganhar


a solidão. Mas a solidão pode ser chata. Pior: é,
cada vez mais, impossível. Nietzsche, o anti-socia­
lista, já não diria hoje: “Solidão, minha pátria !”.
Nas utopias de Morris e Wells, ingleses evidente­
mente amantes do silêncio, desejava-se um mundo
que, embora socializado, reservasse aos homens es­
paços de solidão, com a privacy” e o conforto de
um bom clube. No entanto, o socialista impõe a
presença de cada um e da coletividade; Orwell é
a realidade deformada do sonho utopista: Big
Brother is watching you. A lente, o orticon, o tran­
sistor, a antena, os raios X, as ondas do éter, os
astros artificiais, a autocrítica e o comício perten­
cem à técnica contra a solidão. O despertador do
comissário acorda o iogue.

156
Que falta, para que tal não aconteça ? O di­
reito à solidão, mesmo a solidão diante do vídeo
na emocionante partida: o direito de olhá-la ou
desligá-la; e o direito da torcida, de ir ao estádio,
mergulhar na turba e bradar impropérios contra
a mãe do juiz, sem estar obrigado a acenar uma
bandeirinha. Sem isto, a justiça do pão equitati-
vamente distribuído, o direito de possuir uma tele­
visão ou de ir ao estádio são nada.

A sociedade ideal só pode ser compreendida


como a suma liberdade aliada à ausência d'e
chateação. Ora, uma das formas sob as quais
esta aparece é justimamente o constrangimento
da obrigação; segue-se que, a menos que a socie­
dade ideal seja a anarquia, só é possível quando o
constrangimento se muda em noção de alegria e
prazer. Por outras palavras: quando o que eu faço
ou deixo de fazer não é mais o resultado da mi­
nha compreensão do dever, mas da substituição
dessa compreensão pela certeza de que sentirei
prazer no que faço ou deixo de fazer. Os manuais
de instrução moral e cívica estão cheios de afir­
mação dêsse teor; os hinos as poetizam; mas até
hoje não se encontrou panacéia, mudança de re­
gime ou medicamento que, no íntimo de cada in­
divíduo, substitua uma noção por outra. Há Es­
tados em que tais mudanças são forçadas por coa­
ção; neles o homem se educa para crer que o de­
ver é prazer — e mesmo que o prazer é dever.
Acaba tendo o prazer de não ser livre.

157
Perdão, pode-se fugir para o devaneio, tele­
visão invisível e de olhos fechados. Mas, ai, a in­
sônia, como o sono, é causa e conseqüência da cha­
teação. Bocejar de tédio ou ser assaltado por irre­
primível vigília tanto resultam da ação do chato
sôbre nós como podem infundir chatice ao redor.
Há chatos de dar sono e chatos de tirar o
sono; há sonos e insônias de provocar chatice.
Insônia e sono podem provir igualmente do
bombardeio iônico de outrem ou podem ser o
nosso bombardeio iônico sôbre outrem. Outrem,
ser ou Estado, só evitará a chatice e não a promo­
verá, na medida em que eu, ser ou parte do
Estado, puder ser, por meu desejo, torcida e teles­
pectador.

158
Minha terra
tem palmeiras

O sw a ld de numa tentativa
A n drad e,
teatral intitulada “O Homem e o Cavalo”, põe na
boca de uma das Onze Mil Virgens êste suspiro,
dito às demais: “Céu é chato! . . Não tomo a
piada como condenação da virtude; levo-a a sério
aqui, em nosso mundo, para reconhecer a chatice
da extrema organização e admitir que afinal de
contas, o pecado não é chato, mas sim suas conse-
qüências, pelo menos às vezes. Coisa que Tartufo
já sabia:

O amor que não difama e os -prazeres sem ,susto . . . (1) (*)

(* ) A citação é para fazer propaganda de minha excelente


tradução de Tartufo, de Molière, edição da Livraria Civilização
Brasileira.

159
No que diz respeito à Utopia, a todas as Uto­
pias, da República platônica ao “1984” de George
Orwell, imaginadas a vera ou a brinca, são chatas.
As organizações sociais perfeitas sugerem um
imenso bocejo.
Um sociólogo amável podería partir daí para
escrever um “Elogio da Bagunça”, explorando o
que ela traz de divertido e emocionante à vida.
E teria, creio, escrito o retrato do Brasil. Não
quero afirmar com isto que vivamos na organiza­
ção política-social ideal, mas no único país do
mundo em que os acontecimentos, por mais fu­
gazes, bastando que não sejam chatos — uma vi­
tória no Campeonato Mundial de Futebol, a che­
gada dum astro de cinema ou dum tetrarca amigo,
o carnaval, um concurso de beleza — nos fazem es­
quecer as agruras proporcionadas pelas institui­
ções encarregadas de distribuir chatice: govêrno,
oposição, tubaronato, inflação, escassez de gêne­
ros, de água, de vergonha. É espantosa esta nossa
capacidade de nos deschatearmos com a fuga co­
letiva da realidade, de confraternizarmos à mar­
gem da polícia e dos códigos, de inventarmos o
jeitinho salvador. Não temos e temos o divórcio e
segundas núpcias, temos e não temos preconceitos
de raça, temos e não temos intransigência partidá­
ria, temos e não temos crédito bancário, temos e
não temos ao mesmo tempo a estabilidade do grã-
fino e a instabilidade social do “deraciné”. O mais
sizudo dos brasileiros é capaz de trautear Noel
Rosa diante de um microfone de “boite” à madru­

160
gado ou vestir-se de Nega Maluca para o Munici­
pal; a mais casta das nossas jovens sonha com a
passarela e a câmera de televisão. É espantoso o
número de viajantes e turistas brasileiros ( inclusi­
ve diplomatas) que regressam dizendo que New
York é chata, que Paris é chata, que Londres é
chata, que Moscou é chata. Patriotismo ? Sim, e
algo mais: aliamos à saudade de Gonçalves Dias o
desejo de feijoada quando nos sentamos à Table
du Roi, em Paris.
A generosa ausência de autocrítica, misturada
com o fogoso complexo de inferioridade, dá-nos
uma ciclotimia comandada ao sabor dos ventos.
Uasmos a palavra indicativa dessa inconstância:
biruta. Mas nos sentimos orgulhosos quando nos
consideram birutas. Divertimo-nos: erguemos as
mãos ao céu, em plena via pública, em trajes fe­
mininos, e bradamos em uníssono e para os assis­
tentes, cantando, no auge da felicidade, estas infe-
licidades: “Minha mulher me abandonou !” “Coi­
tado do seu Oscar !”; “Quero morrer no carnaval!”
Fundamos mentalmente a nossa Utopia, não
uma Utopia permanente, mas constituída de oásis
e de miragens de oásis, graças ao que vamos le­
vando . . . Vivemos “à beira do abismo” mas é essa
vertigem que nos embriaga e que acaba embria­
gando o estrangeiro, o recém-chegado de nariz
torcido e pouco a pouco aclimado, integrado, des-
paisado, liquifcito no “melting-pot” em que o cha­
coalharam a cada segundo. Graças a essa capaci­
dade de mimetismo, não somos chatos, se tomados

161
como um todo, e os chatos que contemos, como o
ponche que contém algumas uvas azedas, são até
perdoados e saboreados na rarefeita dieta com
que nos empilecamos. Somos tolerantes; e se isto
permite a existência de chatos tolerados, também
permite que a atuação deles não nos leve a ponto
de explodir. No Brasil, os mesmos chatos que
proclamam “Precisamos de uma revolução san­
grenta” fazem parte da Turma do Deixa Disso.
Felizmente.

162
Da medicação
drástica

A té o presente momento, a ciência


não apresentou qualquer remédio ou mèsinha
contra o chato. Mas, em certos casos, usando da
superioridade momentânea que as circunstâncias
podem favorecer, a vítima consegue desembara­
çar-se do indivíduo que a importuna ( vide páginas
de polícia dos jornais).
Além desses métodos, geralmente primários
e carentes de imaginação, outros podem ser suge­
ridos.
1) Tenha de reserva uma quantidade conside­
rável de “whisky” ( de baixa qualidade, para evitar
despesas inúteis e injustas) posta em elegante gar­
rafa lapidada. Sirva-se ao chato a primeira dose,
normal cujo paladar via de regra o chato não re­

163
conhecerá. É da natureza do chato elogiar a be­
bida e pedir logo uma segunda dose; ou, caso tal
não acontece, faça-se-lhe passar uma bandeja de
“appetizers” extremamente salgados. Ao chegar-
se à segunda dose da bebida, proceda-se da se­
guinte maneira:
a) deite-se-lhe, ao servir, discretamente, uma
bem calculada porção de sedativo, em pó, líquido
ou pílula, com cuidado para não haver troca de
copos e para que o entorpecente não leve o outro
entorpecente a dormir na própria casa da vítima.
Em seguida, ponha na vitrola a “Arte da Fuga” de
Bach; ou leia para o chato excertos de sua (do
paciente) autoria. É o chamado “processo de Ar-
sène Lupin”.
b ) Em casos mais graves, proceda do modo
descrito acima, substituindo-se o sedativo por uma
dose generosa de laxativo, método a ser empre­
gado com os chatos ditos “de cerimônia”, isto é,
que não se encorajam a usar as dependência ínti­
mas da casa. É o chamado “processo de Feydeau”.
c) Em casos agudos, proceda do mesmo
modo, substituindo-se o sedativo ou laxativo por
uma pitada de arsênico ou ácido prússico. E o
chamado “processo de Lucrécia Bórgia”.
À falta de “whisky”, sirva mesmo um cafèzi-
nho, já com a poção escolhida.
Caso o chato o aborde fora do domicílio (e
caso o paciente não se precavenha, trazendo sem­

164
pre consigo algumas doses de sedativo, laxativo ou
tóxico), alguns expedientes podem, momentanea­
mente, vir em seu auxílio:
a ) Peça imediatamente dinheiro emprestado
ao chato (cuidado ao escolher a quantia, porque
às vezes o chato empresta e então a chateação au­
menta);
b) Diga-lhe que o acha muito mal de saúde
( com cuidado, porque às vezes o chato trata então
de contar suas mazelas, reais, ou imaginárias, as
dos parentes, dos conhecidos ou desconhecidos);
c) Recorde imeditamente um fato desagra­
dável, vexatório ou pecaminoso da biografia do
chato (com cuidado, porque o chato tem a ten­
dência de justificar-se, e já traz a justificação lon­
ga a minuciosamente elaborada);
d) Convide-o a ir a algum lugar particular­
mente chato ( com cuidado, porque na maioria das
vezes o chato aceita o convite);
e ) Ofenda-o ( com cuidado, porque ou o cha­
to se humilha e apela para a piedade, ou reage fisi­
camente daí resultando outras chateações, a me­
nos que você o trucide ou o ponha sumàriamente
fora de combate).

165
Como livrar-se
do chato

D u r a n t e t ô d a a v id a , o indíviduo
está submetido a uma quantidade enorme de coi­
sas e seres chatos, cuja ação varia com o meio, a
capacidade de resistência etc., enquanto êle pró­
prio emite suas partículas de chateação. Por con­
seguinte, vivemos imersos num caldo de cultura,
um universo de maior ou menor densidade mo­
mentânea, o que nos obriga a pequenos gestos às
vêzes inconscientes, tais como ir beber água, ir
lá dentro, acender um cigarro, fingir que não vê
ou não ouve, dar o bôlo, fugir da rotina, esquecer
nomes de pessoas, tirar férias, viajar e outros pa­
liativos. Para nossa própria existência, tudo con­
siste em rarefazer cientificamente a chateação
circulante, evitar as camadas onde é mais densa

166
etc. Infelizmente, até hoje foi impossível inven­
tar um artefato, aspirador, aerador, renovador de
ar, borrifador que suprima ou diminua a densida­
de de chateação ambiente. A Humanidade con­
serva —e usa — vestígios totêmicos da luta contra
os chatos: amuletos, dedos de isolar, vassouras
viradas, figas — ou “simpatias”, como bater na
madeira. Não há, tampouco, qualquer repelente
eficaz contra o chato, a não ser formas inúteis de
medicina primitiva: ramos de arruda, ou supersti­
ções, como ferraduras, ícones, pés-de-coelho etc.
Existem processos elementares de evitar o
chato, como o “fingir que não vê”, o “passar de
nariz empinado”, empregados pelas mulheres.
Mas, quaisquer que sejam as medicinas, truques,
despachos, fórmulas à base de ddt, só podem ser
aplicados, com êxito muito relativo, após a iden­
tificação do chato, de vez que êle se caracteriza
pelo fato de não se mostrar chato ao primeiro
instante. O chato se revela chato. Desabrocha
em chato, exibindo, aos poucos ou de repente, o
Mister Hyde oculto detrás do simpático Doutor
Jekyll. Só depois dessa manifestação inequívoca,
reconhecemos a presença do chato e podemos
identificá-lo. Êle é sempre resistente, paciente,
persistente. Logo, a vítima só pode saber-se ex­
posta ao chato quando êle se revela — ou pela
nomeada que o chato adquiriu, mas que é sempre
relativa.
Há alguns anos, um autor americano, preo­
cupado com o problema vital de evitar o chato,

167
escreveu um pequeno volume empírico, “How to
bore bores”. O sistema pretendia funcionar mais
ou menos como o método Ogino e Knauss, mas
as falhas demonstradas na prática já não podiam
ser levadas ao rol das exceções ou do azar. Por­
que o chato é o próprio azar; manifestado, já nos
contamina. A simples observação evidenciou
ainda que o método de “como chatear os chatos”
nada tinha de científico — porque é de natureza do
enfêrmo o axioma segundo o qual o chato não se
chateia. Por mais que lancem revides contra a
sua atuação, está sempre protegido: emite suas
partículas de Ch, constantemente, afetando com
maior ou menor intensidade um ou outro indiví­
duo; mas, logo que atacado propositalmente por
um não-chato, faz funcionar uma espécie de apa­
relho eletro-celular (do mesmo modo que os rá-
dio-amadores quando dizem “Câm bio!” ) e iso-
lam-se em invisível carapaça crustácea ou deitam
em torno de si uma nuvem de camuflagem, como
as lulas.
Mesmo se lhe descobrimos o ponto fraco, o
calcanhar do chato, êle se protege. O paciente
pode, por exemplo, a duras penas de investigação,
que também faz parte da arte que o chato tem
para chatear, perceber que o seu perseguidor não
gosta de Bach. Decide então aplicar-lhe doses
maciças de Bach. Em pouco tempo o chato está
convertido a Bach — e passa a freqüentar o pa­
ciente mais amiüdamente, para deleitar-se e para
prosseguir na sua obra de chateação. O chato

168
comensal suporta a má comida ou a falta dela;
o chato palrador resiste à má conversa ou ao silên­
cio; a chata amorosa resiste ao mau amor; o chato
conquistador enfrenta o desdem ou o ciúme.
É de sua natureza o não chatear-se. Logo, a fór­
mula “seja o chato de seu chato” não corresponde
à realidade, com a grave circunstâncias de, uma
vez empregada, obrigar a vítima a “chatisfazes-
se”, tomando-a momentâneamente chata, o que,
com o correr do tempo, tomará crônico o mal.
Chatear o chato é a maneira fatal de o indivíduo
acabar tomando-se chato.
Existem providências drásticas, já menciona­
das, contra o chato: mudar de bairro, de cidade,
de país, de planêta, matar-se ou matá-lo. Tôdas,
porém, envolvem complicações econômicas ina­
cessíveis à maioria das pessoas.
Acresce ainda outra circunstância importan­
tíssima: o prestígio do chato. Mesmo nos países
que adotam a pena de morte, a lei não a esta­
belece para o criminoso de chateação. Nos países
divorcistas, o divórcio não é solução contra o côn­
juge chato, pois fica o caminho aberto a nôvo
casamento. Observe-se ainda que o chato é gre­
gário. Consciente ou inconsciente de sua con­
dição, reune-se em assembléias com seus con­
frades, em clubes, em organizações oficiais, em
estabelecimentos de difusão da chatice, em mil
empreendimentos agrícolas, industriais e comer­
ciais. O instinto gregário leva o chato a aglutinar-
se com o semelhante e formar invisíveis ordens

169
secretas, que influenciam em decisões importan­
tes para a vida do cidadão, do Estado e da espécie
humana. Acomodado ao tipo de lugar-comum
a que se dá o nome de bom-senso, ou apaixonado
pela idéia estapafúrdia a que dá o nome de ino­
vação, de um ou outro modo, age sobre os cir­
cundantes, conduzindo-o a decisões isoladas ou
de grupo que pecam pela falta de utilidade, falta
de imaginação, falta de juízo, falta de caráter,
falta de tolerância, falta de democracia.
Recentemente, em alguns países, têm-se fabri­
cado e vendido abrigos à prova de bombas atô­
micas, com grande aceitação, e se sabe que a
maioria dos compradores os usam menos contra
projéteis espaciais do que para esconder-se dos
circunstantes e do próximo. As casas de campo
e de férias, outrora empregadas como breves refú­
gios (aliás inúteis) contra os chatos, são aban­
donadas em favor dos “shelters”. Pode-se prever
como resultado, num futuro próximo, que a super­
fície terrestre ficará abandonada aos chatos, en­
quanto o resto da humanidade passará a viver a
vida subterrânea das minhocas como supra-sumo
da civilização, privando-se voluntàriamente da
liberdade. O temor do estrôncio, o temor às irra­
diações, é menor d'o que esse outro tipo de terror,
que afinal contém a sua parte de chateação pro­
vocada pela tensão do perigo atômico. Mas que
acontecerá aos não-chatos que não disponham de
posses para a migração às cavernas ? Serão ato-
mizados pelos chatos, antes mesmo das explosões

170
Use processos mnemônicos, nas paredes do quarto, por
debaixo do vidro da mesa do escritório e t c . . .

171
na crosta do planêta, a menos que emigrem para
os polos, onde por enquanto a Terra ainda não
é chata.
Deve-se ter como princípio de fé que a cha­
teação não é mal incurável. Têm-se visto chatos
que, sem qualquer motivo aparente, tomam-se
suportáveis e mesmo sãos. A ciência ainda não
atinou com as causas de tão otimistas recupera­
ções, mais a cura reside numa auto-análise cons­
tante, partindo da comparação da própria perso­
nalidade com a dos chatos que identificamos e
classificamos.
Experimente o leitor alguns exercícios diários.
Ao deitar-se, pergunte a si mesmo:

Que chatos conhecí, identífiquei e classifi-


quei hoje?
Terei sido como algum ou alguns deles?
Que chateação infligi ao próximo ? Em que
circunstâncias ? Como as teria evitado ?
Depois dêsses exercícios de consciência, pro-
meta-se sinceramente não voltar a chatear o pró­
ximo. Seja você mesmo o seu próprio chato, e
veja até onde tem sido difícil, para o seu seme­
lhante, suportá-lo dia a dia. Use processos mne-
mônicos, nas paredes do quarto, por debaixo do
vidro da mesa do escritório, nos locais de tra­
balho, em casa, em cartazes com dízeres: “Não
chatearei!”; “Hoje sou menos chato do que on-

172
. . . e mais: distribua-o aos seus am igos!

173
tem”; "Sem chatear, a vida é uma alegria”; e
quando vacilar, volte a este Tratado. E mais:
distribua-o aos amigos, não para aconselhar que
eles se identifiquem, é claro, mas para que apren­
da a identificar terceiros. Só assim você estará de­
senvolvendo uma verdadeira cadeia da felicida­
de contra a chateação.

174
Índice Geral (dos chatos)
( Classificações pessoais )

(Nestas páginas o leitor poderá elaborar suas clas­


sificações pessoais, assim como anotar nomes que deseje
classificar etc. Caso utilizadas estas páginas, não em­
preste, não perca, não mostre e não venda este exemplar.)

175

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