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O SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL AO TRABALHO ESCAMOTEADO:

TEMPOS DE AMAZONIZAÇÃO

Pergunte ao criador, / Pergunte ao criador, / Quem pintou essa aquarela. / Livre do


açoite na senzala, / Preso na miséria da favela. (Samba-enredo da MANGUEIRA,
1988. Hélio Turco, Jurandir e Alvinho, grifo nosso).

Introdução

Fundamentada nos estudos/pesquisas em andamento para a elaboração da dissertação


de mestrado Misbehavior no ensino superior: resistência no trabalho docente, ligada a linha
de pesquisa Trabalho e Educação, junto ao Grupo de Estudos Trabalho, saúde e
Subjetividade (NETSS); bem como nas aulas e bibliografia indicada pelos professores da
disciplina em tela, a resposta inicia com a epígrafe do samba-enredo da Mangueira. Letra que
retrata as metamorfoses do escravo (IANNI, 1962) no Brasil, a paradoxal combinação entre o
arcaico e o moderno, bem resumida na formulação de Schwarz (2012, p. 283): “a reprodução
moderna do atraso”, verdadeiro moinho satânico (POLANIY, 2000) desarticulador da vida
humana que tritura pessoas transformadas em uma massa servil de um sistema frio e
impessoal.
Se os trabalhadores brasileiros pré-Leis Trabalhistas (1943) estavam à mercê da
“legislação sanguinária contra a vagabundagem” (SOUZA, 2003, p. 174) – ou seja, não
adequação as normas imperantes à época da Lei Áurea (1888)1 –, assiste-se no século XXI o
avançar da incivilidade mediante novas formas de exploração, ajustando o trabalhador ao
aparato produtivo – tornando-o um apêndice da máquina. (MARX, 2010).
Diante do exposto, este trabalho versa sobre o escamoteamento (desconstrução) do
sistema de proteção social ao trabalho, destacando as reverberações do capitalismo no mundo
do trabalho, com centralidade na amazonização2 e organização dos trabalhadores em tempos
de contrarreformas (Lei 13.467/17).

Desenvolvimento

1
Segundo Biavaschi (2016, p. 78), “Antes da proclamação da República, no período pré-abolição, houve
tentativa de o Estado coordenar o processo de integração de uma categoria de trabalhadores que se formava: os
escravos em processo de alforria e os alforriados, negros libertos que, pela via dos pleitos judiciais [...]. Também
alguns Códigos de Posturas Municipais, anteriores à Lei Áurea, adotaram regramentos para serviços de creados,
porém de forma embrionária e bastante precária [...]”.
2
Este neologismo foi inventado nos EUA em referência a empresa Amazon e representa a substituição do
comércio tradicional por transações digitais, resultando em novos hábitos de consumo e relações com as
empresas e destas com seus “colaboradores” (funcionários sem vínculos empregatícios).
A aquarela cantada no samba-enredo da verde-rosa no ano de 1988, na conjuntura das
lutas sociais por dignidade humana e conquistas trabalhistas, culminando na Constituição de
1988, é o retrato da modernização conservadora (MOORE JR, 1975) – modelo centrado no
pacto político no interior do Estado entre burguesia industrial e oligarquia rural. Sem
promover rupturas violentas, a modernização mistificou as raízes dos problemas sociais, cujas
origens são pré-modernas e, posteriormente, ligaram-se a inserção do país às lógicas liberal e
neoliberal.3
A paisagem neoliberal, enquanto “sistema normativo [...] estendendo a [sua] lógica a
todas as relações sociais e a todas as esferas da vida” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 7) do
novo velho século XXI, é herdeira das nuances matizadoras retratadas na aquarela.
Subversões de paradigmas e redefinições axiológicas prometem “formar” um novo homem –
mas, no processo conduzem à loucura e ao esgotamento, seja na busca sôfrega por bens de
consumo ou devorados pela loucura dos resultados (sucesso e metas); em ambos os casos o
homem/trabalhador é induzido a malabarismos que lhes permitam sobreviver na selva
selvagem do capitalismo.
A reforma trabalhista em vigência desde 2017 – materializada na Lei n. 13.467/2017,
que modifica 201 pontos da CLT; e na lei n. 13.429/2017, que liberaliza a terceirização –
além de ampliarem o contrato temporário e o processo de flexibilização das relações de
trabalho, operaram uma “refundação” da sua regulação, reduzindo a proteção dos
trabalhadores frente a exploração de seus patrões, bem como, submete-os as oscilações da
economia global.
A contrarreforma, como afirma Krein (2018, p. 99), “reforça a ideia de que os
interesses privados prevalecem sobre direitos consagrados e a própria noção de justiça [...]” e,
amparado em Polanyi (2000), o autor reforça que “trata-se não da defesa do progresso social
de justiça econômica, mas do progresso social de justiça privada e seletiva, dando para a
legislação reguladora um aspecto de ineficiência.”

3
Biavaschi (2007; 2016) contribui para o entendimento deste processo ao trazer à baila a obra Casa-grande &
Senzala de Gilberto Freire. A atora desvela que os traumas da escravidão, com suas rupturas e continuidades,
manifestam-se nas contrarreformas trabalhistas, como no PL n. 3/2015 que regula a terceirização e introduz a
supremacia do negociado sobre o legislado, mitigando direitos trabalhistas. A mentalidade autocrática da elite
nacional, com seu sadismo e masoquismo – expressa nos refrãos do Rappa “A carne mais barata no mercado / É
a carne negra” e “Todo Camburão tem um pouco de Navio Negreiro” – tencionam para impor sua lógica
produtivista sobre a sociedade. O que corrobora a ideia de que o Estado é um campo de contradições, espaço
tanto de conquistas como de privação de direitos, corroborando a tese de Poulantzas (1990) que o Estado é uma
relação condensada de forças entre classes e frações de classe.
.
Ao empregado cabe tornar-se um ser accountable (responsável) pelas suas conquistas,
são homens livres para empreenderem. Eis a fórmula jurídica da contrarreforma neoliberal, se
“nem os meios de produção lhes pertencem, [...] estando, pelo contrário, livres, soltos e
desprovidos deles [agora eles estão flexíveis]. Com essa polarização do mercado estão dadas
as condições fundamentais da produção capitalista.” (MARX, 2013, p. 786).
Sob escaramuças, o neoliberalismo oculta/mascara as senzalas e galés de uma espécie
de “servidão voluntária” (LA BOÉTIE, 1982) no século XXI, dissimulando em
contrarreformas a privação da liberdade com a falsa liberdade de escolha ou a livre iniciativa.
Os indivíduos reificados, pela concorrência e individualismo, passam a imaginar-se
empreendedores em um novo mundo, ilusoriamente exuberante.
E no adensamento do trabalho – na amazonização e uberização4 do trabalhador – os
indivíduos são coagidos a agirem como seres mecânicos, autômatos e inumanos. A lógica da
mercantilização da força de trabalho presente na contrarreforma também avança na
monetarização da vida cotidiana dos trabalhadores hiperconectados. A vida e o trabalho são
“manipulados” por ritmos e/ou habitus subsumidos a tecnologia em prol do capital – controle
virtual, algoritmos e regulação, mineração de dados e big data –, como se este detivesse o
controle sobre suas existências, “transformando o trabalho cada vez mais em um ‘labor’, e
não ‘opus’” (KREIN, 2018, p. 78)5.
No mundo pontocom da era digital emerge um novo arcana imperii: o GAFA
(acrônimo de Google, Amazon, Facebook e Apple) cuja economia virtual tem empreendido
uma revolução em múltiplos campos, da tecnologia às finanças, da educação à saúde,
resultando em novos processos de estranhamento e reificação do trabalhador, conceituado na
era digital como ser on-line (conectado) ou off-line (desconectado – anátemas de uma era
digital).
Com a internet das coisas (IoT – Internet of Things) o indivíduo se conecta a
dispositivos eletrônicos que compartilham informações com ele, com aplicativos baseados em
nuvem e entre si. Dispositivos portáteis para aplicações vestíveis (wearables) coletam dados
sobre seus usuários – requisitos de condicionamento físico, saúde e entretenimento, por

4
Neologismo relacionado ao modelo de funcionamento da empresa Uber com seu regime de trabalho que passou
a organizar e remunerar a força de trabalho em espaços supranacionais, falseando a fragmentação,
individualização e intensificação do trabalho mediante o slogan do empreendedorismo, com as novas tecnologias
da informação e comunicação. (POCHMANN, 2017).
5
Segundo Krein (2018, p. 78), o “’Labor’ é utilizado para se referir ao trabalho como uma atividade que exige
muito do trabalhador, colocando-o em uma condição de maior vulnerabilidade e insegurança. Assim, a tensão
permanente por emprego e por renda tendem a desgastar profundamente o trabalhador, transformando a
atividade em busca da renda em algo árduo e pesado.” Já o “’Opus’, em contraposição ao ‘labor’, seria a busca,
por meio do trabalho, da realização humana e da dignidade.”
exemplo. (MAGRANI, 2018). Mas, na relação indivíduo e dispositivo, pode-se indagar: quem
é o objeto na conexão, ou seja, quem é a extensão?
A Amazon, seguindo os parâmetros estabelecidos nos aplicativos vestíveis, tem
microgerenciado o desempenho de seus “colaboradores” – funcionários e contratados – ao
ponto de lançar severas dúvidas sobre “quem controla quem”, na relação dispositivos e
“colaboradores”. No domínio dos canais de distribuição da Amazon, se um funcionário
estiver atrasado, ele receberá uma mensagem de texto recordando das metas a serem
alcançadas e das consequências do insucesso. (GOLUMBIA, 2015).
No ano de 2013 a BBC realizou uma investigação jornalística no armazém da Amazon
em Swansea, Reino Unido. O jornalista, infiltrado na equipe de “selecionadores”, escreveu à
época: nós, trabalhadores, somos "máquinas, somos robôs, conectamos nosso scanner,
estamos segurando-o, mas podemos também conectá-lo a nós mesmos", e que “Não pensamos
por nós mesmos, talvez eles não confiem que pensemos por nós mesmos como seres
humanos, não sei”. (Panorama da BBC, 2013. In: GOLUMBIA, 2015)
Imbuída desse espírito que confunde as relações de trabalho, bem como, a relação
homem e máquina em uma coisificação do humano, a Amazon tem ampliado suas ações
financeiro-comerciais na conjuntura da pandemia global de Covid-19. Ambiente propício para
consolidar a “peste” da amazonização, ampliando sua participação econômica mediante a
utilização de plataformas digitais, em vista das diretrizes de isolamento social.
Eis que, nesse mundo cindido o poder das organizações, como o GAFA, na sociedade
da revolução digital incide sobre a vida dos indivíduos tornando porosa a separação entre vida
pessoal e profissional – trabalhadores, em vista da falta de regulação que freie o avanço da
economia digital, veem-se “manipulados” por mecanismos de vigilância e controle que
subsomem o trabalho, cada vez mais, as diretrizes do mercado.

Considerações Finais

Diante das “novas” contradições da empresa capitalista avançam contra os


trabalhadores as hordas do Estado neoliberal, perpetrando contrarreformas trabalhistas,
deslocando para o trabalhador a culpa e efeitos da própria crise estrutural do Capital. E, na era
da economia digital as soluções encontradas com a expansão da Inteligência Artificial e de
seu campo de aplicação, muito aquém de contribuir para a elevação da qualidade de vida do
trabalhador rememora uma constatação de Marx, no século XIX, ao abordar a relação
homem-máquina: “O operário torna-se um simples apêndice da máquina” (MARX, 2010,
p.46).
O avanço tecnológico, portanto, tem sido um reflexo da caricatura capitalista da
regulação social da produção e suas várias fases – do taylorismo-fordismo ao toyotismo, com
suas técnicas integrativas gerenciando o trabalho fragmentado, just-in-time. Diante do
exposto, torna-se imperioso, dialeticamente, intensificar a luta contra o avanço das
contrarreformas que reduzem a proteção social ao trabalho e, diante das contradições do
próprio capital, escrever uma outra história.

REFERÊNCIAS

BIAVASCHI, Magda Barros. O Direito do Trabalho no Brasil – 1930-1942: a construção


do sujeito de direitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2007.
BIAVASCHI, Magda Barros. O processo de construção e desconstrução da tela de
proteção social do trabalho: tempos de regresso. Estudos Avançados, v. 30, n. 87, 2016.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.
GOLUMBIA, David. The Amazonization of Everything. Disponível em:
https://www.jacobinmag.com/2015/08/amazon-google-facebook-privacy-bezos/. Acessado
em out./2020.
IANNI, Octavio. Metamorfoses do escravo: apogeu e crise da escravatura no Brasil
meridional. São Paulo, Difusão Européia, 1962.
KREIN, José Dari. O desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o
esvaziamento da ação coletiva. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 30, n. 1,
2018.
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da Servidão Voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1982.
MAGRANI, Eduardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I (o processo de produção do
capital). São Paulo: Boitempo. 2013.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.
MOORE JR, Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e
camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1975.
PANORAMA DA BBC, 2013. In: GOLUMBIA, David. The Amazonization of Everything.
2015.
POCHMANN, Márcio. A nova classe do setor de serviços e a uberização da força de
trabalho. Revista do Brasil. São Paulo. 9 jul. 2017.
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro:
Campus, 2000.
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
SCHWARZ, Roberto. Na periferia do capitalismo (Entrevista). In: __________. Martinha
versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da
modernidade periférica. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2003.

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