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(Fotomontagem de Fernando Saraiva com imagens de AFP Photo e Shutterstock)

Nada melhor para apresentar Félix Guattari do que as palavras do filósofo com quem ele pensou durante
mais de três décadas: Gilles Deleuze. No prefácio de Psicanálise e transversalidade: ensaios de análise
institucional (1972), a mais importante contribuição para pensarmos a relação entre psicanálise e política
hoje, o filósofo francês comparava Guattari ao psicanalista austríaco Wilhelm Reich: “Acontece,
raramente, de um psicanalista e um militante se encontrarem na mesma pessoa e, ao invés de
permanecerem fechados, de encontrar justificativas para permanecerem fechados em si mesmos, eles
não cessam de se misturar, de interferir, de comunicar, de tomar-se um pelo outro. É um acontecimento
muito raro desde Reich”.
Neste dossiê, Jean-Sébastien Laberge preparou uma cronologia que detalha o militantismo e o trabalho
filosófico ou teórico de Guattari ao longo de sua vida. Em “A função clínica da política”, o primeiro texto
deste dossiê, discuto com mais detalhes a relação entre o militantismo e a teoria psicanalítica. Vladimir
Moreira Lima nos fala da importância da ecosofia e das ideias de Guattari hoje. Ele coloca em relação a
noção de “capitalismo mundial integrado” (que não é um conceito mirabolante e totalitário, mas uma
descrição do capitalismo hoje) e expõe sua relação com a “sociedade de integração” (1992) e os
diagnósticos de Michel Foucault e Gilles Deleuze a respeito das sociedades disciplinar e de controle,
respectivamente. O modelo de governabilidade neoliberal é biopolítico, porque a função do governo é
administrar populações — isso significa, nas palavras de Guattari, que seu foco é a “produção de
subjetividade que constitui a matéria-prima de toda e qualquer produção”.
Angela Donini situa as contribuições de Guattari para o movimento da reforma psiquiátrica, analisando os
caminhos percorridos no Brasil até um diagnóstico importante: essa reforma nunca foi completa. Diante
disso, a autora aponta caminhos para que possamos continuar essa tarefa nos dias atuais.
Suely Rolnik descreve a natureza da relação entre Deleuze e Guattari, apresentando algumas das ideias
mais importantes de Guattari para pensarmos a clínica e a política. Podemos resumi-las em três pontos: o
conceito de micropolítica, que usa a noção de inconsciente para compreender tanto a natureza da
servidão voluntária ou da alienação como o desejo em operação nas transformações da vida social; a
esquizoanálise, que visa transformar radicalmente a teoria que sustenta a prática clínica psicanalítica; e o
conceito de “revolução molecular”, fruto de seu diagnóstico político e social do neoliberalismo e que
pretende descrever tanto as novas formas de controle e repressão dentro da vida social como as diversas
formas de luta que se opõem a esse regime.
Heliana de Barros Conde Rodrigues nos apresenta a ideia de transversalidade, aquela que colocava clínica
e política em relação, agora sob o prisma do pensamento ecológico de Guattari. Ecosofia aqui é antes de
mais nada uma luta anticapitalista, uma democracia radical que deveria se estender a todos os níveis da
prática coletiva – um convite, portanto, à invenção política em todas as esferas da vida social. Como
sublinha a autora, as exigências de uma ecologia mental são duas: “sua capacidade de circunscrever
cadeias discursivas em ruptura de sentido [e] sua possibilidade de operar conceitos de modo a autorizar a
autonomização de subjetividades e grupalidades”.
Boa leitura.

Larissa Drigo Agostinho é doutora em Letras pela Universidade de Paris IV (Sorbonne), pós-doutoranda
do departamento de Filosofia da USP.
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Félix Guattari na década de 1980 (Foto: Kazumi Hirose)

Guattari, ao deparar com as questões de orientação despertadas por sua militância – que visavam, em um
primeiro momento, clarificar uma situação de afrontamento de grupos distintos e, em seguida, pensar
orientações e estratégias –, explica que, desde que começou a trabalhar na clínica de La Borde, buscava
conciliar sua militância e o fato de ser um dos primeiros não médicos a frequentar o seminário de Jacques
Lacan. Oscilando entre esses três polos – a prática clínica em La Borde, os seminários de Lacan e o
militantismo na extrema esquerda –, ele afirmaria, em 1980, que estava buscando conciliar o
inconciliável.
Tudo começou com a tentativa de ir além da psicoterapia institucional e propor uma análise institucional
– Guattari recusava uma definição demasiado restrita da psicoterapia institucional. Assim era o espaço da
clínica, que se expandia usando a psicanálise para compreender relações “institucionais” das mais
distintas naturezas – quer dizer, todas as relações que por repetição produzem grupos e relações sociais,
portanto em suas mais diversas formas – para analisá-las e transformá-las.
Uma psicanálise que se transforma em uma tática política. Isso vai muito além de afirmar o caráter
político da clínica – afirmação a meu ver muitas vezes vazia. Tratava-se sobretudo de pensar a clínica
socialmente, de pensar uma clínica do social e não uma clínica de indivíduos. Ou seja, não se trata apenas
de expor o caráter social do desejo, ou de pôr na conta do social a responsabilidade pelo sofrimento
psíquico, mas de pensar em como transformar a vida social abrindo-a ao desejo.
O que Guattari desejava era levar as práticas da psicoterapia e da pedagogia institucional para outros
domínios, como o urbanismo e, principalmente, o militantismo no movimento estudantil com o qual
estava ligado, como a União Nacional dos Estudantes da França (Unef) e a Mutual Nacional dos
Estudantes da França (MNEF): “Além disso, eu pensava que nós não podíamos avançar nessa nova
‘disciplina’ a não ser na medida em que ela se instituiria em conexão com questões políticas mais largas
como: aquelas, por exemplo, da oposição comunista, da renovação das formas de luta revolucionária etc.
Essa tentativa durará até maio de 1968. Uma ‘grande ilusão’ que não renego. Em certa medida, foi um
sucesso incontestável”.
Guattari descreve os encontros organizados pela Federação dos Grupos de Estudos e Pesquisas
Institucionais (FGERI) como eventos de uma “fermentação bastante impressionante”, nos quais se
cruzavam pessoas tão diferentes quanto Françoise Dolto, Fernand Deligny, François Tosquelles, Jean e
Fernand Oury, Roland Dubillard, Maud Mannoni, Ronald D. Laing, David Cooper e mesmo, às vezes,
Jacques Lacan, além de estudantes que foram muito ativos em 1968.
Antes de maio de 1968, Guattari já apontava um grande nível de alienação da classe operária, e afinal os
sujeitos políticos do maio francês foram de fato os estudantes, pois a classe operária estava paralisada ou
integrada. Ele buscou compreender essa alienação e o processo de integração da classe operária usando
conceitos vindos da psicanálise, mais precisamente de Lacan. Tratava-se de aplicar a distinção entre
demanda e desejo ao campo político. O que significa uma demanda no campo político? O que significa
“desejar” dentro do campo político?
Quando observamos a teoria lacaniana dos quatro discursos, fica evidente que um sujeito só pode
emergir se for capaz de romper o ciclo instaurado a partir da mediação do saber entre dominador e
dominado. O mesmo vale para a relação demanda/desejo, conceitos bem anteriores aos quatro discursos.
O desejo surge quando um sujeito rompe com a demanda do Outro ou se recusa a limitar seu desejo à
demanda socialmente reconhecível e aceita. Ele se recusa a colocar seu desejo sob uma forma já
estabelecida.
Para Guattari, a emancipação subjetiva é o que está em questão aqui e só se torna possível quando um
grupo sujeito é capaz de pôr em questão a necessidade de instituição, de romper com a demanda de
instituição. Segundo ele, a tarefa política de uma esquerda extraparlamentar seria destruir os miasmas
participativos que intoxicam a classe operária. O que ele chamava de mentalidade sindical ou partidária
estava profundamente presente nos espíritos: “Esperamos que as questões se coloquem na urgência, no
escândalo. Na verdade, denunciamos, reivindicamos, esperando que o patrão, o ministro, o presidente
assumam suas responsabilidades. A legitimidade de seus poderes nunca é colocada em questão”.
A questão é saber como destruir esses “miasmas participativos que intoxicam a vida operária”, como
impedir que se limitem ao trade unionism, ou seja, “impedir o primado da demanda sobre o desejo”.
Trata-se, portanto, de pensar a política, do ponto de vista do desejo, como ruptura em relação a essa
demanda, que não passa de expressão da alienação, desejo de reconhecimento do oprimido diante do
próprio opressor. Mecanismo que, como Lacan dirá anos mais tarde, faz a revolução girar em torno de si
mesma e voltar ao ponto de partida.
Guattari, nos anos 1960, pretendeu redefinir, sob esse prisma, a política: “O conceito de política não é o
prolongamento simples da demanda”. Muito ao contrário, a análise da demanda é como um ácido que
desencapa o acontecimento para aguçar sua capacidade de ruptura, de tal maneira que ele “possa abrir a
subjetividade social ao desejo”. Assim, a política seria essa arte, esse espaço ou grupo capaz de produzir
uma subjetividade social aberta ao desejo, de tal forma que ela não cessaria de colocar o poder em
questão.
A Maio de 1968 seguiram-se um imenso movimento de recuperação e a diluição de todas as tendências
contestatárias pelo aparelho estatal. Uma recuperação das “aspirações de mudança”. O Estado francês foi
capaz de acabar com os locais de efervescência e de criatividade “miniaturizando as questões de poder,
com um projeto de reforma da Universidade, entre outros”. Os governos recorreram e produziram um
processo de instauração de “comissões de acordo”, instituindo relações simbióticas entre o Estado e os
sistemas de contestação. Era inquietante perceber como o “Movimento” era vulnerável.
A questão, nesse momento de escrita de O anti-Édipo (1972), era tentar discernir quais seriam as relações
entre, por um lado, o metabolismo do desejo no campo social, o imaginário coletivo e, por outro lado, as
estruturas de poder, seus aparelhos de Estado, a pirâmide hierárquica que se reconstitui
permanentemente, recuperando todos os sistemas analíticos embrionários, todas as formas de
contestação. Guattari entendia, portanto, que as diversas formas de contestação política, como as
produzidas a partir de 1968, funcionavam como sistemas analíticos.
Por isso, a análise só terá sentido se ela deixar de ser a questão de um especialista, de um indivíduo
psicanalista, psicólogo ou psiquiatra, ou mesmo de um grupo analítico, porque “todos eles se constituem
em formações de poder”.
A análise deve se tornar o resultado de um processo que Guattari chamou de agenciamentos de
enunciação analíticos, “que não são compostos por indivíduos, mas que dizem respeito também a um
funcionamento social, econômico, institucional, político e micropolítico”. Cita como exemplo desse tipo
de agenciamento o Grupo 22 de março, que desencadeou o movimento de maio de 68 em Nanterre
(França) e a Rádio Alice em Bolonha (Itália), da qual fez parte Franco Berardi, o Bifo.
O que está em questão aqui é a invenção de “novas formas de organização política, com conteúdos e
formas renovados”. Trata-se também de compreender a relação entre desejo e vida social. Essa análise
concerne elementos que se situam além das pessoas individuais, do lado do socius, mas também de
elementos infrapessoais, ao lado dos modos de sensibilidade – e é isso o que Guattari chamou de
“maquinismos abstratos”.
Essa preocupação vem da experiência que não é, evidentemente, a do consultório de analista. Guattari
conta que, quando encontra com educadores ou com o pessoal do serviço psiquiátrico – aqueles que
trabalham no setor público sobretudo –, a queixa é sempre a mesma: “O que eu posso fazer? A sociedade
é o que ela é”. Ele não era dos que ficavam esperando a revolução chegar para resolver os problemas
imediatos. O que afirmava é que o processo analítico não é uma técnica particular de análise de grupo
mas que pode desbloquear certas lutas políticas e sociais. Guattari dá como exemplo o movimento
feminista, que também desempenharia um papel analítico, por ter transformado a maneira como a
sociedade percebe a condição feminina. Nas palavras dele, o movimento “introduziu, na maneira como a
condição feminina é percebida na França, algo que tocou o conjunto da sociedade”. Todas as classes
sociais, portanto.
Assim, como muitos participantes da FGERI também estavam ativamente envolvidos no movimento de
maio de 1968, era perceptível que “transformações microssociais de um novo tipo” estavam se
revelando. Guattari as nomeou de “revolução molecular”: iam muito mais longe do que a Federação
poderia ter imaginado.
O tempo da análise institucional tinha ficado para trás. A questão agora era compreender a junção entre
as revoluções moleculares e a revolução social. Tratava-se de compreender, do ponto de vista teórico e
prático, o que estava faltando e o que proibia ou atrasava essa junção. O que impede de se
transformarem em uma verdadeira revolução social as revoluções moleculares, as lutas de desejo, como
Guattari as nomeava, que iam do movimento feminista, LGBTQIA+ ao movimento negro e se uniam às
lutas pelo fim da colonização na África e na Ásia? Transformou-se, portanto, a própria noção do que seria
revolução, assim como ganhou novo sentido o termo “revolução social”.

Larissa Drigo Agostinho é doutora em Letras pela Universidade de Paris IV (Sorbonne), pós-doutoranda
do departamento de Filosofia da USP.
Félix Guattari em entrevista no Japão na década de 1980 (Foto: Kazumi Hirose)

“Eu sou um daqueles que viveram os anos 60 como uma primavera que prometia ser interminável; tenho,
assim, dificuldades em me acostumar a esse longo inverno dos anos 80!” É assim que Félix Guattari abre
seu livro Les années d’hiver (Os anos de inverno, 1986). Entre os elementos que configuram o
congelamento da paisagem dos possíveis, existe um que é incontornável: o fascismo.
No mesmo livro, em um texto curto e belíssimo intitulado “A esquerda como paixão processual”, Guattari
nos convida a meditar sobre a importância de um acontecimento: após anos da esquerda no poder, o
fascismo se impunha e se cristalizava entre os franceses. Depois da existência de um poder socialista,
“cuidadoso em assegurar sua boa imagem entre os meios financeiros e as oligarquias tradicionais”, o
resultado foi o “desmoronamento da capacidade coletiva de resistência ao conservadorismo, a ascensão
do racismo e da entropia mortífera”.
O que aconteceu? Hoje, essa questão vem sendo colocada em muitas partes do mundo. Nem sempre
tendo como experiência anterior um governo de esquerda, não deixa de ser o que está em jogo quando
se fala em um “avanço da extrema-direita”, eufemismo que, com Guattari, poderíamos batizar de
“catástrofe ecosófica”. Essa catástrofe não designa apenas a destruição daquilo que habitualmente
chamamos meio ambiente, natureza e direitos sociais — o que já seria suficientemente terrível. Há algo
mais. Trata-se, também, de uma devastação da potência de um meio. Uma catástrofe que coloca
verdadeiras “espécies existenciais” em ameaça de extinção, espécies ao mesmo tempo sociais, mentais,
subjetivas e ambientais; visíveis, invisíveis, incorporais, espirituais; e nas quais se cultivam os valores que
criam o possível para relançar as dimensões que fazem da vida algo digno de ser experimentado (um
“território existencial”, como formulava Guattari).
Quando, em seu último livro, Caosmose: um novo paradigma estético (1992), Guattari retorna ao
problema do fascismo, referindo-se ao principal político da extrema-direita francesa, Jean-Marie Le Pen,
dizia com todas as letras que Le Pen se tornara “um objeto de atenção da libido coletiva – seja para elegê-
lo ou para rejeitá-lo – por conta de sua habilidade em ocupar a cena midiática, mas também,
principalmente, em razão do desmoronamento dos territórios existenciais da subjetividade disso que
chamamos esquerda, da perda progressiva dos seus valores heterogenéticos relativos ao
internacionalismo, ao antirracismo, à solidariedade, às práticas sociais inovadoras…”.
Como analisar as tonalidades atuais do fascismo e da catástrofe ecosófica que se propaga pelo Brasil
numa velocidade vertiginosa? A questão é técnica: como acontece e não para de acontecer? Antes de
mais nada, como Guattari nos sugeria, “deveríamos abandonar definitivamente as fórmulas
demasiadamente fáceis do tipo: ‘o fascismo não passará’”, pois “o fascismo já passou e não para de
passar”.
É notório que dois grandes eixos de respostas da esquerda entram em consenso em torno de algumas
razões (do capitalismo financeiro à crença do povo nas fake news, da manipulação da grande mídia à
entrega do pré-sal etc.) para se oporem brutalmente a respeito do “como”. O responsável foi o
supostamente ingênuo e já golpista movimento amalgamado de junho de 2013 promovido pelo
Departamento de Justiça dos Estados Unidos? Ou é tudo culpa do Partido dos Trabalhadores (PT) com
seus 13 anos de “conciliação de classe” (outro eufemismo)? Nesse debate, a velha polêmica entre
reforma e revolução é requentada num molho envenenado. Quando se trata de atribuir culpa, o que não
falta são doses de verdade. E quando isso acontece a polícia invade a análise, interrompe o pensamento,
destrói o problema e distribui as condenações que coincidem com seus princípios: seja aquele,
intrinsecamente capitalístico, sustentado pela esquerda com pretensões revolucionárias, que possui a
certeza de que “todo governo se equivale”, ou aquele, posto em prática por toda esquerda contaminada
pelo vírus republicano e progressista, quando sabe que é preciso reprimir e aniquilar as revoltas, as
insurreições, a auto-organização popular e tudo o que atrapalha o desenvolvimento da nação sob sua
gestão.
Se fosse para ficarmos presos às relações de causa e efeito, pelo menos deveríamos encará-las numa
“lógica da ambiguidade”, da “multiguidade”, repleta de causas e efeitos múltiplos, interagindo em muitos
sentidos (até mesmo retroativos)! A lista de nomeações seria longa, remetendo, no mínimo, a mais de
500 anos do processo colonial que não parou de encontrar novas e velhas formas para reatualizar sua
força. Um ponto de partida indispensável.
E isso sem esquecer dos igualmente múltiplos e novos componentes da metamorfose atual do capitalismo
— o que Guattari chamava de “capitalismo mundial integrado”, indissociável de uma “sociedade de
integração”. Essa expressão foi inventada em uma conversa explícita com os diagnósticos de Michel
Foucault e Gilles Deleuze a respeito das sociedades disciplinar e de controle, respectivamente. Trata-se
aqui, aliás, de uma flecha a ser lançada de novo. Pois a sociedade de integração funciona pela via de uma
integração em três níveis principais. Por ter sua gênese nos anos 1970, ela nomeia a integração operada
pelo capitalismo, em extensão de regiões cada vez mais vastas, colocando-as para funcionar
conjuntamente em cada ponto do globo. Por outro lado, não estando unicamente assentada em uma
genealogia histórica, ela marca a existência dos pontos críticos de integração entre as formações
societárias da soberania, da disciplina e do controle. No entanto, o que mais caracteriza a sociedade de
integração é ser uma “sociedade de integração subjetiva”, constituindo um capitalismo que age,
sobretudo, em intensidade, quando a “produção de subjetividade constitui matéria-prima de toda e
qualquer produção”.
Assim, se subtrairmos o ressentimento e a culpa – bem como toda expiação e inocência a eles atreladas –
como pensar, agir e sentir para analisar o fascismo e as catástrofes ecosóficas e resistir a eles? Estamos
aqui no coração do pensamento de Guattari: a instauração de uma análise política inconcebível sem uma
política da análise. Em outras palavras: como funciona um ato de resistência e de criação política?
Guattari nos fala de uma “eco-lógica”. Pensar sem princípios e fins; pensar “visando à existência em vias
de, ao mesmo tempo, se constituir, se definir e se desterritorializar”; pensar onde não há razoabilidade,
meio-termo, justa medida, segurança, garantia, paraíso… Um elemento importante é enxertado e poderia
fazer sentido ao menos às herdeiras e aos herdeiros disso que se chama esquerda, comunismo e
anarquismo: como pensar uma política revolucionária que prescinde da verdade, da certeza e, por isso, se
recusa a supor que os outros estão perdidos, iludidos, precisando ser conscientizados e guiados? Como
especular, sem espontaneísmo, que a resistência é primeira e que o problema é o da conexão, do
contágio e do enriquecimento mútuo, feitos com respeito às mais variadas práticas de resistência?
Nessa eco-lógica estamos, diante de um pensamento que se instaura pelo meio, uma “sabedoria do eco”.
Ecosofia. Com ela pode-se descobrir, inclusive, alguma dignidade (distante do paradigma do progresso)
para continuar e prolongar Karl Marx em sua crítica da economia política. Isabelle Stengers, talvez a mais
vibrante prolongadora do pensamento de Guattari, foi direto ao ponto: “Isso significa retomar uma
ecologia que dê às situações com as quais somos confrontados o poder de nos fazer pensar, sentir,
imaginar, e não teorizar sobre elas. Nesse sentido eu sou uma marxista – o ponto é ‘transformar o
mundo, não o interpretar’, mas acrescento que isso implica que o mundo também tenha o poder de nos
transformar, de ‘forçar’ nosso pensamento”. Não são os meios que devem ser enquadrados no
vocabulário ecosófico de Guattari, é a ecosofia, em si, que constitui um meio para se tornar suscetível à
singularidade, à criação e à resistência de outros meios minoritários no momento mesmo em que eles se
recusam a ser destruídos pelas teorias e políticas que tentam separá-los da configuração de seus
problemas e valores (aquilo que importa para um meio transforma sua experiência num modo de
existência que não equivale a nenhum outro e cuja existência é digna de ser singularmente relançada). A
sabedoria dos meios e os focos de conexão que lhes são imanentes vêm sempre primeiro em relação às
catástrofes ecosóficas. Cada possível criado em um meio pode catalisar um possível em outro meio.
A obra de Guattari é, portanto, uma potente crítica e clínica da ecosofia política. Não há crítica ao
capitalismo – como “valor que se valoriza a si mesmo” (Marx), homogeneizando tudo o que encontra em
seu caminho, esse poderoso “condensador semiótico de equivalências generalizadas” (Guattari) – que
esteja descolada de uma atenção aos modos heterogenéticos de criação de valor, de regeneração da vida
e retomada dos possíveis. Clínica da crítica. Clínica que pertence às sabedorias dos meios. Crítica como
neutralização do que impede os possíveis clínicos de serem sentidos, imaginados, criados…
A ecosofia, assim, não apresenta noções particulares para representar um determinado meio, nem
noções universais que colocariam de uma vez por todas os “verdadeiros” problemas da Casa Comum ou
da Terra como uma equivalência generalizada.
Nem universal nem particular, a ecosofia é uma práxis da transversalidade que preza pela conexão entre
heterogêneos que se mantêm como tais, desencadeando juntos um novo processo e recriando-se
parcialmente a si mesmos.
Transformar o mundo, portanto, não consiste em aparelhar ou reformar o Estado, nem em tomá-lo ou
destruí-lo, consiste sim em viver, na prática, com o problema de como fazer para conjurar sua aparição e
a eterna repetição da lógica capitalística, que tomou o Estado para sempre e que diz respeito à instalação,
nos mais distintos domínios, de equivalências generalizadas que acabam por redundar no Capital.
Se o Estado não sumirá de um dia para o outro, tudo se joga no nível pragmático que consiste em saber
como as práticas de resistência “conseguirão desviar as funções do poder de Estado, as funções
recuperadoras dos equipamentos, em proveito de funções de agenciamento coletivo”, suportes para
importantes cristalizações parciais e precárias. Isso não deve impedir, muito ao contrário, o enraizamento
e, sobretudo, o rizoma na ecologia social de focos de autonomia, autogestão e processos revolucionários
que podem conferir novos sentidos e valores para isso que se chama comunismo. “Um comunismo da
imanência movimentará constantemente seu cursor sobre práxis ético-políticas que suportam seus
próprios universos de referência”, escreveu Guattari. Uma máquina indiscernivelmente existencial,
revolucionária e analítica para que as vulnerabilidades advindas do espontaneísmo, dos mitos de
autossuficiência e do moralismo universalista não condenem de antemão os enriquecimentos, as
variações e os contágios possíveis.
Quando as forças da vida e da morte abrem violentamente as portas, algumas questões protocolares
caem no ridículo ou são atravessadas por uma vitalidade da ordem do acontecimento. Por que ler
Guattari hoje? A resposta poderia ser uma questão do próprio autor, que em suas enunciações tinha o
hábito de utilizar um ponto final ou de exclamação onde se colocaria um ponto de interrogação: “Como é
que a gente consegue, assim mesmo, nessa merda toda, fazer pedaços de territórios para si”.
Vladimir Moreira Lima é professor do Instituto de Psicologia Aplicada da Uerj.

Félix Guattari em entrevista no Japão na década de 1980 (Foto: Kazumi Hirose)

As práticas de genocídio que se estabeleceram no projeto colonial se atualizam permanentemente,


afetando sobretudo a população negra e indígena. Escrever este texto, neste momento específico,
mobiliza um repertório de sensações e percepções que conectam as inquietações e os desafios do
presente com a trajetória dos ativismos no Brasil, entre eles o que contribuiu para a criação do Sistema
Único de Saúde (SUS), afinal já são mais de 570 mil mortes por Covid-19, grande parte delas evitáveis se
houvesse mobilização política.
As inquietações e desafios aos quais me refiro percorrem vibrações de várias décadas e implicam
inevitavelmente o momento atual com o início dos anos 1980, em especial os acontecimentos do último
período de transição democrática no Brasil. Nesse movimento de pensar a memória como processo ativo
e em constante disputa, encontro sintonia nas elaborações feitas por Félix Guattari. Em As três
ecologias (1989), por exemplo, ele já tratava dos efeitos devastadores dos desequilíbrios ecológicos e de
como os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluíram numa progressiva deterioração.
O cenário de radicalização que Guattari identificava nos anos 1980 – com a implosão e a infantilização na
relação entre a subjetividade e sua exterioridade, seja ela social, animal, vegetal ou cósmica – mantém-se
forte no presente e conduz um movimento que procura frear os fluxos de liberação. Esse
comprometimento e essa implosão se articulam no mesmo projeto que tenta se apossar de todas as
formas de vida deste planeta.
A invasão das terras, os ataques aos povos indígenas e a perseguição de seus líderes nos anos 1980 se
assemelhavam ao que tem acontecido atualmente. Tais práticas contam com apoio e pressão política
daqueles que se articulam com o mercado internacional de madeira e ouro.
No campo da saúde, esse período foi marcado por grande frequência de internações psiquiátricas de
cunho moral: milhares de pessoas foram compulsoriamente confinadas por não aderir aos projetos
normativos de gênero, por não aceitar ou não suportar os abusos decorrentes do racismo, por serem
ativistas ou mulheres que circulavam de maneira autônoma pelos espaços públicos etc.
Naquela atmosfera que misturava militarismo e política com a chegada de um projeto de consumo sem
precedentes, havia também sopros ativos a contagiar a atmosfera; nestes foi possível encontrar
inspiração para não sucumbir, não aderir ao medo e não se enrijecer diante da desestabilização. A
inspiração veio especialmente de grupos ativistas, mas também da percepção de que algo nesse
desequilíbrio precisa ser tratado de modo coletivo, sendo parte de uma experiência que vem da fratura
gerada pelo projeto colonial.
Diante da atitude de não sucumbir, as zonas de ressonância foram surgindo, entre elas a saúde coletiva e
o desejo de engajamento nesse campo; para alguns, como é meu caso, na saúde mental. Para quem
sentia tédio e a nítida certeza de que aquela psicologia de consultório não era sua praia, a permanente
reinvenção – impulsionada no Brasil pelos processos da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial –
era um manancial diante da aridez ofertada pelas experiências da prática clínica.
Essa trajetória de criação de novas estruturas para os trabalhos em saúde mental vinha agregada de um
impulso ainda mais atrativo, e sua efetividade foi se materializando no processo de democratização do
Brasil nos anos 1980. Pensar em democratização implicou acionar os gestos suscitados pelos ativismos e
pelas alianças tecidas nas batalhas que tensionaram o país depois do golpe de 1964. Resultante dessas
batalhas, num momento em que a ditadura militar havia findado formalmente, aconteceu em 1986 a 8ª
Conferência Nacional de Saúde e, a partir dela, abriram-se caminhos para a criação do SUS, tendo como
marco para sua implementação a Assembleia Nacional Constituinte de 1988.
Guattari foi um grande interlocutor das pessoas e dos movimentos que ativaram tal processo. Seu
engajamento na prática desenvolvida na clínica de La Borde e, mais amplamente, no movimento de
alternativas à psiquiatria em vários países naquela década, trazia uma perspectiva alentadora para
enfrentarmos os padrões essencialistas, hierárquicos, violentos e opressores que atuavam a serviço do
abuso da vida e dominavam o campo da saúde mental.
Confesso que, com o passar dos anos, o deslumbramento por tal processo se converteu em certa
decepção, que, pensando hoje, parece estar associada ao choque entre a potência germinativa que tudo
aquilo carregava e aquilo em que tais práticas clínicas e políticas se transformaram. Surge sempre o
problema do circuito fechado, do ensimesmamento, das tentativas de universalizar e definir cartilhas.
Não significa que não existam práticas que mantêm tal potência, mas, além de certa resistência das
próprias áreas de saber ao longo dos últimos anos, também a saúde mental como política pública vem
sendo uma das áreas mais duramente afetadas pelas investidas conservadoras. É óbvio que isso se dá
pelo potencial de abuso da vida de que tais práticas são igualmente portadoras, o que se manifesta em
sua tendência a adequar-se aos projetos fascistas e com isso silenciar vidas.
A longa transição do horror dos manicômios, verdadeiras prisões psiquiátricas, para um projeto
terapêutico coletivo capaz de operar por meio de uma rede ampla de afetos, instituições e práticas nunca
se efetivou no Brasil. Mais recentemente, com a investida conservadora, há muito por fazer; afinal, as
estruturas prisionais voltam a ganhar espaço, sendo valorizadas como terapêutica – a grande falácia de
uma rede de interesse em extorquir dinheiro.
Embora estejamos atravessando um momento tão difícil, seria possível localizar algo inspirador a ponto
de manter viva a sensação de que há processos capazes de deslocar as narrativas hegemônicas e se
enredar pela vida social? Na tentativa de responder, arrisco pensar que, ao que tudo indica, a bússola
ética parece apontar para as práticas desenvolvidas por coletivos, grupos e movimentos sociais. Essas
associações nos ensinam que, para sair da dinâmica de abuso, é preciso romper com certas estruturas e
elaborar os efeitos que reproduzem o trauma colonial e o perpetuam. Tal ruptura se faz por meio de
permanente inventividade, mas de uma inventividade que se conecta com experiências que resistem há
séculos, cujas estratégias não se desenvolveram na mesma cosmologia que as do abuso da vida; elas vêm
de outras formas de habitar e se relacionar. Penso que poderíamos tomar a constatação de Frantz Fanon
sobre a ontologia e aplicá-la ao regime de inconsciente predominante nesse contexto.
De acordo com Fanon em Pele negra, máscaras brancas (1952), “qualquer ontologia se torna irrealizável
em uma sociedade colonizada e civilizada”. Se tomamos essa referência para pensar em qual experiência
de mundo, de cosmorrelação e cosmopercepção a psicanálise vai situar o regime de inconsciente,
podemos pensar que seu instrumental não tem sido suficiente, especialmente porque as práticas clínicas
estiveram, em geral, a serviço de negligenciar o racismo e sustentar os privilégios da branquitude.
As práticas clínicas têm sido lentas nos movimentos de abertura para as experiências dos agenciamentos
coletivos que nos convocam a outras localizações. Talvez as inquietudes de Guattari em torno da clínica
burguesa, da modelização, do setting terapêutico clássico estivessem em sua persistência na busca por
outras formas de lidar com o que viria a ser um procedimento clínico na prática da vida, e não uma
prática clínica de circuito fechado.
Portanto, a provocação que faço no intento de dialogar com Guattari, mas sobretudo em busca do que
acredito, é que lancemos a mirada para o inconsciente com uma nova convocação. Nesse procedimento,
seria dado um giro em termos de localização: essa mirada não se voltaria mais para responder ao sujeito
formatado pela relação entre colonialidade, modernidade e capitalismo, o sujeito neurótico, mas para
investir na ativação de outros procedimentos genealógicos.
Propor-se a tal procedimento como método visa facilitar o acesso a repertórios capazes de atingir o
núcleo dos efeitos produtores de nossa neurose, que não são de agora. Como afirmou Lélia Gonzalez em
um dos textos reunidos em Por um feminismo afro-latino-americano (2020), “o racismo se constitui como
a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira”. Seria algo como situar a estratégia vital
adotada por todes aqueles que, de alguma maneira, habitam os lugares e as maneiras de viver que não se
localizam nos códigos hegemônicos da clínica, mas que fazem da experiência do existir o gesto clínico em
sua face mais radical.
Esse avesso do inconsciente colonial se firma na disputa das narrativas do solo que habitamos e se
estrutura na permanente fabulação crítica que, entre outras estratégias, toma para si a relação espiralada
com o tempo e, com isso, não permite que o apagamento de outros mundos continue acontecendo. É um
movimento que nos apresenta possíveis repertórios que nunca habitaram hegemonicamente o mundo tal
qual nos é apresentado.

Angela Donini é professora associada e vinculada ao Departamento de Filosofia da Unirio. Doutora em


Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP de São Paulo.
(Foto: Carlos Hungria/Acervo ENSP)

Quando comecei a escrever esta carta, eu tinha acabado de ver uma entrevista que você deu para um
programa de televisão na Grécia, um ano antes de tua morte. Em uma de tuas respostas ao entrevistador,
você disse o que entendia por amizade naquela altura de tua vida. Cito aqui tuas palavras para refrescar
tua memória: “O amigo é aquele que se volta em direção a, que se volta em direção ao outro, e que
constitui o outro. Não obrigatoriamente em uma relação de identificação, porque a amizade é paralela a
uma relação agônica, mas que, nessa relação singular com o outro, abre um certo universo. Na
cumplicidade amistosa há sempre um terceiro termo que é o mundo que se está tecendo, que se está
trabalhando. E a amizade socrática não é algo que se resolve em uma identificação homossexual, numa
incorporação do outro; é algo que está ali para lançar o fio de uma teia que excede totalmente as relações
interpessoais e que dá consistência a um certo tipo de objeto, os objetos conceituais, […] os quais
adquirem uma existência autônoma”, como complementaria Gilles. Suponho que vocês diriam ainda que,
nessa teia, outros tipos de objetos podem igualmente surgir, ganhar consistência e se tornarem
autônomos: uma mutação existencial, uma obra de arte, um poema…
Fiquei pensando nessa tua ideia de que a amizade lança o fio de uma teia e fui procurar saber como é isso
na aranha, da qual você extrai essa imagem. Me surpreendi ao ler que o fio de seda que ela lança no
ambiente, que vem de uma glândula de seu corpo, tem a função de vibrar as frequências vitais das forças
que agitam a ecologia em que está inserida. Tais vibrações transportam-se por ondas pelo fio até chegar a
seu corpo, que passa então a senti-las. E o mais surpreendente é que a aranha decifra essas sensações ao
tocar o fio com suas patas. É essa decifração que lhe permite avaliar o que se passa no entorno para que
ela se oriente em suas ações: escolher como, onde e com que componentes do ecossistema suas teias
serão tramadas, assim como o desenho de sua arquitetura. E a teia vai se construindo entre, de um lado,
as ações que ela cria em resposta a essas sensações e, de outro, as respostas a tais ações por parte dos
elementos do ecossistema com os quais se compôs.
Com a ajuda da aranha volto para tua ideia de amizade. Uma teia vai se tecendo a partir do fio pulsional
que se lança para o outro na ecologia em que estão envolvidos (que, como você nos sugere, não é apenas
uma ecologia ambiental, mas também social e mental). As vibrações das forças que compõem essa
ecologia chegam aos corpos dos amigos pelo fio pulsional de cada um deles, provocando-lhes sensações,
as quais incorporam-se às suas respectivas constituições (não é isso o que você e Gilles chamam de
“afecções”?). É com o toque do espírito no fio pulsional que eles decifram essas afecções. Elas deixam
então de ser sensações passivas e se transformam em afetos que servirão de bússola a orientar suas
respostas aos efeitos da presença viva do outro no corpo de cada um. Uma teia vai se tecendo entre essas
respostas, na qual se criam universos que vão ganhando consistência e autonomia. Nesse processo,
desencadeiam-se devires da subjetividade dos dois amigos, de sua relação e da ecologia da qual são
agentes.
Essa imagem me fez pensar na viagem de um mês que realizamos pelo Brasil, em 1982, da qual nosso
livro Micropolítica: cartografias do desejo (1986) é uma espécie de diário. Acho que posso dizer que,
naquela viagem, nossa amizade lançou um fio pulsional na ecologia composta de pessoas, grupos, ideias e
situações que fomos encontrando pelo país e que teias, com arquiteturas variadas, foram se tecendo.
Nessas teias foram emergindo universos que se teciam com outros, criados pelas forças ativas de toda
espécie que agitavam a sociedade brasileira, então sob ditadura militar, à contracorrente da reatividade
reinante. Se a intensidade de criação/resistência coletiva que você encontrou aqui foi esmaecendo ao
longo das sete visitas que nos fez nos últimos 13 anos de tua vida, te conto que ela voltou a ativar-se nas
duas últimas décadas, o que se estende a todo o continente latino-americano. São movimentos sociais
que envolvem cidades inteiras e até mesmo países, e outros empreendidos pelas populações racializadas
de toda espécie: feministas, negros, indígenas e LGBTQIA+ (sigla de nomes de vários modos de viver o
corpo e a sexualidade, sendo o “+” a afirmação de que as transmutações são infinitas). Você sempre
insistiu nisso, tendo inclusive criado um conceito para nomear esse processo: “heterogênese”.

Gilles
Deleuze e Félix Guattari em palestra na França em 1980 (Foto: Marc Gantier/Archives Nationales)
Essa revitalização foi desencadeada em resposta ao cenário sinistro que se instalou no continente, em
meados dos anos 1990, com a chegada ao poder da dobra financeirizada do capitalismo que, naquele
momento, já tinha atingido hegemonia mundial. Você já captava esse panorama funesto no final dos anos
1970, quando a dobra se impôs na Europa, e chamou aquele período de “anos de inverno”, sabendo que
seria longo e penoso. Mas a coisa foi bem mais longe do que você poderia ter imaginado. O novo cenário
é uma composição mortífera entre o poder financeiro globalitário e governos locais liderados por
populistas da pior espécie, baseados numa máquina de produção de subjetividade reativa ao extremo, do
tipo fascista, mas cuja eficácia diabólica é infinitamente superior àquela que recebeu esse nome no século
20.
Posso imaginar como você estaria nisso tudo, do alto dos 91 anos que teria agora, se não tivesse nos
deixado tão precocemente. Era impressionante a capacidade que você tinha de decifração clínico-política
de cenários reativos, e a garra de teu envolvimento com as irrupções de resistência ao regime de
inconsciente que os produzia, esfera que você chamou de “micropolítica”. Com raro talento você
detectava os germens de mundos latentes que impulsionavam essas irrupções e agia no sentido de
contribuir para desmobilizar surtos de reatividade no seio dos próprios movimentos que prejudicavam a
germinação daqueles mundos embrionários.
O que melhor traz a pulsação de tua presença é uma imagem fabulada por Gilles para descrever teus
movimentos no tecer da teia entre vocês. Ele disse numa entrevista que você tinha verdadeiros raios,
enquanto ele era uma espécie de para-raios que penetrava na terra, para que o raio renascesse de outra
maneira; mas você o retomava, e assim vocês avançavam na criação de conceitos.
Gosto muito dessa imagem. Você de fato sempre teve uma escuta afiadíssima às tormentas e uma
conexão direta com os afetos que as desencadeavam; tua leitura desses mundos embrionários era veloz
como o raio. Um raio que irrompia permitindo detectar direções nas quais o desejo encontraria
possibilidades de agenciamentos coletivos para a criação de um território-ninho, onde os germens de
futuro que se anunciavam nesses afetos ganhariam corpo, colaborando para o fim daquela tormenta até
que outras eclodissem.
Era assim que você concebia e praticava a clínica e também o ativismo, indissociáveis em tua vida desde
muito jovem. Você sabia da potência micropolítica da clínica para nos fazer entalhar no corpo individual e
coletivo novos circuitos para os movimentos do desejo, de modo que este pudesse escapar do cativeiro
em circuitos talhados sob o regime de inconsciente que mantém a vida sob asfixia. Ninguém viu tão
claramente como você que o sistema capitalista, como qualquer outro sistema econômico, social e
político, implica necessariamente um determinado regime de inconsciente a partir do qual ele toma
corpo, pois é tal regime que comanda a política dominante de produção da subjetividade e do desejo e
das formas de sociedade que dela decorrem. E você nos fez ver que é essa produção que dá a um sistema
sua consistência existencial, sem a qual não se sustentaria; e é nessa esfera que ele se reproduz.
Em teus solos e em teus duos com Gilles, vocês lograram articular com extrema precisão o regime de
inconsciente próprio ao sistema que tenho chamado de “colonial-racializante-capitalístico”. Você sabia
que é incontornável a necessidade de resistir a esse regime de inconsciente, tendo qualificado como
“molecular” a revolução que se opera nessa esfera. Você dedicou tua vida à tarefa de articular esse
combate teórica e pragmaticamente, e conseguiu avançar tanto que nos deixou inúmeras pistas para o
levarmos adiante.
Com esses aportes, nos ofereceu a possibilidade de extrair da psicanálise sua força clandestina, a potência
micropolítica à qual, embora intrínseca à sua fundação, é difícil de aceder pelo fato de alguns de seus
conceitos terem sido gerados da própria perspectiva do regime de inconsciente que a psicanálise visava
decifrar e “tratar”. Com raras exceções, essa perspectiva parece ter se imposto ao longo da história da
psicanálise, o que contribuiu para que essa força micropolítica jamais tenha sido considerada e nem
sequer nomeada, permanecendo soterrada sob recalque.
Para ativar essa força clandestina da psicanálise, você teve que colocá-la em análise e redesenhar seu
território de A a Z, e encontrou em Gilles o melhor parceiro para essa difícil tarefa que você já vinha
desempenhando, teórica e praticamente, desde duas décadas antes de teu encontro com ele. Você não
se cansava de insistir na potência micropolítica do trabalho com o inconsciente para os ouvidos tapados
de uma psicanálise que, em vez de operar em prol da descolonização do inconsciente, havia se convertido
em dispositivo de colonização do inconsciente, afastando-se assim da tarefa que marcou sua fundação. E,
para tornar mais eficaz o empenho, você e Gilles adotaram como estratégia cunhar o termo
“esquizoanálise” em substituição a psicanálise, para com esse nome tirar do recalque a potência desse
dispositivo clínico-político, indissociavelmente conceitual e pragmático.
A lembrança desse modo com que vocês tratavam as palavras me faz pensar em tua escrita, o que me
traz de volta a imagem do raio. Tua escrita era o próprio raio enunciando, ao mesmo tempo, a tormenta e
os afetos dos mundos por vir que a tinham deflagrado. Por ser assim, as palavras que você escolhia para
desenhar teus conceitos eram, por vezes, estranhas, difíceis de decifrar. E quando Gilles, como um para-
raios, captava as intensidades dos raios que você emitia nessas palavras e penetrava na terra com os
embriões de futuro nelas contidos para criar vias de passagem da excessiva carga elétrica, ele dava as
condições e o tempo necessários para sua germinação em novas palavras, já mais decantadas e serenas,
como ele próprio as descrevia. O lugar onde essas palavras renasciam era o da escrita em ambiente
filosófico. E daí ele os devolvia a você, que por sua vez logo lhe lançava outros raios, com seus clarões
deixando vislumbrar o acesso a outros embriões que se aninhavam nos afetos em jogo, e assim por
diante. Gilles necessitava desse raio-Félix e você necessitava de seu para-raios.
Um pacto ético para manter o espírito tocando o fio pulsional e uma irreverente sagacidade para criar
conceitos guiados por esse pacto é o que os unia e tornava tão fecunda essa amizade, desde o instante
em que vocês se encontraram no pós-68 até tua morte. Um pacto que pulsa pelas linhas de todos os
escritos conjuntos, nos arrastando para outro lugar, assim como arrasta para outro lugar a própria
filosofia e, também, a clínica, a política e muito mais. E se isso acontece é porque o que esses textos têm
o poder de arrastar para outro lugar é a perspectiva que orienta a gestão do regime de inconsciente
responsável pela produção não só nesses âmbitos, mas em todos os demais âmbitos da vida social, por
dominar o modo de produção da subjetividade de todos os seus agentes – o que obviamente inclui a nós
também, seus leitores.
Nessa dança feiticeira entre o raio e o para-raios, coreografava-se o universo de pensamento que vocês
não paravam de nos oferecer, nos convidando a desbloquear o acesso do espírito às afecções do presente
que pulsam em nossos corpos. Um desbloqueio que precisa desta força, já que a obstrução de tal acesso,
que separa o espírito do fio pulsional, é uma das principais engrenagens da fábrica de mundo sob a gestão
do regime de inconsciente dominante. Uma engrenagem cuja função é manter o espírito em cativeiro,
sob comando da sobrecodificação (sua outra engrenagem central e que complementa a primeira). Vocês
nos ajudam a ver que Édipo é um dos operadores dessa sobrecodificação e, junto com ele, outras
categorias genéricas, supostamente universais, como raça, etnicidade, gênero e
heteronormatividade/cisgeneridade. Com esses operadores, forjam-se modos de existência que se
apresentam ao desejo como padrões de um suposto estágio superior da evolução humana a ser
conquistado.
Vocês sabiam que o que visa a gestão da fábrica de mundos própria a esse regime de inconsciente é
expropriar a potência de produção de formas, que constitui a essência da vida, desviando-a de seu
destino ético. Tal destino é o da transfiguração das formas em que a vida se encontra plasmada no
presente, a cada vez que estas a sufocam – condição para que ela recobre o ritmo em seu fluxo e possa
perseverar. Vocês nos ajudavam a ver que o intuito do desvio da potência pulsional, promovido por esse
regime de inconsciente, é levá-la a produzir formas a serviço da acumulação de capital – não só
econômico, mas também político e narcísico. E que esse abuso da vida (não só dos humanos), ou melhor,
sua cafetinagem, é, pois, o motor do sistema colonial-capitalista na esfera do inconsciente.
O que vocês diziam e escreviam nos encorajava a buscar libertar o espírito de seus sequestradores para
que ele voltasse a tocar o fio pulsional do qual foi separado, podendo assim decifrar suas vibrações e, com
esse saber-dos-afetos (que você chamou de “ecosofia”), guiar o desejo na construção de novas teias nas
quais é possível mover-se para criar linhas de fuga desse regime de inconsciente. E saiba que isso não
parou depois que vocês se foram; a cada nova intempérie, encontramos novas ressonâncias nos escritos
de vocês, em nosso esforço para nos colocarmos à altura do que nos acontece. E isso hoje mais do que
nunca, pois, como te disse, estamos sob fortes intempéries que não param de eclodir.
Para terminar esta carta eu te diria que a potência micropolítica dos movimentos que mencionei no início
é tamanha, e envolve tantas teias que não param de proliferar, que dá a impressão de que há algo de
irreversível no ar…
Pois é, Félix, é isso o que mantém minha alegria nestes tempos sombrios. Dito isso, me despeço, com
muita saudade e gratidão.
Suely Rolnik é psicanalista, crítica cultural e curadora. Professora titular da PUC-SP, coordena o Núcleo de
Estudos da Subjetividade Contemporânea na Pós-Graduação de Psicologia Clínica.
Nota: Este texto é feito de fragmentos de “De 1982 a 2021: uma carta a Guattari”, posfácio à publicação
japonesa Micropolítica, de Félix Guattari e Suely Rolnik (Tóquio: Hosei University Press, 2021).

1
Foto publicada no livro “Félix Guattari entrevista Lula” (1982), em que Guattari conversa com o então líder
sindical

Hoje, quando nos inquieta certa autocrítica – a de eurocentrismo –, cumpre iniciar dizendo que em 1990,
última vez que o vimos de perto – ele ainda viria ao Brasil em 1992 –, tínhamos absoluta certeza de que
Félix Guattari era um de nós. Digo “nós” referindo-me a alunos e professores da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (Uerj) encantados por seus saberes “localizados” – assim se falaria atualmente – e que,
provavelmente por isso, insistiam em decifrar aquela carta enigmática que compunha a capa do (sempre
esgotado) Revolução molecular: pulsações políticas do desejo (1977).
Foi decerto também por isso que, sem prévio planejamento, arrancamos Félix da moderna mas acanhada
sala onde deveria falar a uma seleta audiência e o conduzimos a um dos imensos auditórios da
universidade, com cadeiras quebradas e pífio sistema de som. Ele simplesmente se deixou levar quando
demandamos que abandonasse o espaço elitizado e acolhesse um povo por vir. Sorria muito ao se
misturar a nós, que em nada lembrávamos parlamento ou comitê central, e sim, como preferia, uma
revoada de pássaros migradores.
Quando a palestra finalmente começou, sobre o que falou? Mal recordo: talvez de cartografias
esquizoanalíticas ou de inconsciente maquínico. Importou menos, naquela manhã, o conteúdo do
discurso do que a invenção do dispositivo-Félix, em cujas linhas flexíveis, quiçá de fuga, surfamos por duas
horas. Guattari tinha um professor-empresário, que chamava de amigo (e não nego que o fosse); apenas
por isso, suponho, não nos acompanhou ao Poeirinha, boteco defronte ao campus, onde, quem sabe,
debateríamos O anti-Édipo (1972) a partir de páginas arrancadas.
À noite, voltamos a estar perto de Félix em um daqueles encontros “na casa de alguém”, reunindo
próximos por amizade ou profissão. Sobre mesas e poltronas, proliferavam exemplares novinhos em folha
de As três ecologias (1989) – nosso revolucionarismo molecular não dispensava o autógrafo, a despeito de
sabê-lo marca de sujeito-assujeitado. A conversação girou em torno das condições e dos efeitos do
momento político – derrubada do muro de Berlim, derrocada do comunismo soviético. Tudo corria sem
percalços até que alguém se referiu à tristeza pela recente eleição do “caçador de marajás”, derrotando o
Partido dos Trabalhadores (PT). Lembro-me, nesse caso nitidamente, da reação de Félix, que, aliás,
entrevistara Lula em 1982: como que para nos oferecer sua acolhida, murmurou “talvez tenha sido
melhor”, “possivelmente ainda não era a hora”. E recordo de forma ainda mais nítida a reação de uma
das pessoas presentes, retrucando que ele não podia imaginar o que aquela eleição nos custaria… Como
bem disse Walter Benjamin, a história não é um tempo homogêneo e vazio, mas saturado de agoras. Por
isso, trago essas memórias felix(es), incluindo a tréplica: “Sou um francês, possivelmente iludido, vocês
têm razão”.
Já vivíamos, então, tempos que ele, saudoso da primavera dos anos 1960, apelidou de “anos de inverno”.
Nem por isso seus olhos deixaram de brilhar quando o convidamos a circular conosco pelas redondezas.
Queria ir, mas seu amigo de novo o aguardava com uma programação agendada. Algo mais, no entanto,
viria a compor essa lembrança das linhas de um dispositivo feiticeiro: em meio à improvisada “noite de
autógrafos”, alguém não encontra o exemplar que trouxera e acusa Félix de o ter roubado; ele se finge
surpreso, exibe o forro do casaco, dá risadas, partilha descontração… transversaliza a vida. Para trazer
Benjamin de volta: essas lembranças relampejam, hoje, num momento de perigo.
Em associação nada livre, novo relampejo – uma pequena frase presente em um dos textos-intervenção
de Psicanálise e transversalidade: ensaios de análise institucional (1974): “É tal tipo de incesto, em tal
grupo, que me levará a morrer de vergonha”. Em oposição a qualquer espontaneísmo organicista, assim
como a qualquer estruturalismo linguístico, presumidos invariantes, são assim descartados, dado que
Félix os vê inevitavelmente condicionados por dispositivos. Caberia dar um cunho quase abstrato a essa
frase-achado, e dizer: “É tal conjunto de ocorrências, em tal plano de imanência, que me levará a
consistências e/ou inconsistências existenciais”. Ou mesmo, radicalizando-a: “É tal tipo de x, em tal y, que
me levará a z”.
Com Félix, põe-se em cena um , que ressalta o caráter circunstanciado de todo suposto invariante –
subjetivo, existencial ou político. Afirma-se, portanto, que não precisaria necessariamente ter sido assim e
que não continuará necessariamente a ser assim. Vale ainda frisar que esse dispositivismo reclama uma
também radical heterogênese: a transversalidade guattariana é bem distinta daquilo que, talvez por ser
carioca, me divirto em apelidar “efeito são Sebastião”. Ela em nada se assemelha à imagem de um corpo
(ou corpus) íntegro, e ainda por cima fixado (a uma árvore, no caso do padroeiro…), “atravessado” por
flechas, por mais que “institucionais”. Parece-me urgente desmanchar essa transcendência inicial, para,
diferentemente, visibilizar algo como um quadro de Gérard Fromanger – pintor recentemente falecido –,
no qual as linhas vêm de fora e para fora se dirigem após traçar, na superfície da tela, dobras mais ou
menos duradouras; mais, ou menos, singularizantes, porém nunca reprodutoras do indivíduo-efeito das
normas.
Félix estava cônscio dessas eventuais limitações ao pensamento quando pôs em cena o que chamou de
“círculo vicioso de nossos anos de inverno”. Segundo ele, à força de estarem sujeitas às redes de
subjetivação capitalísticas, muitas pessoas se tornam odiosas em suas relações com tudo aquilo que não
se mostre objeto de consenso instantâneo. Essa situação, porém, não é inelutável: exemplos históricos
mostram que, encontrados novos meios de expressão, restabelece-se a criação coletiva. Provavelmente
em busca desses meios, em meados dos anos 1980 Félix se alia aos verdes. Seu último livro, As três
ecologias, fala longamente da baixeza da subjetivação capitalística. Baixa subjetivação porque trabalhada
no sentido de uma equivalência generalizada, em que as diferenças se veem reduzidas a valores, em
variáveis antecipadamente estabelecidas: singularidade virtual da invenção tornada dado estatístico para
serviços de informação.
Contra essa circunstância funesta, Félix propõe uma articulação entre os registros do meio ambiente, das
relações sociais e da subjetividade, denominando-a ecosofia. Nada muito diferente do que propusera,
anos antes, aos socialistas à testa do Estado francês: “Permitir a cada um recobrar sua singularidade; […]
reconquistar a democracia a todos os níveis das práticas coletivas, […] aceitar por esta via, sem reservas,
[…] a divergência dos desejos e dos interesses […]; romper, em uma palavra, com o conjunto das políticas
hoje conduzidas pelos capitalismos de estilo ocidental, bem como pelos socialismos do Leste”. Nada
muito diverso, tampouco, daquilo pelo que vimos lutando pelo menos desde as jornadas de junho de
2013, e obtendo, como resposta, macro e microfascismos.
Quanto à subjetividade, As três ecologias dá cores e matizes a respostas outras, que se aliam – diria David
Lapoujade, apoiado em Étienne Souriau – às existências mínimas, no lugar de asfixiá-las. O princípio
específico da ecologia mental, segundo Félix, reside em abordar os territórios existenciais sob uma lógica
pré-objetal e pré-pessoal, apta a atribuir consistência ao ser… em vias de ser. A pertinência de tal ecologia
não deriva de ser ela mais ou menos científica, e sim de duas exigências: sua capacidade de circunscrever
cadeias discursivas em ruptura de sentido; sua possibilidade de operar conceitos de modo a autorizar a
autonomização de subjetividades e grupalidades.
A psicanálise responde à primeira exigência – ao acolher vetores de subjetivação que escapam ao domínio
do ego –, mas não à segunda, já que amarra tal acolhida à cena-padrão da sessão clínica; já a terapia
familiar pós-sistemista, da qual Félix se aproximou em razão de um trabalho conjunto com Mony Elkaïm,
tende a responder à segunda exigência, ao mesmo tempo que, funcionalista em excesso, subestima a
primeira. No âmbito político, contudo, inclusive os meios considerados “alternativos” desconhecem
ativamente ambas as exigências: objetos institucionais, arquiteturais, econômicos e cósmicos, que são
suportes de rupturas na produção de territórios existenciais por eventualmente escaparem à existência
ordinária, acabam sendo ignorados – eles exigiriam jogar o jogo da “ecologia do imaginário”, descartado
pela política “séria” (daí, impotente e impotentizante).
Poucos dias atrás, fiz parte de uma banca de doutorado e me deliciei com determinada frase do texto:
“Clínico-político, e eu já escondo a minha carteira, alguém arma um bote, vão me levar alguma coisa…”.
Não se trata de uma tentativa de representar a relação entre clínica e política, pois a tese em pauta é
uma polifonia que nos envolve em sensos e contrassensos sem convidar à emissão de opiniões definitivas
ou à construção de modelos globais: durante seu desenrolar, fica-se com o problema, como propõe, hoje,
Donna Haraway; melhor dizendo, continuamos a pertencer aos dispositivos capitalísticos, a nos perceber
enredados em suas linhas, embora sempre torcendo que eles as tenham de todos os tipos, inclusive… as
de fuga.
Apesar de escrito em estilo distinto, O psicanalismo (1973), de Robert Castel, publicado pouco depois
de O anti-Édipo, parece ocupado com o mesmo problema: clínica e política… Freud e Marx? Nos últimos
capítulos, o autor adverte que a geração crítica do século 20 estava dotada de duas cabeças, uma
psicanalítica e outra marxista. Procurava combiná-las via reduções, conciliações e/ou articulações – três
termos que designam crescente sofisticação epistemológica, sem atingir potência política a ela
correspondente. De repente, entretanto, chega um livro escrito a quatro mãos que imanentiza desejo e
produção. Para o sociólogo francês, trata-se da primeira crítica de esquerda dirigida à psicanálise e da
primeira incursão marxista anticartesiana ao problema da subjetivação.
Além do entusiasmo e dos elogios rasgados, no entanto, Castel manifesta um temor: o de que um
trabalho que genealogiza a produção desejante e que, nesse sentido, poderia abrir-nos a uma prática
política que a tenha cotidianamente em conta, se veja “capturado”. Melhor dizendo, que a
relação acidental que O anti-Édipo mantém com a psicanálise se torne prioritária, recentrando o debate
no plano da prática clínica e limitando os efeitos do livro, em lugar de expandi-los.
Memórias Felix(es): foi o dispositivismo radical que nos permitiu, naquele 1990, fazer a economia dessa
restrição, por mais que se deva reconhecer que o temor de Castel não fosse de todo infundado. Mas para
nós, que arrancamos Félix Guattari daquela sala chique, talvez ainda baste, para apreciar todo e qualquer
âmbito existencial, uma certa fórmula: “Não é o mesmo x, em qualquer y, que me levará a z”. Quem sabe
ela possa ser a primeira de uma renovada patafísica – ciência das exceções e dos excessos, ciência das
soluções imaginárias –, decerto praticada por alguém capaz de roubar seu próprio livro numa saudosa
noite de autógrafos…

Heliana de Barros Conde Rodrigues é professora associada do Departamento de Psicologia Social e


Institucional da Uerj.
Félix Guattari com Édouard Glissant (Foto: Archives Nationales)

Pierre-Félix Guattari nasceu em 30 de março de 1930, filho mais novo de uma família pequeno-burguesa
da pequena cidade de Villeneuve-les-Sablons, 50 quilômetros ao norte de Paris. Em 1934 seu pai criou a
chocolateria Monbana. A família se mudou para a periferia de Paris, La Garenne-Colombes, onde o jovem
Guattari encontrou, no Ensino Médio, o professor Fernand Oury, figura determinante na pedagogia
institucional francesa e irmão de Jean Oury, diretor da clínica La Borde, onde Guattari trabalharia mais
tarde.
Guattari uniu-se ao Movimento Laico dos Albergues de Juventude (MLAJ), onde Fernand Oury atuava. A
associação contava com uma forte corrente trotskista que o marcaria definitivamente pelo caráter
internacionalista, anticolonial ou anti-imperialista e anti-stalinista. Guattari frequentava também o
Partido Comunista Francês desde 1945, e se ligou de 1948 a 1958 ao Partido Comunista Internacionalista
– seção francesa da Quarta Internacional (PCI-SFQ).
Depois de abandonar a faculdade de Farmácia, Guattari foi aprovado em 1951 no curso de Filosofia na
Sorbonne, onde seria aluno de Maurice Merleau-Ponty, que o marcou imensamente – mas não tanto
quanto Jean-Paul Sartre. A partir de 1953, frequentou o seminário de Jacques Lacan e começou a ser
analisado por ele. Foi também nesse ano que passou a trabalhar na clínica La Borde.
Jean Oury, como Franz Fanon, fez sua formação em psiquiatria na clínica de Saint-Alban, coordenada por
François Tosquelles e Lucien Bonnafé. Nela começou o que se tornou conhecido como psicoterapia
institucional. Em 1955 Guatttari se mudou para habitar La Borde e em 1957 assumiu o cargo de diretor-
administrativo da instituição, no qual permaneceu até 1992. Seus três filhos (1958, 1961 e 1964), fruto do
casamento com Nicole Perdreau, nasceram e cresceram na clínica.
Na Sorbonne, como estudante, Guattari participara ativamente do Comitê dos Estudantes Comunistas de
Filosofia até o final dos anos 1950. Em 1956, participou da criação da Tribune de discussion, boletim de
oposição que surgiu no interior do PCF, financiado por Sartre e dissolvido em 1958. Nesse mesmo ano,
Guattari abandonou o PCI-SFQ em decorrência do silêncio do Partido diante da Guerra da Argélia e
participou da criação da revista La voie communiste, que funcionava como um grupo de suporte à Frente
de Libertação Nacional (FLN) argelina, escrevendo sob o pseudônimo Claude Arrieux. Essa foi sua primeira
tentativa de participar de um movimento político não estruturado como partido. Guattari “carregou
malas” [contribuiu financeiramente] para a FLN como muitos dos que participaram da guerra lutando pela
independência argelina sem sair da Europa; o grupo era financiado por La Borde, entre outras instituições,
até 1964.
Nesse mesmo ano, Guattari rompeu com o grupo e com os maoístas, o que culminou com a dissolução do
grupo no ano seguinte. Criou a Oposição de Esquerda (Opposition de Gauche), cujo programa está
presente em Psicanálise e transversalidade (1972). O grupo seria “absorvido” por maio de 1968, como o
Comitê Vietnã Nacional (CVN), do qual Guattari participou desde sua criação, em 1966.
Em 1961, Guattari havia começado a participar do Grupo de Trabalho de Psicoterapia e de Socioterapia
Institucional (GTPSI, 1960-1966) instigado pelos seus criadores, Jean Oury e Tosquelles. Em 1964, Lacan
criou a Escola Freudiana de Paris (EFP, 1964-1980), da qual Félix foi membro até sua dissolução e na qual
constou como analista desde 1969. Em 1965, Guattari criou a Sociedade de Psicoterapia Institucional
(SPI), que editou uma revista com o mesmo nome de 1966 a 1968. O primeiro número incluiu o artigo “A
transversalidade”, manifesto em que Guattari criticava o que chama de “centralismo democrático” e em
que defendia uma organização política que não fosse nem horizontal (cada um se virando como podia no
grupo) nem vertical (como a dos partidos políticos, da burocracia estatal e da política institucional).
Grosso modo, a psicoterapia institucional, assim como a pedagogia institucional, pretendia transformar as
instituições do seu interior. A transversalidade é uma máquina de guerra contra a burocratização, implica
uma abertura à alteridade e à finitude que permite a um grupo enunciar-se rompendo com as formas de
expressão dominantes. O trabalho conceitual de Guattari estaria sempre ligado a suas práticas militantes
e aos problemas postos por ela, tanto no campo político como no clínico.
Para avançar nesse processo e unir diferentes grupos e tipos de instituição social, Guattari criou
em 1965 a Federação dos Grupos de Estudos e Pesquisas Institucionais (FGERI) e a
revista Recherches (1966-1983), que dirigiu até 1981.
Em 1969, conheceu Gilles Deleuze (1925–1995) e, em 1972, os dois publicaram O anti-Édipo, primeiro
tomo de Capitalismo e esquizofrenia. Nessa obra o conceito, que faltava em Wilhelm Reich, de máquina
desejante é criado para unir Sigmund Freud e Karl Marx e para pensar as sociedades, a “história
universal”, do ponto de vista do capitalismo ou de sua economia libidinal. Psicanálise e
transversalidade foi publicado no mesmo ano, com prefácio de Gilles Deleuze.
Entre 1971 e 1972 Guattari participou, ao lado de Michel Foucault e Gilles Deleuze, do Grupo Informação
Prisão (GIP). No ano de 1973, Foucault publicou “Os equipamentos do poder” na revista Recherches.
Sylvère Lotringer, responsável pelo Reid Hall, campus estadunidense da Universidade de Columbia em
Paris, convidou Guattari a oferecer um seminário intitulado “Micropolítica do desejo”. Por meio de sua
revista e editora Semiotext(e), Lotringer foi responsável pelo que ficaria conhecido nos Estados Unidos
como “French Theory”.
Em Nova York, em 1974, Guattari encontrou o psiquiatra Mony Elkaïm, que dirigiu uma clínica no bairro
do Bronx. Esse encontro levou à criação da Rede-Alternativa à Psiquiatria (1975-1988), que reuniria
Robert Castel, Franco Basaglia, Giovanni Jervis, David Cooper, Ronald Laing e Sylvia Marcos, entre outros.
Essa rede teria relações com a América Latina no momento de “redemocratização” dos anos 1970-1980 e
da luta antimanicomial.
De 1973 em diante, Guattari desenvolveu a noção de micropolítica do desejo com atenção particular para
as semióticas assignificantes, liberadas do despotismo do significante. Já o conceito de revolução
molecular visava à criação de novos espaços de liberdade, mas também descrevia uma nova tecnologia de
repressão adaptada ao neoliberalismo.
Em 1977, Guattari fundou, ao lado de Giselle Donnard, o Centro de Iniciativas por Novos Espaços de
Liberdade (Cinel), cujas primeiras atividades foram criação de rádios livres e apoio a exilados e vítimas da
repressão na Itália e na Alemanha. Um deles, Franco Bifo Berardi, se exilou em Paris para fugir da
perseguição da qual é vítima devido a sua participação na Rádio Alice, na Itália. Entusiasmado com o
potencial das rádios livres, Guattari lançou, com François Pain, a Rádio Livre Paris (1977-1980), que se
tornaria Rádio Tomate (1980-1983).
O movimento autonomista italiano já atraíra a atenção de Guattari num encontro em Bolonha em 1977.
Por intermédio do Cinel, apoiou outros exilados (Franco Piperno, Oreste Scalzone e Antonio Negri) que

Guattari acolheu em casa de 1977 até sua prisão em 1979, e após sua libertação em 1983.
Guattari também seguiu de perto os desdobramentos da luta política e antimanicomial na Alemanha, seja
na defesa de Klaus Croissant, advogado de Ulrike Meinhof, fundadora da Facção do Exército Vermelho,
grupo de extrema esquerda alemão, seja escrevendo sobre o Coletivo de Pacientes Socialistas (SPK),
iniciativa que surgiu na Universidade de Heidelberg e se espalhou pela cidade após a expulsão do médico
Wolfgang Huber e de sua clínica na universidade. Essa iniciativa foi, segundo Guattari, a mais ousada que
existia em toda a Europa, e a repressão contra muitos dos participantes seria um sinal da potência que
esse tipo de iniciativa clínica pode produzir.
A partir de 1975, Guattari também colaborou com a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) por
intermédio de Ilan Halevi, realizando uma missão nos territórios ocupados em 1978.
Enquanto continuava a escrever com Deleuze, com quem publicou em 1975 Kafka: por uma literatura
menor, e em 1976 o artigo “Rizoma”, que se tornaria em 1980 a introdução de Mil platôs (o segundo
tomo de Capitalismo e esquizofrenia), Guattari publicou duas versões de Revolução molecular. A primeira,
de 1977, contém uma seção sobre semiótica ausente da versão de 1980, que contém vários textos sobre
a situação italiana. Em apoio a Toni Negri, preso desde 1979, Félix propôs a escrita de um livro a quatro
mãos, Os novos espaços de liberdade (1985).
Em 1979, Guattari publicou O inconsciente maquínico: ensaios de esquizoanálise, articulando ideias sobre
micropolítica e uma semiótica assignificante por intermédio dos conceitos de “buraco negro” e
“rostidade”, que caracterizam o inconsciente moderno capitalista, paradigma de uma micropolítica molar
dominada pelo significante, fixada no grau zero de uma micropolítica, desta vez molecular, que se
distingue da primeira pelo nível de transversalidade e dinamismo. Guattari continuou pensando as formas
dominantes de subjetivação no interior do capitalismo e buscando pensar quais subjetividades são essas
capazes de encontrar formas de escapar do modo dominante de expressão. Esse livro contém um longo
anexo sobre Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.
O otimismo que dominou a França com a eleição do socialista François Mitterrand, mas que nunca
contagiou Guattari, engajado na campanha do comediante Coluche, transformou-se rapidamente em
decepção com o alinhamento do presidente às práticas neoliberais de Margaret Thatcher e Ronald
Reagan. Começou aqui o que ele chamou de “anos de inverno”, expressão que deu título a um livro
publicado em 1986. A introdução do livro Para passar os anos de inverno foi redigida na cidade de Belém
e publicada na Folha de S.Paulo, quando Guattari cogitava a possibilidade de se mudar para o Brasil para
escapar da glaciação europeia.
Em 1982, Guattari viajou pelo Brasil com Suely Rolnik. Dessa viagem resultou o livro Micropolítica:
cartografias do desejo (1986), que seria publicado em francês apenas em 2007. Sua primeira viagem ao
país datou de 1978, convidado por Gregorio Baremblitt para o 1º Congresso Brasileiro de Psicanálise de
Grupos e Instituições do Instituto Brasileiro de Psicanálise (Ibrapsi). Em 1979, Guattari participou do 1º
Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, e graças a essa viagem encontrou-se com Jacó
Bittar e outros militantes envolvidos na criação do Partido dos Trabalhadores (PT). Em 1982 entrevistou
Luiz Inácio Lula da Silva e o texto foi publicado em livro que visava apoiar a candidatura de Lula ao
Senado.
Até o ano de sua morte, 1992, Guattari viajou regularmente para Argélia, México, Chile, Argentina, Brasil
e Japão. Criou em 1983 a Fundação Transcultural Internacional.
Guattari ficou muito interessado pelo advento de novas tecnologias da informação, em especial a partir
da década de 1980. Observando a experiência de distribuição gratuita do minitel, um aparelho telemático
da France Télécom, a partir de 1983, Guattari lançou com o Cinel uma parceria com o ecologista e
programador Emmanuel Videcoq: a rede Alternatik, plataforma on-line que continha uma espécie de
blogue e era usada por diversas organizações para debater e difundir informação instantaneamente – e
isso quase uma década antes da internet. Essa rede foi fundamental para a articulação da greve de
enfermeiras e enfermeiros em 1988 e de estudantes em 1986.
Contra os pós-modernos (leia-se Jean François Lyotard e os novos filósofos), que clamavam pelo fim da
política e das narrativas e possibilidades de uma transformação social, Guattari defendia, com o
movimento das rádios livres, uma era pós-midiática que visaria à articulação no dissenso entre
movimentos sociais e partidos políticos. Para ele, a tecnologia da informação permitiria a reinvenção da
democracia e a redinamização da política e da vida social.
De dezembro de 1980 até 1988, Guattari manteve um seminário que culminaria com a criação da
revista Chimères (ainda ativa), ao lado de Gilles Deleuze, entre outros. Seus seminários estão disponíveis
no site da revista. Nesse período, Guattari voltou a clinicar em consultório, como não fazia desde a
publicação de O anti-Édipo. O objetivo do seminário era justamente apresentar e discutir ferramentas
clínicas. Assim surgiu o livro Cartografias esquizoanalíticas, publicado em 1989.
Em 1985, impressionado por Die Grünen [Os Verdes], que constituía naquele momento uma nova força de
esquerda na Alemanha, e graças à criação do Partido Verde, que se organizava na França, o Cinel
organizou com o partido e a Federação da Esquerda Alternativa os Encontros de Práticas Alternativas.
No mês seguinte, Guattari aderiu ao Partido Verde, militando pela abertura de sua política, que recusava
alianças com a esquerda por considerar que a ecologia não seria nem de direita nem de esquerda.
Guattari continuou defendendo o dissenso e organizou o Apelo por um Arco-íris em 1986, que contou
com poucos ecologistas. Foi mais uma tentativa de articular movimentos sociais e partidos políticos.
Diante do resultado eleitoral insignificante, o Cinel acabou em 1988, período em que Guattari atravessou
uma depressão.
No inverno de 1989, terminou de escrever As três ecologias, obra em que encontramos o conceito de
ecosofia. Ele insistia na necessidade de apreender a ecologia de maneira transversal, a partir da
articulação e do imbricamento de três ecologias: a mental, a social e a que envolve o meio ambiente.
Esses planos não poderiam ser separados, e a ecologia não deveria se restringir à questão ambiental. Por
exemplo: o Partido Verde militava contra o aquecimento global, embora não apresentasse respostas para
o problema da moradia nas cidades. O objetivo de Guattari era, portanto, pensar a ecologia como
condição de possibilidade de produção das subjetividades; assim, o meio é também mental e social.
Foi também em 1989 que Guattari se aproximou do Grupo de Reflexões Inter e Transdisciplinares (Grit),
instigado pelo médico Jacques Robin. Continuou ativo no Partido Verde, propondo uma moção de
orientação no congresso do partido em novembro de 1990, mas se envolveu na criação de um outro
partido: Geração Ecológica. Em maio, participou de encontros paralelos à Cúpula da Terra no Rio de
Janeiro e aproveitou a viagem para promover suas obras mais recentes, O que é a filosofia? (1991)
e Caosmose: um novo paradigma estético (1992) (a edição brasileira deste segundo livro foi publicada
antes da francesa). Caosmose é uma compilação de conferências apresentadas no Brasil e é produto
também da depressão de Guattari. Nesse trabalho, ele apresentou como a caosmose, coexistência do
caos e da complexidade coextensiva a todo agenciamento, permite a singularização e a heterogênese
enquanto a equivalência capitalista impede o acesso a ela. O subtítulo “Um novo paradigma estético”
ressalta que a ecologia da produção subjetiva deve ser pensada com base em um paradigma estético em
vez de científico, na perspectiva de criações que enriqueceriam o projeto ecosófico e que deveriam estar
no coração das sociedades para que possam reencontrar e revalorizar suas finalidades humanas.
Guattari morreu de um ataque cardíaco na noite de 28 de agosto de 1992, em sua casa, próxima de La
Borde. Ele tinha muitos projetos não concluídos, como escrever um livro com Paul Virilio a partir de
diálogos em torno da guerra, outro com o filósofo e poeta Édouard Glissant e um novo livro seu, que foi
lançado postumamente como O que é a ecosofia? (2013).
Em 1999, foi publicado postumamente o ensaio poético e autobiográfico Ritornelos. Guattari escreveu
diversos roteiros, nenhum deles filmado, e peças de teatro.
Félix esteve por toda parte, frequentou grupos de todos os meios, dos militantes a figuras políticas, de
loucos a médicos, de artistas a cientistas, de pesquisadores de todos os tipos, de norte a sul e de leste a
oeste; uma riqueza transversal que pode ser vista em seu trabalho.

(Tradução de Larissa Drigo Agostinho)

Jean-Sébastien Laberge é doutorando nas universidades de Ottawa e Paris Nanterre e membro do comitê
editorial da revista La Deleuziana.
(Ilustração: Reprodução/J. C. Mikan)

Nos últimos anos, em encontros, colóquios, cursos acalorados de antropologia, encontrei três etnólogos
que fizeram minha “escuta saltar”. Refiro-me a Joana Cabral de Oliveira, Paulo Victor Albertoni Lisboa e
Igor Scaramuzzi, autores de artigos deste especial. São jovens antropólogos cujas pesquisas aparecem
com um novo desenho: uma etnologia além do anthropos, uma guinada para a etnografia multiespécie.
Pelo olhar desses pesquisadores, visitaremos a Terra Indígena Wajãpi (Amapá, PA), onde as sucuris, as
grandes cobras amazônicas, têm roçados, os tucanos plantam palmeiras de açaís, as cutias ajudam a
plantar castanhais. Também revisitaremos, de um ângulo inusitado, o povo guarani das aldeias de
Krukutu e Brilho do Sol, em São Paulo. Os castanhais do Alto Trombetas, no norte do Pará, com os
quilombolas, serão uma surpresa para os leitores da Cult.
Por meio de etnografias cuidadosas, temos contato com o jogo colaborativo entre as espécies – incluindo,
claro, o ser humano –, para manter e diversificar a floresta. E com isso conceitos universais como
Natureza, Cultura e Humanidade vão, ao longo desses escritos antropológicos, caindo por terra. As
florestas são frutos dessas interações entre as espécies.
Renato Sztutman abre este especial, oferecendo-nos um arcabouço antropológico, também fruto de
etnografias, para a discussão do animismo hoje. Trata-se de um debate que afeta questões muito atuais,
como a crise sanitária, a devastação ambiental e a “intrusão de Gaia”, na expressão de Isabelle Stengers: a
reação e a resposta do planeta aos efeitos destruidores do capitalismo.
A leitura deste especial convoca o leitor a uma mudança de direção do pensamento.
Amnéris Maroni é doutora em Antropologia pela PUC-SP, professora da Unicamp e psicoterapeuta de
base analítica.
(Ilustração: Shutterstock)

Nos últimos anos, os conhecimentos tradicionais e locais sobre a natureza e o meio ambiente têm
ganhado destaque nos debates sobre as mudanças climáticas e as transformações ambientais em escala
global. Existem alguns aspectos constituintes desses conhecimentos que fundamentam as razões pelas
quais isso está acontecendo. Neste texto, a partir da minha convivência com povos indígenas e
tradicionais habitantes da Floresta Amazônica, destacarei um deles – creio que valioso para ajudar a
refletir sobre nossas conexões com a natureza e o meio ambiente.
O aspecto que eu gostaria de salientar é o enfoque multicentrado dos conhecimentos locais e tradicionais
quando considerada a posição dos seres não humanos e dos entes que entendemos como “inanimados” –
rios, florestas e montanhas – em relação à humanidade. Algo importante e que dá vivacidade a esse
enfoque é o princípio da interdependência, que explica, de acordo com cada cultura, as conexões entre
diferentes formas de vida e de existência e que orienta as maneiras como nós, seres humanos, devemos
nos relacionar com elas.
Entre os povos indígenas e tradicionais, o princípio da interdependência postula que se deve prezar pelo
cuidado e pela responsabilidade nas relações com outros seres vivos e entes que povoam o cosmos. Por
essa razão, tais relações são sempre apoiadas por códigos de ética e pactos que devem ser respeitados, e
isso é especialmente enfatizado nas interações, como a caça e a pesca, que impõem sofrimento e
implicam o poder humano sobre a vida de outros seres vivos. Quando são respeitados os códigos de ética
e os pactos estabelecidos, os guardiões e detentores desses conhecimentos salientam, nas exegeses
sobre seus modos de vida, que é possível construir formas de convivência entre humanos e não humanos
que tenham contradições menos nocivas para as espécies e demais seres que compõem o ambiente.
Algo importante de ressaltar é que nesses contextos o princípio da interdependência não pressupõe que
possa haver entre os humanos e não humanos modos de relações baseados em plena igualdade,
equilíbrio e harmonia, como afirmam muitas ideias e pensamentos da sociedade ocidental sobre os
modos de vida dos povos indígenas e tradicionais. Creio, tal como também já argumentou a antropóloga
Anna Tsing, que esse princípio apenas constata que, embora possam estar conectadas às vidas dos
humanos, as outras formas de vida e existência seguem trajetórias próprias que não devem ser
controladas ou submetidas de modo inconsequente e irresponsável, o que resultaria em efeitos adversos
para todos. Desse modo, do ponto de vista dos povos indígenas e tradicionais, creio que não seria possível
considerar os seres vivos e os entes inanimados apenas como “recursos naturais” ou parte de um domínio
homogêneo e estático a serviço dos interesses humanos.
Em minha experiência de antropólogo e indigenista, tive oportunidade de vislumbrar diferentes formas
do princípio da interdependência nos modos de se relacionar dos povos indígenas e tradicionais e como
entendem e explicam o mundo. Apresentarei em seguida, baseado em minha experiência de pesquisa
antropológica, um exemplo da maneira como esse princípio pode se manifestar e orientar as relações dos
humanos com a natureza e a biodiversidade.
Essa pesquisa, realizada para a elaboração da minha tese de doutorado, foi desenvolvida com moradores
de algumas comunidades que são parte de uma população quilombola que habita a região do bioma
amazônico conhecida como Alto Trombetas, na bacia do rio Trombetas, atualmente no perímetro do
município de Oriximiná, norte do estado do Pará. O objetivo foi investigar as práticas e os conhecimentos
quilombolas sobre a biodiversidade com base na descrição etnográfica do extrativismo comercial da
castanha-do-pará ou castanha-do-brasil. A castanheira (Bertholletia excelsa) é uma árvore nativa da
Amazônia, de grande porte e longevidade, distribuída de forma descontínua em todo esse bioma.
Costuma viver em florestas com alta densidade populacional de sua espécie, os castanhais. As castanhas
são abrigadas por um fruto lenhoso, o ouriço, e são muito apreciadas no mercado nacional e
internacional. Por diversas razões, as florestas de castanhais têm e tiveram papel fundamental na
constituição do modo de vida do povo quilombola da bacia do rio Trombetas, desde que seus
antepassados chegaram na região, por volta da primeira metade do século 19, até os dias de hoje.
Um dos temas mais interessantes que pude discutir na pesquisa foi como os castanheiros quilombolas
entendem os processos de criação e reprodução das florestas de castanhais. De acordo com alguns de
meus interlocutores, essas florestas se criam e se reproduzem orientadas pelo princípio da
interdependência, que, nesse caso específico, se manifesta nos valores de parceria e cooperação entre
humanos e não humanos. A rede de relações responsável pela criação e reprodução dos castanhais não
tem o humano como protagonista, e as maneiras como os diferentes sujeitos estão conectados às
castanheiras configuram um modelo de relação social do qual estão ausentes os princípios de hierarquia,
violência e dominação. Essa rede é composta de muitos agentes e alguns deles ganharam ênfase nas
explicações que me deram sobre o assunto.
Entre os que se destacaram, há primeiramente os “aramãs”, abelhas, conhecidas também como
carpinteiras e mamangavas, das famílias Apidae e Anthophoridae, que, entre seus “estrondos” e
“festejos”, se alimentam da água doce das flores da castanheira. Segundo um renomado castanheiro do
Alto Trombetas, seu Tinga, já falecido, ao se alimentarem, elas também “vedam” as flores com sua saliva
e, assim, resguardam a umidade interna, que possibilita a transformação em frutos. Ele mencionou
também as árvores de várias espécies que compõem a vegetação de sub-bosque dos castanhais, situada
no nível intermediário do castanhal, entre o solo e as copas das grandes castanheiras. Elas são
consideradas parceiras importantes, pois servem de ponto de parada e descanso para os “aramãs” que
não conseguem em um único voo chegar às copas das castanheiras, que são muito altas.
Outros agentes importantes são as cutias, roedores da família Dasyproctidae, que “plantam” os
castanhais. De acordo com os quilombolas, as cutias são os únicos seres não humanos capazes de romper
com efetividade os ouriços para se alimentarem das castanhas. Quando se alimentam das sementes, elas
têm o costume de enterrar algumas para, quem sabe, comer posteriormente. Várias das sementes
enterradas germinam e isso possibilita que novas castanheiras ocupem o lugar das que se vão. Dizem os
castanheiros que a cutia tem a engenhosidade de levar as sementes para outras áreas, expandindo seus
locais de ocorrência.
Por fim, outros sujeitos importantes que configuram essa rede são os próprios castanheiros, que, pela
frequência nos castanhais e pelo cuidado com as castanheiras, deixam-nas “alegres” e as incentivam a
produzir frutos. Segundo alguns interlocutores, as castanheiras gostam do “calor” dos pés e do “cheiro”
dos humanos. Na ausência deles nos castanhais, elas ficam “tristes”, pois sabem que a maior parte das
sementes, seus “filhos”, apodrecerão na floresta, pois as cutias não têm condições de “plantar” um
número grande de frutos. Esse postulado é explicado e comprovado com alguns exemplos relacionados
ao comportamento e à capacidade produtiva das árvores em diversas épocas e lugares. Sem a presença
humana, as árvores tendem a não frutificar com fartura, e no longo prazo isso pode vir a comprometer a
fertilidade e a vivacidade dos castanhais.
Entre os quilombolas do Alto Trombetas, não há, na relação com as castanheiras, interesse em dominar e
intervir no modo como elas vivem. Os castanhais são sempre considerados nas tomadas de decisões a
respeito de onde se pode habitar e realizar empreendimentos no território. Entendo que nesse caso o
papel dos humanos na conservação dos castanhais é participar com responsabilidade e apreço – junto
com “aramãs”, cutias, árvores do sub-bosque e outros agentes – da rede de relações que torna possível a
existência dessas florestas. Do ponto de vista quilombola, a “ciência” do castanhal, ou a forma específica
como a vida é criada e reproduzida nesse ambiente, ganha plenitude e fluidez quando o papel de cada
sujeito é respeitado e reverenciado de acordo com as formas de interação e convivência entre seres
humanos e castanheiras no território tradicional.
Para finalizar este texto, gostaria de compartilhar algo valioso que aprendi com as lições quilombolas
sobre a criação e a reprodução dos castanhais. Depois dessa experiência, entendo que tão crucial quanto
resguardar e conservar a natureza e a biodiversidade é abandonar os ideais antropocêntricos de controle
e dominação sustentados pela separação entre Humanidade e Natureza. Ideias como essa têm sido um
obstáculo para a constituição de uma sensibilidade cooperativa e consonante com as forças que regem e
criam a vida. Tal como fizeram os quilombolas na convivência com os castanhais, a cooperação e a
parceria multicentradas nos convidam à atualização das formas de convívio e de cuidado entre os
diversos habitantes do planeta Terra.
Igor Scaramuzzi é bacharel em História pela Unesp, com doutorado em Antropologia Social pela Unicamp.
Consultor e assessor de projetos entre populações indígenas e tradicionais.
(Ilustração: Reprodução/J. J. Audubon)

Desde a década passada, geólogos, antropólogos e outros especialistas debatem, com maior intensidade,
a entrada da Terra em uma nova era geológica, o Antropoceno, marcada por instabilidades motivadas
por ações antrópicas, que constituem a principal força entrópica na Terra. Em consonância com seus
efeitos políticos, muitos desses especialistas buscam nomear também as desiguais responsabilidades
sobre o colapso ambiental. Nesse contexto, encontramos perguntas variadas, como: que papel
desempenharam no colapso ambiental o antropocentrismo, o capitalismo, o Estado, a metafísica
moderna? As sociedades indígenas nas Terras Baixas Sul-americanas e no Brasil oferecem-nos um
contraponto vivo ao Antropoceno em seus modos de vida, sua mitologia e seus rituais, em suas filosofias
e suas ciências.
Esse conjunto de problemas permeou minha formação de antropólogo e diz muito da minha experiência
de pesquisa em etnologia, nas aldeias guarani denominadas Krukutu e Brilho do Sol, localizadas nos
arredores da represa Billings, entre os municípios de São Paulo e São Bernardo do Campo (SP). Em
contexto de ampla presença dos jurua kuery (os “brancos”) e de presença igualmente marcante de trilhos,
estradas, barragem e cavas de areia, com impacto ambiental expressivo, os xamãs guarani (xeramoĩ)
dividiram comigo algumas lições de escuta ou da transformação dela – as quais divido agora com vocês.
QUANDO CHEGA A PRIMAVERA
Aprendi que, na passagem do inverno à primavera, as aves migratórias retornam de moradas celestes e
iniciam a construção de seus ninhos, as plantações recebem a chuva, a mata floresce e frutifica, os
caminhos na mata ficam densamente povoados por animais e almas. A primavera é um evento elaborado
segundo um agenciamento cósmico. Trata-se da passagem do ara yma, “tempo velho”, ao ara pyau,
“tempo novo”.
É também nesse período que as forças dos xamãs são ampliadas. No “tempo novo”, ara pyau, ocorre a
cerimônia de nominação das crianças, cujo nome-alma, nhe’, é revelado pelo xeramoĩ, que o escuta e o
revela na “casa de reza”, opy. Os nomes-almas viajam das aldeias celestes e chegam ao corpo das crianças
para se firmarem em um corpo perecível do qual o nome-alma se despedirá na ocasião da morte.
O “tempo novo” é também um período muito especial para o fortalecimento, mbaraete – de toda a
comunidade, que deve se esforçar para afastar a tristeza e o sofrimento. Invariavelmente, o xamã, sua
esposa e o cacique são protagonistas desses cuidados, transitando nos espaços domésticos das casas e
na opy, porque a transição entre o ara yma e o ara pyau envolve maior vulnerabilidade do corpo,
experiências intensas de alteração de humor, possibilidades díspares de adoecimento. Por isso, são
centrais as atividades xamânicas, especialmente as curas, sendo preciso que os xamãs e suas
comunidades estejam sempre fortes e que aproveitem o período do “tempo novo” para se fortalecerem.
Na zona sul de São Paulo, capital, convivi com xamãs que identificam um desequilíbrio entre o “tempo
velho” e o “tempo novo” e temem, assim, o desarranjo das forças de transição entre ara yma e ara pyau,
como o encurtamento da frutificação do “tempo novo” e a intensificação do inverno no “tempo velho”,
com impactos no xamanismo.

Esses indícios da desestabilização da capacidade regenerativa da Terra e da duração do tempo cíclico


de ara yma e ara pyau comprometem também a comunicação com os deuses ou as divindades. Alguns
xamãs suspeitam que os nomes-almas não venham mais de todas as direções do céu e que a
comunicação com seus espíritos auxiliares também possa sofrer alterações. O colapso ambiental incide
sobre a cura xamânica e a escuta no cotidiano, e ocorre a pulverização de sinais dispersos ao longo dos
caminhos, desaparecendo cantos e ruídos de animais, rastros, odores e pegadas, plantas, vidas e
potências comunicativas sob risco de extinção.

COSMOPOLÍTICA ANTES, DURANTE E DEPOIS DA PRIMAVERA


Os rios estão parados em barragens, algumas aves não nos visitam mais, as abelhas morrem em
decorrência de venenos e da má qualidade do ar, os galos cantam fora de hora, é como se uma bússola
cosmopolítica tivesse sido atacada pelo modo de vida dos “brancos”, que continuam a revirar a terra nas
proximidades da zona sul de São Paulo, capital, com as suas cavas de areia.
É importante dizer que são, justamente, pequenas pedrinhas atiradas por espíritos no corpo de
transeuntes que muitas vezes adoecem as pessoas no cotidiano. Inclusive os “brancos” vivem desse mal
na cidade! Enquanto os xamãs guarani retiram das pessoas essas pequenas pedrinhas, os “brancos” as
atiram para o alto com suas cavas, em nome da construção civil, das edificações.
Se nesse contexto a escuta guarani da palavra sagrada preocupa, os olhos também se voltam aos
relâmpagos. Os ajudantes de Tupã “rabiscam” os céus e o fazem em diferentes cores. Os xamãs leem
raios e relâmpagos, os quais abatem espíritos agressivos. Para o pensamento há direção. Ao amanhecer,
diz-se “bom dia”, “nós nos levantamos” – javy ju. Para “pensar direito” é preciso pensar com alegria, vy’a,
olhar em direção a Kuaray, o Sol. O pensamento vai ao encontro de uma região do peito, fonte das
emoções e local em que há uma chama quente.
A isso também se relaciona o cuidado necessário durante o ara yma, quando o Sol faz um caminho curto
no céu, os nomes-almas descansam, e as pessoas encerram várias atividades, como a confecção de
armadilhas e a extração de determinadas espécies botânicas localizadas na mata. Conheci um xamã que
recomendava a interrupção total das atividades no último dia de ara yma, e que todos apenas se
reunissem para beber da erva-mate e fumar no petỹgua – cachimbo –, para esperar o tempo novo
anunciado pelas aves e insetos.
A inobservância desses cuidados pode expor a pessoa a muitos riscos, tornando-a vulnerável diante de
espíritos que querem “brincar”. É o caso do “dono do sofrimento”, contra o qual é preciso dançar, cantar
e compartilhar o mate e o fumo, alegrando a todos, até aos deuses.
Se a alegria é fundamental para o nome-alma se assentar no corpo, não será menos importante para as
pessoas se estabelecerem em uma aldeia, para os animais viverem no agrupamento doméstico e também
para as plantas serem cultivadas. As plantas domésticas, como se sabe, não se criam sozinhas, ficam
muitas vezes vulneráveis. Em razão disso, não é incomum que as plantas sejam cultivadas em coletivos
para não se sentirem sozinhas. Todas as formas de descuido podem prejudicar o plantio, gerar desafetos
entre homens, mulheres e plantas. Ouvi algumas vezes sobre tipos de plantas que escolhem não crescer
na companhia de determinadas pessoas, por mais que elas inventem todo tipo de solução técnica.
Há quem simplesmente desista do plantio de determinadas espécies vegetais ou recorra ao xamã para
realizar um “benzimento” das sementes do próximo plantio. Mediada pelo xamã, a prática de cultivo das
sementes poderá, finalmente, prosperar. Já no caso dos animais, o problema da domesticação tende a ser
irresolvível. Alguns animais simplesmente abandonam o dono.

ESCUTAS E CAMINHOS
Aprendi com pessoas da etnia Guarani Mbya que a alegria é uma abertura cosmopolítica para bons
encontros, ou encontros alegres ao longo dos caminhos na mata e na cidade, com diversos seres que
povoam o cosmos. O xamã é um mediador de uma rede cósmica, atuante nas trocas recíprocas que
envolvem diferentes espécies e seres em acontecimento, como o florescimento na primavera.
O inverno exige ainda maior cautela e uma atividade reclusa diante de condições adversas de
brotamentos na vida porque há escassez lumínica, período de estresse vital e de baixa responsividade
vital. A espera pelos brotamentos é acompanhada por outras esperas: das aves migratórias, dos nomes-
almas, das flores e dos frutos. Por assim dizer, essa maturação de frutos pode ser acompanhada por uma
maturação espiritual, duas maturações que os Guarani chamam pelo mesmo nome: aguyje. Coincidindo
ou não com os eventos do “tempo novo”, poucos conseguem realizar o aguyje, a maturação em vida, com
o corpo leve e alegre mediante determinadas práticas físicas e espirituais e ingressar na morada divina.
Muitas vezes, esse alcance do aguyje é equiparado ao voo do beija-flor, maino. Além de uma
correspondência com as habilidades e capacidades de maino – como ficar parado no ar –, a ave é
descendente de uma ave ancestral que, durante a cosmogonia, voava ao redor da divindade primeva
Nhanderu, um ser multielemental, botânico-animal, ofertando-lhe gotas de orvalho em seu bico,
colaborando assim para que concluísse seu brotamento.
Os Guarani são muito lembrados na etnologia por sua cataclismologia, e não sem razão. Dilúvios,
incêndios e terremotos ocupam um lugar proeminente em suas profecias. Convivi também com anúncios
de fim do mundo durante o período da pesquisa de campo. Mas a marca dessa experiência foi outra: a
lição de escuta de vozes da sua cosmopolítica, combinada à leitura de sinais emitidos por diferentes seres
que povoam o cosmos. Foram escutas e leituras voltadas à rede que precipita o “tempo novo”, a
maturação da primavera e a entrada do verão, fonte de força para a cura xamânica: a alegria
cosmopolítica.
Paulo Victor Albertoni Lisboa é cientista social, mestre e doutor em Etnologia pela Unicamp e
psicoterapeuta no projeto Escuta Solidária.
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(Ilustração: Reprodução/J. C. Mikan)

Pesquisas comandadas pelo arqueólogo Eduardo Góes Neves na Amazônia desafiam noções que se
consideravam estabelecidas, como a de que a floresta abriga uma natureza intocada. Neves, que é
professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), vem
publicando parte de suas conclusões em estudso publicados em revistas brasileiras e estrangeiras e
continua se dedicando a ampliá-las.
Segundo tais pesquisas arqueológicas, os sistemas agroflorestais amazônicos consistiam de uma
combinação de plantas cultivadas na praça central dos povoados – como milho, leguminosas e frutas –
com manejo de árvores ricas em alimento, como castanhas, açaí e tucumã. Neves e os parceiros de seus
estudos (entre eles pesquisadores de três universidades estadunidenses e uma universidade holandesa)
afirmam que no período pré-colombiano existiu na Amazônia uma rede de estradas que conectava
aldeias e culturas. Segundo eles, a Amazônia é um centro de domesticação de espécies de plantas:
quando os europeus chegaram à floresta, ao menos 83 espécies nativas já haviam sido domesticadas,
num processo que começou há 12 mil anos.
A seguir, Neves fala de suas pesquisas e de como muitas das ideias consagradas sobre a Amazônia têm
viés colonialista e racista.
A compreensão da floresta tropical amazônica como um fenômeno histórico multinatural tem ganhado
força e alinhado reflexões entre antropólogos e arqueólogos quanto às formas de interação entre
humanos e não humanos, perpetuadas pelas populações amazônicas ao longo de milênios. De que
modo o registro arqueológico e dados etnográficos permitem novos entendimentos das práticas
culturais relacionadas a manejo e cultivo de plantas no ambiente amazônico?
Há mais de 30 anos a antropologia tem proposto, por meio da ecologia histórica, que existe uma
contribuição importante das práticas de manejo indígenas na constituição atual de florestas na Amazônia.
Nessa perspectiva, matas de bambu, castanhais, babaçuais e outras formações resultaram, por exemplo,
do uso do fogo e do cultivo e replante de mudas em áreas específicas ou ao longo das trilhas. Tais
práticas, aliadas às de abertura de roças e áreas para as aldeias de diferentes tamanhos, quando repetidas
ao longo de 12 mil anos, teriam resultado em transformações significativas das florestas, a ponto de ser
possível afirmar que as populações indígenas tiveram contribuição fundamental na constituição desses
ambiente. Também foi ficando clara a autoria indígena na formação das “terras pretas de índio” – solos
muito férteis e produtivos que começaram a se disseminar cerca de 2500 anos atrás. Por outro lado, em
desenvolvimentos paralelos, os pensadores indígenas e a antropologia nos mostram como, para as
populações indígenas, não existem barreiras claras entre os mundos “da natureza” e da “cultura” e que,
de fato, tal separação foi naturalizada pela tradição intelectual da qual somos tributários. A lição que a
arqueologia nos ensina é que a distinção entre o que é selvagem ou domesticado resulta mais de
categorias analíticas exóticas do que propriamente de formas de conhecimento e classificação locais. A
crítica a essa divisão arbitrária pode resultar em uma contribuição teórica importante.
Nos últimos anos, um dos efeitos impulsionados por pesquisas interdisciplinares sobre a Amazônia foi a
guinada de uma perspectiva fortemente marcada pelo determinismo ambiental para interpretações
que consideram a floresta como um artefato cultural de agenciamento humano passado, produto de
uma associação de longa duração entre espécies de plantas, humanos e animais. Como a pesquisa
arqueológica realizada na Amazônia tem contribuído para reiterar essas hipóteses?
A arqueologia tem nos mostrado que, na Amazônia, o passado não é mais como era antigamente.
Superamos, nas últimas décadas, uma perspectiva baseada no determinismo ambiental, que enxergava a
região como uma área periférica e até inóspita na história profunda da América do Sul. O estudo da
emergência ou não de formas políticas, como o Estado, na Amazônia antiga reflete essa mudança.
Sabemos hoje que o Estado não se estabeleceu na Amazônia, mas que, ao mesmo tempo, havia locais
com adensamento e redundância nas ocupações, em um padrão que poderíamos chamar de urbano; que
o início da história de domesticação de plantas remonta a mais de 9 mil anos, mas que plantas não
domesticadas são até hoje fundamentais para as práticas agroecológicas locais. Em suma, a arqueologia
nos mostra que não houve limitações ambientais nem intelectuais no curso de uma histórica rica e
dinâmica na Amazônia, mas que perspectivas baseadas em outras experiências históricas – de fato, mais
políticas que históricas – não funcionam para explicar essa história. A arqueologia da Amazônia contraria
sempre o senso comum – e por isso é tão interessante.
No entanto, ao considerar uma boa parte da Floresta Amazônica como um conjunto de paisagens
antrópicas, não estaríamos, de algum modo, dando primazia ao agenciamento humano na constituição
do meio ambiente amazônico? O termo paisagens multinaturais (Glenn Shepard) não seria mais
abrangente e inclusivo nesse sentido?
Creio que sim. A ideia de paisagens multinaturais é muito mais generosa, inclusiva e também precisa, pois
faz justiça às diferentes forças que atuam na constituição dessas histórias. Por trás disso, há uma questão
importante, que é o controle. Somos herdeiros de uma tradição intelectual que confia no uso das técnicas
como meios de intervenção e controle da natureza. Nessa tradição, técnicas são neutras e funcionam
como intermediadores com o objetivo de maximizar o retorno por gasto de energia e evitar riscos. Uma
manifestação radical desse princípio seria, por exemplo, uma grande fazenda de monocultura. Sabemos,
no entanto, que tecnologias são sistemas de conhecimento e que, portanto, não podem ser neutros e
tampouco pensados fora dos contextos políticos nos quais são engendrados. Talvez seja por isso que
parte de setores representativos do agronegócio apoie projetos políticos totalitários: ambos os sistemas
estão fundados na ideia de controle absoluto, seja de grãos, de corpos ou de ideias. A ideia de paisagens
multinaturais oferece algo oposto à noção de controle: práticas abertas ao acaso, à experimentação
desinteressada e estética, e, sobretudo, alheias a princípios de acumulação. Na Amazônia, a arqueologia
nos mostra que essas práticas mais relaxadas e abertas se constituíram e se aprimoraram ao longo de
milênios, a ponto de contribuírem para gerar a grande agrobiodiversidade da região. São práticas
estabelecidas e testadas em escalas de tempo profundas. Pensando nessas escalas – que são o parâmetro
para a arqueologia –, quem nos garante que o agronegócio monocultor, com seu altíssimo custo
energético e impacto ambiental, continuará a funcionar em cem anos?
Certa idealização da Floresta Tropical Amazônica como mata intocada e inabitada ainda está muito
presente nas campanhas e políticas de preservação ambiental, no Brasil e no mundo. De que modo uma
compreensão maior das práticas de familiarização entre seres humanos e não humanos, próprias às
culturas ameríndias, poderia impulsionar a criação de políticas ambientais mais inclusivas em relação
aos processos simultâneos de constituição da paisagem florestal e das sociedades indígenas
amazônicas?
Essa idealização, como toda visão desse tipo, ilustra as expectativas e ansiedades construídas de fora. É
também a manifestação de relações colonialistas e racistas que se constroem em múltiplas escalas.
Políticas públicas para a Amazônia foram sempre pensadas com o objetivo de maximizar a extração de
recursos locais, seja a mão de obra escrava indígena ou as “drogas do sertão”, borracha, madeira,
minérios e, agora, energia, com a construção de grandes usinas hidroelétricas. Os princípios que baseiam
essas políticas públicas vêm da noção de que a natureza é algo que está em uma dimensão externa e,
portanto, pronta para ser apropriada, repartida e vendida. Os povos indígenas e a arqueologia nos
ensinam que não existe partição radical entre os domínios da Natureza e da Cultura. Essa separação já
contribuiu para avanços notáveis, mas nos coloca agora diante de um dilema representado pela profunda
crise socioambiental que o mundo enfrenta. Somos testemunhas dessas mudanças e, o que é mais
assustador, temos consciência dos efeitos de nossas práticas. Parte das soluções para esses problemas
complexos deve passar por uma conexão respeitosa e humilde com formas de conhecimento como as dos
povos indígenas.
Sandra Pandeló é graduada em Filosofia pela USP e integrante da equipe do Laboratório de Arqueologia
dos Trópicos (Arqueotrop) do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.
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(Ilustração: Reprodução/J. C. Mikan)

Ao contrário da imagem corrente que se tem da Amazônia, com suas planícies e grandes rios, a Terra
Indígena Wajãpi (Amapá, PA), local onde aportei meu trabalho de antropóloga, é uma região
montanhosa, de floresta tropical densa, repleta de igarapés pequenos, rios encachoeirados e de difícil
navegação.
Foi em uma viagem por um desses cursos de água que um dos meus amigos wajãpi – grupo falante de
uma língua do tronco tupi – me mostrou uma roça de sucuri. Sim, a maior cobra das Américas, que habita
as margens alagadas e é exímia nadadora, possui roçados. São áreas de uma vegetação flutuante que
compõe com uma espécie de Musaceae típica da mata ciliar e que, por sua similaridade morfológica com
a bananeira, é chamada de banana-de-sucuri. As roças de sucuri têm uma fitofisionomia que se
assemelha às roças wajãpi: com plantas mais altas (como as bananeiras e mamoeiros), espécies herbáceas
em um extrato intermediário (como as mandiocas) e trepadeiras que se engalfinham e que emaranham
as plantas entre si (como os carás).
Nesse universo, a agricultura não é uma prerrogativa dos humanos, uma vez que a humanidade não é
uma condição exclusiva, mas sim um atributo amplamente compartilhado com diversos entes. Em tempos
pretéritos, animais, plantas, objetos e astros detinham aspectos culturais, como festas, ornamentos e, o
mais importante, a linguagem. Era um tempo de ampla comunicação, no qual a primeira humanidade
conversava, casava e se relacionava com gente anta, gente queixada e gente surubim, entre tantas outras.
Eventos diversos, nesse tempo de transformação intensiva, fizeram homens se metamorfosearem em
guaribas, onças virarem ariranhas… E assim tiveram origem todos os animais que habitam hoje a
plataforma terrestre.
Estamos aqui diante de uma ontologia perspectivista tal como formulada por Eduardo Viveiros de Castro
e Tânia Stolze Lima. Um processo simétrico inverso à nossa teoria da evolução darwiniana. É essa
condição humana partilhada no passado – e que é latente em outras dimensões do cosmos atual – que
garante a possibilidade de os animais serem dotados de roças e plantas cultivadas.
Mas não são só as sucuris que têm seus roçados. Os açaizais são compreendidos como plantações de
tucanos, aves que dispersam sementes dessa palmeira ao se alimentar dela e regurgitar os caroços; cutias
são responsáveis por plantar castanhais; caranguejos têm pimenteiras… Espíritos de mortos cultivam
batatas e mandiocas, que aos olhos dos Wajãpi aparecem como plantas invasoras em roçados
abandonados. Os exemplos são extensos. Estamos diante de uma floresta habitada e cultivada por entes
apenas aparentemente não humanos.
No fim da década de 1980, William Balée, a partir de estudos etnográficos, ecológicos e linguísticos entre
os Urubu-Kaapor, sugeriu que a alta biodiversidade amazônica é um efeito das formas de manejo das
populações indígenas atuais e pré-colombianas, em especial dos sistemas itinerantes de agricultura de
corte e queima (coivara). Esse modo agrícola de cultivar a terra tem como pilar o uso do fogo e o pousio,
isto é, um lapso temporal em que, após a colheita, as roças são abandonadas, o que exige a circulação por
outras áreas e a abertura constante de clareiras para o plantio. Pesquisas subsequentes nessas áreas,
combinadas com a arqueologia, reuniram dados robustos que nos permitem concluir que boa parte das
florestas amazônicas têm origem antrópica, ou seja, são efeito de ações humanas. Assim também, a
afamada “terra preta de índio” – solos altamente férteis (coisa rara na Amazônia) que estão ligados a
sítios arqueológicos – indica que essas manchas advêm da relação com ocupações humanas antigas.

Tais concepções científicas, assim como as de meus amigos wajãpi, chocam-se com uma ideia que
fundamenta políticas bastante arraigadas em nosso mundo: da Natureza como algo prístino,
necessariamente inconspurcado pela ação humana. A agenda conservacionista mais tradicional do Estado
se constrói por meio de cercamentos e afastamentos das populações humanas locais; opera, portanto,
com um princípio filosófico fundamentado em uma Natureza apartada da humanidade. Mais ainda, uma
humanidade cujo efeito característico no mundo não seria outra coisa que a diminuição e a erosão da
biodiversidade. Opera-se aqui com uma oposição diametral entre Natureza e Cultura, que não tem nada
de universal, conforme já demonstraram diversos estudos antropológicos. Além disso, a própria ideia de
humanidade deve ser situada e marcada, pois tampouco é um conceito universal.
A antropóloga Anna Tsing, trabalhando com florestas camponesas no Japão – as santoyamas –, nos relata
um esforço de conservação do governo, que cercou uma área e impediu qualquer atividade das
populações locais, inclusive as visitações. Tais florestas são famosas por abrigar uma iguaria de luxo – os
cogumelos matsutake, que crescem em consonância com carvalhos e outras espécies arbóreas. Contudo,
os matsutakes desapareceram por completo da santoyama cercada, e com a derrubada de árvores para
plantio e extração de lenha houve redução de outras espécies vegetais que crescem aproveitando as
interferências humanas que alteram o regime de luminosidade.
O que vemos na Amazônia e no Japão (e possivelmente em outras partes do mundo) são populações que
interferem de forma comedida nas dinâmicas ecológicas, de modo a implementar a diversidade e
propagar a vida. Mas se nosso conceito de “floresta antropogênica” ressalta a importância humana
nesses processos, em uma filosofia como a wajãpi – segundo a qual a humanidade não é uma condição
excepcional –, os saberes de seu povo enfatizam a atuação de uma série de entes (cutias, tucanos,
guaribas, ventos, espíritos e outras gentes) na emergência da floresta ao espalhar, plantar e cuidar das
sementes. Podemos dizer, assim, que os humanos são apenas atores, entre outros, de uma paisagem
multiespecífica. Não usufruímos de uma condição especial – pressuposto danoso que tem nos arrogado o
direito de tratar os demais viventes como recursos. Ailton Krenak, importante pensador indígena, nos
alerta em seus livros e falas sobre como o “povo da mercadoria” (expressão usada por Davi Kopenawa,
pensador yanomami, para se referir aos não indígenas) promove um rastro de morte ao emudecer e
objetificar o resto do mundo e seus habitantes: “Essa mentalidade estúpida, desse capitalismo que não dá
nem para chamar de selvagem, só pensa na exaustão dos recursos da natureza – que eles muito
apropriadamente chamam de ‘recursos naturais’ e, cinicamente, matam rios, montanhas, florestas com a
justificativa de que estão fazendo o desenvolvimento”. Mas é preciso lembrar que os povos indígenas não
vivem em comunhão com o que nós, “povo da mercadoria”, chamamos de Natureza. Devemos nos
afastar da ideia colonial de bom selvagem. É preciso ouvir as diversas filosofias dos povos originários, que
apontam para diferentes maneiras de se relacionar com a fauna, a flora e outras formas de vida.
Entre os Wajãpi, árvores e animais, assim como o solo e as águas, possuem o que eles chamam de ijarã, o
que traduzimos como “dono de”. Os donos têm muitas manifestações: assumem aparências humanas,
animais, vegetais e feições monstruosas. Eles estabelecem uma relação de cuidado com suas criaturas e
zelam por elas. O dono dos queixadas, por exemplo, mantém seus animais em currais, alimenta-os e cuida
de seus corpos quando feridos, e é ele quem os libera pelas matas, possibilitando que sejam caçados. Os
donos se enraivecem por diferentes motivos, mas sobretudo quando suas criaturas são machucadas.
Tomados de ira, os donos retalham aqueles que perpetraram atos violentos, enviando doenças. As tarefas
cotidianas de manutenção da vida comunitária nas aldeias, portanto, são atravessadas por receios e
cuidados para não despertar a raiva dos ijarã. O mundo é perigoso, há sempre o risco de vingança pela
forma como se caça, como se derruba uma porção de floresta, como se planta ou se colhe algo. Não
estamos diante de um estado idílico de comunhão pacata entre humanidade e natureza (numa típica
relação entre sujeito e objeto), mas, sim, próximos a um mundo regido por relações sociais (entre
sujeitos), no qual tensão e cuidado são os idiomas predominantes.
Há tempos o fazer etnográfico, a marca metodológica da antropologia, é fundado na imersão do
pesquisador numa vida comunitária outra. Aprender a pensar-viver com os outros acabou por conduzir
essa ciência centrada no anthropos por caminhos para além dele. A antropologia, por isso, teve que
entender de vacas – como nos mostra o clássico trabalho de Edward Evans-Pritchard entre os Nuer, povo
nilota do Sudão – e de inhames – como fez o autor inaugural do método etnográfico, Bronislaw
Malinowski, na obra Coral Gardens and their Magic (1935) –, saber sobre a ecologia das mandiocas e das
florestas tropicais, interessar-se por guaribas e espíritos, entre tantos outros entes não humanos que
tecem a vida com as comunidades com as quais trabalhamos.
Atualmente vivemos uma guinada teórica chamada de “etnografia multiespécie” ou “antropologia para
além do humano”, em que se enfatiza a necessidade de não compreender a humanidade em si mesma
como uma espécie. Completamente guiados pela interlocução com outras socialidades e filosofias, a
antropologia, essa ciência feita com os outros, acaba por se imiscuir nos pensamentos alteros,
reconhecendo a necessidade de voltar seu olhar para além do humano. Certas pensadoras feministas
foram importantes nessa trilha. Ao questionar o sujeito universal do conhecimento científico, elas
desvelam que o sujeito humano é um sujeito historicamente forjado como tal, ou seja: homem, branco,
euro-americano. Trata-se de uma posição parcial como todas as demais. Donna Haraway, em seu O
manifesto das espécies companheiras, se vale da noção de coevolução para demonstrar como nossa
ontogênese e nosso corpo é feito do encontro com outras espécies: o que seria de nossa vida sem as
miríades de bactérias que vivem em simbiose com nosso corpo? Como os cachorros nos moldaram? E as
plantas cultivadas, como nos sedentarizaram? “Jamais fomos humanos”, só há quimeras.
Voltar olhares para as florestas e compreendê-las como “cultas” – oriundas de uma relação com o cultivo
empreendido por diferentes sujeitos, e também por serem dotadas de algo que podemos chamar de
conhecimento – é um movimento que se alinha a esse esforço de descentrar o humano do foco de
análise, embora faça a antropologia ruir seus próprios alicerces. Em seu caráter antropofágico, a
antropologia tem sido uma ciência que opera por desestabilizações, sem medo de deslocar aquilo que a
define e de compor com tantos outros pensamentos.

Joana Cabral de Oliveira é professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social da Unicamp.
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(Ilustração: Reprodução/J. C. Mikan)

Muito se tem falado hoje em dia sobre o animismo. E mais, muito se tem falado sobre uma necessidade
de retomar o animismo – uma forma de responder ao projeto racionalista da modernidade, que
transformou o ambiente em algo inerte, opaco, sinônimo de recurso, mercadoria. Em tempos de
pandemia, constatamos que algo muito importante se perdeu na relação entre os sujeitos humanos e o
mundo que eles habitam, e isso estaria na origem da profunda crise que vivemos.
Animismo é, em princípio, um conceito antropológico, proposto por Edward Tylor, em Primitive
Culture (1871), para se referir à forma mais “primitiva” de religião, aquela que atribui “alma” a todos os
habitantes do cosmos e que precederia o politeísmo e o monoteísmo. O termo “alma” provém do
latim anima – sopro, princípio vital. Seria a causa mesma da vida, bem como algo capaz de se desprender
do corpo, viajar para outros planos e tempos. O raciocínio evolucionista de autores como Tylor foi
refutado por diferentes correntes da antropologia ao longo do século 20, embora possamos dizer que
ainda seja visto entranhado no senso comum da modernidade. A ideia de uma religião embrionária,
fundada em crenças desprovidas de lógica, perdeu lugar no discurso dos antropólogos, que passaram a
buscar racionalidades por trás de diferentes práticas mágico-religiosas.
Uma reabilitação importante do conceito antropológico de animismo aparece com Philippe Descola, em
sua monografia “La nature domestique” (1986), sobre os Achuar da Amazônia equatoriana. Descola
demonstrou que, quando os Achuar dizem que animais e plantas têm wakan (“alma” ou, mais
precisamente, intencionalidade, faculdade de comunicação ou inteligência), isso não deve ser
interpretado de maneira metafórica ou como simbolismo. Isso quer dizer que o modo de os Achuar
descreverem o mundo é diverso do modo como o fazem os naturalistas (baseados nos ditames da Ciência
moderna), por não pressuporem uma linha intransponível entre o que costumamos chamar Natureza e
Cultura. O animismo não seria mera crença, representação simbólica ou forma primitiva de religião, mas,
antes de tudo, uma ontologia, modo de descrever tudo o que existe, associada a práticas. Os Achuar
engajam-se em relações efetivas com outras espécies, o que faz com que, por exemplo, mulheres sejam
tidas como mães das plantas que cultivam, e homens como cunhados dos animais de caça.
Para Descola, a ontologia naturalista não pode ser tomada como único modo de descrever o mundo,
como fonte última de verdade. Outros três regimes ontológicos deveriam ser considerados de maneira
simétrica, entre eles o animismo. Esse ponto foi desenvolvido de maneira exaustiva em Par-delà nature et
culture (2005), no qual o autor se lança em uma aventura comparatista cruzando etnografias de todo o
globo. O animismo inverte o quadro do naturalismo: se neste último caso a identificação entre humanos e
não humanos passa pelo plano da fisicalidade (o que chamamos corpo, organismo ou biologia), no
animismo essa mesma identificação se dá no plano da interioridade (o que chamamos alma, espírito ou
subjetividade). Para os naturalistas, a alma seria privilégio da espécie humana, já para os animistas é uma
mesma “alma humana” que se distribui entre todos os seres do cosmos.
A ideia de perspectivismo, que autores como Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima atribuem a
cosmologias ameríndias, estende e transforma a de animismo. O perspectivismo seria, grosso modo, uma
teoria ou metafísica indígena que afirma que (idealmente) diferentes espécies se têm como humanas,
mas têm as demais como não humanas. Tudo o que existe no cosmos pode ser sujeito, mas todos não
podem ser sujeitos ao mesmo tempo, o que implica uma disputa. Diz-se, por exemplo, que onças veem-se
como humanas e veem humanos como presas. O que os humanos veem como sangue é, para elas,
cerveja de mandioca, bebida de festa. Onças e outros animais (mas também plantas, astros, fenômenos
meteorológicos) são, em suma, humanos “para si mesmos”. Um xamã ameríndio seria capaz de mudar de
perspectiva, de se colocar no lugar de outrem e ver como ele o vê, portanto de compreender que a
condição humana é partilhada por outras criaturas.
Como insiste Viveiros de Castro em A inconstância da alma selvagem (2002), a perspectiva está nos
corpos, conjuntos de afecções mais do que organismos. A mudança de perspectiva seria, assim, uma
metamorfose somática e se ancoraria na ideia de um fundo comum de humanidade, numa potencialidade
anímica distribuída horizontalmente no cosmos. Se o perspectivismo é o avesso do antropocentrismo, ele
não se separa de certo antropomorfismo, fazendo com que prerrogativas humanas deixem de ser
exclusividade da espécie humana, assumindo formas as mais diversas.
O livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu (2010), traz exemplos luminosos desses
animismos e perspectivismos amazônicos. Toda a narrativa de Kopenawa está baseada em sua formação
como xamã yanomami, que se define pelo trato com os espíritos xapiripë, seres antropomórficos que
nada mais são que “almas” ou “imagens” (tradução que Albert prefere dar para o termo utupë) dos
“ancestrais animais” (yaroripë). Segundo a mitologia yanomami, os animais eram humanos em tempos
primordiais, mas se metamorfosearam em seus corpos atuais. O que uniria humanos e animais seria
justamente utupë, e é como utupë que seus ancestrais aparecem aos xamãs. Quando os xamãs yanomami
inalam a yãkoana (pó psicoativo), seus olhos “morrem” e – mudando de perspectiva – eles acessam a
realidade invisível dos xapiripë, que se apresentam em uma grande festa, dançando e cantando,
adornados e brilhosos. O xamanismo yanomami – apoiando-se em experiências de transe e sonho – é um
modo de conhecer e descrever o mundo. É nesse sentido que Kopenawa diz dos brancos, “povo da
mercadoria”, que eles não conhecem a terra-floresta (urihi), pois não sabem ver. Onde eles identificam
uma natureza inerte, os Yanomami apreendem um emaranhado de relações. O conhecimento dessa
realidade oculta é o que permitiria a esses xamãs impedir a queda do céu, catalisada pela ação destrutiva
dos brancos. E assim, insiste Kopenawa, esse conhecimento passa a dizer respeito não apenas aos
Yanomami, mas a todos os habitantes do planeta.
Embora distintas, as propostas de Descola e de Ingold buscam na experiência animista um contraponto às
visões naturalistas e racionalistas, que impõem uma barreira entre o sujeito (humano) e o mundo. Como
propõe Viveiros de Castro, essa crítica consiste na “descolonização do pensamento”, pondo em xeque o
excepcionalismo humano e a pretensão de uma ontologia exclusiva detida pelos modernos. Contraponto
e descolonização que não desembocam de modo algum na negação das ciências modernas, mas que
exigem imaginar que é possível outra ciência ou que é possível reencontrar o animismo nas ciências. Tal
tem sido o esforço de autores como Bruno Latour e Isabelle Stengers, expoentes mais expressivos
dos science studies: mostrar que a ciência em ação desmente o discurso oficial, para o qual conhecer é
desanimar (dessubjetivar) o mundo, reduzi-lo a seu caráter imutável, objetivo.
No livro Sobre o culto moderno dos deuses “fatiches” (1996), Latour aproxima a ideia de fetiche nas
religiões africanas à ideia de fato nas ciências modernas. Um fetiche é um objeto de culto (ou mesmo uma
divindade) feito por humanos e que, ao mesmo tempo, age sobre eles. Com seu trabalho etnográfico em
laboratórios, Latour sugeriu que os fatos científicos não são meramente “dados”, mas dependem de
interações e articulações em rede. Num laboratório, moléculas e células não seriam simplesmente
objetos, mas actantes imprevisíveis, constantemente interrogados pelo pesquisador. Em seu
pioneiro Jamais fomos modernos (1991), Latour assume que fatos científicos são em certo sentido feitos,
e só serão aceitos como fatos quando submetidos à prova das controvérsias, isto é, quando conseguirem
ser estabilizados como verdades.
Isabelle Stengers vai além da analogia entre fatos (“fatiches”) e fetiches para buscar na história das
ciências modernas a tensão constitutiva com as práticas ditas mágicas. Segundo ela, as ciências modernas
se estabelecem a partir da desqualificação de outras práticas, acusadas de equívoco ou charlatanismo. Ela
acompanha, por exemplo, como a química se divorciou da alquimia, e a psicanálise, do magnetismo e da
hipnose. Em suma, as ciências modernas desqualificam aquilo que está na sua origem. E isso, segundo
Stengers, não pode ser dissociado do lastro entre a história das ciências e a do capitalismo. Em La
sorcellerie capitaliste (A feitiçaria do capitalismo, 2005), no diálogo com a ativista neopagã Starhawk,
Stengers e Philippe Pignarre lembram que o advento da ciência moderna e do capitalismo nos séculos 17
e 18 não se separa da perseguição às práticas de bruxaria lideradas por mulheres. Se o capitalismo,
ancorado na propriedade privada e no patriarcado, emergia com a política dos cercamentos (expulsão dos
camponeses das terras comuns), a revolução científica se fazia às custas da destruição de práticas
mágicas. Stengers e Pignarre encontram no ativismo de Starhawk e de seu grupo Reclaim, que despontou
na Califórnia no final dos anos 1980, um exemplo de resistência anticapitalista. Para Starhawk, resistir ao
capitalismo é justamente retomar (reclaim) práticas – no caso, a tradição wicca, de origem europeia – que
foram sacrificadas para que ele florescesse.
Retomar a magia, retomar o animismo seria, para Stengers, uma forma de existência e de resistência.
Como escreveu em Cosmopolíticas (1997), quando falamos de práticas desqualificadas pelas ciências
modernas, não deveríamos apenas incorrer em um ato de tolerância. Não se trata de considerar a magia
uma crença ou “cultura”, como fez-se na antropologia da época de Tylor e até pouco tempo atrás. Ir além
da “maldição da tolerância” é levar a sério asserções indígenas, por exemplo, de que uma rocha tem vida
ou uma árvore pensa. Stengers não está interessada no animismo como “outra” ontologia: isso o tornaria
inteiramente exterior à experiência moderna. Ela tampouco se interessa em tomar o animismo como
verdade única, nova ontologia que viria desbancar as demais. Mais importante seria experimentá-lo, seria
fazê-lo funcionar no mundo moderno.
Que outra ciência seria capaz de retomar o animismo hoje? Eis uma questão propriamente stengersiana.
Hoje vivemos mundialmente uma crise sanitária em proporções jamais vistas, que não pode ser
dissociada da devastação ambiental e do compromisso estabelecido entre as ciências e o mercado. A
outra ciência, diriam Latour e Stengers, seria a do sistema terra e do clima, que tem como marco a teoria
de Gaia, elaborada por James Lovelock e Lynn Margulis nos anos 1970. Gaia é para esses cientistas a Terra
como um organismo senciente, a Terra como resultante de um emaranhado de relações entre seres vivos
e não vivos. Poderíamos dizer que Gaia é um conceito propriamente animista que irrompe no seio das
ciências modernas, causando desconfortos e ceticismos. O que Stengers chama de “intrusão de Gaia”, em
sua obra No tempo das catástrofes (2009), é uma reação ou resposta do planeta aos efeitos destruidores
do capitalismo, é a ocorrência cada vez mais frequente de catástrofes ambientais e o alerta para um
eventual colapso do globo. Mas é também, ou sobretudo, um chamado para a conexão entre práticas não
hegemônicas – científicas, artísticas, políticas – e a possibilidade de recriar uma inteligência coletiva e
imaginar novos mundos.
O chamado de Stengers nos obriga a pensar a urgência de uma conexão efetiva entre as ciências
modernas e as ciências indígenas, uma conexão que retoma o animismo, reconhecendo nele um modo de
engajar humanos ao mundo, contribuindo assim para evitar ou adiar a destruição do planeta. Como
escreve Ailton Krenak, profeta de nosso tempo, em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), “quando
despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é
atributo exclusivo de humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade
industrial e extrativista”. Em outras palavras, quando desanimamos o mundo, o deixamos à mercê de um
poder mortífero. Retomar o animismo surge como um chamado de sobrevivência, como uma chance para
reconstruir a vida e o sentido no tempo pós-pandêmico que há de vir.

Renato Sztutman é professor do Departamento de Antropologia da USP e pesquisador do Centro de


Estudos Ameríndios da mesma universidade.

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