Você está na página 1de 16

TÖNNIES O R L A N D O D E M I R A N D A

Utopia, valor e contradição —


O objetivo destas páginas é reto-

mar um texto esquecido, “Marx,

Leben und Lehre” (1) (“Vida e Obra

de Marx”), publicado por Ferdinand

Tönnies em 1921, do qual já apre-

sentei uma pequena resenha (2), e

aqui expor e eventualmente desen-

volver as linhas gerais de seus ar-

gumentos, em busca de proximida-

des e diferenças entre os dois auto-

res. O texto foi redigido quando o

autor, aos 65 anos, recém-saído da

profunda depressão que a guerra

mundial lhe provocara, encontra-

va-se no apogeu da popularidade


Karl Marx com intelectual e representava um acer-
as filhas (Jenny,
to de contas com Marx, de quem se
Laura e Eleonor)
e Engels considerava devedor.

É sabido que Tönnies era conside-


ORLANDO
DE MIRANDA rado pela ortodoxia marxista como
é professor
do Departamento anticomunista e “romântico” por se
de Sociologia da
FFLCH-USP.

184 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8
E MARX
alguns problemas da teoria marxista
opor à revolução bolchevique (que

não considerava uma revolução

proletária, mas apenas uma revolu-

ção nacionalista russa) e descrer das

transformações sociais através de

movimentos políticos violentos e

radicais (por outro lado, os conser-

vadores o descreviam como

“social-democrata perigoso” por

seu anticapitalismo e a defesa assu- 1 “Marx, Leben und Werk”,


Jena, K. Nötzel, 1921.
mida dos trabalhadores; e os libe-
2 “Vida e Obra de Ferdinand
Tönnies”, São Paulo, FFLCH-
rais viam nele um “pessimista re- USP, 1995, pp. 110-6.

3 De fato, entre 1878 e 1880,


trógrado”. Na opinião de Tönnies, quando Tönnies pesquisava
a vida de Hobbes no Museu
essa condenação quase unânime dos Britânico, avistou várias ve-
zes Marx trabalhando em me-
sas próximas. Todavia, o jo-
políticos era apenas mais uma das vem Tönnies viajava financia-
do por um tio que lhe exigi-
ra, como condição, que ja-
“anedotas” que percorriam sua vida). mais procurasse “aquele ho-
mem perigoso”, e por isso,
De fato, não ter conhecido pessoal- absteve-se do contato. Mais
tarde, com outra fonte de
recurso, voltou a Londres
mente Marx era uma das frustra- (1884), mas Marx havia fale-
cido e teve que se contentar
com várias entrevistas com
ções expressas de Tönnies (3). E Engels. O episódio é narrado
pelo próprio Tönnies (“A Fi-
losofia Alemã Atual em Mi-
nas suas palavras, a relação entre nhas Memórias”, in R.
Schmidt (org.), Die Philosophie
ambos não continha nenhuma am- der Gegenwart, Leipzig, 1922)
que a propósito não escon-
dia sua decepção.

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 185
bigüidade. Desde a publicação de Comuni- analisar a história do que a buscar resolvê-
dade & Sociedade (1887) (4) declarava a la. Para Marx, como para muitos dos seus
importância de Marx, o analista que lhe te- contemporâneos racionalistas, o século
ria desvendado as características do capi- XIX coroa a história e desemboca na reali-
talismo, permitindo-lhe fundamentar a te- zação da humanidade. Essa concepção de
oria da sociedade. Compartilhava com patamar da história, de século definitivo,
Marx as expectativas em relação ao prole- implica a ausência de uma prospecção
tariado (5), a visão metodológica do mun- mediadora e acaba por incluir na obra ele-
do manifestando-se “plenamente de acor- mentos díspares, quando não contraditó-
do com o princípio básico da concepção rios, confundindo ou invalidando certas
materialista da história” (6) e elogiava sua análises e conclusões.
postura analítica, pois, “seguindo o modo Tönnies concorda com Marx na prima-
dos astrônomos e a ação dos verdadeiros zia das formas econômicas para a análise e
pensadores científicos, Marx sempre se diagnósticos das coletividades humanas,
concentra em descobrir e constatar para os bem como sobre a inutilidade de se lhe opor
fatos e movimentos aparentes, quais os fa- “devaneios” idealistas. Escreveu que “Marx
tos e movimentos reais” (7). Numa pala- estava certamente com a razão quando afir-
vra, considerava-o fundamental, pois, como mou que a ‘base materialista’, ou seja, a
homem e como pensador, estaria sempre compreensão do desenvolvimento econô-
“unindo a luz à sua própria luz” (8). mico, merece profundo estudo objetivo para
Essa admiração expressa, todavia, não que se possa agir sobre a realidade. Conti-
faz de Tönnies um apóstolo. O texto de nuava ainda correto ao ironizar a fase revo-
4 O subtítulo da 1a ed. de C&S “MLL”, além do esboço biográfico que lucionária de Most, considerando ridículo
(“Formas Culturais Empíricas compõe a primeira parte, contém cinco ca- e reacionário o ‘jogo da fantasia’ dos pri-
do Socialismo e do Comunis-
mo”) era desde logo uma alu- pítulos analíticos, quatro deles praticamente meiros utopistas sobre a futura estrutura
são a Marx. Embora o traba-
lho tivesse se originado de uma
constituindo um fichamento de O Capital, social. Reconheceu o perigo dos devaneios
preocupação diferente (a dis- que procura dominar em sua complexida- e da não-política que geralmente caminham
cussão sobre o direito históri-
co e natural), seu desenvolvi- de. O último capítulo, reserva-o à crítica, de mãos dadas, de modo debilmente vaido-
mento expressava a ambição que já não tem como referência necessária so e carregado de sensualidade sentimen-
de articular no plano da cultu-
ra o mesmo trabalho que Marx a obra principal de Marx. Pode-se assim, tal” (9). Todavia, o econômico explica, mas
lhe significara no campo eco-
nômico n’O Capital. Na 2a edi- grosso modo, distinguir uma crítica a Marx não determina senão nos termos de sua pró-
ção de C&S (1912), por moti- (o quinto capítulo) e uma parte principal pria lógica. E a limitação de Marx seria pre-
vos metodológicos o subtítulo
foi alterado para “Tratado de em que a interpretação de O Capital home- cisamente a de, tendo percebido a lógica
Sociologia Pura”, e em nota
agregada Tönnies lamenta que
nageia Marx preservando-o da visão esta- imanente ao capitalismo, aplicá-la modelar
à época da redação de C&S “as belecida pelos marxistas vulgares e procu- e diretamente à teoria da transformação so-
conclusões do sistema marxis-
ta” ainda não fossem bem co- rando aprofundar algumas questões dali cial. Em outros termos, o Marx dos anos 40,
nhecidas (de fato, o 3o volume advenientes. tempos de “tempestade e fúria” (a expressão
d’O Capital sequer fora publi-
cado). A propósito se poderia Talvez se possa resumidamente, em um é de Tönnies), ao mesmo tempo em que
citar, dentre outros, meu Para
Ler Ferdinand Tönnies (São Pau- jargão contemporâneo, externar os funda- assume uma proposta e uma militância par-
lo, Edusp, 1995), onde essa dis- mentos críticos com que Tönnies se refere tidária, ao romper com Proudhon elabora os
cussão aparece desenvolvida
em alguns textos, e a citação a Marx: Eric Hobsbawn descreveu o sécu- princípios de uma Economia Política e apli-
de C&S encontra-se à p. 271.
lo XIX como um “longo século”. Contu- ca diretamente uma coisa sobre a outra. Para
5 “Minhas esperanças as colo- do, mais que isso, tem-se a impressão de Tönnies, conquanto corretas ambas as ativi-
co somente na internacio-
nalidade dos movimentos de que muitos dos que nele efetivamente vi- dades, não haveria entre uma e outra uma
trabalhadores” (F. Tönnies, veram perceberam-no como um século relação simétrica e automática de causa e
“Introdução à Sociologia,
1931, e.p.). permanente. Os “avanços” da racionali- conseqüência.
6 “MLW”, op. cit., p. 141. dade ilustrada e sua penetração na políti- As formas econômicas têm valor diag-
ca, a revolução industrial, técnica e cien- nóstico, mas não terapêutico. Explicam a
7 Idem, ibidem, p. 126.
tífica refletem em boa parte da produção lógica de uma sociedade dada, mas não a
8 Idem, ibidem, p. 145. filosófica e acadêmica como uma sensa- superam. Tönnies considerava Marx o
9 Idem, ibidem, p. 140. ção de urgência que a levava menos a maior e melhor analista do capitalismo,

186 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8
contido entretanto pelo próprio modo capi- ‘fim definitivo’ das classes, o fim da ‘últi-
talista de pensar ou, se preferível a expres- ma’ forma antagônica do processo de pro-
são, pela racionalidade intrínseca ao pró- dução social. A previsão de Marx de que a
prio sistema analisado. Assim, et pour cau- estrutura social atual representaria a pré-his-
se, as prospecções marxistas contaminam- tória da humanidade é, em conseqüência,
se e expressam lacunas, incompletudes e falsa. Nesse ponto surge para Marx a visão,
equívocos com referências ao materialis- a crença utópica cujo caráter é primordial-
mo, à história, à dialética, à teoria do valor mente o de uma fé religiosa, e de modo al-
e à formulação das utopias. gum um pensamento científico” (13).
Tönnies seria acusado, e de forma irres- A recuperação do materialismo histó-
ponsável, por Lükacs (10), de se constituir rico implicaria precisamente reconhecer,
em um “subjetivista-irracionalista”. Em além da estrutura econômica, o plano da
outro contexto, e de forma mais elegante, é história, dos valores e fenômenos cultu-
precisamente uma crítica análoga que rais, e Tönnies propõe uma correção em
Tönnies dirige a Marx. Considera (desde um conhecido aforismo de Marx: “a fra-
C&S) que as manifestações materiais e se: ‘a existência social do homem deter-
concretas pelas quais os homens isolados mina a sua consciência, e não o contrá-
ou em coletividades se expressam dão-se rio’ deveria ser modificada para anunci-
no plano pessoal pela intervenção das von- ar que ‘o ser determina mais forte e ime-
tades e no plano social pelos valores cons- diatamente a consciência do que o con-
tituintes das formas culturais. Vontades e trário” (14) pois
valores culturais, opostos e subsistentes em
contradição dialética (11), determinam a “a vida popular é fundamentalmente inde-
dinâmica humana e animam as transfor- pendente das configurações do plano polí-
mações sociais. Conformam, por conse- tico e espiritual, e só necessita para sua
guinte (e contraditoriamente), o plano onde existência do controle dos instintos e mo-
o homem é sujeito e constrói sua história tivos dinâmicos fundamentais que definem
nos limites que lhe são proporcionados. a convivência como tal: ela é relativamente
Assim, valores e vontades existem concre- independente, como a vida vegetativa do
tamente, definem os limites e condiciona- organismo do mamífero é relativamente
mentos de cada momento, determinando- independente dos órgãos motores e 10 Tratei especificamente des-
lhe os possíveis, e devem estabelecer-se sensores. A vida social geral é, no entanto, se assunto, e do texto de
Lükacs, “Assalto à Razão”, em
como o fundamento mesmo de uma análise a vida econômica. Através do costume, do meu texto “O Conceito de
Racionalidade em Ferdinand
materialista da história. direito, do poder de dominação, se Tönnies” (PLFT, op. cit., pp.
Ora, na medida em que se aplica uma condiciona; mas estes se voltam para os 143-62).

teoria e um diagnóstico econômico a uma costumes dessa vida social geral, nascem 11 Tal fenômeno não é aleató-
proposta de transformação política radical, das suas necessidades. Também a vida es- rio ou produto da subjetivi-
dade humana, mas se deve à
estar-se-ia precisamente propondo a cons- piritual é isso” (15). “Dialética da Identidade”,
como procurei sintetizar em
trução da história, escamoteando o plano artigo com esse título (PLFT,
onde ela se realiza. Tal análise ou suporia Na terminologia de Tönnies, explicita- op. cit., pp. 61-72).

uma determinação absoluta e mecânica do se que a organização econômica predomi- 12 O que de imediato recorda a
infeliz passagem da “Sagrada
econômico sem resíduo de autonomia para nante caracteriza uma coletividade e intro- Família” em que o proletari-
aqueles que deveriam se constituir nos agen- duz por suas instituições e valores formas ado produzirá a revolução
mesmo que este não seja o
tes históricos (12) ou pressuporia nesses de condicionamento aplicáveis à coletivi- desígnio de qualquer deles,
últimos a possibilidade de uma compreen- dade em geral (o modo capitalista de ser e ou então a anedota do co-
munista no bar, que dizia: “se
são dos fatos e uma ação inteiramente racio- pensar caracterizaria uma sociedade con- a revolução vem mesmo,
para que apressá-la? Vamos
nais, com o que seriam eles próprios “ho- temporânea). Todavia, o povo (palavra que tomar mais uma”.
mens do capitalismo”. A primeira vertente define grupos culturais particulares) reage
13 “MLL”, op. cit., p. 143.
é mecanicista e a segunda idealista. a isso por seus próprios valores e mecanis-
14 Idem, ibidem, p. 141.
Uma revolução montada em tais bases mos. Tais conceitos, aplicados à luta de clas-
não poderia significar de nenhum modo “o ses, a definiriam não apenas como o confli- 15 Idem, ibidem.

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 187
to pela posse ou propriedade dos meios de do, civilização, são valores de expressão
produção, mas como a reação proletária ba- societária; ao passo que companheirismo,
seada nos valores contidos nas comunida- pensamento, responsabilidade, comunhão,
des operárias contra a difusão dos valores povo, cultura, designam valores comunitá-
expressos pela sociedade capitalista (16). rios. Dessa forma, sendo os valores expres-
Sem a compreensão de tal mediação, a sões de vontades (pessoais), tanto quanto
afirmação vitoriosa dos valores do capita- condicionamentos da vida coletiva, uma
lismo, ainda que em nome de uma revolu- transformação do caráter da coletividade
ção proletária, longe de resolver os confli- (a passagem do capitalismo ao comunis-
tos e crises, representaria a perda da auto- mo, ou, na terminologia de Tönnies, da
nomia cultural, o colapso da cultura e a sociedade à comunidade) implicaria a pré-
introdução da sociedade de massas. Do via realocação dos valores na escala social
modo como Marx expõe, “não vê o fato de e pessoal, de onde a importância da cultura
que tais contradições insolúveis e incurá- e do povo que a faz e reproduz para o senso
veis também são a morte de uma cultura, da comunitário, e da moral decorrente entre
vida do povo espiritualizada em comuni- os valores pessoais.
dades. Simultaneamente, pode aliás ocor- Por isso, recriminando Marx por tê-lo
rer o desenvolvimento de uma cultura mais esquecido, escreve:
jovem a partir da mais velha, desde que se
coloque a necessidade para tanto, cuja con- “Em todo ser humano normal mora uma
dição fundamental não é a vitória de novas consciência moral, mesmo que às vezes só
forças de produção, de novas técnicas ou a pouco desenvolvida ou oculta por sob as
ditadura de uma classe, mas o erguer-se de dobras da religião. E essa consciência moral
novos homens, de novos povos e a abertu- é uma arma que se torna mais potente na
ra, para estes, de novo chão” (17). luta contra situações injustas, contra as cru-
A proposição de Tönnies funda-se em eldades das civilizações, doenças da hu-
que seu princípio dialético não é nem a luta manidade e o desejo por infra-estrutura mais
de classes, nem a exploração do homem digna, pois que esses pensamentos não se
sobre o homem, cuja ocorrência histórica prendem de forma alguma a uma classe;
derivaria da contradição fundamental estes dependem muito mais do estado na-
imanente à vida social entre a identidade tural do espírito e do caráter, da influência
do homem consigo mesmo (identidade de educadores e professores, do lido e do
pessoal ou abstrata) e com sua coletividade ouvido, da compaixão e da sabedoria, en-
(identidade coletiva ou concreta), de onde fim, da formação moral como um todo mais
a formação histórica e contraditória seja do que da consciência da própria miséria,
das vontades (a nível pessoal) seja das for- do ressentimento sobre isto e sobre a situ-
mações mais ou menos comunitárias ou ação infeliz dos companheiros” (18).
societárias. A referência entre as pessoas,
famílias, “povos” (grupos culturais homo- Outro aspecto onde o século definitivo
gêneos) e formações mais amplas, encon- colocando-se como patamar da humanida-
tra-se mediada pelos valores, eles próprios de introduz elementos deletérios à análise
expressões ou representações da contradi- marxista diz respeito à utopia, à efetivação
ção fundamental. Dessa forma, tais valores da sociedade comunista. De fato, trata-se
16 Destacando-se apenas que
pela presença das vontades podem ser unitários (congregando a pes- de categoria com tripla função na análise
introduzindo um conteúdo soa ao grupo) ou fragmentários (expres- marxista: faz parte de um projeto político
contraditório em ambas as
coletividades, o conflito não sando uma qualidade individual que a dife- em que constitui o objetivo estratégico;
se esgotaria em uma luta de
uma contra a outra, senão rencia e separa). A vigência hegemônica resulta da “luta dos contrários” e a dissol-
também no conflito de cada de tais ou quais valores numa coletividade ve, consolidando uma teoria da história; e
uma consigo mesma.
qualquer esclarece seu caráter comunitário desempenha papel metodológico como sín-
17 “MLL”, op. cit., p. 142. ou societário. Assim, por exemplo, indiví- tese do processo de contradições que con-
18 Idem, ibidem, p. 144. duo, razão, liberdade, competição, Esta- figuram a dialética materialista.

188 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8
Os três elementos tomados como o humanidade mais nobre?” (21).
mesmo implicariam fortes ambigüidades e O argumento que Tönnies utiliza com
contradições, e, nesse ponto, Tönnies que muita ênfase, aliás introduzindo as últimas
já classificara as previsões marxistas de conclusões de seu texto, é que o proletaria-
“falsas” é especialmente severo, descreven- do, durante toda a obra de Marx, fora apre-
do-a como “grave erro lógico”. sentado como sujeito da história, senhor do
O mecanicismo da teoria da história já seu destino. E o projeto comunista retira-
parece suficientemente documentado e lhe precisamente essa condição, limita e
analisado. Toda a história nos aparece como bloqueia a atividade criadora que deveria
uma satânica combinação “dialética” entre promanar do sujeito. A utopia consagrada
exploração e alienação denominada “de- passa a negar ao sujeito qualquer ação real,
senvolvimento das forças produtivas” que senão aquela que deva conformá-lo ao des-
“a etapa superior da dominação”, o capita- tino pré-traçado. Que sujeito seria esse em
lismo, permite desvendar e, feita à luz, re- que mesmo a consciência somente seria
solver, devolvendo a humanidade ao Éden mensurável pelo seu grau de adesão a um
de onde nunca deveria ter saído. Na ex- projeto preexistente? Recusada à humani-
pressão de um crítico autorizado, “com dade e ao proletariado a autonomia para
Marx, somos colocados em presença de decidir os próprios passos, eliminada a
uma mudança que segue um curso inelu- perspectiva de construir e reconstruir a
tável, mas o seu motor é de tal natureza – cultura em suas formas concretas de estatuir
o desenvolvimento das forças produtivas valores e organizar a sociedade, tudo con-
– que não somos capazes de ver como é formado a um projeto adrede elaborado,
que uma formação social pode resistir a não restaria uma utopia humana, nem a
ele, conservar-se ao abrigo de seus efei- realização de uma classe, mas tão-somente
tos, instalar-se, por uma duração indeter- o autoritário produto do imaginário de um
minada, na estagnação” (19). só homem.
Tönnies, que não vê como se possa in- Nessa parte, resta ainda a utopia como
troduzir no materialismo histórico o proje- síntese metodológica, a resultante dialéti-
to de destruir a história (ao menos, tal como ca da luta dos contrários. Tönnies não a
se a conhecia) e através de uma construção aborda diretamente. Para chegar à dialéti-
ideal, produto da imaginação de Marx e ca, estabelece um percurso na trajetória
Engels, é rigoroso: “O fato de Marx haver filosófica de Marx, onde “a separação de
vinculado suas concepções econômicas a Hegel significa uma volta para o pensa-
uma forte influência partidária fez com que mento predominante no século XVIII, a que
predominassem pré-conceitos e pressupos- Kant também permaneceu, em conteúdo,
tos que deveriam estar ausentes no verda- fiel. Seus princípios básicos são científi-
deiro pensamento teórico” (20). Mas con- cos: constitui uma negação da concepção
centra suas atenções nos outros aspectos da de mundo mitológico-ingênua e teológica.
utopia. O século XIX o reassume, o enriquece com
Como projeto político, assinala tratar- a noção do vir-a-ser e do desenvolvimento
se de uma proposta tanto simpática quanto orgânico formulada nessa época como sua
contraditória: “Mesmo quem não compar- principal característica” (22). Marx procu- 19 Claude Lefort, As Formas da
tilhe com Marx dessa crença no futuro, não ra “desvendar uma regulamentação natural História, São Paulo, Brasilien-
se, 1979, p. 39.
renunciará à impressão simpática dessas do desenvolvimento humano” (23), proce-
considerações […] Se, porém, um desen- dendo de modo análogo ao que fizera 20 “MLL”, op. cit., pp. 143-4.

volvimento humano não é só desejado, mas Schopenhauer (24). 21 Idem, ibidem, p. 143.
também previsto e acreditado, por que Marx Quanto à dialética, fundamental pela 22 Idem, ibidem, p. 119.
recusa participação aos trabalhadores so- “noção de síntese que implica reconstru-
23 Idem, ibidem, p. 120.
cialistas e a possibilidade de se animarem ção e renovação, também descrita como a
por esse objetivo ético maior, transforma- 24 Idem, ibidem, p. 122.
negação da negação” (25), Tönnies mani-
rem em sua a esperança e o desejo de uma festa certa perplexidade: 25 Idem, ibidem, p. 125.

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 189
“Não se poderia afirmar que uma ou outra
concepção, da negação e da síntese, sejam
exatamente incompatíveis entre si, mas da
sua ambigüidade e da sua diferença, Marx e
Engels não tomaram a devida consciência,
pois se o fizessem, teriam deixado vestígios
dessas tentativas de unir os conceitos. Nun-
ca se torna realmente claro se a propriedade
privada no geral ou a propriedade privada
capitalista; se a produção simples de merca-
dorias ou somente a produção capitalista de
mercadorias são as formas alienantes em que
as relações sociais das pessoas apresentam-
se travestidas em relações sociais entre coi-
sas, os produtos do trabalho” (26).

Talvez uma comparação entre as duas


metodologias dialéticas possa ser mais
esclarecedora. Em Tönnies a dialética de-
riva da natureza social do homem e sua
capacidade de intervir na cultura, e funda-
menta-se na contradição identitária, que se
expressa a nível pessoal pela tensão das
vontades (kürwille e wesenwille) e na cole-
tividade pelas tensões entre a comunidade
e a sociedade, concretamente sob a media-
ção dos valores incidentes e relativos a cada
formação social e pessoal. Toda a história
é produto de tais tensões e não pode se es-
gotar senão com a renúncia a toda caracte-
rística de vida social tal como a conhece-
mos. As sínteses expressam-se assim ape-
nas como figuras lógicas, que implicariam
a realização absoluta de um dos vetores em
tensão. De um lado, a totalização ou desdo-
bramento máximo do conceito de comuni-
dade configura-se na noção de humanida-
de (onde todos os homens são o mesmo);
de outro, o nada (não apenas o não-ser), o
desenvolvimento máximo do conceito de
sociedade, implica a plenitude da noção de
indivíduo (como unidade inteiramente au-
tônoma). Assim, todos os níveis são
dialéticos e contêm as contradições. A afir-
mação e a negação poderão ser tomadas
indiferentemente como pessoas e coletivi-
dades (ou vice-versa) com as contradições
presentes em ambas e se manifestando en-
tre elas (no que consiste, nunca é demais
relembrar, a produção da cultura). A sínte-
se maior, por se constituir apenas em ter-

190 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8
mos lógicos, resguarda também em si as
contradições expressas na antinomia indi-
víduo-humanidade. Ou a síntese lógica não
é um vir-a-ser, e as sínteses históricas (ou
a própria história) resumem-se em um
rearranjo das contradições pelas alterações
dos valores hegemônicos. Não parece, por-
tanto, cabível uma noção tal como a da
negação da negação.
Em Marx, a dialética decorre da propri-
edade e da dominação do homem pelo ho-
mem que os iluministas atribuíam à pró-
pria natureza da vida social. Seria, como
diz Rousseau, que “desde o instante em que
o homem teve necessidade de recorrer a
um outro, desde que se apercebeu que era
útil a um só armazenar provisões paras dois,
a igualdade desapareceu, a propriedade se
introduziu, o trabalho tornou-se necessá-
rio” (27). Marx, como Tönnies, não admite
um “homem natural” (28), pré-social, mas
ao contrário de Tönnies, para o qual a dia-
lética identitária é uma característica da vida
social, para Marx trata-se de um seu produ-
to. Implica um estágio ou uma relação so-
cial anterior, as “comunidades primitivas”,
às quais, portanto, a dialética não se aplica
e que se constituem literalmente em soci-
edades “sem história”. “Como a comuni-
dade – que não é aqui um produto ‘de fato’
da história, mas algo de que os homens
têm consciência como tal – tem portanto
uma origem, temos portanto a condição
prévia da propriedade da terra, vale dizer,
da relação do sujeito que trabalha com as
condições naturais de seu trabalho como
algo que lhe pertence” (29). Ou, em ou-
tros termos:
26 Idem, ibidem, p. 126.
“A fórmula ‘capital’, em que o trabalho vivo
27 J.-J. Rousseau, Oeuvres Com-
se apresenta numa relação de não-proprie- pletes, Livro III, p. 171; cf.
dade relativamente à matéria-prima, aos Nisbet, “La Tradition
Sociologique”, op. cit., p. 69.
instrumentos e meios de subsistência ne-
28 Em Tönnies, essa posição
cessários durante o período de produção, constitui o cerne de sua crí-
implica, em primeira instância, a não-pro- tica a Hobbes (cf. “Thomas
Hobbes. Os Elementos da Lei
priedade da terra; isto é, a ausência de um Natural e Política”, Londres,
1889, 226 p. reimp. 1970, e
estado em que o indivíduo trabalhador con- “Vida e Obra de Hobbes”,
sidere a terra, o solo, como seu próprio e o Stutgart, 1896).

trabalho como seu proprietário […] esta 29 K. Marx, Formações Econômi-


situação histórica é a que, em primeiro lu- cas Pré-Capitalistas, Rio de Ja-
neiro, Paz e Terra, 1977, p.
gar, é negada pela relação de propriedade 70.

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 191
mais completa implícita na relação do tra- da totalização, desprovida de movimento
balhador com as condições de trabalho pois que nada há fora dela, não tem para
como capital. Esta é a situação histórica onde dirigir-se (33). Claro que, como
número um, negada no novo relacionamen- Lükacs explicitou polemizando com Sartre,
to, ou pressuposta como tendo sido dissol- admite-se o movimento em seu interior, mas
vida pela história” (30). movimento delimitado como o trecho que
Marx esclarece em um todo harmônico, e
Não há um homem natural, mas uma sorte portanto de modo nenhum um continente de
de “comunidade natural”, de onde a história contradição. Em Hegel, a essência dirige-se
se desenvolve a partir de uma ruptura entre ao conceito carregada de contradições. Em
homem e natureza, e onde o homo eco- Marx, da tarefa incumbe-se o proletariado
nomicus aparece como seu próprio vilão, (a classe operária), que se afirma e se nega
com o que, inclusive, o comunismo só pode- em sua relação com a totalidade.
ria se realizar ao final da carência, isto é, no Resta ainda um terceiro elemento, a
mundo da abundância (o que certamente afirmação – em Hegel o ser (o mundo ob-
reproduz um mito da revolução industrial). jetivo), em Marx a burguesia (ou o mundo
E a dialética configura-se como um produto mitificado):
histórico que é a própria história.
Determinada a vigência da dialética, “Em primeiro lugar, vemos que as forças
pode-se passar a sua constituição. Marx, produtivas aparecem como forças totalmen-
lui même, declarou estar colocando de pé o te independentes e separadas dos indiví-
que Hegel construíra de cabeça para baixo. duos, cujas forças são aquelas, existem dis-
Seguindo a metáfora geométrica, pode-se seminados e em contraposição uns com os
considerar que, qualquer que seja sua posi- outros, ao passo que essas forças são reais
ção no espaço, uma figura permanece a e verdadeiras no intercâmbio e na coesão
mesma, e portanto verificar se as noções do desses indivíduos […] Por outro lado, a
idealismo hegeliano não se apresentam si- estas forças produtivas confronta-se a mai-
métricas às do materialismo marxista. oria dos indivíduos, de quem essas forças
Desde logo não parece que todos os se desgarraram e que, portanto, despojados
níveis da dialética hegeliana sejam verda- de todo conteúdo real de vida, converte-
deiramente dialéticos. O conceito, síntese ram-se em indivíduos abstratos, e, por isso
idética hegeliana, que corresponde à ver- mesmo, só então se vêem postos em condi-
dade e à harmonia, certamente não é e se- ções de relacionar-se uns com os outros
quer expressa um movimento, contraditó- como indivíduos” (34).
rio ou não. Está, a priori, posto. Em Hegel,
é a essência que se dirige ao conceito car- Em Hegel, o ser reverbera sobre a es-
regando as contradições precisamente para sência que o reflete. E é essa reflexão da
solvê-las. Cabe perguntar se em Marx isso essência colocando o ser como seu outro
se modifica. Ao conceito, a síntese que implica a contradição. Ou seja, o ser
hegeliana, corresponde a totalidade mar- apresenta-se à essência com um movimen-
30 Idem, ibidem, pp. 93-4.
xista com a realização da utopia. Como pode to de saltos, onde a essência estabelece a
31 K. Marx, Miséria da Filosofia, contradição. Poder-se-ia dizer que, num
São Paulo, Global Editora,
esse nível supremo postular-se dialético,
1984, p. 99. se é o “momento real da emancipação e da sentido dialético, o ser só o é quando a
32 Idem, ibidem, p. 87. retomada de si do homem” (31), “verda- essência o torna. Parece similar a posição
deira solução do antagonismo entre o ho- do proletariado diante do mundo mítico da
33 A respeito de Hegel, tal argu-
mento encontra-se desenvol- mem e a natureza, o homem e o homem, burguesia que sobre ele reverbera. E do
vido em G. R. G. Mure, A Study
of Hegel Logic, Oxford,
[…] existência e essência, objetivação e mesmo modo como a essência coloca-se
Clarendon Press, 1966, espe- afirmação de si, liberdade e necessidade, em oposição ao ser e conduz tal contradi-
cialmente as fls. 351-4.
indivíduo e gênero” (32)? Como pode ser ção ao conceito, o proletariado age sobre o
34 Marx e Engels, Ideologia dialético o momento de superação da dia- mundo mitificado do qual se distingue, para
Alemana, Barcelona, Grijalbo,
1972, p. 78. lética? De modo análogo a Hegel, trata-se completar o movimento na direção da tota-

192 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8
lidade, constituindo as duas formas da cons- construção filosófica que, por sua dinâmi-
ciência de classe. ca, hoje é comumente entendida como a
Enfim, se em Hegel só há um nível ver- Economia Política ‘clássica’. Tratando-a
dadeiramente dialético – a essência (35) –, seriamente como ciência, Marx a diferen-
também em Marx é possível que toda a cia de forma precisa da ‘economia vulgar’,
dialética esteja contida unicamente no pro- sua forma banalizada. Os primeiros teóri-
letariado. E as categorias provenientes da cos reconhecidos foram os economistas
tensão posta pela consciência no mundo ingleses, Adam Smith e David Ricardo,
mitificado, como a “alienação” (é o que cujos antecessores seriam os fisiocratas
Tönnies nota na referência ao fetiche), são franceses. Mas Marx lhes atribui outra ori-
de complexa operacionalização. gem, considerando como seu fundador
De todo modo, o que cabe estabelecer outro inglês: William Petty. Em síntese, a
nessa abordagem é que Tönnies e Marx ‘economia nacional clássica’ conclui que o
divergem quanto ao preciso significado do bem-estar amplia-se sob a regência da li-
materialismo histórico, pois para o primei- berdade de comércio interior e exterior,
ro não há modo de uma abordagem direta sendo a interior – a livre concorrência – o
do real senão através dos conceitos-valo- fator fundamental na distribuição do ‘pro-
res que os representam e que constituiriam duto anual’. E em conseqüência, a distri-
parte do mundo concreto; como também buição entre as três grandes classes de ren-
quanto à concepção dialética, para Tönnies da ocorre a partir de sua participação na
intrínseca à vida social e abrangendo todos produção” (38).
os seus níveis, e para Marx constituindo ela
própria um produto histórico, onde o pro- Destaca a importância do trabalho de
letariado é seu único agente real. conservar e recuperar os economistas clás-
Até aqui, enfatizaram-se as diferenças sicos esquecidos, que eleva à categoria ci-
entre os dois autores alocados em correntes entífica, em perfeita consonância com a
próximas, tais como Tönnies as explicita tradição marxista:
no 5o capítulo de “MLL”, ou como produto
de minha própria interpretação. Evidente- “O socialismo moderno, qualquer que seja
mente, divergências conduzem tanto a con- a sua tendência, na medida em que arranca
clusões como a modelos analíticos bastan- da economia política burguesa, subscreve,
te diversos, e projetam-se sobre a interpre- quase sem exceções, a teoria do valor de
tação de O Capital a que Tönnies se dedi- Ricardo. Dos dois postulados estabeleci-
cara nos quatro primeiros capítulos, consi- dos por Ricardo, em 1817, nas primeiras
derando-o como a “obra” de Marx, já que páginas dos seus ‘Principles’: 1o) o valor
“a obra de vida é verdadeiramente somente de toda mercadoria é determinado única e
uma fração” (36), e que deveria ser apreen- exclusivamente pela quantidade de traba-
dida deixando-se de lado os outros lho necessário para produzi-la e 2o) o pro-
posicionamentos do autor, suas crenças e duto de todo trabalho social é dividido en-
sonhos derivados por exemplo da Comuna tre três classes: os proprietários fundiários
35 A análise de Hegel baseia-se
de Paris, que lhe constituiriam “parte da (renda), os capitalistas (lucro) e os operá- nos textos de Rosen
Menahen, especialmente o
psicologia e, como se pode dizer, da psico- rios (salários) – desses dois postulados, a artigo “Identité, Difference et
logia patológica do homem e pensador partir de 1821, na Inglaterra, extraíram-se Contradiction Dialetiques
Selon Hegel” (in Journal of the
Marx, mas não da compreensão certa e deduções socialistas e com um vigor e de- History of Philosophy, vol. 23,
coerente da sua obra vital” (37). cisão tais que esta literatura, hoje quase fasc. 4, 1985, pp. 515-35).

Em princípio, procura estabelecer as esquecida e em grande parte recuperada por 36 “MLL”, op. cit., p. 117.
conexões de Marx com os economistas clás- Marx, não foi superada até a publicação de 37 Idem, ibidem.
sicos, iniciando a análise afirmando que O Capital” (39).
38 Idem, ibidem, p. 77.

“A Economia Política (ou Economia Nacio- Após descrever sumariamente os princí- 39 Engels, prefácio à 1a edição
alemã de Miséria da Filosofia,
nal, termo que Marx não utiliza) é uma pios de Smith e Ricardo, especialmente des- 1885, pp. 164-5.

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 193
se último, principal ponto de apoio de Marx efeitos individualizadores (e massificantes)
– “a teoria dos valores de Ricardo é a inter- do processo de produção capitalista que
pretação científica da vida econômica atu- reduzem ou impossibilitam a ação cultural
al” (40) –, enfatiza que Marx “retoma de (e moral) dos agentes produtivos, bem como
Ricardo o princípio básico […] que o tempo buscar na sociedade descrita elementos que
de trabalho socialmente gasto – ou seja, o permitam a persistência ou o desenvolvi-
tempo de trabalho socialmente necessário é mento da vida comunitária.
aquele necessário para reproduzir a merca- Em princípio, Tönnies acompanha Marx
doria e levá-la ao mercado e que depende do na descrição dos efeitos da revolução in-
nível de produtividade do trabalho – consti- dustrial constituída sob o capitalismo, des-
tui o valor da mercadoria” (41). crevendo as mazelas do colonialismo, da
Da Lei do Valor, expressa desse modo, concentração demográfica e da pobreza,
Marx iria extrair “os elementos essencial- conseqüências da lei geral da acumulação.
mente novos da obra” (42) (a referência é Abordando a luta entre a burguesia e o pro-
ao primeiro tomo de O Capital), e que con- letariado, comenta:
sistem:
“Essa guerra civil vem se desenvolvendo e
“ 1. que o trabalho guarda em si mesmo um multiplicando, se a concepção é correta,
caráter ambíguo e duplo, dependendo em se ininterruptamente na Inglaterra até 1914 e
exprimir em valor de uso ou valor de troca; especialmente também na Alemanha. E,
2. que, para além de todas as diferencia- entretanto, se voltarmos nosso olhar para
ções das formas de renda, a diferenciação esse período agora enxergamos que foi um
da força de trabalho contida em cada pro- tempo pacífico e feliz, que não foi inter-
duto – e produzida por ele próprio – e da rompido para a Alemanha a não ser por
‘mais-valia’ – que como tal deve ser trata- três guerras curtas e relativamente insig-
da independentemente de suas formas es- nificantes, fundamentais para a configu-
pecíficas de lucro, juro, renda da terra, etc. ração nacional do país […] Se Marx pre-
– aparece de forma geral da mais-valia de disse na introdução ao quarto tomo que o
maneira ainda indiferenciada e dissolvida; processo de transição move-se no conti-
3. que pela primeira vez o salário se revela nente de forma mais ou menos brutal,
como expressão irracional de uma relação dependendo do grau de desenvolvimento
oculta que se desvenda precisamente nas da classe trabalhadora, assim o processo
duas formas de salário-tarefa e salário-jor- assumiu em nosso tempo as formas mais
nada” (43). cruéis e horríveis, não somente na Rússia
e seus vizinhos. Que tenham culpa no pro-
A leitura de Tönnies enfatiza a impor- cesso os obstáculos impostos ao desen-
tância dos conceitos marxistas para o en- volvimento das camadas inferiores pode
tendimento da realidade capitalista e pro- ser presumido. Mas isso também não sig-
cura aplicá-los para os desdobramentos nifica que a formação intelectual proteja
observáveis na vida social, lamentando que contra devaneios e sirva como substituto
Marx, preso pela síndrome do patamar da para a razão política natural”.
história, não o tenha feito, pois, ao dissecar
o capitalismo, “não percebera, entretanto, Nesse trecho, como em vários outros,
que se tratava de um desenvolvimento Tönnies (recém-saído da Primeira Guerra
inconcluso no seu tempo, não o havendo Mundial, que lhe causou enorme impacto)
40 MF, p. 54. descrito, mesmo fornecendo os aspectos parece especular sobre o desenvolvimento
41 “MLL”, p. 78. decisivos para a sua compreensão” (44). social e político de modo sombrio, prog-
Evidentemente, Tönnies trabalha os con- nosticando catástrofes das quais “a forma-
42 Idem, ibidem, p. 79.
ceitos marxistas através de uma ótica par- ção intelectual” não protegeria. O apelo à
43 Idem, ibidem, pp. 78-9. ticular, vinculando-os às próprias noções, “razão política natural” apareceria melhor
44 Idem, ibidem, p. 104. de tal sorte a centrar seus comentários nos definido em texto que publicaria um ano

194 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8
depois (45), em que a lógica do capitalismo A diferença entre o valor e o preço da
é descrita como “racionalidade instrumen- força de trabalho, no que consiste a
tal” opondo-se a “racionalidade conscien- mais-valia, calculada em relação ao capital
te” que aqui denominara “razão política total, define o lucro. Todavia, “da teoria
natural”. parece transparecer – porque a mais-valia
Buscando caracterizar essa “racionali- nasce exclusivamente do capital variável,
dade instrumental”, insiste em que a lógica ou seja, do salário depositado no capital –
do processo capitalista de produção é base- que a mais-valia deveria ser relativamente
ada no uso da maquinaria da qual o traba- maior quanto maior fosse a parte variável
lhador seria concebido como extensão, do capital em relação ao capital constante,
configurando “de forma tecnicamente pal- e vice-versa. Mas os dados empíricos mos-
pável a essência geral da produção capita- tram que o lucro desejado não depende
lista, cujas condições de trabalho acabam dessa relação, que ele é uma fração deter-
por utilizar o trabalhador” com uma “disci- minada do capital total pré-investido, cujo
plina de quartel, uma divisão militar dos volume depende de outros momentos – que
trabalhadores dentro da fábrica”, o que é o que Marx denomina de forma imprecisa
“oprime os trabalhadores, cria uma popu- de ‘igualdade mediana’” (51).
lação trabalhadora excedente, confunde e O trabalho, como acentua Marx, “é a
convulsiona o dia-a-dia trabalhista opondo substância e a medida imanente dos valo-
todos os obstáculos ao seu desenvolvimen- res, mas ele próprio não tem nenhum va-
to natural e moral” (46). Em suma, “o meio lor” (52), ou, de forma mais taxativa,
de trabalho tornou-se concorrente do tra-
balhador como tal, e o destruiu” (47). “Ele [Proudhon] confunde o valor das
O proletário reage a tal situação, pois mercadorias medido pela quantidade de
“em todas as fases do desenvolvimento o trabalho nelas fixado com o valor das mer-
trabalho se defendeu contra o capital, mes- cadorias medido pelo ‘valor do trabalho’.
mo que lutando contra o maquinário, forma Se estas duas maneiras de medir o valor se
de existência material do capital” (48), mas reduzissem a uma só, poder-se-ia dizer in-
não apenas o trabalhador direto reagindo diferentemente: o valor relativo de uma
contra a alienação pelo trabalho, mas todos mercadoria qualquer é medido pela quan-
os que, compreendendo o processo, estejam tidade de trabalho nela fixado; ou mede-se
imbuídos de senso moral e entre os quais se pela quantidade de trabalho que pode com-
poderia incluir os próprios Marx e Engels, prar […] Mas as coisas não são assim. O
visando conseguir a “explosão da carapaça valor do trabalho, como o valor de qual-
capitalista, pela qual o desenvolvimento téc- quer outra coisa, não serve para medir o
nico do trabalho é comprimido” (49). valor” (53).
A posição de Tönnies descaracteriza o
conceito marxista da classe retomando a Se o trabalho, em si, não tem valor, racio- 45 Ref. a “Crítica da Opinião Pú-
blica”, editada em 1922.
dualidade básica dos valores comunitários cina Tönnies, se “nem a força de trabalho
e societários, preservando contudo o papel 46 “MLL”, op. cit., p. 86.
tem algum valor […] ela não é produzida,
dos trabalhadores como agentes culturais e não é mercadoria, mas é tratada como outras 47 Idem, ibidem, p. 87.
políticos privilegiados. É desse ângulo que coisas cambiáveis entre si, como se ela fosse 48 Idem, ibidem, p. 86.
aborda a questão da mais-valia, que lhe uma mercadoria e tivesse valor” (54).
49 Idem, ibidem, p. 88.
permitiria destinar-se ao âmago da crítica, Evidentemente, sob o capitalismo, a
quando retornaria à teoria do valor. 50 Idem, ibidem, p. 91.
força de trabalho constitui mercadoria, mas
“O capital”, escreve, “é essencialmen- tratá-la como se ela universalmente o fosse 51 Idem, ibidem, p. 99.
te um comando sobre o trabalho não-pago, poderia implicar uma séria limitação ana- 52 K. Marx, O Capital, Livro I, 3a
toda mais-valia é substancialmente maté- lítica. A questão remonta novamente às Leis ed., Rio de Janeiro, Civiliza-
ção Brasileira, 1975, p. 619.
ria de tempo de trabalho não-pago. O salá- do Valor. Sendo correto, segundo Ricardo,
53 MF, p. 58.
rio não é o preço do trabalho, mas sim da que “o valor de toda mercadoria é determi-
força de trabalho” (50). nado única e exclusivamente pela quanti- 54 “MLL”, p. 137.

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 195
dade de trabalho necessário para produzi- guinte do valor” (60). E “o valor-de-uso
la” e tendo o trabalho um “caráter ambíguo só se realiza com a utilização ou o consu-
e duplo”, que lhe torna “imanente” aos mo” (61). A mercadoria, ela própria, pos-
valores sem que possua “nenhum valor”, a sui um valor-de-troca, expressa um valor-
“mercadoria”, isto é, o valor-de-troca, co- de-uso e contém o valor-quantidade-de-
meça a se insinuar como sendo o próprio trabalho: “para criar mercadoria, é mister
processo de valorização do trabalho. não só produzir valor-de-uso, mas produ-
Ao enfrentar o problema, Marx o reme- zi-lo para outros, dar origem a valor-de-
te em princípio para o valor-de-uso, tam- uso social” (62). Ou: “a mercadoria pos-
bém desprovido em si mesmo de “valor”: sui valor-de-uso, isto é, satisfaz uma ne-
“uma coisa pode ser valor-de-uso, sem ser cessidade social qualquer. Quando trata-
valor. É o que sucede quando sua utilidade mos das mercadorias isoladas, podemos
para o ser humano não decorre do trabalho, supor existente a necessidade das merca-
exemplo: o ar, a terra virgem, seus pastos dorias consideradas” (63).
naturais, e a madeira que cresce espontâ- Até aqui define-se uma sociedade pro-
nea na selva, etc.” (55), embora continente dutora de mercadorias, onde o valor é a
necessário do “valor”. “Valor, excetuan- “forma objetiva do trabalho social
do-se sua representação, simbólica, só exis- despendido para produzir uma mercado-
te num valor-de-uso, numa coisa” (56). ria. E como medir a magnitude do valor de
“Valor corporifica-se em valor-de-uso, e uma mercadoria? Pela magnitude do traba-
valor-de-uso é condição para se criar va- lho que ela contém” (64). Nessa sociedade
lor” (57). mercantil, o valor é a mercadoria, servindo
O valor-de-uso, ou simplesmente a a quantidade de trabalho (ele próprio sem
“utilidade” – “a utilidade de uma coisa faz nenhum valor) como instrumento social de
dela um valor-de-uso” (58) –, passa, en- comparação entre valores de diferentes
tão, a servir para definir e caracterizar o mercadorias:
trabalho como atividade distinta de outras
atividades humanas: “Nenhuma coisa pode “Só com a troca, adquirem os produtos do
ser valor se não é objeto útil. Se não é útil, trabalho, como valores, uma realidade so-
tampouco o será o trabalho nela contido, cialmente homogênea, distinta de sua
o qual não conta como trabalho, e, por isso, heterogeneidade de objetivos úteis, per-
não cria nenhum valor […] Chamamos ceptível aos sentidos. Esta cisão do pro-
simplesmente de trabalho útil aquele cuja duto do trabalho em coisa útil e em valor
utilidade se patenteia no valor-de-uso do só atua na prática, depois de ter a troca
seu produto ou cujo produto é um valor- atingido tal expansão e importância que
de-uso. Sob este ponto de vista será con- se produzem as coisas úteis para serem
55 O Capital, Livro I, p. 47.
siderado sempre associado a seu efeito permutadas, considerando-se o valor das
útil” (59). coisas já por ocasião de serem produzidas
56 Idem, ibidem, p. 228.
Mas, para que o valor-de-uso ou utili- […] O valor só se realiza através da troca,
57 Idem, ibidem, p. 728. dade não se constituísse apenas em uma isto é, por meio de um processo social […]
58 Idem, ibidem, p. 42. categoria subjetiva (como notou Sombart, têm elas [as mercadorias] de evidenciar
59 Idem, ibidem, pp. 48-9. Ver
que Tönnies cita), insuficiente para fun- que são valores, pois o trabalho nelas
ainda Livro I, p. 218 e Livro III, damentar um mercado massivo, e portan- despendido só conta se foi empregado em
p. 947.
to respondendo a uma necessidade do pró- forma útil aos outros, que seu produto
60 Idem, Livro I, p. 728. prio processo de produção capitalista, se- satisfaz necessidades alheias” (65).
61 Idem, ibidem, pp. 42 e 93. ria preciso objetivá-lo, o que só poderia
62 Idem, ibidem, p. 48. ser feito através de sua utilidade social, O valor do trabalho é portanto uma ca-
consubstanciada no valor-de-troca, e no tegoria eminentemente social, introduzida
63 Idem, Livro III, p. 205.
uso efetivo do produto, isto é, seu consu- de forma a objetivar o valor e fundamentar
64 Idem, Livro I, p. 617. mo. Com efeito, “valor-de-uso é condição um comércio em larga escala: “As merca-
65 Idem, ibidem, pp. 82, 93 e 96. necessária do valor-de-troca e por conse- dorias só encarnam valor na medida em

196 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8
que são expressões de uma mesma subs- cem reificadas, naturalizadas, abstraídas do
tância social, o trabalho humano; seu valor contexto que lhes legara o valor. A mais-
é, portanto, uma realidade apenas social, valia e as leis do valor deixam de ser valo-
só podendo manifestar-se, evidentemente, res objetivados socialmente para aparece-
na relação social que uma mercadoria se rem como valores objetivos.
troca por outra” (66). “A teoria assume que todo trabalho
Descrita a construção do valor na soci- exprime o valor de uso da força de traba-
edade capitalista, cuja historicidade é in- lho comprada”, mas mesmo admitindo
discutível, Tönnies poderia subscrever a que tal se deu através de um complexo
conclusão de Marx de que “em todos os processo social de valorização que cul-
estágios sociais o produto do trabalho é minou com a mercadoria e seu consumo,
valor-de-uso; mas só em período determi- ignora que “o comprador, ou seja mesmo
nado do desenvolvimento histórico, em que o capitalista ou empresário, também con-
se representa o trabalho despendido na pro- tribui com trabalho criador de valor para
dução de uma coisa útil como propriedade a mercadoria como tal”, o que torna inviá-
‘objetiva’, inerente a essa coisa, isto é, como vel compreender o que seja “efetivamen-
seu valor, é que transforma o produto do te fundamental em um processo de pro-
trabalho em mercadoria” (67). dução cooperativa” (70).
A determinação da historicidade da Lei Em outros termos, após demonstrar que
do Valor fora o salto dado por Marx sobre a separação entre capital e trabalho (e a
a formulação de Ricardo: “[…] a Lei do propriedade de ambos) não era parte de uma
Valor para seu pleno desenvolvimento economia natural, Marx assumiria tal pers-
pressupõe a sociedade da grande produ- pectiva, tomando como pressuposto que
ção industrial e da livre concorrência, isto “capital e trabalho estão separados entre si,
é, a sociedade burguesa moderna. De res- que o capital apareça fundamental e neces-
to, considera Ricardo a forma burguesa sariamente como comprador da força de
do trabalho como a eterna forma natural trabalho, e nunca como intrinsecamente
do trabalho social. O pescador e o caçador unido, por sua origem, com qualquer tipo
primitivos, a troca de peixe e caça na pro- de força de trabalho” (71). Tomada generi-
porção do tempo de trabalho objetivando camente, “essa abstração só tem validade
nestes valores de troca […]” (68). E, na conceitual” (72).
opinião de Tönnies, o grande avanço teó- Tönnies acentua que a relação mecânica
rico sobre as doutrinas clássicas, pois “os entre o valor do tempo de trabalho incorpo-
representantes daquela doutrina contem- rado à mercadoria e o valor da mercadoria
plam a separação entre capital e trabalho implica considerar apenas a mais-valia ope-
(e também a separação da propriedade de rária, impedindo o conceito de se aplicar a
ambos) como eterna e necessária, ou, como toda outra atividade, das quais cita as de
em Adam Smith, um dado da cultura […] vigilância, liderança e coordenação da pro-
A crítica constrói o conceito do modo de dução, como produtoras de mais-valia. Lem-
produção capitalista, e tê-la formulado e bra que, em Marx, “como pessoas indepen- 66 Idem, ibidem, p. 55.

descrito em seus traços característicos dentes os trabalhadores são solitários […] A 67 Idem, ibidem, p. 70.
constitui, na verdade, o grande mérito de sua cooperação começa somente no proces- 68 K. Marx, “Crítica à Economia
Karl Marx” (69). so de trabalho, mas no processo de trabalho Política”, in Marx, col. Gran-
des Cientistas Sociais – Eco-
Porém, e é nesse ponto que Tönnies já estão desprovidos de si mesmos, torna- nomia, dirigida por Florestan
distingue-se definitivamente de Marx, as ram-se escravos do capital. Como equipe, Fernandes e Paul Singer
(orgs.), São Paulo, Ática, 1982,
categorias históricas tão cuidadosamente como membros de um organismo produti- p. 64.
elaboradas que caracterizariam valores vo, eles não são mais do que uma forma de 69 “MLL”, p. 103.
sociais do capitalismo, ao serem novamen- existência do capital. A força produtiva do
70 Idem, ibidem, p. 127.
te aplicadas ao movimento das forças soci- trabalhador societário é, portanto, a força do
capital”, e acrescenta que “as concepções 71 Idem, ibidem, p. 128.
ais, naquilo que Tönnies denomina como
“o realismo sociopolítico” de Marx, apare- estão corretas, mas delas Marx parece não 72 Idem, ibidem.

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 197
haver tirado nenhuma conclusão” (73). constatado via experiência prática; da mes-
Trata-se de que, ma forma a independência da taxa de lucro
em relação à parte proporcional do capital
“mesmo que a expropriação do povo – ou investido na força de trabalho é algo que se
seja, a separação do povo de seus meios de entende por si só. A independência, toda-
produção fundamentais – seja considerada via, condicionada no geral também pelo
por Marx ‘a base’ do modo capitalista de valor dos instrumentos de trabalho utiliza-
produção […] por mais que Marx situe o dos que o trabalho multiplica […]” (76).
modo de produção capitalista como um
fenômeno histórico, não aparece entretan- Não é, a esta altura, um argumento novo,
to em sua conceituação básica nenhum ras- e Tönnies o expõe para explicitar o desen-
tro dessa perspectiva de desenvolvimento volvimento da lógica do capitalismo onde
histórico ou da dialética na qual se deveria a mais-valia submergiria entre os “custos
expressar. Ele não relaciona a mais-valia de produção” e a “taxa média de lucro”
como algo universal para o capital; mas ela dependente do “grau de domínio do merca-
aparece historicamente antes do modo de do”. Importa-lhe, na verdade, descarac-
produção capitalista, com outros proprie- terizar a mais-valia como contida no valor
tários dos meios de produção divorciados da mercadoria e pela ação direta do agente
do trabalho, entre os quais os senhores de de produção (o operário), mas descrevê-la
escravos e da vassalagem” (74). como um processo social amplo e não ape-
nas típico do capitalismo industrial. A ló-
Para Tönnies, a separação entre capital gica do valor, a partir da incorporação do
e trabalho engendra a produção de mais- tempo de trabalho à mercadoria, implicaria
valia, seja ou não a sociedade capitalista, em que a criação do valor é, em última ins-
ou seja, sem uma relação direta ao valor da tância, a criação da mercadoria, cuja pro-
mercadoria. O problema é que Marx “pri- dução e consumo representariam o mon-
meiramente concebeu a origem do valor tante criado dos valores. Por conseguinte,
como exclusivamente derivada do traba- não poderia ser objeto do capitalismo o
lho – em parte pago, em parte não-pago – atendimento das necessidades humanas,
realizado pelos trabalhadores desprovidos mas a sua multiplicação que viria a possi-
de propriedade, portanto, de capital; além bilitar a multiplicação das mercadorias e
disso, concebe a mercadoria produzida em conseqüência do valor. Ou seja, o capi-
como resultante da incorporação de valor talismo deveria desembocar em uma soci-
novo e de frações do valor antigo de edade de consumo.
73 Idem, ibidem, p. 132. matérias-primas e meios de produção – Na questão da mais-valia, Tönnies ima-
74 Idem, ibidem, p.129. portanto que a esses novos pedaços de va- gina estar desenvolvendo um conceito
lor antigo una-se o valor novo somente de marxista, limitado em O Capital, e pres-
75 Idem, ibidem, p. 131.
forma aparente e mecânica, como um sim- tando-se a interpretações equívocas, como
76 Idem, ibidem.
ples exemplo de adição” (75). o próprio Marx havia assinalado (77). As
77 Na polêmica com Lassale, Com isso, observações visavam ultrapassar a lógica
Marx considera a “mais-valia
social”, necessariamente não do capitalismo industrial e retomar as pró-
remunerada ao produtor di- “para Marx é inconcebível que o trabalho prias idéias que deslocavam a questão para
reto, e assinala a impossibili-
dade do uso prático do con- vivo aplicado a um material e multiplicado a ótica da comunidade e sociedade: “O tra-
ceito como programa revo-
lucionário (ver a “Crítica ao em seu efeito através de ferramentas e das balho quer equivalentes (o ‘igual-valor’)
Programa de Gotha”, in K. máquinas aumente os valores desse mate- através da troca simples; o comércio quer o
Marx e F. Engels, Textos, vo-
lume 1, São Paulo, Ed. Soci- rial, desses meios de produção como tais, ‘sobre-valor’ através da dupla troca” e “o
ais, 1977). A propósito,
Tönnies leu e fez anotações,
de forma que eles se fortaleçam entre si e se fato de que o comércio se submeta à produ-
sem manifestar discordâncias, multipliquem entre si homogeneamente em ção (expressão cara à Marx) significa
à margem do programa mar-
xista de Erfurter, formulado vez de constituírem uma simples soma. É tão-somente que o processo de produção se
por Kautsky (1890). impensável para Marx, mas não impensável torna uma peça constante do processo de
78 “MLL”, p. 135. por si só; é, ao contrário, bem possível e circulação” (78). Em conseqüência,

198 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8
“a essência do capitalismo é a essência do bre sua própria base, mas de uma que
comércio, que é mais desenvolvido e forte acabe de sair precisamente da sociedade
como comércio ampliado. Por mais que a capitalista e que, portanto, apresente ain-
atividade produtiva possa estar e esteja da em todos os seus aspectos, no econô-
realmente ligada ao comércio, existe não mico, no moral e intelectual, o selo da
só uma diferença, mas uma verdadeira velha sociedade de cujas entranhas pro-
oposição entre o trabalho e o comércio. cede […] No seio de uma sociedade
Ambas são funções da vida social, mas o coletivista, baseada na propriedade co-
trabalho é (se eu posso inserir aqui meus mum dos meios de produção, os produto-
conceitos) determinado por Gemeinschaft res não trocam seus produtos; o trabalho
e wesenwille, e o comércio por Gesellschaft invertido nos produtos não se apresenta
e kürwille. O trabalho quer um resultado aqui, tampouco, como valor destes pro-
que o valide: ou imediatamente com o fru- dutos, como uma qualidade material, por
to, ou mediatamente com a troca; o comér- elas possuída, pois aqui, em oposição ao
cio quer atingir vantagens somente através que sucede na sociedade capitalista, os
da simples troca repetitiva, portanto colher trabalhos individuais já não constituem 79 Idem, ibidem.
frutos do trabalho sem ter realizado o tra- parte integrante do trabalho comum atra-
80 “Crítica ao Programa de
balho de fato” (79). vés de um salário, mas diretamente” (80). Gotha”, op. cit., p. 231.

Tönnies retoma os valores (no caso


valor-trabalho e valor-comércio) como fun-
ções dialéticas contraditórias mediando as
vontades e a coletividade, em que a expan-
são do comércio e da conseqüente alteridade
fundamenta a sociedade contra os valores-
trabalho, em si cooperativos e comunitá-
rios. O valor objetivado na mercadoria, em-
bora derivado do trabalho, implica a supe-
rior valorização do comércio do qual a
mercadoria é parte; e dota de racionalidade
o ato objetivo da troca, sem a qual seria
inexplicável. A satisfação das necessida-
des, a verdadeira utilidade, que servira para
definir o trabalho, perde-se na medida em
que seu substrato, uma vez alienado, per-
deu-se também.
O valor é sempre uma determinação
social. E a lei capitalista do valor em seu
desenvolvimento baseia-se no trabalho para
racionalizar-se e em seguida aliená-lo. Ter
percebido a historicidade do fenômeno e
desvendado seus mecanismos constituiria
o grande mérito de Marx, inegavelmente o
maior teórico do capitalismo e dono de
enorme fibra moral, que entretanto, preso
em seu tempo, não poderia transcendê-lo.
E Tönnies poderia concluir citando o
próprio e velho Marx:

“Do que se trata aqui não é de uma soci-


edade comunista que se desenvolveu so-

R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 199

Você também pode gostar