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Texto 01 - Saberes Étnicos e Populares Como Filosofia (E) M Dança - Autor Igor Fagundes
Texto 01 - Saberes Étnicos e Populares Como Filosofia (E) M Dança - Autor Igor Fagundes
Macumbança
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O colonialismo se refere ao período de expansão territorial dos europeus para outros continentes. A
colonialidade é a continuidade, mesmo com o fim da colonização, do pensamento colonial, isto é, a
modernidade nas dimensões do poder (ESCOBAR, 2005), do saber (LANDER, 2000), do ser
(MALDONADO-TORRES, 2007, pp. 127-167), da natureza (ALIMONDA, 2011) e do gênero
(LUGONES, 2008, pp. 13-64), que operam semiocídio, epistemicídio, genocídio, ecocídio, feminicídio.
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Apesar do dissenso em relação a “decolonial” ou “descolonial”, todas as contribuições demarcam as
origens da modernidade na conquista da América e no controle do Atlântico pela Europa, entre o final
do século XVI e o início do XVII, e não no Iluminismo ou na Revolução Industrial. A modernidade opera
na estruturação do poder por meio do colonialismo e das dinâmicas constitutivas de sistema econômico
em suas formas específicas de capitalização e exploração em escala global. Na modernidade como
globalização, as relações de poder são assimétricas, o que subalterniza os povos dominados. Essa
“práticas teóricas” na América herdeiras dos legados coloniais e que incessantemente
retornam a eles, mas de maneira diferente do ocorrido na África e na Ásia. Filha do
colonialismo espanhol-português e franco-britânico (e, por outra via, do imperialismo
dos Estados Unidos), a América Latina não mais denunciaria os antagonismos “norte-
sul”, mas agora perfuraria toda verticalidade em nome de uma horizontalidade
policêntrica e polifônica, capaz de validar um pluriverso de epistemologias sem
deslegitimar nenhuma. Desse modo, a decolonialidade dialoga criticamente com os
chamados estudos subalternos3 e estudos pós-coloniais4, vez que os pensamentos
do Sul precisam romper com a introjetada equivalência entre o geograficamente
sublocalizado e o hierarquicamente submetido. Nos estudos decoloniais, o esquema
“centro-margem” se extravia para desviar-se da ideia de “superioridade-inferioridade”,
permitindo a emancipação/difusão dos múltiplos centros reexistentes no fronteiriço.
Se a fronteira se torna o lugar da experiência (reexistência), a
decolonialidade a compreende como zona de contato (e contágio) em que não só o
colonizado se delata impregnado pela cultura do colonizador, porque este também se
afeta e se altera na tensão. Dessa forma, o decolonial deve suspeitar do que, nele,
anuncie um “novo” discurso acadêmico (pois “discurso acadêmico” reitera e atualiza
o “velho” ocidentalismo). O enfrentamento ao eurocêntrico implica um descentramento
da academia: a escuta de um fora visa a investir, às avessas, em um dentro dela que
a arraste para além de seus limites e bitolas epistêmicas, concedendo vez e voz ao
que sempre existiu (ilegítima e/ou invisivelmente), mas agora fala com ela sem falar
como ela; isto é, sem redundar objeto (refém) dos paradigmas que sustentam e
operam os mecanismos excludentes do acadêmico. Do contrário, academicizados, os
saberes originários (étnicos, populares) são subvertidos, isto é, vertidos para baixo,
sobrepassados. De novo, subalternizados. Também não se trata, pela via contrária,
Rufino (2018) se vale, como signo de positivação para existências tão possíveis
quanto múltiplas, tão inconclusas quanto imprevisíveis, do signo máximo da
negativação imposta pelo colonialismo enquanto racismo: Exu – a força motriz e
matriz de tudo o que evoca e provoca, nos mitos iorubás, a (já não mais mal-dita)
macumba. Exu diz Elegbara, o dono do poder mágico, da transformação e, também,
Bara, o dono do corpo. Na fertilidade dos corpos, irmã da felicidade, Exu é o dono da
alegria rara: Odara. Por tudo isso, transverso ao tabu, travesso no tabu, na rasura dos
conceitos e preconceitos, disputa danças, jogos, como lutas. Onde houver guerra, a
arma de Exu será a sapiência e traquinagem dos corpos e das ruas quando encruzas.
Exu dinamiza corpos/povos que se criam nos vazios deixados pelo Velho e Novo
Mundo. Junto com Luiz Antonio Simas, Rufino chamará terreiro todo “mundo” quando
lugar do inventivo: “campo de batalha e de mandinga” (SIMAS; RUFINO, 2018a, p.
106). Em terras brasileiras, a decolonialidade, para eles, é ginga – liberação exusíaca,
ciente sempre de que o enfrentamento não oferece retorno à experiência anterior ao
trauma. Diante dele e através dele, sabedorias de ginga, a exemplo das capoeiras,
propõem ações de desvio e avanço, virações e rolagens de um lado para o outro,
armadas e arpadas por parte de um corpo que finge que vai, mas recua, se esquiva
até avançar, certeiro, para o cruzo (SIMAS; RUFINO, 2018a). Aí, o bote ou golpe não
presume aniquilação daquele com quem se joga: destrona-o, sim, pela sedução,
manha, drible que forjam rasteiras, mas também o engole para – face ao desencanto
– devolvê-lo encantatório. Eis o rolê epistemológico: “Se tentar me prender, eu giro;
pronto, escapuli, já estou do outro lado!” (RUFINO, 2018, p. 79).
Os capoeiras configuram macumbeiros enquanto lutam-dançando e dançam-
jogando com e contra o desencantamento. Dançam porque é o corpo o primeiro alvo
de ataque do colonialismo: na lógica servil do trabalho; na lógica do masculino
projetado como virilidade dominadora (do feminino, sobretudo); na lógica religiosa que
o subjuga ao pecado. O corpo é a primeira encruzilhada. Como tal, cumpre sua
possibilidade de ser, sua disponibilidade para o trânsito e o transe (no sentido de estar
além de qualquer lógica prévia e que sempre prevê um físico e/ou simbólico
desmantelamento), dançando, sambando, rebolando em baile funk e demais
instâncias em que perturba a colonialidade (SIMAS; RUFINO, 2018b, p. 9).
Para aquém e para além de alguma decolonialidade como novidade conceitual,
os saberes-fazeres étnicos e populares há muito produzem e pronunciam seus
repertórios próprios, suas gramáticas, seus rolês: “Se a gente for pensar no que hoje
se discute como emergência de um novo pensar, (...) decolonial, não é nada muito
diferente do que os jongueiros estavam falando nos seus pontos cantados” (SIMAS;
RUFINO, 2018b, p. 9)5. Da cultura do jongo, Rufino (2018) extrai o vocábulo “cumba”,
que designa aquele mais velho e versado nos encantamentos da palavra e do corpo
– mesmo étimo quicongo de “macumba”, acrescido pelo “ma”, que dá o plural: o
coletivo destes sábios feiticeiros porque poetas dançarinos (SIMAS; RUFINO, 2018a).
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O novo não é a novidade. Esta sobrevive de sua ultrapassagem, efemeridade, para – enquanto moda
e a sair de moda – ceder à próxima. Dessa forma, corrobora um tempo linear, evolutivo, progressivo,
próprio da modernidade ocidental. Basta notar quanto uma “pós-modernidade”, uma pós-pós-
modernidade; uma hiper-modernidade etc. cumprem o sempre por vir projeto moderno (existe mesmo
a pós-arte em Artes!). Conceitos são novos ou antigos, mas questões permanecem: originárias. Por
isso, o arcaico não diz o ultra-passado. No grego arché (de arcaico) está “princípio” não como “começo”.
Este é sempre uma “origem” localizável num passado. Já “princípio” diz o príncipe, o principal, o
primeiro: o que, nunca para trás, segue sempre à frente, perfazendo – novo, atual – o presente: O
arcaico (como o aqui-agora originário) compreende o radicalmente contemporâneo.
Se, em campo de batalha, o corpo ensaia um rolê epistemológico, em campo
de mandinga, o corpo enceta um ebó epistemológico frente ao carrego colonial
(RUFINO, 2018). O descarrego, aí, não supõe uma libertação do conflito, mas uma
libertação – no conflito – de uma potência que o transfigura (RUFINO, 2018, p. 79-80).
Essas políticas de mediação do sofrimento pela reinvenção são poderosas na medida
do brincante: reexistem com “pragas rogadas, calças arriadas, tombos nas ladeiras”
(RUFINO, 2018, p. 81). Risadas riscam mandingas e batalhas nos corpos em dança:
... seu filosofema mais significativo para nós, (...) do hemisfério sul, é aquele
ao qual muitos parecem ter de se opor: para ele, Heidegger, era impossível
não filosofar em alemão (...) nascido na floresta negra, só poderia filosofar
desde e a partir da língua e da cultura alemã; para ele, só fazem sentido as
alegorias da floresta negra, do caminho dos lenhadores, da sereia Loreley e
assim por diante. (...) Mais do que um grande autor proveniente da elite,
Heidegger é um pensador com os pés no chão... (HADDOCK-LOBO, 2019).
Dialogando com Jacques Derrida, Haddock-Lobo adverte que este, por sua
vez, não era da floresta e, por ser do povo do Magrebe, teve sua cultura e língua
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A dobra de território e terreiro se diria, no conjunto dos livros de Heidegger, coisa e obra, utensílio e
obra de arte. Obra, portanto, como acontecimento de instauração de um espaço-tempo próprio,
originário e, portanto, sempre contemporâneo. Espaço não geométrico. Tempo não cronológico. Daí,
“teatro” (theatron), por exemplo, não se reduzr arcaicamente a um lugar geográfico, porque obra
(instauração) de ação (“drama”, em grego), a dar-se em palco, praça, rua, roda, mata: terreiros!
destituídas pelo processo colonial. Não lhe foi deixada senão uma língua – francesa?
– que não lhe pertence. Se Heidegger ainda pode se sentir em casa, em sua língua,
cultura, os nascidos abaixo da linha do equador não têm nenhum tipo de propriedade,
só tentativa de reapropriação em meio a invasões, epidemias, estupros,
escravizações, extermínios. É preciso macumba – jogo de invenção – por uma cultura
que esgarce e arrombe o europeísmo. A tinta branca com que o ocidente escreve sua
filosofia totalitária, neutra e, no ideal de pureza, sem cor, sugere sua maior fragilidade:
evitando o contato com o outro, para não se promiscuir, perde a possibilidade do jogo,
da sujeira, do negror: da macumba!
Perseguindo miudeza e não enormidade, penso a partir do meu lugar, o Rio
de Janeiro (e do Rio de Janeiro do tamanho miúdo de um texto, aula, corpo): filosofo
macumbando por entre a academia, o mar de morros carioca, a Mata Atlântica, o
samba, a umbanda. Macumba é nome possível para tal filosofia-dança das
encruzilhadas, em que Ulisses, de Homero, a caminho de Ítaca, passa por Lisboa e,
batizado por Cristo, avança para sertões do nordeste, Amazônia, pampas gaúchos:
entrecruzos do canto das sereias gregas com as indígenas. Tal Oxóssi que, por aqui,
é caboclo, sem deixar de ser odé das Áfricas (do ketu aos bantos Mukumbe, Gongo
Mukongo, Kabila, Mutalambo, Nkongo Mbila, Jeje Agué): todos na flecha tupinambá.
A que perfura São Sebastião e vira o agueré da bateria de uma Escola de Samba.
3. A gira filosófica
Referências:
_______. Drible e flecha de fulni-ô. Em que medida está na umbanda a chave para
entender nossos modos sincopados de pensar? Revista Cult. São Paulo, nº 254, pp.
33-35, fevereiro de 2020, 2020b.
_______; RUFINO, Luiz. Fogo no mato - A ciência encantada das macumbas. Rio de
Janeiro: Mórula, 2018.
___________________. Sobre olhar um terreiro para enxergar o país. Entrevista
concedida a Leonardo Nascimento. Suplemento Pernambuco. Jornal Literário da
Companhia Editora de Pernambuco. Recife, nº 148, pp. 8-9, junho, 2018b.
HADDOCK-LOBO, Rafael. Por uma filosofia das matas. HHMagazine. Disponível em:
https://hhmagazine.com.br/809-2/. Acesso em: 12/06/2019, 2019.
________. A gira macumbística da filosofia. Revista Cult. São Paulo, nº 254, pp. 21-
23, fevereiro 2020, 2020a.
________. Por que filosofia popular brasileira? HHmagazine. Disponível em:
https://hhmagazine.com.br/por-que-filosofia-popular-brasileira/. Acesso em:
22/01/2020, 2020b.
SIMAS, Luiz Antonio. Padilhas e Pelintras: a dança dos corpos encantados. Folha de
São Paulo – PIAUÍ. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/pelintras-e-padilhas-
danca-dos-corpos-encantados/. Acesso em: 12/02/2021, 2021.
WALSH, Catherine (org.). Interculturalidad, Estado, sociedad: luchas (de)coloniales
de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar - Abya -Yala, 2009.