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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA CLÍNICA

CAMILA PARDUCCI ARRUDA

IMAGENS QUE FALAM: UM ESTUDO DE CASO DE UMA MENINA COM QUEIXA


DE ABUSO SEXUAL

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

NÚCLEO DE ESTUDOS JUNGUIANOS

São Paulo
2017
CAMILA PARDUCCI ARRUDA

IMAGENS QUE FALAM: UM ESTUDO DE CASO DE UMA MENINA COM QUEIXA


DE ABUSO SEXUAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre
em Psicologia Clínica, sob a orientação da Profª.
Drª. Liliana Liviano Wahba.

São Paulo
2017
CAMILA PARDUCCI ARRUDA

IMAGENS QUE FALAM: UM ESTUDO DE CASO DE UMA MENINA COM QUEIXA


DE ABUSO SEXUAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre
em Psicologia Clínica, sob a orientação da Profª.
Drª. Liliana Liviano Wahba.

Aprovada em:

Profª. Drª. Liliana Liviano Wahba – PUC-SP

Prof. Dr. Alberto Pereira Lima Filho – OPUS


Psicologia e Educação

Profª. Drª. Denise Gimenez Ramos – PUC-SP


Dedico este trabalho a todas as pacientes
que me relataram ter sofrido abuso sexual
na infância e, em especial, à Juliana.
AGRADECIMENTOS

À minha família, por me proporcionar, cada um de sua forma, o amor e o


apoio necessários para eu ir à busca do que acredito.

A todos da equipe de profissionais do Programa de Estudos Pós-graduados


em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
pela competência e dedicação.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e


à Fundação São Paulo pelo subsídio oferecido, que foi fundamental para a
conclusão deste estudo.

À minha orientadora, Profª. Drª. Liliana Liviano Wahba, por toda


aprendizagem, competência e confiança depositada em mim. Tem sido uma honra e
um prazer trabalhar com você.

À Profª. Drª. Denise G. Ramos, por ser uma referência de pesquisadora e de


profissional no campo da psicologia no Brasil, e pelo empenho com que dedica ao
Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da da PUC-SP.

Ao Prof. Dr. Alberto P. Lima Filho, por ser meu primeiro mestre na Psicologia
Analítica e um grande exemplo de profissional e pessoa. É uma honra ter você na
minha banca.

À equipe do Núcleo Espiral, em especial Amana, Beatriz e Neusa, pessoas


extremamente dedicadas ao trabalho que realizam, pela disponibilidade e pelo
carinho que têm por mim.

À Teca, por me acompanhar com tanta dedicação, carinho e competência


nesses últimos três anos. Seus questionamentos têm sido extremamente
importantes para meu crescimento profissional e pessoal.

À Helena Carvalho, que foi fundamental para o meu crescimento como


profissional, sempre sendo um exemplo, por todo cuidado na revisão deste estudo.
A todos os colegas do mestrado, em especial Bárbara, Juliana, Isis e Mariane,
pela oportunidade de troca que muito contribui para o aprimoramento desta
pesquisa.

Às minhas queridas amigas, Ana Cecília, Carla, Luana e Manoela, por todo
apoio que me deram durante o período de elaboração deste trabalho, apoio sempre
presente em vários momentos da minha vida.

Às minhas amigas do curso de graduação, Ana Cláudia, Virgínia e Tayna,


pela parceria, preocupação e torcida.

Ao Henrique, pelos cuidados nos últimos meses, fundamentais para a


conclusão desta dissertação.
RESUMO

PARDUCCI, Camila. Imagens que falam: um estudo de caso de uma menina com
queixa de abuso sexual. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2017.

Na população mundial, cerca de 20% das mulheres e de 5 a 10% dos homens


relatam ter sofrido abuso sexual na infância (OMS, 2014). O presente trabalho
aborda o tema a partir da teoria e prática da Psicologia Analítica, e seu objetivo foi
realizar um estudo clínico de uma menina de cinco anos com queixa de abuso
sexual. Descreveu-se a psicodinâmica e o estado emocional da criança e realizou-
se uma análise interpretativa e simbólica de suas expressões gráficas e verbais. O
método qualitativo utilizado foi o do estudo de caso. A análise realizada foi elaborada
a partir de seis sessões de psicodiagnóstico, compostas por anamnese com a mãe
da criança, aplicação de HTP, CAT-A, desenho da Pessoa na Chuva, produções
gráficas espontâneas, observações do jogo lúdico e do comportamento da criança.
O estudo de caso identificou indícios de trauma complexo (VAN DER KOLK, 2005),
com características que se apresentam com frequência em casos de abuso sexual
infantil, tais como defesas dissociativas, tristeza, autoestima rebaixada, insegurança,
expressões gráficas de aprisionamento e com marcante significado sexual. Pôde-se
perceber que o setting terapêutico oferece um espaço continente para expressão de
angústias e dores em casos de vitimização e/ou queixa de abuso sexual, assim
como para o desvelamento simbólico do trauma e de suas consequências. Conclui-
se que a intervenção psicológica precoce é fundamental para minimizar prognósticos
graves nos casos de suspeita de abuso sexual infantil e auxiliar a criança em seu
desenvolvimento.

Palavras-chave: Abuso sexual na infância. Trauma complexo. Psicologia Analítica.


Técnicas projetivas. Simbolização
ABSTRACT

PARDUCCI, Camila. Talking pictures: a case study of a girl with a complaint of


sexual abuse. Dissertation (Master in Clinical Psychology) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. São Paulo, 2017.

In the world’s population, about 20% of women and 5% to 10% of men report
having been sexually abused in childhood (WHO, 2014). This research approached
the theme from the theory and practice of Analytical Psychology, and aimed at
conducting a clinical study of a five year old girl with a complaint of sexual abuse.
The psychodynamics and emotional state of the child are described based on an
interpretive and symbolic analysis of her graphic and verbal expressions. The
qualitative method used was that of the case study. The analysis is based upon
impressions gained and data gathered during six psychodiagnostic sessions that
included anamnesis with the mother of the child, application of HTP, CAT-A, drawing
of the Person in the Rain, spontaneous graphic productions, observations of play and
the child’s behavior. The case study identified signs of complex trauma (VAN DER
KOLK, 2005), with characteristics that frequently occur in cases of child sexual
abuse, such as dissociative defenses, sadness, lowered self-esteem, insecurity,
graphic expressions of imprisonment and contents that clearly held sexual
connotations. It was found that the therapeutic setting offers a protective and all-
encompassing place for the expression of anguish and pain in cases of victimization
and/or complaint of sexual abuse, as well as for the symbolic disclosure of the
trauma and its consequences. The study concludes that early psychological
intervention is fundamental to minimize severe prognosis when child sexual abuse is
suspected and to assist the child in his/her development.

Keywords: Child sexual abuse. Complex trauma. Analytical Psychology. Projective


techniques. Symbolization.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Casa ...................................................................................................... 43


Figura 2 – Cesta da bruxa ..................................................................................... 44
Figura 2a – Cabeção ............................................................................................... 44
Figura 3 – Pai ......................................................................................................... 45
Figura 4 – Família .................................................................................................. 46
Figura 4a – Família – Detalhe ................................................................................. 47
Figura 5 – Pessoa na chuva ................................................................................. 48
Figura 5a – Pessoa na chuva coberta por cola..................................................... 48
Figura 6 – O pai e a namorada ............................................................................. 49
Figura 6a – O pai e a namorada cobertos com cola ............................................. 49
Figura 7 – Cores sobre papel em branco ............................................................ 50
Figura 8 – Desenho livre ....................................................................................... 51
Figura 9 – Desenho de si mesma e do pai .......................................................... 51
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 12
2 LEVANTAMENTO DE PESQUISAS SOBRE O TEMA ............................... 16
3 TRAUMA E ABUSO SEXUAL ..................................................................... 23
3.1 A psique traumatizada, memória traumática e memória sadia............... 23
3.2 Psique traumatizada e mecanismos de defesa ........................................ 25
3.3 Consequências do trauma complexo ....................................................... 26
3.4 O trauma do abuso sexual ......................................................................... 28
4 O DESENHO NA PSICOLOGIA ANALÍTICA .............................................. 30
4.1 Desenho e desenvolvimento infantil......................................................... 31
4.2 O desenho da criança de 4 a 6 anos ......................................................... 32
4.3 Desenho e abuso sexual infantil ............................................................... 33
5 OBJETIVO ................................................................................................... 34
5.1 Objetivo geral .............................................................................................. 34
5.2 Objetivos específicos ................................................................................. 34
6 MÉTODO ...................................................................................................... 35
6.1 Participante ................................................................................................. 35
6.2 Local ............................................................................................................ 35
6.3 Instrumentos ............................................................................................... 36
6.3.1 HTP – Casa-Árvore-Pessoa ......................................................................... 36
6.3.2 Teste de Apercepção Infantil-Animal (CAT-A) .............................................. 36
6.3.3 Desenho da Pessoa na Chuva ..................................................................... 36
6.3.4 Desenhos espontâneos e Temática do jogo lúdico ...................................... 37
6.4 Procedimento .............................................................................................. 37
6.4.1 Procedimento de seleção da participante ..................................................... 37
6.4.2 Procedimento de intervenção ....................................................................... 37
6.4.2.1 Anamnese ................................................................................................... 38
6.4.2.2 HTP - Casa-Árvore-Pessoa ......................................................................... 38
6.4.2.3 Teste de Apercepção Infantil-animal (CAT-A) .............................................. 38
6.4.2.4 Pessoa na Chuva ......................................................................................... 38
6.4.2.5 Desenhos espontâneos e Temática do jogo lúdico ...................................... 39
6.4.3 Procedimento de análise .............................................................................. 39
6.4.4 Procedimento ético ....................................................................................... 40
7 RESULTADOS E ANÁLISE ......................................................................... 41
7.1 Anamnese ................................................................................................... 41
7.2 Expressões gráficas ................................................................................... 42
7.2.1 Casa ............................................................................................................. 43
7.2.2 Árvore ........................................................................................................... 44
7.2.3 Figuras humanas .......................................................................................... 45
7.3 CAT-A .......................................................................................................... 53
7.4 Jogo lúdico ................................................................................................. 55
7.5 Síntese ......................................................................................................... 56
8 DISCUSSÃO ................................................................................................ 59
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 64
REFERÊNCIAS ............................................................................................ 66
Apêndice A – Anamnese ............................................................................ 71
Apêndice B – Primeira sessão – Jogo lúdico .......................................... 74
Apêndice C – Segunda sessão – Aplicação HTP ..................................... 76
Apêndice D – Terceira sessão – Jogo lúdico ........................................... 79
Apêndice E – Quarta sessão – Aplicação CAT-A..................................... 80
Apêndice F – Quinta sessão – Pessoa na Chuva e Desenho livre ......... 85
Apêndice G – Sexta sessão – Desenho livre e Jogo lúdico .................... 86
Anexo A – Termo de Compromisso do Pesquisador Responsável ....... 87
Anexo B – Carta de Autorização da Instituição ....................................... 88
Anexo C – Parecer consubstanciado do Comitê de Ética ...................... 89
12

1 INTRODUÇÃO

A partir do meu trabalho clínico e das atividades voluntárias que realizei no


Núcleo Espiral, ONG que assiste crianças vítimas de violência, senti a necessidade
de ampliar meu conhecimento sobre as questões psicológicas relacionadas ao
abuso sexual infantil, a fim de melhor compreender as dores daqueles que viveram
essa traumática experiência e melhor me capacitar para atendê-los em seu processo
de desenvolvimento. Tal interesse se justifica, também, em razão do significativo
percentual de pessoas que, no início da vida, foram vítimas de abuso sexual: na
população mundial, cerca de 20% das mulheres e de 5 a 10% dos homens relatam
ter sofrido esse tipo de violência quando crianças (OMS, 2014). O presente trabalho
irá, assim, explorar o tema a partir da abordagem psicológica, particularmente sob o
ponto de vista da Psicologia Analítica, como forma de contribuir para a compreensão
existente sobre o abuso sexual na infância e para o atendimento a pacientes que
tenham passado por essa vivência.
No Brasil, dentre os atos de violência cometidos contra crianças com até nove
anos, a violência sexual ocupa o segundo lugar em frequência. Esse tipo de
agressão está apenas um ponto percentual abaixo das notificações de negligência e
abandono, tendo representado, no ano de 2011, 35% do total de 14.625 registros de
violência doméstica, sexual, física e outras agressões contra crianças menores de
dez anos, segundo dados do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva)
do Ministério da Saúde (ASSIS et al., 2012).
O relatório do Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual Infanto-
juvenil (ABRAPIA, 2003), realizado a partir de dados coletados de 1.547 denúncias,
no período de janeiro de 2000 a janeiro de 2003, mostra que a maioria das
denúncias envolveu o sexo feminino (76%) na faixa etária entre os 12 e 18 anos
(47%). Segundo dados de pesquisa realizada na cidade de São Paulo (SERAFIM et
al., 2011), as meninas (63,4%) também são as maiores vítimas de abuso sexual. A
faixa etária de maior risco está entre sete e dez anos de idade (48,5%), no caso de
meninas, e entre três a seis anos (54,6%), quando se trata de meninos.
O abuso sexual infantil pode ser definido como qualquer situação de
estimulação de natureza sexual com a qual a criança ou adolescente é incapaz de
consentir e que se caracterize pelo uso de coerção, poder, promessas, ameaças,
manipulação emocional, enganos ou pressão por meio do abusador. Os atos
13

abusivos podem não envolver contato sexual (exibicionismo, voyeurismo), envolver


contato sexual sem penetração (masturbação, carícias, manipulação) ou com
penetração (vaginal, oral e anal) (ALBORNOZ, 2011). O abuso sexual implica, ainda,
quaisquer atos sexuais impostos à criança por qualquer pessoa, dentro do âmbito da
família ou fora dela, que se prevaleça de sua posição de poder e confiança.
Na maioria dos casos de violência sexual infantil, o vínculo entre agressor e
vítima é de proximidade. Isso ocorre tanto nos casos de abuso sexual intrafamiliar
como nos casos de abuso extrafamiliar. A ideia do incesto é intrínseca ao abuso
sexual intrafamiliar, porém nem sempre é praticado por pessoas que tenham laços
consanguíneos com a criança. Muitas vezes, os perpetradores são padrastos ou
parentes próximos da vítima. Apesar de o abuso sexual extrafamiliar ocorrer, como
o próprio nome indica, fora do âmbito familiar, o abusador geralmente é uma pessoa
próxima da criança e/ou da família, tal como um vizinho ou amigo, educador,
responsável por atividades de lazer, médico, psicólogo ou líder religioso. Em raros
casos, aquele que perpetra o abuso é desconhecido da vítima.
Entre os anos de 2000 e 2003, do total de denúncias de abuso sexual
realizadas em nível nacional, 54% dos casos referiam-se a abusos intrafamiliares e,
em 42% dessas ocorrências, o pai era o principal suspeito (ABRAPIA, 2003). Dados
de pesquisa realizada na cidade de São Paulo (SERAFIM et al., 2011) apontam que,
na população estudada, os pais são os maiores perpetradores do abuso sexual
(38%), estando os padrastos em segundo lugar (29%). De outro lado, pesquisa
realizada em município do sul do país indica que os maiores agressores, naquela
cidade, foram os padrastos (30,1%), seguidos de outros parentes como tios,
cunhados e primos (21,5%), vizinhos (18,3%), amigos(as) da família (8,5%) e, em
último lugar, o pai (7%) (MARTINS & JORGE, 2010). Essa mesma pesquisa
evidencia que a maioria dos casos de abuso sexual ocorreu na residência da vítima
(52,7%), seguida pela residência do agressor (30,1%). Segundo tais levantamentos,
pode-se, portanto, levantar a hipótese de que a maioria dos casos de abuso sexual é
intrafamiliar, acontecendo no lar da criança e sendo praticado por pai, padrasto ou
parente próximo.
A criança vítima de abuso sexual, principalmente quando esse é intrafamiliar,
vive uma situação contraditória, pois o trauma acontece em um círculo de
relacionamento em que deveria ser cuidada e em um momento do desenvolvimento
que requer a proteção e o suporte das figuras parentais. Diversos autores
14

(KALSCHED, 2013; VAN DER KOLK, 2005; SCHORE, 2003; HERMAN, 1992)
escrevem sobre o impacto e as possíveis consequências do trauma precoce no
desenvolvimento cognitivo, emocional e social das vítimas. Crianças expostas a
experiências traumáticas sofrem multifacetadas consequências, tanto imediatas
como de longo prazo, que podem se estender até a adolescência ou a vida adulta.
Na população mundial, crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual tendem a
desenvolver e apresentar transtorno de ansiedade, sintomas depressivos e
agressivos, problemas quanto ao seu papel e funcionamento sexual bem como
dificuldades em relacionamentos interpessoais. Há forte associação entre abuso
sexual e transtornos mentais tais como transtorno afetivo, transtorno de estresse
pós-traumático, distúrbios alimentares, dependência química e transtornos
psicossexuais (SERAFIM et al., 2011; VAN DER KOLK et al., 2005). Segundo
pesquisa realizada na cidade de São Paulo (SERAFIM et al., 2011), as crianças
vítimas de abuso sexual apresentaram elevada tendência para depressão e
transtorno de estresse pós-traumático, com as meninas tendendo a apresentar
comportamento mais erotizado e os meninos, isolamento. Comportamentos e
sintomas podem ser indícios para os pais ou cuidadores desconfiarem da violência.
As vítimas de abuso sexual infantil costumam apresentar dificuldade de
concentração, medos, choro frequente, pesadelos, comportamento sexualizado e
enurese (BORGES & DELLAGLIO, 2008).
O desvelamento do ocorrido é difícil, tanto por parte da criança como da
família. O abuso sexual infantil é uma transgressão secreta, permeada por sensação
de culpa, vergonha e inadequação. É um processo dinâmico que não diz respeito
apenas aos participantes diretos, mas atinge todo o núcleo familiar. O temor e a
resistência em assumir a dor levam os conteúdos dolorosos a serem reprimidos ou
calados, tornando-se fonte de complexos. Jung (1951/2011a) já descrevera que
complexos familiares se perpetuam por modos de agir, por atitudes emocionais e
pelas crenças compartilhadas entre os membros da família. O rompimento desse
ciclo patológico só é possível com a quebra do silêncio.
A questão do desvelamento do segredo é enfatizada em diversas pesquisas
(SORSOLI, KIA-KEATING & GROSSMAN, 2008; JONZON & LINDBLAD, 2000;
KOGAN, 2004). Foi observado que, quanto maior o período em que o abuso é
silenciado, mais nocivo é o efeito sobre a personalidade da vítima. Pesquisas
indicam que menos da metade das vítimas reportam o abuso. A quebra do silêncio
15

muitas vezes é dificultada pela culpa, vergonha e opressão que as vítimas sofrem,
tanto individual como socialmente. As que relatam a experiência são, muitas vezes,
desacreditadas pela família e entes queridos. A dificuldade das vítimas em revelar o
que lhes aconteceu dificulta a intervenção psicológica assim como aumenta a
chance de revitimização.
Ambientes e técnicas que permitam a quebra do silêncio são necessários. O
ambiente terapêutico é percebido como um lugar protegido para crianças vítimas de
abuso sexual falarem sobre o trauma (POLLI, SAVEGNAGO e ARPINI, 2013), e o
desenho projetivo mostra ser um facilitador da expressão de sentimentos,
pensamentos e emoções no caso de crianças vítimas de abuso sexual infantil. Por
meio do desenho, é possível comunicar o que é difícil de ser falado.
A relevância da presente pesquisa encontra-se em explorar meios
psicodiagnósticos que facilitem a comunicação com a criança e a compreensão da
experiência por ela vivida. Visa ainda mobilizar meios verbais e especialmente não
verbais mediante observação de comportamentos, interação lúdica, técnicas
projetivas e expressão gráfica com fundamentação na Psicologia Analítica e na
leitura simbólica dos conteúdos emergentes. Espera-se mostrar que esses recursos
ampliam a possibilidade de representação psíquica do evento traumático e podem
constituir importante auxílio em diagnóstico e psicoterapia com crianças
traumatizadas.
Para embasar este trabalho, os capítulos iniciais se dedicarão ao
levantamento de pesquisas e à revisão da literatura relativa ao abuso sexual infantil,
às relações entre tal experiência e trauma e ao emprego do desenho como
instrumento para compreensão da psique da criança vítima de abuso sexual. A
essas seções seguem-se a discriminação dos objetivos de pesquisa e da
metodologia empregada, a apresentação e análise dos resultados encontrados, as
conclusões deste estudo e algumas considerações finais.
16

2 LEVANTAMENTO DE PESQUISAS SOBRE O TEMA

A revisão de pesquisas sobre o tema foi realizada em português e inglês, nas


bases CAPES, Scielo, Google Acadêmico, Pub Med e Journals, durante os meses
de abril a setembro de 2015. As palavras-chave utilizadas e seus cruzamentos
foram: abuso sexual infantil, diagnóstico, desenho; abuso sexual infantil, diagnóstico,
psicologia; desenho, psicologia, abuso sexual infantil; teste projetivo, desenho e
abuso sexual infantil.
Os artigos, dissertações e teses considerados aqui têm como instrumentos de
pesquisa testes projetivos que utilizaram desenho e/ou relatos verbais e/ou tenham
como referencial teórico a Psicologia Analítica.
O artigo “Psicoterapia e psicoterapeuta: representações de uma criança sob
suspeita de sofrer abuso sexual”, de Polli, Savegnago e Arpini (2013), enfatiza a
importância da relação terapêutica para o desvelamento do segredo do abuso
sexual e se baseou em estudo de caso que teve como objetivo compreender, por
meio da aplicação do Desenho-estória, como uma criança sob suspeita de sofrer
abuso sexual entende a terapeuta e a terapia. A participante – uma menina de cinco
anos, atendida em uma Unidade Básica de Saúde da cidade de Santa Maria (RS),
durante o ano de 2010 – foi orientada a realizar uma sequência de três Desenhos-
estória: 1) o desenho da sala onde era atendida; 2) o desenho dela na terapia; e 3) o
desenho da sua terapeuta. A avaliação dos dados foi feita a partir da técnica de
análise de conteúdo de Bardin (1977). As categorias encontradas, analisadas a
partir da teoria psicanalítica, mostram que o ambiente terapêutico foi percebido
como um lugar protegido, em que a criança pôde revelar seus segredos, angústias,
fantasias e conflitos. A terapeuta, por sua vez, foi representada como a responsável
por possibilitar um ambiente de acolhimento que permitiu e encorajou a criança a
quebrar o silêncio.
Um artigo pertinente para o presente trabalho é a revisão de pesquisas Can
Projective Drawings Detect if a Child Experienced Sexual os Physical Abuse?: A
Systematic Review of the Controlled Research, realizada por Brian Allen e
Chriscelyn Tussey (2012), pesquisadores da San Houston State University e da New
York University. Os autores buscaram compreender se as pesquisas realizadas com
desenhos projetivos possuem métodos empíricos confiáveis para validar a
experiência de abuso sexual infantil.
17

Situam historicamente a necessidade de um diagnóstico diferencial, realizado


por psicólogos e psiquiatras, em situações de investigação mediante a denúncia de
abuso sexual infantil. O levantamento realizado indica que, ao reconhecerem que a
maioria das crianças ou nega o abuso ou se recusa a falar diretamente sobre o
ocorrido, os pesquisadores começaram a procurar formas indiretas de conseguir tais
informações, e o desenho foi um dos meios encontrados. Na década de 1980, vários
estudos apontavam que indicadores gráficos, como a omissão das mãos e o
desenho explícito de genitálias, poderiam indicar abuso sexual. Contudo, no final
dos anos 1990, o uso de técnicas projetivas na validação da denúncia de abuso
sexual infantil se tornou controverso, pois técnicas estatísticas mais sofisticadas
concluíram que as pesquisas realizadas tinham limitação metodológica. A partir
desse panorama, os autores se propuseram a elaborar uma revisão da literatura
empírica para determinar se a análise dos desenhos infantis usando indicadores
gráficos ou sistemas de pontuação definidos, a fim de detectar abuso sexual ou
físico, é suportada por evidência científica.
Os artigos incluídos na revisão foram selecionados a partir dos seguintes
critérios: publicações em journals, anteriores a 2011, revisadas por pares; pesquisas
que contassem com um grupo controle definido, normativo ou clínico, composto por
participantes não vítimas de abuso sexual; critérios de avaliação claramente
especificados antes da análise de dados; grupo experimental consistindo de
crianças e/ou adolescentes vítimas de qualquer abuso sexual ou físico, que não
tivessem sofrido uma combinação de diferentes formas de maus tratos. Foram
selecionados 13 artigos referentes a abuso sexual infantil e 10 estudos que tiveram
como participantes crianças que sofreram abusos físicos. No que diz respeito às
pesquisas sobre abuso sexual infantil, foram analisados artigos que tiveram como
intrumento o Desenho da Figura Humana e o Desenho Cinético da Família (KFD) e
que utilizaram o Indicador Emocional de Koppitz e o Sistema de Score de Van
Hutton.
A revisão concluiu que não é possível identificar indicadores gráficos de
abuso sexual e físico em desenhos projetivos de crianças. Os desenhos projetivos
podem ser vistos como uma das informações a serem levadas em consideração
para identificar a ocorrência ou não do abuso sexual infantil, mas não a única, em
razão de as pesquisas apresentarem baixa confiabilidade e validade.
18

Em seu artigo “Abuso sexual na infância: um estudo de validade de


instrumentos projetivos”, Da Fonseca e Capita (2005) apresentaram pesquisa que
teve como objetivo verificar se os instrumentos Desenho da Figura Humana (DFH) e
Teste de Apercepção Infantil – Animal (CAT-A) são capazes de apontar indicadores
de abuso sexual. Participaram do estudo 30 crianças do interior de São Paulo,
metade das quais apresentava histórico de abuso sexual infantil (grupo de pesquisa)
e a outra metade, não (grupo controle). O DFH apontou diferença nos indicadores
emocionais do grupo de pesquisa e do grupo controle. No primeiro, 66,6% dos
participantes apresentaram escore maior ou igual a três indicadores e, no segundo,
a mesma porcentagem de participantes apresentou até dois indicadores. No CAT-A,
a análise das respostas das crianças foi realizada por meio de categorias levantadas
a partir das histórias contadas pelo grupo de pesquisa. Seis indicadores foram
estabelecidos: abuso sexual, medo, ameaça do meio, agressividade, desequilíbrio e
abandono. Constatou-se que o grupo de pesquisa apresentou até seis indicadores e
o grupo controle, até três. O estudo concluiu que os instrumentos utilizados são
sensíveis a indicadores de abuso sexual, apontando diferenças entre o grupo de
pesquisa e o de controle. No entanto, do ponto de vista estatístico, não foi possível
validar os dois instrumentos, devido ao número reduzido de participantes.
Serafim et al. (2011), no artigo “Dados demográficos, psicológicos e
comportamentais de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual”,
apresentaram estudo realizado por equipe de psicólogos e psiquiatras do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo – IPq-HCFMUSP com o objetivo de descrever dados demográficos e
aspectos emocionais e comportamentais de crianças e adolescentes vítimas de
abuso sexual. Participaram do estudo 205 crianças e adolescentes com idade entre
seis e 14 anos, dos quais 130 eram meninas (3,4 a 9,6 anos) e 75, meninos (2,9 a
7,2 anos). Todos tinham histórico de abuso sexual e passaram por avaliação
psicológica e psiquiátrica individual no período de 2005 a 2009 naquela instituição.
As variáveis estudadas foram: gênero, faixa etária, grau de relação da vitima com o
perpetrador, aspectos psicológicos, dados psiquiátricos, aspectos comportamentais
e afetivo-emocionais (culpa, vergonha, medo, insegurança, percepção da figura
masculina e feminina e de si em relação ao ambiente). Os instrumentos utilizados no
estudo foram: Entrevista diagnóstica, Teste de Pfister, Teste de Apercepção
19

Temática (TAT), Teste de Apercepção Temática Infantil (CAT-A) e Teste do


Desenho da Casa-Árvore-Pessoa (HTP).
Com base nos resultados dos testes projetivos, o estudo aponta que, na ótica
da criança vítima de abuso sexual, a figura masculina é percebida como
ameaçadora, egoísta, despreocupada com a família e ineficiente. Vale ressaltar que,
nessa amostra, os pais são os maiores perpetradores do abuso sexual (38%),
seguidos dos padrastos (29%). Esse dado é de extrema relevância, pois tal
percepção da figura masculina pode tornar-se generalizada e comprometer um
vínculo seguro e de confiança com outros homens. A figura feminina (geralmente
representada pela cuidadora, a mãe) é percebida como protetora (69%), porém
frágil, e 19% dos participantes a percebiam como incapaz. O ambiente foi percebido
pela maioria das crianças (34%) como hostil, ameaçador (27%) e desprovido de
amparo (22%). Em relação aos aspectos afetivo-emocionais, a maioria dos
participantes (77,6%, ou seja, 159 crianças) apresentou: culpa (77%), vergonha
(64%), medo (61%) e insegurança (59%). As meninas apresentaram maior
frequência (14%) do que os meninos (5%) na categoria “baixo rendimento escolar”.
Em relação à agressividade, não houve diferenças significativas entre os gêneros
(24%, no caso das meninas, e 23% dos meninos). A pesquisa apontou que a
repercussão emocional do abuso sexual é severa, no que diz respeito ao
funcionamento psicológico das vítimas, e agravada pelo fato de a maioria dos
abusos ocorrer no ambiente familiar. Os autores estimam que a percepção desse
ambiente como ameaçador bem como a sensação de desamparo, medo e abandono
são aspectos que podem favorecer o desenvolvimento de comportamentos
desadaptativos decorrentes de isolamento, retraimento social e depressão. Meninos
e meninas expressaram elevada frequência para depressão e transtorno de estresse
pós-traumático (TEPT). O estudo pontuou a necessidade de pesquisas dentro da
temática da violência sexual infantil na população brasileira.
Lucilena Vagostello (2007), em sua tese de doutorado no programa de pós-
graduação em psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo,
intitulada “O emprego da técnica do desenho da pessoa na chuva: uma contribuição
ao estudo psicológico de crianças vítimas de violência doméstica”, teve como
objetivo apresentar a técnica projetiva o Desenho da Pessoa na Chuva para a
comunidade brasileira, assim como verificar como esse instrumento poderia ser
utilizado para a avaliação psicológica de crianças vítimas de violência doméstica.
20

Apesar de ser pouco conhecido no Brasil, o Desenho da Pessoa na Chuva é


difundido em países sul-americanos, principalmente na Argentina. A aplicação do
instrumento é simples, podendo ser realizada tanto individualmente como em grupo,
e em crianças, adolescentes e adultos de ambos os sexos. Para aplicação é
necessário lápis grafite preto, borracha e folha de papel sem pauta, entregue ao
participante na posição vertical. O participante é instruído a desenhar uma pessoa
na chuva.
A interpretação do Desenho da Pessoa na Chuva baseia-se nos mesmos
princípios de interpretação da Figura Humana de Machover, em termos dos fatores
expressivos e de conteúdo. Elementos adicionais ao desenho da figura humana,
como a chuva, podem simbolizar uma situação de tensão ou de hostilidade do meio,
contra a qual o indivíduo precisa se proteger, e o guarda-chuva pode representar os
recursos defensivos do indivíduo. No estudo, seis categorias gráficas foram
analisadas: a presença de mãos, pés, chuva, guarda-chuva, detalhes (sol, casa,
árvore, flor, carro, animais, etc.) e a dimensão do desenho. A pesquisadora concluiu
que o Desenho da Pessoa na Chuva traz elementos explícitos de sofrimento,
evidenciando a vitimização sofrida pela criança. A autora sugere que é possível
utilizar esse instrumento projetivo como auxiliar no contato inicial com crianças
vitimizadas, que podem começar a falar sobre suas experiências de forma mais
espontânea e menos dolorosa.
Na área da Psicologia Analítica, Neusa Sauaia, em sua dissertação de
mestrado de 2003, realizada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e
intitulada “Psicoterapia de orientação junguiana com foco corporal para grupos de
crianças vítimas de violência: promovendo habilidades da resiliência”, propõe uma
intervenção psicoterápica grupal a partir da abordagem teórica junguiana e corporal
e avalia os efeitos de tal intervenção na ampliação de recursos promotores de
resiliência. O método utilizado foi quantitativo, e a autora comparou resultados de
pré-teste e pós-teste em dois grupos de crianças (oito a 10 anos), todas abrigadas e
com algum histórico de violência (negligência, abuso sexual ou maus tratos). Os
testes e técnicas utilizados na comparação foram: desenho da figura humana,
modelagem da figura humana e cenas de areia no Sandplay e a observação do
comportamento das crianças durante as dezesseis sessões de psicoterapia em
grupo. Com base em autores como Neumann, Hunter, Vayer e Araújo, Sauaia
levantou duas categorias de análise para avaliar os efeitos da abordagem proposta
21

no que diz respeito à ampliação de recursos promotores de resiliência nas crianças


que participaram do estudo. As categorias são: percepção de si, a qual engloba
quatro habilidades – autonomia, senso de objetivo e futuro, habilidade cognitiva e
percepção corporal; e percepção do outro, englobando duas habilidades –
competência social e habilidade para desenvolver problemas. Os resultados
apontam que, na categoria “Percepção de si”, apenas duas crianças tiveram melhora
nas quatro habilidades avaliadas. Na categoria “Percepção do outro”, cinco crianças
apresentaram melhora nas duas habilidades. Apenas duas crianças obtiveram
melhores resultados em todas as habilidades das duas categorias. O estudo
concluiu que a psicoterapia junguiana com foco corporal adotada na pesquisa
mostrou-se eficiente para a amostra analisada, havendo necessidade de mais
estudos na área.
Também tendo a Psicologia Analítica como fundamento teórico, a pesquisa
intitulada “Trauma em crianças e acolhimento institucional: avaliação e
transformação por meio do processo psicoterapêutico da Terapia do Sandplay” (DA
MATTA, 2015) teve como objetivo investigar se crianças vítimas de trauma
(negligência, abandono, maus tratos, abuso físico, psicológico e/ou sexual) e que
apresentavam sintomas clínicos relacionados a fatores internalizantes
(ansiedade/depressão, retraimento/depressão e queixas somáticas) e/ou
externalizantes (violação de regras e comportamento agressivo) exibem melhoras
com relação a tais fatores em separado e no seu conjunto, assim como na
capacidade de percepção, análise visoespacial, abstração de um conceito e
sensação subjetiva de bem-estar, após tratamento psicoterapêutico com a Terapia
do Sandplay (TS). A pesquisa utilizou método misto, qualitativo e quantitativo, sendo
a análise qualitativa realizada a partir de duas categorias temáticas: temas que
sugeriam a dor psíquica relacionada ao trauma (Ameaça/Conflito;
Caótico/Destruição; Raiva; Machucado/Ferido; Negligência; Defesas/Cisão;
Escondido/Secreto/Misterioso) e temas associados à transformação e à
possibilidade de melhora psicológica (Celebração; Centralização; Integração;
Caminho; Nutrição; Proteção/Cuidado; Transferência). Até a metade do processo
(sessão 1 a 10), não houve diferença entre cenários positivos e negativos. Na
segunda fase do tratamento, houve diminuição significativa de cenários negativos e
aumento significativo em positivos. A pesquisa aponta que os temas que podem
representar trauma com resultado estatístico significativo foram: ameaça/conflito;
22

machucado/ferido; negligência e defesa. Os temas com resultados estatísticos


significativos que podem estar relacionados à transformação e à melhora foram:
centralização e integração. A pesquisa conclui que a TS possibilitou a melhora em
fatores internalizantes e externalizantes, assim como na capacidade de percepção,
análise visoespacial e abstração de um conceito. Segundo a autora, o processo de
simbolização propiciado pela TS possibilitou que os participantes expressassem
seus sofrimentos. E, dessa forma, os movimentos de progressão e regressão da
libido, possivelmente bloqueados por defesas rígidas e manifestados pelos
sintomas, conseguiram encontrar uma direção e finalidade.
A partir da revisão de pesquisas, percebe-se que o desenho projetivo é mais
eficiente ao ser utilizado como ferramenta expressiva para a vítima do que quando
utilizado como ferramenta de validação do abuso sexual infantil. As literaturas
nacional e internacional refutam a existência de indicadores gráficos específicos que
determinem ou não o abuso sexual infantil.
Pode-se concluir que, na população estudada, o desenho projetivo facilita a
comunicação entre paciente e terapeuta; expressa as percepções da criança sobre o
ambiente em que está inserida; promove a expressão de emoções, fantasias e
medos de uma forma mais espontânea se comparada à comunicação verbal. São
dados extremamente importantes devido à dificuldade que vítimas de abuso sexual
infantil têm em falar diretamente sobre o trauma.
23

3. TRAUMA E ABUSO SEXUAL

3.1 A psique traumatizada, memória traumática e memória sadia

O impacto do trauma no início da vida e suas consequências no


desenvolvimento cognitivo, emocional e social são objeto de estudo de autores
contemporâneos (KALSCHED, 2013; SCHORE, 2003). Esses estudiosos destacam
que a gravidade das consequências para o indivíduo dependerá do período em que
o trauma aconteceu – mais graves quanto menor a idade da criança –, da frequência
do evento traumático e de suas características.
Schore (2003), adotando uma abordagem neuropsicobiológica, concentra
seus estudos nos dois primeiros anos de idade, quando o cérebro humano cresce
mais rápido do que em qualquer outro estágio da vida. O autor enfatiza que os
primeiros ambientes sociais mediados pelas primeiras figuras de apego influenciam
diretamente os circuitos neuronais responsáveis pela futura capacidade social e
emocional do indivíduo. Dessa forma, experiências traumáticas ocorridas nessa
faixa etária prejudicam o desenvolvimento da criança.
Cyrulnik (2013) postula que o impacto do trauma será menor em crianças
que, antes do evento traumático, já tenham adquirido um vínculo seguro e tenham
aptidão para verbalizar suas emoções. A capacidade de conseguir expressar
verbalmente o que ocorreu e encontrar a quem dirigir o relato, facilita o domínio
emocional. O sentimento de segurança, proveniente de uma experiência de vínculo
seguro prévia ao trauma, permite que imagens de horror não se apossem do mundo
interno. Segundo o autor, a memória traumática é uma “imagem clara
surpreendentemente precisa, cercada de percepções vagas, uma certeza envolta
em crenças” (CYRULNIK, 2013, p. 52). Quando uma memória traumática é acionada
e irrompe na consciência, ocorre uma fixação da imagem passada e o pensamento
fica desordenado. A memória traumática não permite construir uma representação
de si tranquilizadora, já que, quando evocada, imagens do choque voltam à
consciência. Por outro lado, memórias sadias permitem a construção de uma
representação de si coerente e tranquilizadora. Por meio delas, é possível encontrar
24

maneiras positivas de viver, pois o encadeamento de lembranças de situações, falas


e acontecimentos sadios propicia a construção de representações claras.
A confiança no existir deriva do conhecimento sobre onde e com quem buscar
recursos.
Cyrulnick (2013) propõe, ainda, que a emoção atrelada à narrativa da
memória depende da história do indivíduo, já que pessoas que viveram uma mesma
situação constroem lembranças distintas. No que diz respeito às experiências
traumáticas, o individuo pode não ter nenhuma lembrança. O autor enfatiza que,
quando crianças abandonadas relatam sua vida, é possível perceber lacunas entre
uma memória e outra, longos períodos dos quais a criança não tem nenhuma
recordação e que, segundo o autor, correspondem a períodos de isolamento.
Na memória traumática, a lembrança do evento traumático se impõe e o
indivíduo adquire uma vulnerabilidade neuroemocional. Essa situação, por si só,
gera grande sofrimento, que pode ser maior no caso de a pessoa ter dificuldade de
se expressar verbalmente ou quando o ambiente a impede de falar. Com a memória
paralisada, o sujeito é prisioneiro de seu passado, podendo apenas ruminar e sofrer
as reminiscências. A partir dessa linha de raciocínio, pode-se pensar que crianças
em idade pré-verbal são mais vulneráveis em situações de trauma e que, quando
essas ocorrem no ambiente familiar, o efeito nocivo e o isolamento podem ser
maiores.
Ambientes relacionais organizados a partir de condições adversas prejudicam
o desenvolvimento da criança. Relações traumáticas que envolvem as primeiras
figuras de cuidado, como no caso de negligência, violência física, psicológica ou
sexual, podem ter como consequência a não formação de um vínculo seguro no
início da vida. Para descrever tais experiências traumáticas interpessoais, múltiplas
ou crônicas, que ocorrem tipicamente em um círculo de relacionamento em que o
indivíduo deveria ser cuidado, Judith Herman (1992) cunha o termo “trauma
complexo”, o qual também é utilizado pelo Trauma Center no Justice Resource
Institute – JRI – de Massachusetts, Estados Unidos.
Cyrulnick (op. cit.) considera que as vulnerabilidades neurológicas adquiridas
a partir de situações traumáticas precoces podem ser ressignificadas quando a
infelicidade social ou relacional que empobreceu o ambiente é suprimida, e as
relações modificadas, ou quando é possível estabelecer um substituto ambiental.
25

3.2 Psique traumatizada e mecanismos de defesa

Kalsched, no livro O mundo interior do trauma (2013), postula que a


exposição a situações de traumas acumulativos durante o início da primeira infância,
antes que o ego e suas defesas estejam formados, aciona um sistema de
autocuidado arquetípico – que busca preservar a essência do eu da pessoa; garantir
um desenvolvimento minimamente satisfatório e proteger o indivíduo de uma
possível retraumatização. Tais defesas arquetípicas são classificadas, pelo autor,
como defesa de separação, identificação projetiva, idealização e mecanismos
dissociativos.
O movimento psíquico é o de expelir o que não é aceitável. Assim, o trauma
precoce pode promover uma cisão psíquica, pois a assimilação da situação
traumática acarretaria grande sofrimento. De acordo com o autor, essa
fragmentação psíquica leva, por um lado, a vitima a tornar-se precocemente
autossuficiente e ter uma postura onipotente frente ao mundo. Por outro lado, parte
da personalidade fica regredida a um estado infantil e fantasioso. Kalsched enfatiza
que o rompimento que ocorre na psique anestesia o ego da dor do trauma, mas
promove a perda do sentido da experiência, pois os pensamentos e imagens são
desconectados dos afetos, prejudicando o processo natural de integração simbólica.
Schore (2003) também ressalta a perda da capacidade de processar
informações do ambiente externo e interno, no momento em que a criança entra no
estado dissociativo. Segundo o autor, a dissociação, inscrita no hemisfério direito,
região relacionada ao comportamento evitativo e de afastamento, ocorre pela
primeira vez a partir de um choque psicológico ou uma alta excitação, constituindo-
se em um escape onde não há escapatória.
A memória traumática é um alerta constante para a criança ferida que, por ter
sido maltratada, torna-se extremamente vigilante. As imagens traumáticas instaladas
na memória a levam a se afastar do mundo externo. Assim, o indivíduo traumatizado
pode parecer indiferente, prostrado, como se estivesse entorpecido, porém seu
mundo interno fervilha (CYRULNIK, 2013).
Além disso, a posse da memória traumática provoca reações que alteram a
maneira como os relacionamentos são estabelecidos. Comportamentos surgem para
impedir o sofrimento, como evitar o local onde sofreu o trauma, as situações que
podem lembrar o evento e os objetos que podem evocá-lo. Palavras que remetem
26

ao ocorrido são evitadas. Assim, a aproximação a alguém que foi traumatizado é


extremamente difícil, pois ele se retrai e encapsula seu sofrimento, tendo grande
dificuldade em compartilhar suas emoções.
De outra parte, Cyrulnik (2013), ao abordar o silêncio em torno do evento
traumático, relata que o sigilo ocorre apenas no que diz respeito ao tema específico,
pois sobre outros assuntos a pessoa se expressa com naturalidade. Tal
comportamento, de acordo com esse autor, leva a criança a passar uma imagem
enigmática, que intriga aqueles que lhe são mais próximos e que ora se veem
entretidos, ora desorientados.

3.3 Consequências do trauma complexo

Van der Kolk et al. (2005) apontam que a exposição ao assim chamado
“trauma complexo” começa, na maioria das vezes, na primeira infância, e o impacto
imediato ou contínuo da situação traumática leva a uma deficiência em todos os
domínios do desenvolvimento. Esses autores observaram que crianças expostas ao
trauma complexo frequentemente apresentam dificuldades que podem se estender
da infância à adolescência e até a vida adulta. Tais dificuldades referem-se,
principalmente, à perda da capacidade básica de autorregulação e ao
estabelecimento de relacionamentos interpessoais. Os autores sugerem sete
domínios primários de comprometimento observados nessas crianças: relação de
apego, regulação de afetos, dissociação, regulação de comportamento, cognição e
autoconceito.
Alice Miller (1997), no livro O drama da criança bem-dotada, postula que,
durante o processo de desenvolvimento, a criança tem a necessidade básica de ser
vista e respeitada como indivíduo, e a validação de seus sentimentos e sensações
primárias por parte das figuras parentais e cuidadores proporciona a construção de
uma autoestima saudável. Para a autora, uma relação abusiva também ocorre
quando a criança é objeto narcísico dos pais. Nesse tipo de relação, a criança tem
suas vontades e sentimentos ignorados e precisa apenas corresponder às
expectativas de seus genitores. Crianças inteligentes, sensíveis e empáticas
percebem os desejos dos pais e começam a agir com o objetivo de agradá-los,
suprimindo seus próprios desejos e vontades.
27

Jean Knox (2011), ao teorizar sobre o conceito de “agência do eu”, amplia a


visão de Alice Muller. Segundo Knox, agência do eu é a capacidade de experimentar
a influência que exercemos em nosso ambiente físico e relacional, percebendo que
nossas ações e intenções afetam e produzem respostas daqueles que nos cercam.
Abarca a noção de poder fazer escolhas, de perceber que os atos causam efeitos e
consequências, assim como de poder controlar situações. Essa capacidade reflexiva
só é desenvolvida se a criança internalizar as figuras parentais como pessoas que
levam em consideração seus sentimentos e pensamentos. Quando isso não
acontece, a criança começa a ter uma agência do eu primitiva, baseada em
comportamentos controladores. A autora sugere que pessoas que vivenciaram
relações em que são dominadas ou controladas, nas quais não tiveram seus
desejos, vontades e pensamentos validados, acabam perdendo a capacidade
simbólica. Desta forma, relações de apego evitativo, desorganizado ou ambivalente
prejudicam o desenvolvimento da agência do eu e proporcionam a noção de que
palavras controlam atos, não havendo uma comunicação simbólica. Assim, relações
de abuso, principalmente nas quais o perpetrador é uma figura parental, trazem
grandes prejuízos para o agenciamento do eu e para o autoconceito.
É possível perceber outros danos acarretados pela exposição ao trauma
relacional precoce. Schore (2003) postula que o padrão de apego inseguro e/ou
desorganizado predispõe o indivíduo a comportamentos agressivos e a disfunções
crônicas na capacidade de regulação de afetos e de gestão de estresse. Além disso,
crianças expostas a esse tipo de trauma apresentam maior risco de se tornarem
inábeis na regulação de estados de medo-terror, o que acarreta maior chance de
desenvolverem transtorno de estresse pós-traumático (TSPT). Esse autor também
sugere que a agressividade é outro efeito que pode surgir a partir do trauma
relacional precoce. Explica que, se o TSPT representa uma desregulação no
sistema cerebral de fuga, os distúrbios agressivos representam uma desregulação
nos centros cerebrais de luta; um relacionado com intenso terror e o outro, à intensa
raiva. Essas desregulações se manifestam precocemente em pessoas com maior
risco a desenvolver transtorno de personalidade borderline e personalidade
antissocial.
A partir dessas proposições teóricas, o abuso sexual infantil será entendido,
neste estudo, como um trauma complexo, que pode prejudicar o desenvolvimento da
agência do eu da vítima assim como de sua capacidade simbólica. Entende-se que
28

o funcionamento psíquico das vítimas muitas vezes se estrutura a partir de


mecanismos de defesas dissociativos necessários para preservar minimamente sua
sobrevivência.

3.4 O trauma do abuso sexual

O padrão de apego inseguro é presente em 80% das crianças que sofreram


maus tratos (SCHORE, 2003). A criança vítima de abuso vive uma situação
paradoxal: na maioria das vezes, as figuras parentais que deveriam garantir um
refúgio seguro no relacionamento são os perpetradores. Dessa forma, a vítima
encontra-se em estado de constante alerta em relação aos pais, não tendo para
onde fugir e ninguém a quem recorrer. Nesse caso, a dissociação é uma opção para
sobrevivência.
Os episódios de trauma relacional precoce, tanto de abuso como de
negligência, iniciam-se quando a criança está começando a processar e codificar
informações do mundo externo e interno. Schore (op. cit.) enfatiza que,
principalmente em crianças no estágio pré-verbal de desenvolvimento, o padrão de
apego estabelecido com as figuras parentais fica gravado no circuito pré-frontal
direito, registrado nas regiões cerebrais corticolímbicas direitas e inscrito na memória
implícita de longo prazo. Assim, quanto mais cedo ocorrer e com maior frequência o
trauma, maiores danos no desenvolvimento.
Mesmo no primeiro ano de vida, crianças vítimas de abuso podem
estabelecer e manter alguma forma de representação interna de um evento
traumático durante períodos significativos de tempo. Percebe-se, também, que
crianças que estabelecem uma relação de apego disfuncional com as figuras
parentais continuam a ter comportamento dissociativo em outros momentos da vida.
Apresentam padrões de comportamento contraditórios, apreensão e confusão,
estagnação comportamental e congelamento, demonstrando, ainda, dificuldade em
estabelecer estratégias de enfrentamento comportamental coerente em situação de
estresse elevado. Além disso, segundo Schore (op. cit.), o imprinting de terror, raiva
e dissociação são os primeiros mecanismos de transmissão intergeracional de
violência.
De acordo com Maria Beatriz Müller e Maria Cecilia López (2011) o abuso
sexual infantil não é um único ato violento, como o estupro, por exemplo, mas se
29

trata de um processo com diferentes etapas, produzido em um contínuo. Para fins


explicativos, a autora relata cinco fases ou etapas características do abuso sexual
infantil, que podem se sobrepor: captação/aliciamento, interação sexual, segredo,
revelação ou desvelamento e retratação.
O aliciamento é caracterizado pela sedução por parte do perpetrador que, ao
escolher sua vítima, emprega várias manobras para conquistá-la: dando atenção
especial, presentes, carinho, mas também ameaças, castigos e coerção. A interação
sexual acontece aos poucos. Os carinhos e afetos vão se transformando em atos
com intenções sexuais. A criança se vê envolvida em tais atos sem ter uma
compreensão clara do que está acontecendo. O segredo é o que permite que o
abuso seja sustentado ao longo do tempo. É alimentado pela vergonha e culpa
sentidas pela criança. Isso acontece, pois, muitas vezes, a partir das ameaças e
enganos do abusador, a criança fica confusa e é induzida a sentir que é responsável
pelo que aconteceu.
A revelação ou desvelamento é a fase em que a vítima relata o que está
acontecendo com ela. Isso pode se dar tanto verbalmente como simbolicamente, por
meio de jogos e desenhos – mais comuns em crianças pequenas. De acordo com a
autora, a atitude e ação tomadas por quem recebe esse relato é muito importante
para o futuro da criança ou adolescente vítima do abuso sexual. Caso seja uma
atitude de descrença, a vítima pode se sentir acuada e dificilmente irá relatar o
ocorrido novamente. A retratação pode ocorrer, pois, muitas vezes, ao ver as
consequências de sua revelação, as vítimas podem voltar atrás sobre o que
disseram. A retratação faz parte do processo do abuso, pois relatar o ocorrido é
mais uma forma de assumir sua existência.
Cyrulnik (2013) enfatiza que, se antes do trauma o sujeito tinha capacidade
de se comunicar e se sentir seguro, após o evento traumático ser apoiado e
escutado, a memória pode se transformar. A representação do ocorrido muda com o
tempo e segundo o contexto familiar e cultural.
Dessa forma, o abuso sexual infantil será entendido como um processo no
qual a relação estabelecida é paradoxal e acarreta prejuízos graves à vítima e no
qual a presença de sentimentos como ambiguidade, culpa, vergonha e medo
dificulta o desvelamento do segredo.
30

4 O DESENHO NA PSICOLOGIA ANALÍTICA

Pinturas, esculturas, poesia, dança, música, literatura e outras manifestações


artísticas manifestam o lado criativo do ser humano. Jung (1922/2013a) propõe que
o inconsciente coletivo e/ou pessoal pode ser representado, a partir de imagens e
símbolos, por meio da arte. No contexto clínico, Jung (1958/2013b) enfatizou a
importância dos desenhos por serem expressões simbólicas não-verbais. Autores
como Susan Bach (1966) e Gregg Furth (2004), ampliaram o trabalho e estudo de
desenhos na abordagem junguiana. Segundo Furth, assim como nos sonhos,
fantasias, mitos e religiões, os símbolos presentes nos desenhos podem manifestar
conteúdos da camada coletiva do inconsciente, “ajudando-nos a responder questões
específicas em relação às figuras e à sua interpretação” (FURTH, 2004, p. 31).
Fordham (2001) considera que, assim como acontece nos sonhos, nos
desenhos as crianças são capazes de produzir símbolos, porém isso não é
frequente. A partir de sua experiência clinica, o autor relata que, na maioria das
vezes, as crianças preferem representar objetos conhecidos como casas, árvores,
barcos e pessoas ao invés de fantasmas, bruxas ou mágicos. Relata que podem ser
encontradas figuras mitológicas, embora as “clássicas” estejam sendo substituídas
pelas que aparecem em filmes e séries contemporâneos.
Allan (1978, 1988) descreve estudos de casos em que demostra que o
desenho é ferramenta para ajudar crianças a lidar com uma série de traumas,
incluindo abuso físico e sexual, divórcio e doença terminal. Para o autor, quando a
criança tem a oportunidade de realizar desenhos em série, com o apoio de um
adulto disponível e disposto a gerar um ambiente estável e criativo, o potencial de
cura da psique é ativado, permitindo que a criança tenha acesso a recursos internos
para lidar com problemas.
De maneira geral, os autores percebem o desenho infantil como uma
representação própria da criança que o produz e que reflete a condição emocional,
relacional e ambiental do período em que é realizado. Além disso, pode representar
uma projeção, de maneira empírica, do que esta acontecendo com o seu corpo. Os
desenhos permitem que a criança expresse o que tem de mais íntimo, seus
sentimentos e sua percepção dos eventos que a cercam, assim como conteúdos
inconscientes. (BERTOIA, 2001; FORDHAM, 2001; FURTH, 2004).
31

Ao fornecer um panorama do que está acontecendo com a criança, os


desenhos podem direcionar as intervenções que lhe seriam mais úteis. Hammer
(1985) expressa essa mesma visão, acrescentando que as crianças acham que é
mais fácil comunicar, especialmente aquelas coisas que não devem ou não podem
compartilhar verbalmente, por meio do desenho. O autor enfatiza que as crianças
desenham antes que possam escrever, e que os desenhos, como nos sonhos,
indicam o conteúdo projetado de conflitos inconscientes.
Dessa forma, os desenhos infantis permitem a expressão de questões
internas de maneira que essas sejam compreendidas com maior facilidade pelos
outros. Tal compartilhamento permite que os adultos dispostos a falar com a criança
tenham uma oportunidade de alcançar alguns insights a respeito do que é
significativo para a criança, naquele momento, do ponto de vista da própria criança,
evitando-se, assim, que projeções adultas venham a contaminar a interpretação
daquilo que foi desenhado (BERTOIA, 2001).

4.1 Desenho e desenvolvimento infantil

A evolução do desenho está relacionada ao desenvolvimento da criança.


Tomando por base a teoria evolucionista, alguns autores assinalam, inclusive, o
paralelo existente entre o desenvolvimento do desenho infantil e achados
antropológicos relacionados à produção gráfica de tribos ancestrais – uma maneira
de demonstrar que a ontogenia repete a filogenia.
O desenho é a primeira produção material e durável que as crianças
elaboram – elas começam a desenhar imitando os adultos e logo se fascinam ao
perceber o impacto que suas produções podem gerar. É, também, uma maneira de
imitar a realidade e está vinculado a imagens mentais, que são interiorizações do
mundo externo. Nesse sentido, são a exteriorização dessas imagens internas,
refletidas por meio de instrumentos expressivos (MÜLLER & LÓPEZ, 2011).
Os desenhos, em crianças pequenas, são o simples prolongamento da
atividade motora, do movimento da mão: zigue-zague, ondulações, círculos.
Posteriormente, começam a reproduzir objetos e pessoas. Para realizar suas
produções gráficas, a criança precisa aprender a controlar seus movimentos e
desenvolver a motricidade fina. Deve, ainda, inibir movimentos desnecessários ou
indesejados. Assim, a evolução dos traços e formas presentes nos desenhos
32

permite analisar o componente cognitivo que acompanha o desenvolvimento da


criança. Possibilita, ainda, compreender como ela representa a realidade à sua volta,
como visualiza o espaço e que conceitos tem das coisas, em geral e em particular.
O componente afetivo presente nos desenhos tem importância fundamental, pois a
criança desenha o que lhe interessa, o que importa para ela, o que a preocupa ou o
que deseja.

4.2 O desenho da criança de 4 a 6 anos

Os desenhos analisados nesta pesquisa foram realizados pela participante


quando ela tinha cinco anos e meio. Dessa forma, decidiu-se contextualizar as
características esperadas para essa faixa etária.
Müller & López (2011) endossam aquilo que os teóricos que estudam o
desenvolvimento do desenho infantil relatam sobre o desenvolvimento infantil nessa
etapa. Por volta dos quatro anos de idade, a criança está na fase do realismo
intelectual. Nessa etapa, começa a realizar com mais intenção linhas de diferentes
formas: a maioria dos desenhos passa a ser elaborada no centro da folha; a
motricidade fina ainda não é apurada e, por isso, muitas vezes, os desenhos são
grandes e desproporcionais; começa a existir a diferenciação entre cabeça e tronco,
com o uso de círculos unidos para representá-los; outros círculos menores estão
presentes para representar olhos, bocas, umbigos e botões (de uma suposta roupa);
não há diferenciação sexual nas figuras desenhadas; mãos e pés são representados
por linhas.
Aos cinco anos, é esperado que a criança comece a desenhar a figura
humana com o tronco maior e a cabeça menor; o cabelo é desenhado com mais
detalhes, os olhos ficam menores e mais preenchidos, e a boca passa a ter linhas
mais curvas, podendo compor um sorriso ou careta; braços, pernas, mãos e pés se
localizam discriminados do corpo e deixam de ser indicados por uma única reta
(unidimensionalidade), passando a ser realizados com duas linhas paralelas e
unidas nos extremos (bidimensionalidade). Aparecem os primeiros sinais de
diferenciação sexual nas figuras humanas desenhadas. Surge, também, a temática
do pudor, com sombreados ou colorido das roupas, cinto ou linhas divisórias do
tronco. Essa fase é denominada simbolismo descritivo.
33

Aos seis anos, com o início da escolaridade, a criança passa a elaborar


desenhos típicos de livros, estilo “clichê”, entrando na fase do realismo perceptivo,
em que há um intento de desenhar os objetos semelhantes ao que percebem na
realidade física, o que significaria que o princípio da realidade assume maior
importância que o do prazer. Há um aumento significativo da diferenciação e
discriminação, que permite um desenvolvimento mais complexo e completo das
figuras; a onipotência e o egocentrismo que apareciam nas figuras grandes e
centrais são deixados de lado – as figuras tendem a ser colocadas na base inferior
esquerda da folha; são desenhados personagens com papéis de destaque –
príncipes, princesas, rainhas, super-heróis; as figuras diferenciam-se sexualmente
por causa das roupas e também em razão do cabelo (curto ou comprido); a
descrição é enfatizada antes da representação (peças do vestuário e ornamentos);
os desenhos ficam mais ajustados ao objeto real e a seus detalhes.

4.3 Desenho e abuso sexual infantil

Necessidades, tensões, estado emocional, concepções pessoais sobre o


ambiente e as relações sociais, o modo de vinculação e a maneira com que ações e
pensamentos são organizados podem surgir em produções gráficas. Müller & López
(2011) descrevem que crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual costumam
realizar desenhos escuros, tachados, borrados e até furiosamente destruídos. O
desenho é uma via expressiva, em que podem projetar seu sofrimento, quase sem
censura, de maneira espontânea e aberta.
Tendo esse panorama, a experiência das autoras mostra que o desenho e as
criações artísticas em geral são os espaços mais utilizados por crianças vítimas de
abuso sexual para expor sofrimentos e segredos. Além disso, as autoras pontuam
que os desenhos são indicadores confiáveis para realizar um diagnostico de abuso
sexual infantil. Destacam que, a fim de realizar um diagnóstico eficaz da situação da
criança, sempre será adequado comparar os dados obtidos por meio de técnicas
projetivas gráficas com o quadro global do comportamento da criança, a qualidade e
temática de seus jogos, sua história de vida, seu contexto familiar e a sintomatologia
geral.
34

5 OBJETIVO

5.1 Objetivo geral

Realizar estudo clínico do caso de uma menina com queixa de abuso sexual.

5.2 Objetivos específicos

Descrever a psicodinâmica e o estado emocional da criança participante do


estudo.

Realizar uma análise interpretativa e simbólica das expressões gráficas e


verbais da criança participante do estudo.
35

6 MÉTODO

O presente estudo optou por uma metodologia qualitativa, abordagem que


permite compreender o fenômeno em termos de seu contexto e considera tanto a
objetividade quanto a subjetividade (PENNA, 2013). Considerou-se, assim, a
abordagem qualitativa como a mais adequada para a atual pesquisa, por ter como
objetivo não só descrever um fenômeno, mas compreendê-lo. O método de
pesquisa escolhido foi o estudo de caso, por possibilitar a “construção de um
raciocínio e relato de informações que entrelaça teoria com observações de fatos”
(CAPITÃO e VILLAMOR-AMARAL, 2007, p. 238), a fim de refletir e formular
hipóteses sobre o fenômeno observado. De acordo com Revault d’Allones (2004), o
estudo de caso na psicologia clínica tem como objetivo colocar em foco a
singularidade de uma história de vida e sua complexidade, a partir de leituras em
diferentes níveis e com instrumentos conceituais adaptados.

6.1 Participante

A participante da pesquisa foi uma menina de cinco anos e meio com queixa
de abuso sexual desde bebê, sendo o pai biológico o possível perpetrador. Neste
estudo, a participante será identificada apenas por Juliana e sua mãe, por Olívia,
nomes fictícios, como meio de preservar suas identidades e garantir o necessário
sigilo.

6.2 Local

Os atendimentos foram realizados no consultório particular da pesquisadora,


localizado na zona oeste da cidade de São Paulo.
36

6.3 Instrumentos

6.3.1 HTP – Casa-Árvore-Pessoa

Técnica de desenho que permite a projeção de elementos da personalidade e


de áreas de conflitos (BUCK, 2003), propiciando o levantamento de informações
sobre como a pessoa vivencia sua individualidade em relação ao ambiente social e
familiar.

6.3.2 Teste de Apercepção Infantil-Animal (CAT-A)

Teste projetivo que permite a avalição da dinâmica afetivo-emocional de


crianças. É composto por dez pranchas que retratam cenas de animais em situações
humanas. As crianças são orientadas a elaborar uma história sobre cada prancha,
com começo, meio e fim, e a dar um título para cada história. A partir das narrativas,
é possível perceber as dinâmicas interpessoais, a natureza e a força dos impulsos
bem como o uso de defesas.

6.3.3 Desenho da Pessoa na Chuva

Teste projetivo gráfico, amplamente utilizado na avaliação de perícia clínica


de abuso sexual infantil, principalmente em outros países da América Latina. No
Brasil, entretanto, esse instrumento não está validado e, mundialmente, há pouca
pesquisa empírica sobre esse teste em relação ao abuso sexual infantil. O
instrumento, no qual a chuva representa o elemento perturbador, tem como objetivo
interpretar a imagem do corpo da pessoa em condições ambientais desagradáveis
e/ou tensas (VAGOSTELLO, 2007).
37

6.3.4 Desenhos espontâneos e Temática do jogo lúdico

Müller & López (2011) enfatizam que os desenhos espontâneos e a temática


dos jogos da criança são de extrema importância em situação de diagnóstico do
abuso sexual. Conjugados aos dados obtidos nas técnicas projetivas, à história de
vida e à sintomatologia, ajudam a ter um panorama mais amplo sobre vivência da
criança.

6.4 Procedimento

6.4.1 Procedimento de seleção da participante

O caso clínico escolhido derivou de um atendimento de psicodiagnóstico


breve realizado pela pesquisadora no ano de 2013, durante seu voluntariado na
ONG Núcleo Espiral. A participante foi encaminhada para processo de
psicodiagnóstico breve pela psicóloga da Defensoria Pública do Estado de São
Paulo, órgão que estava realizando processo de separação dos pais da participante
e do estabelecimento da guarda da criança.

6.4.2 Procedimento de intervenção

Os atendimentos foram realizados nos meses de julho e agosto de 2013,


semanalmente, com duração de uma hora, totalizando seis sessões. Na primeira
sessão, que excepcionalmente teve a duração de uma hora e meia, foi realizada a
anamnese com a mãe da participante. Na segunda sessão, mãe e filha foram
atendidas juntas, sendo esse o primeiro contato entre a pesquisadora e a criança. A
partir da terceira sessão, só a participante foi atendida. Durante as sessões
individuais, os testes projetivos foram aplicados. Houve uma sessão extra com a
mãe, na qual se realizou a devolutiva, a entrega do relatório final, orientação e
encaminhamento. Essa última sessão não foi objeto de análise no presente estudo.
Durante todas as sessões, garantiu-se que não estivessem presentes
terceiros na sala, de maneira a assegurar o sigilo das informações. Especialmente
durante a aplicação dos testes, proporcionou-se ambiente silencioso e dotado de
instalações confortáveis e iluminação adequada.
38

6.4.2.1 Anamnese

A anamnese foi realizada com a mãe da criança, com o objetivo de


compreender o histórico clínico, familiar, social e escolar da participante, assim como
o enquadramento da queixa de abuso sexual e os desdobramentos havidos após a
descoberta do ocorrido.

6.4.2.2 HTP - Casa-Árvore-Pessoa

A pesquisadora solicitou que a participante desenhasse uma casa e, na


sequência, uma árvore, uma pessoa e uma pessoa do sexo oposto à primeira
desenhada. Para tanto, disponibilizou folhas de papel tamanho ofício, sem pauta,
lápis grafite preto e lápis coloridos. Optou-se por não realizar fase cromática e
acromática, disponibilizando todos os materiais de uma única vez. Foi feito o registro
fotográfico dos desenhos e a anotação das falas espontâneas da criança, suscitadas
pelas produções. Após cada desenho finalizado, foi realizado e registrado o
inquérito.

6.4.2.3 Teste de Apercepção Infantil-animal (CAT-A)

A pesquisadora orientou a participante, dizendo que iriam fazer uma


brincadeira que consistia em ela, participante, contar uma história sobre o que via
nas pranchas – uma história com começo, meio e fim. As pranchas foram
apresentadas uma após a outra, seguindo a sequência estabelecida para a
aplicação do teste. As histórias foram gravadas e posteriormente transcritas
literalmente pela pesquisadora.

6.4.2.4 Pessoa na Chuva

Foi entregue à participante uma folha de papel tamanho ofício, sem pauta, na
posição vertical, e lápis grafite preto. A pesquisadora orientou a participante dizendo:
39

“Desenhe uma pessoa andando na chuva”. Após a elaboração do desenho, a


pesquisadora pediu para a participante explicá-lo e anotou a resposta dada.

6.4.2.5 Desenhos espontâneos e Temática do jogo lúdico

Os desenhos espontâneos e o jogo lúdico apareceram em momentos livres


dos atendimentos. Alguns desenhos foram suscitados a partir dos testes projetivos
gráficos, como se a participante estivesse dando continuidade à sua produção
gráfica. Os registros relativos a esses momentos foram realizados após o término
das sessões e, os desenhos, fotografados.

6.4.3 Procedimento de análise

Na abordagem da Psicologia Analítica, os desenhos são fonte de material


simbólico que possibilita a compreensão de conteúdos inconscientes. Furth (2004)
propõe um método de análise de desenhos baseado no que chamou de ponto focal,
ou seja, aquele ponto do desenho em que a atenção do observador se concentra.
Segundo o autor, tais pontos mapeiam conteúdos inconscientes, não havendo um
número específico de focos a serem identificados. No presente estudo, os pontos
focais foram estabelecidos a partir de lista sugerida pelo autor, levando-se em conta
os conteúdos que emergiram nos desenhos elaborados pela participante.
O método da Amplificação Simbólica também foi utilizado para compreender
os símbolos que emergiram da produção gráfica e do relato da participante. O
método consiste em adicionar analogias àquela já oferecida pelo símbolo: “em
primeiro lugar, analogias subjetivas produzidas aleatoriamente pelo paciente, depois,
analogias objetivas providenciadas pelo analista a partir de seu conhecimento geral”
(JUNG, 1912/2011b, para. 493). As analogias podem ser provenientes de lendas,
mitos, arte, contos e religião. O resultado dessa busca consciente pelo entendimento
dos produtos inconscientes é o esclarecimento do sentido simbolicamente expresso
(JUNG, 1921/2011c).
40

O discurso proveniente das histórias contadas pela participante foi analisado


por meio da análise categorial proposta por Laurence Bardin (1977). Nesse tipo de
análise, o texto é desmembrado em unidades menores, que formam categorias em
torno da mesma temática. Os temas das categorias emergem do texto e é preciso
identificar o que há em comum nos trechos para agrupá-los em determinada
categoria (CAREGNATO, 2006).

6.4.4 Procedimento ético

A pesquisa foi realizada de acordo com os requerimentos éticos em pesquisa


envolvendo seres humanos preconizados pela Resolução CONEP 466/2012 do
Conselho Nacional de Saúde, pela Resolução CNS/MS 510/2016 e pelo Regimento
dos Comitês de Ética em Pesquisa da PUC-SP, que aprovou a realização deste
estudo sob o número 1.601.399. Constam em anexos o Termo de Compromisso do
Pesquisador (Anexo A), a Carta de Autorização da Instituição (Anexo B) e o Parecer
Consubstanciado do Comitê de Ética aprovando a realização deste estudo (Anexo C).
41

7 RESULTADOS E ANÁLISE

Em todas as almas, como em todas as casas, além


da fachada, há um interior escondido.
Raul Brandão

Os resultados e observações a seguir apresentados derivam das sessões de


atendimento descritas em detalhe nos Apêndices A a G.

7.1 Anamnese

Com base na anamnese, conclui-se que Juliana teve um desenvolvimento


dentro do esperado, sem nenhuma queixa por parte da mãe. O relato sobre a
criança focalizou, justamente, a relação entre os familiares. Olívia, a mãe apontou
uma mudança de comportamento do marido quando a filha nasceu. Naquele
momento, ele passou a assumir as tarefas da casa e de cuidados com a filha,
deixando de desejar sexualmente e agradar a esposa. Olívia acrescentou que o
marido começara, também, a criticá-la, dizendo-a incapaz de cuidar da filha.
Pode-se depreender, pelo relatado na anamnese, que o pai de Juliana
começou a preferir a filha à esposa. É como se Juliana tivesse passado a ser a
companheira do pai, sendo a mãe descartada. Além disso, há indicação de mudança
nos papéis familiares, uma vez que o pai passou a assumir funções que
anteriormente eram da mãe de Juliana. Também há indícios de que uma competição
se instaurou, com o pai menosprezando aquilo que a mãe fazia pela filha,
comprando presentes para Juliana que haviam sido prometidos por Olívia e fazendo
exageradas demonstrações de afeto. Ao falar sobre as situações referidas como o
abuso sexual, o relato da mãe se apresenta entrecortado, parecendo que ela estava
com dificuldade em separar os fatos daquilo que, após a separação, supôs ter
acontecido. Dessa forma, foi difícil reconstituir os acontecimentos reais.
Durante a sessão conjunta, Olívia apresentou algumas atitudes que parecem
ter deixado Juliana insegura e ansiosa, como o fato de falar, “brincando”, que o tio,
que estava na sala de espera, havia ido embora, como se ele as tivesse
abandonado ali. Além disso, tentava se comunicar com a pesquisadora, por meio de
cochichos e gestos, como que para que a filha não percebesse.
42

Ao ser perguntado a Juliana por que veio, ela imediatamente contou, fazendo
gestos para demonstrar, que, quando era bebê, o pai a encostava em seu corpo.
Este relato é o mesmo que a mãe conta, aparentando ser uma narrativa aprendida e
repetida sem uma apropriação do que de fato significa. Juliana não demonstrou
relacionar o ocorrido com o fato de não poder mais ver o seu pai e relatou sentir
saudades dele.

7.2 Expressões gráficas

Juliana mostrou resistência a desenhar, expressando não querer fazer os


desenhos ou não saber fazer o que lhe era pedido.
Os desenhos elaborados apresentam algumas características comuns: o chão
está ausente; o traçado é forte; o desenho da casa e o da árvore têm o mesmo
padrão – quadrados com várias linhas cruzadas, como barragens; há pouca
utilização de cores, apesar de os lápis coloridos estarem disponíveis – a cor só foi
utilizada nas janelas da casa. O grafismo, como um todo, mostra-se aquém do
esperado para a idade de Juliana. Assim, por exemplo, o desenho da casa não tem
telhado nem porta; os primeiros desenhos da figura humana não apresentavam
tronco nem braços, constituindo-se tão somente de cabeça e pernas.
Uma série de desenhos chama a atenção, porque Juliana os cobriu com tinta
após realizá-los. Logo após realizar os desenhos, que serão vistos em detalhe no
decorrer desta análise, Juliana começou a pintá-los com cola colorida e, em seguida,
cobriu-os com essa mesma cola. Em seguida, tomou uma folha em branco, encheu
de cola, que espalhou sobre o papel com as mãos, comentando “Ai, que delícia! Ai,
que delícia!”. Como a pesquisadora fotografou os desenhos antes de terem sido
cobertos pela cola colorida, foi possível recuperar o seu conteúdo.
43

7.2.1 Casa

Figura 1 – Casa

Duas figuras se destacam no desenho da casa (Figura 1): uma, no plano


principal, e a outra, no plano superior esquerdo. Não há estrutura de casa, não há
portas nem sustentação, apenas compartimentos. A figura do plano principal possui
quatro compartimentos, divididos em quatro, parecendo mais um portão que barra a
figura que está em segundo plano. O padrão das “barras” aparece, também, nas
janelas da outra “casa”. Repete-se a divisão em quatro e oito, o que pode indicar
uma tentativa de controle, a busca de algo que dê estrutura.
A observação dessas “casas” suscita algumas indagações: o que está
acontecendo dentro delas? O que existe em seu interior? Por que estão tão
trancadas? Como é possível acessá-las? As janelas, único elemento colorido, são a
única ligação entre interior e exterior. Possibilitam observar e ser observado. Deixam
transparecer cores, talvez em uma indicação de que no interior dessa casa existem
emoções. Se assim for, é possível que as “barras” estejam colocadas para impedir
que as emoções saiam.
44

7.2.2 Árvore

Figura 2 – Cesta da bruxa Figura 2a – Cabeção

Juliana se negou a desenhar uma árvore, preferindo fazer a “cesta da bruxa”


(Figura 2) de um lado da folha de papel e, do outro, aquilo que, rindo, denominou
“cabeção” (Figura 2a).
A árvore está associada à força vital e à natureza. O desenho da árvore, na
análise do HTP (BUCK, 2003), constitui-se, de forma indireta, na projeção da
personalidade. Pode ser considerado como a representação da estrutura do ego e,
também, indicar marcas de traumas vividos, uma vez que deixa transparecer
aspectos inconscientes com maior frequência do que o desenho da pessoa. Tem-se
que, em vez da árvore, Juliana desenhou uma “cesta de bruxa”, aplicando traços
fortes. O desenho se mostra trancado, como se não houvesse saída, como se
estivesse preso, o que parece reforçar a temática que aparece no desenho da casa.
45

A produção gráfica realizada no verso da folha é composta por duas figuras. A


maior é aquela que Juliana denominou “cabeção”, e a menor mostra-se cindida por
um barrado preto, mesmo padrão encontrado no desenho da casa e na cesta.
Ao desenhar o “cabeção”, Juliana riu muito, de um modo que, por sua
intensidade, destoou de seus risos habituais e levou a pesquisadora a se assustar,
em uma reação contratransferencial. Ao ser questionada sobre o significado de
“cabeção”, esclareceu que seria o pai e que o termo também se aplicaria a “pessoas
que não sabem escrever”. As barras que aparecem no desenho da casa se repetem
no centro do “cabeção”.
O movimento de desenhar no verso da folha dá a conotação de algo
escondido ou trancado pela cesta, pois, afinal, é este o símbolo que está no
anverso.

7.2.3 Figuras humanas

Percebe-se uma evolução no desenho da figura humana no decorrer das


sessões, com os primeiros desenhos apresentando uma estrutura menos completa
do que os últimos.

Figura 3 – Pai

,
46

O primeiro desenho de pessoa foi de um homem (Figura 3). Ao começar a


desenhar, Juliana riu e disse: “cabeça dura”. Disse que a figura representava o pai e
tinha oito anos. Também mencionou que ele gosta de cozinhar. E disse: “Quando eu
era pequena ele me empurrava no carrinho. Eu fazia o suco dele, agora ele faz.
Antes, eu fazia o meu leite e, agora, minha mãe que faz”.
Essa fala pode ser interpretada como Juliana dizendo que, antes, ela cuidava
das necessidades afetivas do pai, mas, agora, ele tem que se cuidar sozinho. Como
ele já havia cuidado dela (“empurrou o carrinho”), posteriormente, ela cuidou dele
(fazia o suco). Ao mesmo tempo, ela fazia o próprio leite e agora a mãe é quem faz.
A temática apresentada pela mãe na anamnese apareceu nesse relato.
Juliana parece descrever sua relação com os pais, antes e depois da separação.
Pode-se entender que, após a separação, a filha não precisou mais cuidar das
necessidades do pai e a mãe assumiu o papel de cuidadora.
Temos ainda que “cabeção” e “cabeça dura” são nomenclaturas associadas
ao órgão sexual masculino. Na maioria dos desenhos que representaram o pai está
presente o que Juliana denominou de “pescoço”, localizado entre dois membros
maiores.

Figura 4 – Família
47

Figura 4a – Família – Detalhe

Juliana opta por desenhar a família toda, no segundo desenho, mesmo diante
da instrução de que deveria desenhar uma mulher. Antes de começar, comenta,
rindo, “vou desenhar minha família, casos de família”.
O desenho está posicionado no lado superior esquerdo. Não há nenhuma
referência espacial, o que dá a impressão que as figuras estão soltas no ar. Os
cabelos foram desenhados com traços fortes, o que pode indicar tensão ou
repressão. As figuras são rudimentares e não mais esperadas para a faixa etária em
que Juliana se encontra.
Vale ressaltar que “Casos de família” é o nome de um programa
sensacionalista da TV aberta, em que famílias revelam segredos e brigam diante
das câmeras. Pode-se entender que, de alguma forma, Juliana expressa, em seu
desenho, o conflito no ambiente familiar e inferir que ela o relaciona à mãe, uma vez
que o desenho é elaborado em resposta à solicitação “desenhe uma mulher”.
48

Figura 5 – Pessoa na chuva Figura 5a – Pessoa na chuva


coberta por cola

A terceira representação da figura humana, realizada a partir da consigna


“desenhe uma pessoa andando na chuva”, foi a de uma menina. Percebe-se que o
desenho é mais completo e detalhado que os anteriores, apresentando cabeça,
cabelos, olhos, boca, nariz, tronco, membros superiores e inferiores, mãos e pés.
Indica, desse modo, que Juliana consegue desenhar uma figura humana completa.
O desenho da pessoa andando na chuva evoca a proteção e os mecanismos
de defesas diante da situação de violência. No desenho de Juliana, percebe-se que
a menina desenhada não está com guarda-chuva e que também não há chuva. Tais
características podem indicar não apenas a vivência de falta de proteção, como
também uma negação da ameaça ou perigo, uma vez que a chuva, elemento
principal da instrução, está ausente.
Essa é a primeira das figuras que Juliana recobre de cola colorida (Figura 5a).
49

Figura 6 – O pai e a namorada Figura 6a – O pai e a namorada


cobertos com cola

Espontaneamente, após o desenho da Pessoa na Chuva, Juliana desenha


aquelas que são a quarta e quinta representações da figura humana deste estudo,
tendo elaborado primeiro a figura masculina e, em seguida, a feminina. A esse
desenho dá o nome de “o pai e a namorada”. Percebe-se que, nesse caso, a figura
que representa o pai não possui tronco, pernas, mãos nem pés, e a mulher não tem
braços. Cabem, aqui, questionamentos tais como: por que a figura masculina é
menos completa do que a feminina? E o que leva Juliana a desenhar figuras
regredidas, quando já é capaz de desenhar figuras compatíveis com sua faixa
etária?
Essa figura também é coberta por Juliana com tinta colorida (Figura 6a), à
qual se segue a atitude de espalhar, com a mão, sobre uma folha em branco, colas
coloridas, dizendo “Ai, que delícia! Ai, que delícia!” (Figura 7).
50

Figura 7 – Cores sobre papel em branco

É possível estabelecer uma relação entre o desenho da casa e as figuras


cobertas com tinta. Inicialmente, analisando a série manchada de tinta, a
pesquisadora havia levantado a hipótese de que Juliana, ao assim proceder,
procurava “esconder” os desenhos. Todavia, considerando o desenho da casa, com
suas janelas coloridas, é possível conjeturar que a “explosão” de cor das figuras
cobertas por cola colorida de certo modo exteriorizou aquilo que estava contido por
barras na casa e que só podia ser vislumbrado através das janelas. A descarga
motora (espalhar com as mãos a cola com que cobriu uma folha de papel em
branco) e a expressão de prazer (“Ai, que delícia! Ai, que delícia!”), que se seguiram
aos desenhos, podem talvez estar relacionadas a práticas provenientes de
estimulação sexual.
51

Figura 8 – Desenho livre

Ao fazer o desenho livre (Figura 8), Juliana desenha uma menina e com um
bebê dentro da barriga. Comenta que a menina é ela e o bebê, um menino.
Percebe-se, novamente, que a figura feminina é mais completa do que a masculina.
Esse desenho sugere algumas interpretações. Seria como se Juliana estivesse
expressando: “eu sou a companheira do meu pai, porque eu tenho um bebê para
ele”, ou “quem deu um bebê para o meu pai fui eu” ou, ainda, “quem é a mãe aqui?”

Figura 9 – Desenho de si mesma e do pai


52

A sétima e oitava figuras humanas estão presentes no desenho


orientado pela pesquisadora, em que foi proposto um tema para desenhar o
passado, o presente e o futuro. Primeiro desenha uma figura feminina, e diz ser ela,
e em seguida, desenha uma figura masculina, diz ser o pai, falando que não gostava
do que acontecia, mas que sente saudades do pai. Enquanto desenha o cabelo,
muito marcado de preto, comenta que fez uma coisa de palhaçada, por ter feito um
cabelo tão grande. Enquanto pintava o desenho da menina, comenta: “está
morrendo”. A pesquisadora pergunta por que e Juliana responde “porque sim”. Ao
final do desenho, corta a folha com a tesoura, separando a figura da menina da
imagem do pai. O autorretrato foi desenhado com traços fortes e coloridos. O cabelo
é um emaranhado; o rosto foi pintado de verde; o corpo, compactado e sem divisão;
a cabeça está dissociada do corpo. Percebe-se aqui uma autoimagem diferente da
anterior (menina com bebê). Esse novo desenho é mais rude, sombrio, apresenta
aspectos mais negativos, traços de dissociação e se vincula a sentimento de morte.
Destaca-se o fato de ser essa a primeira vez que a figura masculina foi desenhada
de forma completa, com cabeça, tronco, membros superiores e inferiores, mãos e
pés, além de ser colorida. Note-se, ainda, que as cores, no desenho do pai, estão
localizadas e limitadas, preenchendo espaços. O pai parece aqui preservado, como
uma boa figura perdida.
Em relação ao corte realizado com a tesoura, pode-se inferir que o futuro
apontou para a separação, com a qual ela se entristece. Não se sabe ao certo o
que quis dizer com o não gostar do que acontecia, se seria uma referência ao
afastamento do pai ou também a outras situações. Chama a atenção o desenho da
menina com as características acima apontadas como também a desproporção do
tamanho da criança e do adulto, um tema recorrente de inversão de papéis. A
menina desenhada aparenta ser “monstruosa”, o que leva a tecer interpretações
sobre o sentimento de culpa que ela poderia carregar, eximindo o pai de qualquer
ato nocivo. A pesquisadora reconheceu esse sentimento a partir da experiência
clínica e da literatura sobre mulheres com histórico de abuso sexual que se
culpabilizam em vez de entenderem que são vítimas. Parece chocante que uma
menina de apenas cinco anos possa simbolizar essa dinâmica.
53

7.3 CAT-A

Juliana contou as histórias de forma rápida e econômica, como que com o


intuito de acabar rapidamente a tarefa. De modo geral, apresentou um vocabulário
limitado e seus primeiros relatos, em especial, foram confusos.
Entre os temas que emergiram das histórias produzidas, a inversão de papéis
esteve presente em duas pranchas (um e oito). Na primeira, destacou-se o fato de
os menores realizarem uma tarefa de adulto – os pintinhos cozinham enquanto a
galinha observa, passivamente, não estando incluída na realização da tarefa. Na
oitava prancha esse tema se repetiu: um irmão dá a bronca na personagem
principal, função que seria de um adulto. Considerando o que Juliana mencionou em
outras sessões de atendimento, pode-se dizer que essa temática corresponde à sua
percepção sobre o relacionamento familiar: a mãe, mais distante, apenas observava,
ao passo que ela, Juliana, teria realizado tarefas de adulto (preparar o leite).
Outro tema que apareceu é a indiferenciação entre adultos e crianças. Na
segunda prancha, Juliana não deu mostras de ver diferença entre o urso pequeno e
os grandes. Na quarta prancha, a figura paterna é uma figura infantil, ora assume o
papel paterno ora é visto como criança. Juliana também não menciona a existência
de um casal parental, nas pranchas que evocam o tema, e, quando faz referência a
um possível casal, este é monstruoso. Por outro lado, na oitava prancha, ela dá
mostras de saber que há assuntos que são tratados entre os adultos, assuntos
esses que não devem chegar ao seu conhecimento. Demonstra, também, ter
consciência de que pode ser castigada por erros que comete.
Os temas da inversão de papéis e indiferenciação entre adultos e crianças,
indicam como Juliana percebe a sua relação com os mais velhos e, também, como
vê o modo como a tratam.
A figura feminina aparece poucas vezes, assumindo, nessas ocasiões, um
papel distante e passivo. Quando, na prancha dez, o papel materno se faz presente,
a figura feminina é vista como sendo de espécie diferente daquela da “filha”. Nessa
mesma prancha, Juliana cria uma história em que a filha não obedece às regras
impostas pelo “aleão” e é capturada por um monstro, “um monstro de homem”.
Nessa história, tem-se, ainda, o vaso entupido, o que pode indicar que algo em
Juliana, relacionado à vivência dos instintos, está bloqueado ou “entupido”. Percebe-
se, mais uma vez, a temática do trancamento, ressaltando-se que essa história foi
54

elaborada antes da sessão em que realizou a série de desenhos que cobriu com
cola colorida.
A figura masculina apareceu ora infantilizada, sem força, desvitalizada, não
ameaçadora, ora monstruosa e agressiva. O pai foi, por vezes, equiparado a um
irmão, a um semelhante. De outro lado, na prancha nove, o pai é o cozinheiro, o que
parece refletir o passado de Juliana, quando era o pai que se responsabilizava por
sua alimentação. Pode-se concluir que a figura masculina se mostra, para Juliana,
ambígua, pois é aquela que protege e alimenta ao mesmo tempo em que é
monstruosa e fraca.
Juliana demonstrou perceber situações de disputa e conflito e discorreu sobre
isso de forma clara. Em pranchas que apresentavam situações que podiam ser
vistas como conflituosas, Juliana pareceu se identificar com os animais menores
(rato na prancha três e macaco na prancha sete). Em um primeiro momento, o
animal menor conseguia fugir do maior, apesar de este ter uma imagem monstruosa.
Juliana também viu o animal grande e imponente, representado pelo leão na
prancha três, tendo uma atitude passiva (assistir TV) e fraca (doença), enquanto que
o animal menor (rato) mostrava uma atitude ativa, podendo até surpreender o maior.
Todavia, mesmo tais personagens pequenos apresentando aspectos positivos e
atitude ativa de fuga, os filhotes, de maneira geral, eram vistos como estando
assustados ou com medo.
Os temas da desproteção e da ameaça estiveram presentes na maioria das
pranchas: os pintinhos precisavam se cuidar sozinhos; não havia a presença de
adultos; os filhotes estavam à mercê de monstros. Pode-se considerar, assim, que é
desta maneira que Juliana percebe o ambiente que a rodeia.
55

7.4 Jogo lúdico

Durante as sessões livres, Juliana escolheu brincar sempre com os mesmos


brinquedos: um castelo e objetos de salão de beleza.
Na primeira sessão dedicada aos brinquedos, Juliana construiu com as peças
do muro do castelo uma divisão entre ela e a pesquisadora, o que poderia indicar
que ela ainda não se sentia segura ou não estava disponível na situação. Essa
atitude/ brincadeira lembra o desenho da casa, em que uma das construções estava,
aparentemente, colocada atrás de uma fortaleza. Mais uma vez a temática do
“trancamento”, do “fechamento” apareceu.
Na última sessão, Juliana voltou a brincar com o castelo e, dessa vez, ao
montá-lo, abre os muros em direção à pesquisadora, formando um canal entre as
duas. Sentou-se em uma extremidade desse canal e pediu para a pesquisadora
sentar na outra. Por sua iniciativa, ambas passam a brincar jogando, uma para a
outra, uma bolinha. Essa brincadeira final pode ter simbolizado que houve a abertura
de um canal de acesso, que possibilitou a passagem de conteúdos entre Juliana a
pesquisadora.
Outro momento significativo se deu quando Juliana, ao brincar com figuras de
príncipe e princesa, coloca-os frente a frente, encostados, e os esfrega um no outro,
fazendo sons de beijos. Comenta que precisam fazer isso dentro da torre,
demonstrando saber que atos íntimos entre um homem e uma mulher devem ser
feitos em um lugar privado, não exposto.
Na brincadeira com os objetos de salão de beleza, mostrou-se extremamente
carinhosa e delicada ao pentear o cabelo da pesquisadora, dizendo que o achava
muito bonito por ser liso e fácil de pentear. Vale notar que Juliana tem um cabelo
volumoso, cacheado e comprido, sempre perfumado e, algumas vezes, enfeitado
com algum acessório, tiara ou presilha.
56

7.5 Síntese

A primeira impressão da pesquisadora sobre Juliana foi a de que ela seria


uma criança forte, devido à sua postura e tonicidade corporal. Contudo, após os
encontros, a pesquisadora conseguiu ver e se impressionar com a fragilidade e as
feridas emocionais que vieram à tona, à medida que Juliana foi mais e mais se
expondo.
Sempre bem vestida, com os cabelos bem cuidados e perfumados, Juliana
mostrou-se desconfiada, nos primeiros encontros. À medida em que foi se sentindo
mais segura, pareceu abrir para trocas afetivas, estabelecendo, inclusive, contato
físico com a pesquisadora.
A atitude da mãe oscilava em relação à filha, porque, de um lado, mostrava-
se franca e direta e, de outro, ocultava assuntos e fazia ameaças em tom de
brincadeira.
A partir dos dados coletados, nota-se que a menina parece sentir-se
desprotegida em seu ambiente familiar, percebendo-o como ameaçador e tenso.
Percebe a disputa e as brigas entre os pais e é capaz de estabelecer a diferença na
sua relação com os pais antes e depois da separação. Assim, observa que,
anteriormente, o cuidado primário vinha por parte do pai e ela até se sentia
“responsável” por cuidar das necessidades dele; após a separação, a mãe passa a
assumir o papal de sua cuidadora.
As figuras parentais aparecem como pouco sustentadoras e, muitas vezes,
indiferenciadas como se fossem crianças iguais a ela. A figura feminina é retratada
como distante e incapaz de prover as necessidades básicas, a ponto de haver
inversões de papéis. Juliana parece atribuir à figura materna o papel de proteção e
cuidado somente após o afastamento do pai. O pai é uma figura ambígua e também
infantilizada, pela qual ela mostra carinho e que de um lado a protege, mas, de
outro, tem elementos grosseiros, assustadores e frágeis. Todos os desenhos que
representam a figura paterna contêm uma parte do corpo que a participante
denominou como “pescoço”, localizado entre dois membros maiores; algumas vezes
utilizou as palavras “cabeção” e “cabeça dura” para caracterizar o pai, ambas
expressões, gráficas e verbais, podem ser associadas ao órgão sexual masculino.
Com respeito à sua autoimagem, percebe-se como filha, como menina da sua
idade, no entanto grávida, e, também, como menina cindida, desarrumada,
57

assustadora ou assustada (menina verde). O comentário feito ao desenhar o cabelo


– “uma palhaçada” – e a maneira como penteia o cabelo da pesquisadora, poderiam
apontar para alguma insatisfação com sua aparência e, em especial, com seu
cabelo. O cabelo de Juliana era cacheado, enquanto o da pesquisadora é liso. É
como se ela estivesse dizendo: “quero ser como você”, “o que tenho não é tão bom”.
Transpareceram emoções associadas à tristeza e depressão quando
verbaliza “está morrendo”, demonstrando grande sofrimento interno e sensação de
aprisionamento, expresso no símbolo da cesta da bruxa. Tal indicação reforça a
constatação teórica de que situações de abuso são sentidas pela criança como um
abalo na necessidade de cuidado que ela tem que ter no âmbito familiar, em uma
fase preponderantemente matriarcal. As necessidades básicas da criança são
devassadas e, no presente caso, ressalta-se que, desde bebê, era o pai quem
realizava a função materna, alijando a mãe. Todavia, tudo indica que esse mesmo
pai, que procurava exercer a maternagem com exclusividade, usava a filha como
objeto de prazer libidinal. A ambivalência do relacionamento com a figura paterna é
presente nos relatos de Juliana. Demonstra amar o pai e se sentia amada por ele,
que parecia retribuir o afeto da filha. A porção destrutiva desse afeto escapa à
compreensão da criança, causando grande sofrimento e possível sentimento de
culpa por terem se separado.
Juliana apresentou vários sinais de insegurança, verbalizando que não
conseguia fazer os desenhos ou contar as histórias e demonstrando desconfiança e
receio no primeiro contato com a pesquisadora. Além disso, observa-se que a
temática de trancamento e isolamento se evidenciou nas primeiras sessões. Por
outro lado, tal desconfiança poderia ser indício de uma defesa necessária para uma
criança que sofreu um trauma complexo.
O tema da sexualidade aparece no desenho da menina com bebê na barriga
e naquele que representa o pai e a namorada, nas brincadeiras com bonecos e em
uma descarga motora que surpreendeu a pesquisadora contratransferencialmente.
Juliana parecia sentir intenso prazer ao mexer com as tintas em um momento que se
sucedeu ao desenho do casal formado pelo pai e a namorada. Pode-se inferir a
presença de um simbolismo que aponta para o tema do incesto e para possíveis
contatos físicos com o pai.
A partir da análise levanta-se a hipótese da presença de defesas
dissociativas. Contratransferencialmente, a pesquisadora se surpreendeu e teve
58

uma sensação de estranhamento, quando a menina carinhosa que estava à sua


frente desaparecia e dava lugar a uma criança de voz forte e maliciosa, como se
Juliana apresentasse uma “segunda personalidade”, mais velha e sexualizada.
Barrados em janelas, casa, muros, desenhos fragmentados, cisão entre cabeça e
tronco também são alguns sinais gráficos da dissociação.
Com respeito à ocorrência em si do ato de abuso, cabe ao psicólogo auxiliar
os órgãos judiciais com parecer psicológico, que será aferido junto com os fatos
levantados pela justiça. Se o veredicto final não é a seara da psicologia, esta tem
como atribuição detectar danos à integridade a ao desenvolvimento da criança,
muitas vezes extremamente difíceis de reverter. É possível afirmar que Juliana
apresenta indícios de ter sofrido situação traumática e de ter tido sua sexualidade
estimulada precocemente. Verificam-se sentimentos de morte, insegurança e
tristeza, que constituem emoções dolorosas sobre as quais ela procura exercer
controle por meio de defesas dissociativas. Esses são alguns dos sinais apontados
na literatura sobre vítimas de abuso sexual infantil.
Juliana demonstra características que merecem atenção clínica, porque são
reveladoras de sofrimento e trauma e podem evoluir para uma depressão juvenil e
transtorno de estresse pós-traumático. Mas há, também, indícios da presença de
fatores de resiliência tais como curiosidade, capacidade de vinculação, busca de
segurança no ambiente antes de se vincular como uma estratégia de autoproteção.
O modo com que se relacionou, com a continuidade das sessões, mostrou-se
saudável e, quando ela se sentiu mais confiante em relação à pesquisadora,
permitiu-se estabelecer uma relação de proximidade e afeto, o que denota que a
capacidade afetiva e de apego está preservada.
Apesar da disponibilidade da instituição e da pesquisadora a dar continuidade
ao atendimento, iniciando-se um trabalho psicoterapêutico, isso não foi possível. A
mãe de Juliana encontrava dificuldades em levá-la para os atendimentos, em razão
do tempo e custo da locomoção e do fato de ter que faltar ao trabalho. Foi sugerido
encaminhamento, mas não se encontrou outro serviço de atendimento especializado
nas imediações da residência delas. A instituição e a psicóloga se disponibilizaram a
retomar o contato no momento em que a mãe solicitasse.
59

8 DISCUSSÃO

Partindo-se do pressuposto de que conteúdos projetivos verbais e não


verbais, incluindo expressões gráficas possibilitam o revelar o estado emocional e as
apreensões do indivíduo relativas ao ambiente e aos relacionamentos, o estudo do
caso que foi objeto da atual pesquisa permitiu inferências sobre o estado emocional
da participante. Os dados levantados apontam para fortes indícios de grande
sofrimento interno, sensação de aprisionamento e tristeza, destacando-se o
sentimento de morte associado à representação de si mesma, o que assinala risco
de futura depressão ou de outro transtorno. Tais constatações vão ao encontro de
dados de pesquisas que apontam que sintomas depressivos aparecem como uma
das possíveis consequências do abuso sexual infantil na população mundial
(SERAFIM et al., 2011; VAN DER KOLK et al., 2005).
Jean Knox (2011) descreve, em seus estudos, como as primeiras relações de
apego seguro criam um autoconceito positivo, uma autoimagem adequada e o que
ela denomina de agência do eu, que seria a capacidade de perceber que atos
causam consequências gerando a noção de possibilidade de controle e também de
escolha. Como, no presente estudo, a criança refere diversas vezes não ser capaz
de realizar o que era esperado e aparecem algumas características negativas
associadas à sua autoimagem, pode-se pensar que o desenvolvimento da agência
do eu está se dando sobre bases inseguras, frágeis, o que traria impactos para a
consolidação das competências egoicas.
Símbolos relacionados à sexualidade, à compartimentalização, à
fragmentação e ao aprisionamento surgiram das expressões gráficas e verbais. As
produções gráficas são semelhantes aos desenhos realizados por crianças vítimas
de abuso sexual expostos no livro de Müller & López (2011). Destacam-se: o
desenho da casa, por possuir grande quantidade de janelas fechadas com cruzes; a
temática da morte; os elementos que remetem a genitálias masculinas e o desenho
da menina verde, em que há uma cisão entre cabeça e tronco. Segundo as autoras
acima citadas, essas características gráficas e temáticas, quando relacionadas a
indicadores específicos físicos (lesões ou sangramento na zona genital, infecções
genitais ou doenças sexualmente transmissíveis - DSTs) ou psicológicos (relato da
criança, conduta hipersexualizada e/ou autoeróticas não esperadas para a idade,
coerção sexual de outras crianças), denotam forte indício de abuso sexual infantil.
60

Em relação à estrutura psíquica, aparece uma possível defesa dissociativa,


identificada a partir da contratransferência, das expressões gráficas e dos
comportamentos, tais como variações súbitas de postura e de fala. A presença
desse tipo particular de defesa vai ao encontro dos achados descritos na literatura
sobre o tema. Tanto Shore (2003) quanto Kalsched (2013) afirmam que vítimas de
traumas precoces tendem a ter um funcionamento psíquico estruturado por
mecanismos de defesa dissociativos devido ao grande impacto da situação
traumática sobre a psique em desenvolvimento, entendendo que essas defesas
visariam preservar minimamente as estruturas egoicas.
Kalsched (op. cit.) pondera, ainda, que situações traumáticas no início da
primeira infância acionam um sistema de autocuidado arquetípico destinado a
proteger o indivíduo de possíveis retraumatizações. Cyrulnick (2013) compartilha
dessa visão, ao postular que a memória do trauma é um alerta constante para a
vítima, a qual se torna extremamente vigilante e com comportamentos que evitam o
mundo externo, percebido como ameaçador. Pode-se lançar a hipótese de que a
atitude de desconfiança e vigilância exibida por Juliana faça parte de defesas
possivelmente ativadas por um sistema de cuidado semelhante ao identificado por
Kalsched.
Schore (op. cit.), por sua vez, coloca em evidência a noção de que a criança
desenvolve sua estrutura psíquica a partir do modelo e da interação com as figuras
de apego, que geralmente são os pais. A ausência de adultos e do casal parental,
bem como a inversão de papéis, são temas recorrentes nas produções gráficas e
verbais de Juliana, sinalizando que ela não percebe, no ambiente à sua volta,
presenças adultas suficientemente confiáveis ou cuidadoras. Juliana parece
confundir posições e papéis que estão carregados de contradições tais como amor e
desproteção, carinho e abuso. Tal estado é descrito na literatura (SANDERSON,
2005) como um dos sinais próprios de crianças que sofreram situações de abuso
sexual. As figuras parentais são extremamente importantes como vínculo entre a
criança e o mundo que a cerca, ajudando a discriminar os afetos e construindo a
base das futuras relações sociais. Pode-se supor que a estruturação a
personalidade, nesse caso, sofrerá as consequências do fato de essa criança não
ter suas necessidades físicas e emocionais adequadamente atendidas por adultos
que tenham representado, durante a primeira infância, figuras de cuidado e apoio.
61

As percepções a respeito das figuras feminina e masculina e do ambiente vão


ao encontro dos dados da pesquisa de Serafim et al. (2011). Nesse estudo, a figura
masculina surge como ameaçadora, egoísta, despreocupada com a família e
ineficiente. No atual trabalho, o pai aparece como uma figura ambígua, caracterizada
como cuidadora, mas também assustadora. A pesquisa citada aponta, ainda, que
crianças da cidade de São Paulo, Brasil, vítimas de abuso sexual tendem a perceber
a figura feminina como protetora, mas frágil e incapaz. No atual estudo, o
distanciamento e a incapacidade são características mais evidenciadas do que a
proteção. As expressões verbais da criança dão a entender que a proteção oferecida
pela mãe teria sido acionada somente após o afastamento do pai, pois antes era ele
que se ocupava dos cuidados com a filha. Esse dado é congruente com o relato da
mãe, que diz ter sido alijada do relacionamento com a filha por um marido que exigia
ser o único a cuidar da criança. Ainda na pesquisa de Serafim et al. (2011), o
ambiente é retratado pelas crianças como hostil, ameaçador e desprovido de
amparo sendo percebido da mesma maneira pela participante do atual estudo. Tais
fatores, em seu conjunto, são fortes indícios de que Juliana viveu situações
traumáticas que, associadas à falta de figuras parentais suficientemente boas,
podem impactar o seu desenvolvimento saudável.
No que diz respeito à sexualidade, no desenvolvimento esperado da criança,
o componente natural da sexualidade leva a configurar fantasias de incesto
decorrentes da triangulação edípica. Samuels (1992) reforça a importância da
fantasia do incesto para a estruturação psíquica da criança. O autor retoma a
discussão de Jung sobre o tema – o propósito da fantasia do incesto não representa
o desejo de relação sexual com uma das figuras parentais, mas uma expressão
simbólica do desejo de reencontro da origem – e resgata o sentido de compreender
a fantasia incestuosa como potência para o desenvolvimento e refinamento da
individualidade. Segundo o autor “a função psicológica da sexualidade incestuosa é
permitir a proximidade do amor” (SAMUELS, 1992, p. 93). Esse desejo certifica a
importância da relação de intimidade, garantindo-a, desde que tal fantasia simbólica
não se concretize. A efetivação do ato incestuoso rompe o vínculo de confiança e de
intimidade e ocasiona lesões psíquicas. Aquilo que, na dimensão simbólica ,organiza
os afetos e a estruturação psicofísica, quando concretizado pelo ato, violenta a
psique em formação. Em situações de abuso, em que o perpetrador é a figura de
apego e é afastada, o sofrimento da criança é enorme, pois perde a pessoa que
62

ama. Se amar aquele que fere ocorre frequentemente em relações abusivas


familiares, quando isso acontece em fases precoces, as consequências podem ser
devastadoras e causadoras de dor terrível e difícil de suportar pela psique em
desenvolvimento.
Em relação à revelação ou desvelamento – modo como foi tratado o evento
pela mãe –, esta se revelou corajosa ao sair de casa e, aparentemente, protetora.
No entanto a maneira com que abordou o ocorrido com a filha não foi adequada,
considerando-se o estágio de desenvolvimento de Juliana. O modo como o assunto
é abordado, de modo a levar em conta a capacidade de compreensão da criança, é
extremamente importante para evitar retraumatização. A literatura, em geral, trata da
atitude e das ações tomadas por aqueles que ouvem o relato da criança ou
adolescente vítima de abuso sexual, indicando que a atitude de descrença por parte
de quem ouve leva a vítima a se sentir acuada e a não relatar o ocorrido novamente
(MÜLLER & LÓPEZ, 2011). De modo geral, os autores concordam que, diante do
relato da vítima, é fundamental uma atitude adequada e acolhedora, inclusive para
que novos episódios traumáticos não aconteçam (SORSOLI, L.; KIA-KEATING, M.;
GROSSMAN, F. K., 2008). De outro lado, há pouca menção na literatura a respeito
da comunicação aberta, mas inadequada, do adulto que relata à criança o que a ela
teria ocorrido.
Segundo Müller & López (op. cit.), a fase desvelamento envolve uma díade
adulto e criança em que o relato pode ser tanto verbal como simbólico; o último,
mais comum em crianças pequenas. O atual estudo endossa tal constatação e
indica que uma abordagem simbólica elucida e atinge em profundidade a situação
vivenciada pela criança, assim como permite a aproximação ao que ela sente e a
como apreende o ocorrido.
Pode-se observar que foram expressos conteúdos que possivelmente ainda
não atingiram a consciência da criança como, por exemplo, a temática do incesto e
do sofrimento psíquico, que aparece simbolizado em suas narrativas tanto verbais
quanto não verbais. Conclui-se, portanto, que imagens analisadas por um
profissional qualificado permitem uma escuta do que não pode ser expresso de
forma verbal e racional pela criança.
A análise do estudo de caso evidencia sinais de trauma complexo. Van der
Kolck (2005) aponta que essa categoria de trauma pode comprometer funções
como: relação de apego, regulação de afetos, regulação de comportamento,
63

cognição e autoconceito. Esse autor ressalta, ainda, que o trauma complexo gera
comprometimentos psíquicos, principalmente no que diz respeito à capacidade
básica de autorregulação e ao estabelecimento de relacionamentos interpessoais.
Neste estudo, apesar de a criança ter apenas cinco anos, é possível perceber uma
tendência a defesas dissociativas e indícios de comprometimento do autoconceito.
Todavia, notou-se que sua capacidade de vinculação parece preservada, quando é
possível estabelecer um elo de confiança, o que denotaria, provavelmente, uma
organização psíquica com bom potencial para enfrentamento.
O atual estudo endossa dados da pesquisa de Polli, Savegnago e Arpini
(2013) que revela que o ambiente psicoterapêutico apropriado é continente e
facilitador para crianças vítimas de abuso sexual compartilharem suas vivências. O
estudo psicodiagnóstico realizado recomendou um procedimento terapêutico com o
intuito de incentivar fatores de resiliência que pudessem diminuir possíveis
comportamentos destrutivos e intercorrências negativas no desenvolvimento.
64

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa proposta cumpriu seus objetivos de realizar um estudo de caso de


uma menina com queixa de abuso sexual, de descrever seu estado emocional e de
realizar uma análise simbólica de suas expressões gráficas e verbais. Os dados
levantados apontam indícios de trauma complexo, com características em geral
presentes em caso de abuso sexual infantil. Apesar de ter sido um estudo de caso,
pode-se perceber que o setting terapêutico pode oferecer um espaço continente
para a vítima expressar angústias e tristezas. A intervenção psicológica precoce é
fundamental para minimizar prognósticos graves e para auxiliar a criança em seu
desenvolvimento. Ressalta-se a possibilidade de fortalecer fatores de resiliência em
um trabalho psicológico com vítimas de trauma complexo, particularmente quando
se oferece uma abordagem simbólica que privilegie os componentes não verbais
como forma de acessar conteúdos inconscientes que ainda não têm canal de
expressão pela palavra.
Este estudo também aponta que uma abordagem simbólica psicoterápica
pode auxiliar no desvelamento do fato traumático assim como na compreensão do
enfrentamento, do sofrimento e das percepções da vítima, principalmente nos casos
de crianças na primeira infância. Nesse contexto, a teoria e a prática da psicologia
analítica se mostram particularmente relevantes e enriquecedoras. Sua ênfase no
desenvolvimento do eu, na singularidade do processo de individuação, nas
estruturas relacionais afetivas, na interface contínua entre conteúdos conscientes e
inconscientes e na possibilidade de recuperação psíquica por meio da manifestação
simbólica estruturante constituem um diferencial desta clinica, favorável ao cuidado
psicológico que pode se oferecer a pessoas de diversas idades, particularmente a
crianças em estado de sofrimento intenso e traumatizante.
A atual pesquisa – mediante o estudo de caso realizado – indica que a
elaboração simbólica proporciona ao psicoterapeuta instrumentalização para
acessar e compreender o mundo interno infantil. Desse modo, o terapeuta pode
reunir elementos que lhe permitam comunicar à criança o que está se passando com
ela, de uma maneira adequada à sua idade e compreensão.
Destacam-se, no presente estudo, considerações a respeito do modo de falar
com a criança sobre o evento traumático e as observações a respeito da importância
65

de um espaço de orientação sobre essa comunicação aos cuidadores, sejam esses


pais, médicos ou tutores.
A atual pesquisa, baseada em estudo de caso com uma criança, possibilitou
aprofundar a temática proposta, tendo, no entanto, apresentado algumas limitações.
Por exemplo, a pesquisa com um número maior de crianças permitiria levantar com
mais segurança – mesmo que não fosse possível fazer generalizações – algumas
tendências presentes no atendimento a casos semelhantes. Todavia, neste tipo de
estudo é comum ter dificuldade em encontrar participantes disponíveis, dificuldade
essa enfrentada pela pesquisadora que, diante disso, optou por realizar o estudo de
apenas um caso. A distância entre a moradia e o local de atendimento foi outro
empecilho enfrentado que dificultou o aprofundamento da anamnese e impediu que
ao psicodiagnóstico se seguisse um processo psicoterápico.
Conclui-se a pesquisa com as seguintes recomendações:

a) realizar pesquisas com maior número de participantes, investindo nos


centros especializados como CREAS, CRAS, UBS, com uma divulgação
da importância de um suporte psicoterapêutico, mediante, por exemplo,
palestras dirigidas aos profissionais da saúde;
b) realizar campanhas educativas, conduzidas por profissionais
especializados, em hospitais, centros de referência e escolas, com o
intuito de informar como abordar e falar com a criança vítima ou com
suspeita de abuso sexual;
c) investir em entrevistas em rádio e televisão sobre abuso sexual infantil.
Foi evidenciada a importância desses programas quando a mãe da
criança da pesquisa referiu ter-se conscientizado sobre a possibilidade de
algo estar errado, quando assistiu a uma reportagem na TV. Tais
entrevistas atingem vários extratos da população;
d) implementar redes de pesquisa com diversos centros e pesquisadores
voltados a uma aborda multidisciplinar sobre o tema;
e) realizar estudos longitudinais com crianças que receberam suporte
psicoterápico precoce.
66

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71

Apêndice A – Anamnese

Queixa

Olívia procurou a Defensoria Pública de um município da microrregião de


Mogi das Cruzes, no estado de São Paulo, pois começou a achar estranho o
comportamento do companheiro em relação à filha, suspeitando que esta estivesse
sofrendo abuso sexual. Foi, então, encaminhada pela psicóloga daquele órgão ao
Núcleo Espiral. Ao entrar em contato com o serviço de psicodiagnóstico dessa
instituição, mencionou o intuito de obter uma avaliação para que a filha fosse
atendida no Hospital Pérola Byington. No decorrer dos encontros, fez uma segunda
solicitação que envolvia um relatório para a Defensoria Pública.
Questionada sobre o motivo que a levou a suspeitar do parceiro, Olívia relata
dois episódios. O primeiro aconteceu quando Juliana tinha dez meses, ocasião em
que Olívia flagrou o esposo de cueca, excitado, segurando a menina no colo.
Chamou a atenção do companheiro, pedindo para que isso não se repetisse. Nessa
época, também achava estranho o costume que ele tinha de ficar sem camisa e
passar a filha no peito. Comentou que não sabia se esse era um comportamento
normal de pai, mas se incomodava com isso. O segundo episódio aconteceu quando
Juliana tinha dois anos de idade. Olívia disse ter chegado do trabalho e encontrado
a filha sentada no colchão, com um olhar triste e reclamando que “estava ferida”.
Diante disso, levou Juliana ao pronto-socorro onde foi constatada uma assadura na
genitália. A orientação médica foi que dessem mais atenção à higiene, com uso de
lenço umedecido e papel higiênico mais macio. Após essa ocorrência, “Juliana
voltou ao normal”, isto é, nas palavras de Olívia, “voltou a ser uma criança alegre,
porque o pai parou”. Desde que separou a filha do pai, Olívia relatou que Juliana não
apresentou mais assaduras, mesmo usando papel higiênico comum.
Além desses episódios, Olívia mencionou que o marido se afastou dela,
deixando, inclusive, de procurá-la sexualmente, desde que a filha nasceu. Segundo
suas palavras, ele “ficou ligado só na menina”. Acrescentou, ainda, que, durante a
noite, o marido deitava-se com a filha no colchão em que ela dormia, ao lado da
cama do casal. Também segundo o relato de Olívia, durante o exame de corpo de
delito no Hospital Pérola Byington, Juliana teria dito à médica que a examinou que o
pai mexia nela, quando ela estava de perna aberta.
72

Apesar de ter observado essa sequência de fatos, a mãe de Juliana só


começou a suspeitar do esposo após ver programas de TV que abordavam o tema
do abuso. Teria, também, demorado a procurar ajuda por não saber a quem
recorrer.

Histórico

Olívia nasceu e morou em cidade litorânea da Bahia até os 23 anos.


Enquanto ali vivia, casou-se e teve um filho, que hoje está com 13 anos de idade. Há
dez anos, veio para São Paulo, acompanhando a pessoa com quem trabalhava
como empregada doméstica e deixando o menino, então com três anos, aos
cuidados de sua mãe.
Em São Paulo, trabalhou e morou, por seis meses, na casa da pessoa que
com quem viera de Ilhéus, sendo, então, demitida. Desempregada, passou a morar
com a irmã, com quem teve alguns atritos. Nessa época, um mês após ter conhecido
aquele que seria seu futuro companheiro, mudou-se para a casa dele. Tendo
começado a trabalhar em outra residência, onde pernoitava, passou a ver o
namorado apenas aos fins de semana.
Olívia conta que, nos primeiros tempos de sua união, seu companheiro, que
trabalhava na construção civil, era muito atencioso, ainda que possessivo e
ciumento; dava-lhe tudo que ela pedia e demonstrava grande interesse sexual por
ela. Após o nascimento de Juliana, contudo, essas atitudes cessaram. O seu esposo
teria deixado de “adorá-la e desejá-la”.
Ele sempre quis ser pai e insistia que ela engravidasse, mas Olívia não
partilhava desse desejo porque já tinha um filho. No segundo ano de namoro,
viajaram para a Bahia, para visitar a família dela. Durante essa visita, Olívia foi
incentivada por sua mãe a “dar um filho ao marido”. Ao retornar a São Paulo, ela
engravidou.
Não houve intercorrências significativas durante a gestação. Olívia menciona
apenas um período de enjoo, a partir do quinto mês, o que a levou a sair do
emprego. O parto foi normal e a termo.
O desenvolvimento motor de Juliana se deu no ritmo esperado e ela andou
aos onze meses. A criança não apresentou problemas de alimentação, sono ou
73

desenvolvimento da fala. Sempre foi uma menina sociável, frequentando a escola


desde os três anos.
Olívia voltou a trabalhar quando a filha tinha dois anos de idade, deixando-a
sob os cuidados de outra pessoa. O pai, como não trabalhava alguns dias, também
cuidava da filha, chegando a comentar que até deixaria de trabalhar para ficar com
ela.
Segundo o relato de Olívia, seu companheiro começou a criticar tudo o que
ela fazia por Juliana, acusando-a de não saber cuidar direito da filha. Além disso,
não deixava que as duas saíssem juntas ou ficassem sozinhas em casa, preferindo
levar Juliana com ele a todos os lugares. Após o nascimento de Juliana, ele teria
assumido não apenas os cuidados com a filha, mas também os cuidados com a
casa, como se não “precisasse mais” de Olívia. Disputava a atenção da filha. Assim,
segundo Olívia, quando ela dava um beijo em Juliana, seu companheiro beijava a
filha vinte vezes; se prometia um brinquedo à filha, o pai chegava, no dia seguinte,
com o brinquedo já comprado. Outro comportamento de disputa residia, para Olívia,
no fato de ele não vestir a filha com as roupas que ela, Olívia, comprava.
No final de 2012, Olívia decidiu separar-se do companheiro. Entretanto, os
dois continuaram morando na mesma casa, em andares diferentes. No Natal de
2012, ele teria chegado em casa bêbado, cheio de sangue e descalço. A filha, ao vê-
lo nesse estado, ficou muito assustada. Começou a defender o pai e dizia que ele
iria morrer. Olívia relatou que, naquele momento, a filha parecia ter 15 anos.
Segundo Olívia, o pai ameaçava matar-se e à filha, caso perdesse a guarda
de Juliana. Em maio de 2013, após ter levado Juliana para fazer o exame de corpo
de delito no Hospital Pérola Byington, Olívia saiu de casa definitivamente, indo
morar, junto com a menina, com sua irmã.
74

Apêndice B – Primeira sessão – Jogo lúdico

Juliana não quer entrar sozinha na sala de atendimento e pede que sua mãe
entre junto com ela. Já na sala, começa a contar que, quando era bebê, o pai a
pegava e a passava no corpo dele (imita os movimentos que o pai fazia com as
mãos). Comenta que achava normal esse jeito dele e que, quando ela estava de
perna aberta, ele mexia “lá”, mas, quando ela estava de perna fechada, isso não
acontecia. Ao fazer esse relato, Juliana olha constantemente para a mãe, como que
buscando aprovação e dando a impressão de que o seu discurso havia sido
combinado, anteriormente, entre elas.
A pesquisadora explica que Juliana, quando quiser, pode pedir que sua mãe
saia da sala. A menina responde não querer que isso aconteça, preferindo que a
mãe fique com ela. A pesquisadora explica que irão brincar e que, às vezes, pedirá
que ela desenhe, ao que Juliana responde que não sabe desenhar.
Ela comenta que o tio está “lá embaixo”, sozinho. Quer que ele suba até onde
ela está, para conhecer a sala. A pesquisadora diz que ele já esteve naquela mesma
sala, e Juliana pergunta se o pai já lá estivera também. A pesquisadora responde
que não e indaga se ela gostaria que o pai fosse até lá. Juliana responde que não.
Abre a caixa de brinquedo com o pé e, depois, com as mãos. Inicialmente,
abre o estojo que contém secador, maquiagem e espelho. Pega o secador. Pergunta
por que a boneca é careca. Abre a embalagem com os bonecos que representam a
família, retira uma boneca, que escolhe para ser a mãe, e outra, que será o pai.
Comenta que a boneca-mãe está com um vestido muito curto. Pega a boneca menor
e dá risada ao ver a saia levantada. Coloca a boneca-mãe e a boneca-menina no
cavalo. A mãe de Juliana diz que a saia da boneca-menina é muito curta para que
ela possa andar a cavalo.
Juliana abre a bolsinha que contém uma chupeta. Pergunta de quem é a
chupeta. A pesquisadora diz que a chupeta é da boneca. Juliana, então, pergunta se
a chupeta não é dela, Juliana. A pesquisadora responde que, se ela quiser, a
chupeta pode ser dela. Juliana experimenta colocar a chupeta na boneca, percebe
que não cabe e, então, declara: “é minha, então!”. Em seguida, quer usar a chupeta.
Juntas, a pesquisadora e ela lavam a chupeta. A seguir, Juliana coloca a chupeta na
boca e finge que é um bebê, para a mãe, dizendo “sou um bebezinho”.
75

Quer que o tio suba para a sala onde ela está. A mãe diz, como que
brincando, que ele deve ter ido embora. Diante dessa observação da mãe, Juliana
dá mostras de ansiedade. A pesquisadora pergunta se Juliana quer verificar se o tio
está realmente na sala de espera. Ela responde que sim, pois quer mostrar a
chupeta para ele. A pesquisadora e Juliana descem até a sala de espera e ela pede
a seu tio que suba até a sala de atendimento. Ele atende ao pedido. A pesquisadora
nota que, em alguns momentos, a mãe e o tio de Juliana procuram se comunicar por
gestos, inclusive com a própria pesquisadora, de modo a não deixarem Juliana
perceber o que estão tentando dizer.
Juliana também quer brincar com a mamadeira, quer beber água da
mamadeira. A pesquisadora explica que isso não é possível, porque o bico da
mamadeira não é furado e promete levar, na sessão seguinte, uma mamadeira de
verdade.
Juliana passa a escrever. Primeiro, o seu nome e, depois, o do pai. Em
seguida, pede para a mãe soletrar o próprio nome e o do tio. Em certo momento,
enquanto escreve, procura esconder a prancheta e quer utilizar a borracha, pois diz
que errou (o traço horizontal do A), pois escreveu “muito forte”. Quando está
escrevendo, comenta que o pai esteve na rua de sua casa, e pede para a mãe
confirmar essa informação. A mãe confirma. Juliana comenta, ainda, que não pode
ver o pai. A pesquisadora pergunta por quê. Juliana responde “porque não”. A
pesquisadora, então, indaga se ela tem vontade de ver o pai e Juliana responde que
sim e que, às vezes, tem saudades dele.
76

Apêndice C – Segunda sessão – Aplicação HTP

Juliana entra na sala de atendimento, mas, em seguida, pede para descer


para a sala de espera, onde está sua mãe, porque quer colocar uma blusa “de
calor”.
Volta à sala de atendimento e comenta que sua mãe lhe disse que a terapia
era um lugar para ela brincar e responder àquilo que a pesquisadora lhe
perguntasse. A pesquisadora comenta que, se ela não quisesse, não precisaria
falar, e que tudo o que dissesse seria um segredo entre as duas. Esse trecho de
diálogo continua como se segue:
Juliana: Mas eu falo pra minha mãe.
Pesquisadora: Tudo bem. Mas eu não vou falar pra ninguém o que acontecer
aqui.
Juliana: Nem pra minha mãe?
Pesquisadora: Não, só se você quiser que eu fale.
Juliana começa a brincar com a caixa lúdica, escolhendo os utensílios de
cozinha. Ela e a pesquisadora passam a conversar sobre a escola. A pesquisadora
pergunta o que Juliana acha da escola. Ela responde que lá “tem uns meninos que
são teimosos”. A pesquisadora indaga se ela, Juliana, é teimosa. Responde que
não, só “às vezes” e o diálogo prossegue da seguinte forma:
Juliana: Mas quando eu fazia "teimosia" quando pequena, minha mãe me
batia. Batia muito.
Pesquisadora: Como?
Juliana: Com chinelo, às vezes. Por que você demorou pra descer?
A pesquisadora dá explicações referentes aos horários em que atende a
outros pacientes. Juliana pergunta se, entre os pacientes, só ela é criança. A
pesquisadora responde que não e aponta as outras caixas lúdicas.
Depois desses momentos iniciais, a pesquisadora dá início à aplicação do
HTP, dizendo que, nesse dia, irão desenhar. Juliana diz não querer realizar essa
tarefa, porque não sabe desenhar. A pesquisadora insiste, comentando que, depois
de desenhar, elas podem jogar.
A pesquisadora solicita que ela desenhe uma casa. Juliana começa a
desenhar, mas declara que só sabe fazer janelas. Quando dá por terminado o
77

desenho, a pesquisadora tenta realizar o inquérito, mas Juliana não responde às


perguntas feitas e diz que não quer falar a respeito.
Diante disso, a pesquisadora passa ao segundo desenho, solicitando que ela
desenhe uma árvore. Juliana diz não querer desenhar a árvore e que, em vez disso,
irá desenhar a “cesta da bruxa”. Após realizar esse desenho, vira a folha para o
verso e, utilizando um porco de brinquedo como molde, começa a fazer um círculo,
rindo muito alto e comentando: “é um cabeção”. A seguir, o diálogo que se
estabelece a partir desse comentário.
Pesquisadora: O que é um cabeção?
Juliana: É o pai, né?
Pesquisadora: E o que é cabeção?
Juliana: É quando a pessoa não sabe escrever. A árvore, vou desenhar em
outro dia que eu vier.
A seguir, a pesquisadora solicita que Juliana desenhe uma pessoa. Ao
começar a desenhar, ri novamente e comenta: “cabeça dura!”.
Pesquisadora: É um homem, né?
Juliana: É meu pai. Meu pai já veio aqui?
Pesquisadora: Não. Quantos anos ele tem?
Juliana: Assim (mostrando oito dedos).
Pesquisadora: O que ele gosta de fazer?
Juliana: Cozinhar. Quando eu era pequena, ele me empurrava no carrinho. Eu
fazia o suco dele. Agora, ele faz [o próprio suco]. Antes, eu fazia meu leite e,
agora, minha mãe que faz.
A pesquisadora solicita que ela desenhe uma mulher. Juliana, antes de
começar a desenhar, informa: “Vou desenhar minha família, casos de família” e ri.
Ao começar a primeira figura, que depois identifica como a mãe da família,
estabelece o seguinte diálogo com a pesquisadora:
Juliana: Você tem mãe?
Pesquisadora: Tenho.
Juliana: Você mora com ela?
Pesquisadora: Não.
Juliana: Onde você mora?
Pesquisadora: Aqui perto.
78

Ao começar a figura que representa o pai da família, dá risada, e inicia-se o


seguinte diálogo:
Juliana: O pescoço dele! (passa a rir muito e a tonalidade da risada muda, fica
mais forte).
Pesquisadora: Por que você está rindo?
Juliana: É que o pescoço dele é pequeno. É igual o seu.
Pesquisadora: Igual ao meu? O meu é pequeno ou grande?
Juliana: Grande. E o dele é igual ao seu.
Ao terminar de desenhar a família, comenta: “Minha mãe, eu e meu pai em
outro canto”.
79

Apêndice D – Terceira sessão – Jogo lúdico

Juliana quis, inicialmente, montar o castelo. Com os muros, traça uma linha
divisória entre a pesquisadora e ela. Encontrou o príncipe e a princesa. Colocou-os
frente a frente, encostados, e esfregou um boneco no outro, fazendo sons de beijo.
Comentou que eles precisavam fazer isso dentro da torre.
Em seguida, pegou os brinquedos de salão de beleza e pediu para pentear o
cabelo da pesquisadora. Mostrou-se extremamente carinhosa e delicada ao fazer
isso, dizendo que o achava muito bonito por ser liso e fácil de pentear. Deu mostras
de gostar muito dessa brincadeira.
80

Apêndice E – Quarta sessão – Aplicação CAT-A

No relato sobre a aplicação do CAT-A, a letra “P” indica as perguntas ou


observações feitas pela pesquisadora.

Prancha 1
Um cozinheiro, um com uma colher e um com um prato, só isso que eu escutei.
P: O que você viu?
Assim, um menininho com uma colher e um menininho fazendo macarrão e o outro
com prato, esperando.
P: E o que está acontecendo aí? O que os animais estão fazendo?
Eles estão fazendo, ajudando o outro. Só isso que eu vi na história.
P: O quê?
Só isso daí e a galinha vendo.
P: O que é, então, que eles tão fazendo?
Uma galinha olhando, um com uma colher e o outro esperando com o prato, mas
eles ‘tão ajudando. Aí a galinha ‘tá vendo.
P: O que eles estão ajudando a fazer?
Eles tão ajudando a fazer o macarrão. Pronto.

Prancha 2
Eu ‘tou vendo eles dois puxando a corda e ele querendo puxar pra ser dele, e
pronto.
P: Para o quê?
É assim: esses dois ‘tá (sic) ajudando a pegar a corda dele. Aí ele ‘tá querendo
puxar pra ser dele, e os três ‘tá (sic) ajudando, né? Porque essa corda é deles dois.
Aí, ele ‘tá puxando pra ser dele. Aí eles ‘tão brigando por causa da corda. Pronto.
P: E quem que ganha?
Se ele ganhar a corda vai ser dele.
P: Mas, na sua história, qual ganha?
Ele. Esses dois. Pronto. Só isso.
81

Prancha 3
Ele ‘tá assistindo TV sentando no sofá, e o negócio perto dele. E o menininho aqui, e
ele ‘tá com um martelo na mão e pronto. E o negócio aqui em baixo que eu não sei o
nome.
P: E qual o final da história?
Ele ‘tá assistindo, eu acho, o jornal. Pronto.
P: E quem é ele?
Quê? Eu não sei!
P: É homem ou mulher?
Homem, pronto.
P: E o que é isso aqui que você falou? (aponta para a bengala)
É que ele ‘tá doente.
P: Doente do que?
Não sei.
P: O que você acha?
Doente de dor de perna.
P: Por quê?
Porque sim.
P: Então ele ‘tá doente e com dor de perna. E isso aqui serve para quê?
Pra segurar assim e andar.
P: E esse aqui que você falou? (aponta para o ratinho)
É um pintinho.
P: E o que ele ‘tá fazendo aí?
Não. Ele é um ratinho. E ele (aponta para o leão) não sabe que ele ‘tá ali, e ele vai
acabando dar (sic) um susto. Pronto.

Prancha 4
Tinha um menininho andando de bicicleta e tem outro filhotinho na barriga dele. E,
aí, ela é a mãe e ele é o pai. A mamãe está levando uma cestinha para a casa da
vovozinha e, aí, o vento passou. Aí, ‘tava frio e eles ficaram com frio. Só isso. E o
nenenzinho ‘tá levando uma bexiga pra brincar no meio da rua, na barriga da
mamãe. Só isso que eu vi.
P: O que tem na cesta?
Doces.
82

Prancha 5
O menino estava dormindo aí. O menino grande ‘tava dormindo e o filhotinho ‘tava
acordado, fingindo que ‘tava dormindo. E aí a luz estava apagada. Aí veio o ratinho,
entrou dentro do berço e foi dormir. E foi dormir para sempre.
P: Como para sempre?
Para sempre dormindo. Pronto.
P: Me mostra onde ‘tá a criançinha, o ratinho.
Esse é dois rato.
P: E você falou que tinha um menino maior.
O menino maior é aqui (aponta para a cama), e o rato veio aprontar com ele.
P: O que é aprontar?
Apronta com o bebezinho. Aprontar é bagunça. Bagunça as coisas.
P: Bagunça como? Me mostra como é bagunçar.
Colocar as coisas no chão, assim.

Prancha 6
Eu vou escrever o que ‘tá aqui.
P: Onde?
Aqui em cima.
P: Vai me contando o que você está escrevendo.
É... ‘Pera aí. Eu ‘tou errando tudo. Rapidinho...
Era uma vez um cacho... Um... ele tinha uma casinha bonita. Aí, ele... Ele é... ‘Tou
errando tudo.
P: Não tá errando, não.
Aí, ele... Ele tinha uma casinha O filhinho ‘tava dormindo do lado dele. Aí o monstro
veio do la... ‘Tava atrás dele.
P: Dele quem?
Do filhinho, aí. Aí... Aí, ele... Você tem filho ou não?
P: Não.
Aí, ele levou um susto e acordou o bichinho.
P: Quem acordou o bichinho?
O monstro, porque esse é o monstro.
83

Prancha 7
Aí... Esse eu não sei contar não.
P: Não?
Não.
P: Tenta. Você está contando tão bem suas histórias.
Aí, o macaco ‘tava ali... Aí, o macaco ‘tava ali... Aí, o macaco ‘tava ali... Aí o... Como
é o nome dele mesmo?
P: Dele quem?
Desse grande.
P: Quem você acha que é?
Não sei, não. Daí, ele levou um susto e quase ia pegar ele pra comer, puxando o
rabo dele e ele fugiu fora. Ele não conseguiu pegar ele. Ele não conseguiu pegar o
rabo dele, e ele fugiu. Só.

Prancha 8
Aí, a mãe fez uma fofoca pro pai. Fofoca no ouvido. Aí, ela ‘tava fazendo fofoca e o
filhinho e o pai. E o irmão dele brigando com ele, falando que não pode teimar, não
pode ouvir a conversa dos outros: se você ouvir você vai tomar um castigo, vai ficar
bem no cantinho. Aí, tinha uma foto da vovozinha corica. Aí, ela ficou de... De raiva
porque ele ‘tava ouvindo as fofocas.
P: Quem ficou com raiva?
Esse daqui.
P: Quem é ele?
O irmão dele. Pronto.

Prancha 9
Esse um, já li.
P: Não leu não.
Ai, isso não é um joguinho.
P: É um joguinho de contar a história.
Aí a porta ‘tava aberta. O coelhinho abriu a porta. Ele viu que o pai dele saiu... Aí...
Aí, ele ficou lá sozinho, olhando para a porta, se o pai dele ‘tava na cozinha. Aí, o pai
dele não ‘tava. Aí, ele levantou e ficou com o zoinho aberto e ficou se cobrindo no
cobertor. Fim.
84

Prancha 10
Aí, o aleão querendo pegar... Aí, o cachorro não deixou o aleão ir no banheiro. Aí, o
vaso ‘tava entupido. Aí, ele... Aí, o monstro foi lá, pegou ele escondido e, aí, ele ficou
com medo e deu um grito. Só isso.
P: Quem o monstro pegou?
A cachorrinha no banheiro. Aí, ele foi lá e pegou.
P: Pegou quem?
O cachorrinho. Ela pegou o cachorro. Pronto.
Ela ou o monstro?
O monstro. O monstro de homem.
85

Apêndice F – Quinta sessão – Pessoa na Chuva e Desenho livre

Após desenhar a pessoa na chuva, Juliana pediu outra folha e desenhou o


que denominou de “o pai e a namorada”.
Em seguida, pediu para usar cola colorida. Em um primeiro momento, pintou
delicadamente o desenho da pessoa andando na chuva, depois o cobriu todo com
várias cores de tinta. Fez a mesma coisa com o desenho do pai com a namorada e,
por último, pegou uma folha em branco, derramou muita tinta colorida e, com a mão,
começou a misturar as cores e dizer “Ai, que delícia! Ai, que delícia!”. Nesse
momento, mudou o tom de voz, falou de modo malicioso, parecendo reproduzir uma
fala que não era a sua.
86

Apêndice G – Sexta sessão – Desenho livre e Jogo lúdico

Nessa sessão, Juliana realizou dois desenhos. Inicialmente, desenhou uma


menina com um bebê na barriga. Disse que a menina é ela e o bebê, um menino.
Em seguida, fez um desenho orientado pela pesquisadora, que lhe propôs que
desenhasse um tema relacionado ao passado, presente e futuro. Juliana passou a
fazer o desenho que relatou representar ela e o pai. Desenhando, Juliana disse que
não gostava do que acontecia, mas que tinha saudades do pai. Enquanto desenha,
quis que a psicóloga fizesse o desenho junto com ela. Ao desenhar seu cabelo,
comentou que fez uma coisa de “palhaçada”, por ter feito um cabelo tão grande.
Enquanto pintava o desenho, diz que estava morrendo. Quando a pesquisadora lhe
pergunta por que, responde: “porque sim”.
Após realizar os desenhos, pediu para brincar com o castelo. Dessa vez,
montou o castelo com os muros alinhados na direção da pesquisadora, formando
um canal entre as duas. Sentou em uma extremidade desse canal e pediu para a
pesquisadora sentar na outra. Pegou uma bolinha que as duas começam a jogar
uma para a outra.
87

Anexo A – Termo de Compromisso do Pesquisador Responsável

Título: Imagens que falam: um estudo de caso de uma menina com queixa de abuso
sexual

O pesquisador, abaixo assina e se compromete a:


• Respeitar e cumprir a Teoria Principialista que visa salvaguardar a autonomia,
befenicência, não maleficência, justiça, privacidade e confidencialidade (Res. 196/96
CONEP/CNS/MS);
• Não violar as normas do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido;
• Comunicar ao sujeito da pesquisa todas as informações necessárias para um
adequado “consentimento livre e esclarecido” e solicitar o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido, apenas, quando o sujeito da pesquisa tenha conhecimento
adequado dos fatos e das conseqüências de sua participação, e tenha tido
oportunidade para considerar livremente se quer participar da pesquisa ou não;
• Obter de cada sujeito de pesquisa um documento assinado ou com impressão
datiloscópica como evidência do consentimento livre e esclarecido;
• Renovar o consentimento livre e esclarecido de cada sujeito se houver alterações
nas condições ou procedimentos da pesquisa, informado procedimento ao CEP;
• Manter absoluto e total sigilo e confidencialidade em relação à identificação do
sujeito da pesquisa e dados constantes em prontuários ou banco de dados.,
• Respeitar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e derivados;
• Não prejudicar o meio ambiente em sua totalidade (fauna e a flora) para execução
da pesquisa.
• Cumprir na integralidade todas as resoluções do Conselho Nacional de Saúde
CNS/MS, bem como todos os diplomas legais referentes ao tema da ética em
pesquisa, dos quais declaramos ter pleno conhecimento.
• Desta forma, como pesquisadora abaixo subscrito, me comprometo, em caráter
irrevogável e irretratável, por prazo indeterminado, a cumprir toda legislação vigente,
bem como as disposições deste Termo de Compromisso.

São Paulo, 12 de julho de 2017.

Nome do Pesquisador/Aluno: Camila Parducci Arruda

Assinatura: ________________________________________________________

Nome da Orientadora: Liliana Liviano Wahba

Assinatura da Orientadora:____________________________________________

Comitê de Ética em Pesquisa PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São


Paulo – PUC-SP

Rua Ministro Godói, 969 – Perdizes –São Paulo – SP – CEP: 05015-001 Edifício Reitor
Bandeira de Mello, sala 63-C. Telefones: (11) 3670-8466 E-mail: cometica@pucsp.br
88

Anexo B – Carta de Autorização da Instituição

O nome da participante foi oculto para preservar sua identidade.


89

Anexo C – Parecer consubstanciado do Comitê de Ética


90

Anexo C – Parecer consubstanciado do Comitê de Ética

- cont. -
91

Anexo C – Parecer consubstanciado do Comitê de Ética

- cont. -
92

Anexo C – Parecer consubstanciado do Comitê de Ética

- cont. -

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