Você está na página 1de 3

Rev. Medicina Desportiva informa, 2011, 2 (2), pp.

13–15

Avulsões apofisárias da bacia


Tema 2

e do fémur proximal no
jovem desportista
Prof. Doutor João Gamelas
Especialista em Ortopedia, Traumatologia e em Medicina Desportiva
British Hospital XXI, Faculdade de Ciências Médicas – Lisboa

RESUMO ABSTRACT Avulsão da Espinha Ilíaca


As avulsões apofisárias da bacia e do fémur proximal têm particular incidência nos adoles- Antero-Superior (EIAS)
centes, principalmente naqueles que praticam desportos vigorosos. Resultam de contra-
ções musculares fortes ou descoordenadas, podendo envolver a crista ilíaca, as espinhas
O núcleo de ossificação da espinha
ilíacas antero-superiores e antero-inferiores, a tuberosidade isquiática e o pequeno trocan-
ter. O autor faz uma revisão da literatura, referindo-se ao diagnóstico clínico e radiológico,
ilíaca antero-superior ossifica-se entre
tratamento e prognóstico destas lesões. os 14 e os 16 anos de idade [2,16]. Esta
avulsão apofisária ocorre por forte
Apophyseal avulsions of the pelvis and proximal femur have a specific incidence in contração ou estiramento do músculo
adolescents, particularly those involved in vigorous sporting activities. They are a result of costureiro durante uma extensão
strong or uncoordinated muscle contractions and can affect the iliac crest, the antero-
violenta ou uma flexão contrariada
superior and antero-inferior iliac spines, the ischial tuberosity and the lesser trocanter.
The author, taking into consideration the clinical signs, radiological features, treatment
da coxa [5] durante prática desportiva,
options and prognosis of these lesions, make a review of the literature. como o salto ou a corrida [16].
A sintomatologia consiste em dor
PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS localizada à EIAS e irradiada à face
Avulsões apofisárias – Avulsões pélvicas – Lesão desportiva anterior da coxa, que é exacerbada
Apophyseal avulsions – Pelvic avulsions – Sports injury pela extensão da anca e pode ser
acompanhada por edema ou equi-
mose no local da avulsão [2,5,16].
Introdução na região anterior da crista ilíaca e Radiologicamente observa-
progride posteriormente até atingir -se uma descoaptação da apófise
As avulsões apofisárias da bacia e a espinha ilíaca posterior no fim da (Figura 1) que se desvia para baixo,
do fémur proximal são, na popula- maturação. A idade média do encer- traccionada pelo costureiro [5].
ção em geral, consideradas raras. ramento apofisário é aos 16 anos
Talvez devido a essa raridade e ao no sexo masculino e aos 14 anos
habitual bom prognóstico desta no sexo feminino, mas as variações
patologia, mesmo quando não individuais são grandes podendo
diagnosticada ou não tratada, tem ocorrer até 4 anos mais tarde [16].
sido de alguma forma negligen- Uma avulsão incompleta da apófise
ciada na literatura ortopédica. Mas ilíaca pode resultar de uma súbita
porque temos sido confrontados e poderosa contração dos músculos
na práctica clínica com este tipo de abdominais associada a abrupta
lesões, relativamente frequentes e mudança de direcção durante a cor-
seguramente importantes no jovem rida, manifestando-se clinicamente Fig. 1 – Avulsão da espinha ilíaca antero-
atleta, efetuámos uma revisão por dor sobre a crista ilíaca, que é -superior
bibliográfica deste tema que agora exacerbada pela abdução resistida
sistematizamos neste artigo. O seu da anca com o doente em decúbito Habitualmente o desvio é pequeno,
objectivo é portanto o de mostrar lateral sobre o lado não lesado. O limitado pela fascia lata e pelo
a nossa experiência clínica e o que diagnóstico é confirmado por uma ligamento inguinal [16], e o trata-
sobre este assunto tem sido escrito, radiografia em incidência obliqua mento consiste em repouso com
nomeadamente no que se refere ao da crista ilíaca que deve ser compa- a anca ligeiramente flectida até à
mecanismo lesional, diagnóstico, rada com a do lado oposto [16]. regressão do quadro álgico, seguido
tratamento e prognóstico. O tratamento é consensualmente de apoio parcial com a ajuda de
conservador, com descarga durante canadianas, sendo a atividade
cerca de uma semana no caso de desportiva retomada entre a quarta
Avulsão da crista ilíaca avulsões significativas, desapare- e sexta semanas [2,3,5,16,20]. Nos
cendo toda a sintomatologia ao fim casos em que o desvio é maior
O aparecimento do núcleo de ossi- de 4 a 6 semanas. alguns autores consideram o
ficação da apófise ilíaca inicia-se tratamento cirúrgico com redução

Revista de Medicina Desportiva informa Março 2011 · 13


cruenta e osteossíntese [2,5]. De Sintomaticamente o doente refere Radiologicamente evidencia-
qualquer das formas o prognóstico uma dor na face anterior da coxa -se facilmente numa incidência
é geralmente bom com consolida- com impotência funcional relativa, antero-posterior da bacia (Figura 4)
ção e recuperação funcional com- frequentemente associada a dor e
pleta da anca [2,5,16]. edema locais [9,16]. Estão também
descritos casos crónicos, principal-
mente em corredores adolescentes
Avulsão da Espinha Ilíaca de longa distância [4], com um qua-
Antero-Inferior (EIAI) dro inicial fruste correspondendo a
uma apofisite que posteriormente
O núcleo de ossificação da EIAI pode progredir para uma avulsão.
funde-se mais precocemente (entre Ainda que para alguns autores
os 12 e os 14 anos) o que, a par da a cirurgia nunca esteja indicada
menor quantidade de forças apli- [16,20], para outros o tratamento Fig. 4 – Avulsão da tuberosidade isquiática
cadas, explica a maior raridade das é excecionalmente cirúrgico, nos
avulsões a este nível [2,5,16] que casos em que exista grande diastáse
tipicamente ocorrem aos treze anos do fragmento avulsionado (> 3 cm), e clinicamente o doente refere dor
de idade [2,5,9] e se associam com correspondendo a lesão simultânea significativa, com postura antálgica
maior frequência ao remate, princi- dos tendões direto e reflectido, ou e desconforto quando se senta. A
palmente no raguebi e futebol [9,16]. quando, independentemente do grau dor acentua-se pela flexão da coxa
O tendão direto do reto anterior nela de diastáse, o fragmento é de gran- com o joelho em extensão e pela
inserido provoca, por contração mus- des dimensões [5,18]. palpação sobre a tuberosidade [2,16].
cular súbita ou extensão violenta O tratamento é quase sempre Habitualmente o desvio é pequeno e
da anca com o joelho em flexão, conservador [2,3,4,8,9,11,13,16,20] contido pelo grande ligamento sacro-
uma fratura/arrancamento com (repouso na cama durante dois ou -isquiático [2], mas o tratamento
maior ou menor grau de diastáse do três dias, seguido de marcha sem é controverso, ainda que tradicio-
fragmento avulsionado [2,3,5,16]. Na apoio com a ajuda de canadianas), nalmente seja conservador [2,3,20]
avaliação radiológica, para além da com evolução habitual da lesão com repouso, se necessário no leito
incidência antero-posterior (Figura para a consolidação sem sequelas em decúbito ventral com o joelho
2), deve-se realizar uma oblíqua funcionais, possibilitando o retomar em flexão para relaxar os músculos
(alar) (Figura 3) para melhor eviden- da atividade desportiva entre a sexta isquio-tibiais e diminuir o risco de
ciar esta formação apofisária [5,19]. e oitava semanas [2,16]. pseudartrose [5], seguido logo que
possível por marcha com canadia-
nas e descarga [2,16]. O tratamento
Avulsão da Tuberosidade Isquiática cirúrgico para redução e osteos-
síntese, principalmente quando a
Às lesões avulsivas da apófise isquiá- diastáse é grande, é equacionado
tica tem, ao longo dos anos, sido por alguns autores, que o justificam
dedicada mais atenção. Malgaigne pela alta incidência de pseudartrose
em 1859 fez a sua descrição, Berry encontrada em algumas séries [5,16],
em 1912 referenciou o primeiro caso referindo dever ser precocemente
relacionado com a contração mus- efetuado, uma vez que o tratamento
Fig. 2 – Avulsão da espinha ilíaca antero- cular e Milch em 1953 denominou-a cirúrgico tardio levanta outros pro-
-inferior (incidência AP) apofisiólise isquiática [16,19]. blemas, com necessidade de opção
Este núcleo de ossificação só é visí- entre exérese ou osteossíntese, e
vel por volta dos 15 anos [2] e funde- outras dificuldades ao obrigar à
-se com o corpo do isquion entre os excisão de um calo hipertrófico, por
20 e os 25 anos [2,16]. A sua avulsão vezes responsável por dor persistente
está relacionada com dois tipos de durante longos períodos em posição
mecanismo: um, mais frequente, sentada [5]. Contrariamente, outros
associa-se a uma poderosa contra- só recomendam a cirurgia no trata-
ção muscular dos isquio-tibiais com mento das referidas sequelas, após a
a bacia fixa em flexão e o joelho em verificação clara e tardia da sua ocor-
extensão, ocorrendo habitualmente rência [2,3], subvalorizando a even-
Fig. 3 – Avulsão da espinha ilíaca antero- durante o lançamento do dardo ou tual dificuldade técnica acrescida.
-inferior (incidência alar) na ginástica e provocando a avul-
são da inserção dos isquio-tibiais;
O desvio só excepcionalmente é outro, menos frequente, produz a Avulsão do Pequeno Trocanter
grande (> 3 cm) [18] uma vez que, lesão avulsiva da inserção do grande
na maioria dos casos, o reto anterior adutor que é usualmente ocasionada O mecanismo de lesão consiste na
continua inserido através do tendão pela “esparragata” durante a dança súbita contração do músculo psoas-
reflectido [2,5,9,16]. ou a ginástica [2,5,16]. -ilíaco com a anca fletida, ocorrendo

14 · Março 2011 www.revdesportiva.pt


por exemplo no bloqueio repentino com qualquer alteração patológica da excelentes resultados funcionais,
do pé durante o remate [16] ou na cartilagem de conjugação. retomando o atleta o seu nível com-
tentativa de parar repentinamente O mecanismo de lesão é o mesmo petitivo pré-lesional, mas admitimos
durante a corrida [20]. A avulsão que provoca lesões músculo-tendino- que em situações excepcionais que
isolada do pequeno trocanter é uma sas no atleta adulto [9,16], nomeada- nunca observámos, com grandes
lesão rara que pode ser inicialmente mente roturas musculares durante diastáses ou com sequelas, se possa
suspeitada no atleta adolescente contração súbita e violenta. equacionar uma solução cirúrgica.
referindo o aparecimento súbito Na revisão bibliográfica efetuada
de dor na região antero-interna da encontrámos dezassete referências
anca e adoptando, a partir de então, sobre avulsões pélvicas [1,4,5,6,7, Bibliografia
uma posição antálgica com a coxa 8,9,10,11,12,13,14,15,17,18,19,21],
em flexão e adução [7,16]. Esta dor lesões consideradas raras mas que, 1. Buch KA and Campbell J: Acute onset meral-
é exacerbada pela flexão contra no desportista desta faixa etária, gia paraesthetica after fracture of the anterior
superior iliac spine, Injury 24(8):569, 1993.
resistência e o doente é incapaz são relativamente frequentes, prin- 2. Canale ST: Fractures of the pelvis. In De
de efetuar a extensão completa da cipalmente as avulsões da EIAS e Rockwood CA , Wilkins DE and King RE:
articulação [16], tendo dificuldade EIAI já que, também na nossa expe- Fractures in children, vol 3, Philadelphia, JB
Lippincott Co:992, 1991.
na marcha e sendo esta facilitada riência, as restantes são verdadeiras 3. Crenshaw AH: Campbell’s operative orthopae-
se feita no sentido inverso, isto é, raridades. dics, vol 2, Mosby Co, 1992.
andando para trás, por diminuir a Com o aparecimento dos núcleos 4. Draper DO and Dustman AJ: Avulsion
fracture of the anterior superior iliac spine in
amplitude de flexão, minimizando de ossificação apofisários, alguns a collegiate distance runner, Arch Phys Med
a contração do psoas-ilíaco [6]. anos antes do fim do crescimento, Rehabil 73(9):881, 1992.
Radiologicamente a lesão é a placa cartilaginosa torna-se extre- 5. Ducloyer P and Filipe G: Apophyseal avulsion
of the pelvis in children, Chir Pediatr 29(2-3):91,
demonstrável numa radiografia da mamente vulnerável a traumatis- 1988.
extremidade superior do fémur em mos [4], principalmente quando de 6. Faria J and Salis Amaral J: Fractura avulsão
ligeira rotação externa [16]. uma contração brusca do músculo do pequeno trocanter, Rev Port Ortop Traum
4:309, 1995.
O tratamento é para a genera- inserido na respetiva apófise. Esta 7. Fasting OJ: Avulsion of the lesser trochanter,
lidade dos autores conservador fragilidade predispõe, os atletas pra- Arch Orth Traum Surg 91:81, 1978.
[6,16,20], consistindo em terapêutica ticantes de modalidades com forte 8. Fernbach SK and Wilkinson RH: Avulsion
injuries to the pelvis and proximal femur, Am J
sintomática, repouso no leito com componente físico dos membros infe- Radiol 137:581, 1981.
as ancas em flexão se necessário riores e massas musculares desen- 9. Gamelas JM, Martins A and Salis Amaral JA:
[20], descarga durante 1 a 2 sema- volvidas, ao aparecimento de apofisi- Avulsão bilateral das espinhas ilíacas antero-
-inferiores (revisão de caso clínico), Rev Port
nas e restrição da atividade despor- tes e avulsões das apófises pélvicas. Ortop Traum 4:581, 1996.
tiva, recomeçando o atleta a correr Quando a avulsão ocorre antes do 10. Hansson G: Bilateral avulsion fracture of the
entre a sexta e oitava semanas e aparecimento do núcleo de ossifica- anterior superior iliac spine: report of a case,
Acta Chir Scand 136(1):85, 1970.
retomando totalmente a atividade ção secundário a lesão não é radiolo- 11. Jacobsen S: Apophyseal avulsions of the
desportiva por volta da décima gicamente evidenciável senão várias pelvis and proximal femur, Ugeskr Laeger
segunda [16]. Poucos preconizam o semanas mais tarde, altura em que 155(27):2124, 1993.
12. Jansen BR and Kortmann JH: Avulsion of
tratamento cirúrgico nos casos de se visualiza o calo ósseo, e a institui- the anterior inferior iliac spine, Ned Tijdschr
diastáses superiores a 2 cm [2]. ção de um tratamento adequado está Geneeskd 119(36):1368, 1975.
dependente apenas de um precoce 13. Khoury MB, Kirks DR, Martinez S and Apple
J: Bilateral avulsion fractures of the anterior
e correto diagnóstico clínico [16,19]. superior iliac spines in sprinters, Skeletal
Discussão Devido à espessura perióstica as dias- Radiol 13(1):65, 1985.
táses não são habitualmente signifi- 14. Lagier R and Jarret G: Apophysiolysis of the
anterior inferior iliac spine: a histological,
As avulsões das apófises pélvicas são cativas, mas os achados radiológicos clinical and radiological study, Arch Orthop
tipicamente lesões de atletas ado- tardios podem ser confundidos com Unfallchir 83(1):81, 1975.
lescentes [2,3,5,8,9,11,13,14,16,18,19] uma lesão tumoral (Figura 5) ou 15. Lanbert MJ and Fligner DJ: Avulsion of the
iliac crest apophysis: a rare fracture in ado-
do sexo masculino [2,3,8,9,14] pra- infecciosa [16,19]. lescent athletes, Ann Emerg Med 22(7):1218,
ticantes de desportos vigorosos 1993.
[1,2,3,8,9,11,13,15,18,21]. Podem 16. Nicholas JA and Hershman EB: The lower
extremity and spine. In sports medicine, vol 2,
resultar de traumatismos crónicos de St Louis, CV Mosby Co, 1986.
tração durante a prática desportiva 17. Schothorst AE: Avulsion fractures of the
[13,19] ou de um episódio traumático inferior-anterior iliac spine, Arch Chir Neerl
30(1):55, 1978.
único por contração muscular súbita, 18. Schwobel MG: Apophyseal fractures in adoles-
desencadeando um quadro sinto- cents, Chirurg 56(11):699, 1985.
matológico mais exuberante [9,19]. 19. Sundar M and Carty H: Avulsion fractures of
the pelvis in children: a report of 32 fractures and
Apesar de alguns autores sugerirem their outcome, Skeletal Radiol 23(2):85, 1990.
a sua relação com eventual patologia Fig. 5 – Consolidação de avulsão da espi- 20. Tachdjian MO: Pediatric Orthopedics, 2nd ed,
da cartilagem de crescimento [6,7], nha ilíaca antero-inferior vol 2, Philadelphia, W. B. Saunders Com-
pany, 1990.
este fato não está demonstrado e 21. Winkler AR, Barnes JC and Ogden JA: Break
pensamos que a incidência prende- Corroboramos a opinião da maio- dance hip: chronic avulsion of the anterior
-se mais com o nível de atividade ria dos autores que recomendam superior iliac spine, Pediatr Radiol 17(6):501,
1987.
física em determinada idade do que o tratamento conservador com

Revista de Medicina Desportiva informa Março 2011 · 15

Você também pode gostar