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br/artigos/22969
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Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a influência da vida e obra do
imperador bizantino Justiniano I na formação e desenvolvimento do direito brasileiro
atual. Assim, a partir de uma retomada dos principais fatos históricos e de uma análise,
principalmente, do conteúdo do Corpus Iuris Civilis, é realizada uma comparação dos
institutos jurídicos presentes nesta e na atual legislação brasileira, identificando pontos
em que são comuns.
1 INTRODUÇÃO
Dentre os sistemas jurídicos disseminados pelo mundo, pode-se dizer sem sombra de
dúvidas que o romano-germânico é o que teve maior influência na formação dos
ordenamentos jurídicos nacionais, dada a constatação da grande quantidade de países
que adotaram o imperativo da escrita sobre a tradição oral[1]. E mais que isso, muitos
institutos jurídicos presentes no direito romano ainda persistem nas legislações
nacionais atuais, mesmo que com pequenas alterações ou com nova roupagem.
O caso brasileiro não é diferente. Conforme se verá neste trabalho, diversos institutos
jurídicos adotados atualmente nasceram no direito romano, sendo que alguns se mantêm
na forma integral, da mesma forma como foram concebidos na Antiguidade.
2 A VIDA DE JUSTINIANO
Justiniano (Flávio Pedro Sabácio Justiniano) foi imperador bizantino desde 1º de agosto
de 527 até o seu falecimento. Tendo nascido em Constantinopla em 11 de maio de 483 e
morrido em 14 de novembro de 565, sucedeu seu tio Justino I no trono, após ter sido
nomeado cônsul. Foi casado com Teodora, mulher de vida desregrada e de origem
humilde. Era um imperador ambicioso, pois pretendia resgatar o momento de maior
esplendor de Roma, ao implementar um projeto de expansão e unificação territorial.
Ficou marcado também pelo seu autoritarismo. Seu governo é caracterizado pela
cobrança de altos impostos, fortalecendo bastante a desigualdade entre pobres e ricos,
tão marcante no período em que governou. Ademais, é descrito como um governo
autocrático e burocrático. A primeira característica advém da superioridade do
imperador que ficava no topo tanto político quanto religioso. Já a segunda característica
em razão da enorme quantidade de funcionários públicos de que dispunha.
Seu interesse neste campo era tão grande que chegava a se intrometer em assuntos
próprios da Igreja.
[...] sob a influência de Teodora, favorável aos monofisistas, mandou deportar o papa
Silvério para a Ásia Menor; submeteu o papa Virgílio, residente em Constantinopla, e
impôs à Igreja a autoridade imperial pela pragmática de 554[3].
A expansão territorial foi prejudicada, contudo, com a grande peste que assolou as
cidades do Mediterrâneo Oriental. Além disso, o resto do território italiano ofereceu
muita resistência, liderado pelo rei ostrogodo Totila. Narses, novo general de Justiniano,
conseguiu após vinte anos eliminar as forças ostrogodas e, com a conquista da região do
sul da Espanha, o território conseguiu alcançar sua maior expansão.
Grande parte das informações à disposição acerca da história de vida de Teodora antes
de seu casamento com Justiniano tem origem na obra “História Secreta” de Procópio de
Cesareia, importante historiador bizantino do século VI. No entanto, muitos estudiosos
contestam a veracidade das informações contidas nesta obra, haja vista que Procópio era
um grande crítico de Justiniano e parece ter exagerado em certos detalhes de sua obra.
Ainda assim, os que criticam os fatos apresentados por Procópio em “História Secreta”
não apresentam argumentos consistentes o bastante para desacreditá-la.
Teodora, nascida no ano 500 e falecendo no dia 28 de junho de 548, era filha de Acácio,
um tratador de ursos do circo, o que evidencia sua origem na mais baixa classe da
sociedade bizantina. Surgiu como atriz cômica no teatro burlesco e por certo tempo foi
uma cortesã de Hecébolo, o governador de Pentápolis. De acordo com os escritos de
Procópio de Cesareia, não era bem quista pela alta sociedade da época, principalmente
pela sua falta de vergonha e participação em acontecimentos de cunho pornográfico[4].
Após ser expulsa de Pentápolis por ter brigado com Hecébolo, Teodora retornou à
Constantinopla, aonde Justiniano, ainda magister militum praesentalis, se apaixonou
perdidamente. Na ânsia de agradar ao máximo que podia sua amada, Justiniano desejava
casar-se com ela. Contudo, as leis da época impediam o casamento de indivíduos das
classes mais baixas com a nobreza. Por isso, Justiniano convenceu o então imperador
Justino I a anular esta lei e editar uma nova, permitindo que qualquer um pudesse se
casar com sua cortesã.
Teodora se casou com Justiniano no ano de 523. Com sua ascensão ao trono imperial
romano no ano de 527, Justiniano a fez imperatriz consorte, concedendo-lhe atribuições
próprias de um governante, como, por exemplo, a responsabilidade de reunir os
monofisistas com o partido dos calcedonianos na Igreja.
Não sendo apenas uma mulher que quebrou paradigmas na sociedade da época, Teodora
também teve importância na formação do Direito, sobretudo em questões bastante
polêmicas. Uma delas, como já dito alhures, foi possibilitar o casamento entre
indivíduos de castas sociais diversas, algo impensável até então. Foi Teodora também
quem Procópio afirma em sua obra que foi a primeira proponente e praticante do aborto.
Teodora também foi grande defensora dos direitos das mulheres. Foi contrária ao
homicídio de mulheres por causa do adultério, devendo na verdade serem socialmente
apoiadas. Por outro lado, no caso de estupro, defendeu a pena de morte para o
estuprador. Também defendia o apoio a prostitutas e mulheres abandonadas à miséria,
numa tentativa de afastá-las da marginalização. Para tanto, defendeu a concessão de
residências para ex-prostitutas e garantia às mulheres maiores direitos em casos de
divórcio, como a possibilidade das mulheres possuírem propriedades.
Nesse mesmo período era comum a prática esportiva de corrida de cavalos, nas quais
ficavam evidentes as divergências não somente do esporte, mas sociais, políticas e
religiosas das equipes que participavam. Dentre elas, duas se destacavam: os Azuis,
representados pelos grandes proprietários rurais e membros da Igreja ortodoxa, e os
Verdes, altos funcionários nativos das províncias orientais, comerciantes, artesãos e
adeptos da doutrina monofisista.
A prática comum dos imperadores à época era apoiar uma das equipes em detrimento de
outra, com o fito de balancear os poderes políticos entre os grupos. Justiniano adotou
postura diversa, resolvendo não apoiar nenhuma delas como forma de diminuir o atrito
político já existente entre elas. A medida, no entanto, não agradou ninguém, fazendo
com que os Azuis e os Verdes se aliassem e formassem uma rebelião para destituir
Justiniano do poder.
Ainda mesmo que a fuga seja a única salvação, não fugirei, pois aqueles que usam a
coroa não devem sobreviver à sua perda. Se quiseres fugir, César, foge. Tens dinheiro,
teus navios estão prontos e o mar aberto. Eu, porém, fico. Gosto desta velha máxima: a
púrpura é uma bela mortalha.
Concordando com sua esposa, Justiniano então encarregou seu general Belisário com a
missão de aniquilar os revoltosos, na qual obteve sucesso. Assim, sem oposição, pôde
governar livremente, como um autocrata e conquistando o povo ao utilizar os impostos
para pagar a reconstrução de igrejas.
3 A OBRA DE JUSTINIANO
A obra está dividida em quatro partes: Digesto (também chamado de Pandectas, seu
nome grego), Institutas, Novelas e Código. É uma revolução no âmbito jurídico, pois
organizou de forma sistemática a legislação e a jurisprudência romana da época, sendo
uma das estruturas para o Direito Civil moderno. Vejamos cada uma delas
separadamente.
Mesmo com todo o trabalho, este Código teve vida curta, pois com a publicação do
Digesto, muitas contradições surgiram e as normas tiveram que ser revisadas. Por isso,
já no ano de 534, foi editado Código Novo, a ser comentado mais adiante.
As interpolações em grande parte são de difícil identificação, haja vista que muito da
literatura jurídica do período clássico foi perdida e, portanto, é difícil distinguir a
redação primitiva dos jurisconsultos clássicos das adições feitas no Digesto pela
comissão. Existem, todavia, alguns métodos que auxiliam na identificação das
interpolações: textual, histórico, lógico e filológico.
O método textual consiste na comparação entre o texto clássico original – se não foi
perdido, obviamente – e o presente no Digesto. O método histórico, por sua vez,
consiste na verificação da existência de institutos e conceitos no texto clássico que só se
desenvolverão futuramente, revelando um anacronismo. O método lógico é a simples
verificação de incongruência no texto do Digesto. Por fim, o método filológico verifica
estilos de linguagem e escrita diversos daquele dos jurisconsultos clássicos.
A regra prevalece até os dias atuais na legislação brasileira, vide o artigo 2º, §2º da Lei
de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657/42):
Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a
modifique ou revogue.
[...]
§ 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes,
não revoga nem modifica a lei anterior.
Curator ex senatus consulto constituitur, cum clara persona, veluti senatoris vel uxoris
eius, in ea causa sit, ut eius bona venire debeant: nam ut honestius ex bonis eius
quantum potest creditoribus solveretur, curator constituitur distrahendorum bonorum
gratia vel a praetore vel in provinciis a praeside.
A regra traz a ideia de que só deverão ser vendidos os bens do executado que se
mostrarem suficientes para a satisfação dos seus débitos. É o princípio da
satisfatividade, informativo da tutela jurisdicional executiva previsto no artigo 659 do
Código de Processo Civil:
Art. 659. A penhora deverá incidir em tantos bens quantos bastem para o pagamento do
principal atualizado, juros, custas e honorários advocatícios.
IV - bens imóveis;
V - navios e aeronaves;
XI - outros direitos.
Verifica-se que a preocupação com uma ordem menos gravosa para o devedor e que
satisfaça devidamente os interesses do credor existia desde a época dos romanos, não
sendo, pois, novidade do mundo jurídico contemporâneo.
§ 2o Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir
e o mesmo pedido.
Art. 5º, XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para
prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
Art. 227. Quando, por três vezes, o oficial de justiça houver procurado o réu em seu
domicílio ou residência, sem o encontrar, deverá, havendo suspeita de ocultação,
intimar a qualquer pessoa da família, ou em sua falta a qualquer vizinho, que, no dia
imediato, voltará, a fim de efetuar a citação, na hora que designar.
3.4 Institutas
Da mesma forma como foi procedido no subitem 3.3, neste tópico serão apresentadas
algumas semelhanças entre as normas jurídicas previstas nas Institutas – ainda que se
trate, como explicado alhures, de mero manual introdutório ao Digesto – e a legislação
brasileira atual, demonstrando a grande herança romana na formação do direito
contemporâneo, sem a pretensão de esgotar o assunto.
[...]
As Institutas de Justiniano recordam o velho princípio então caído em desuso, mas não
esquecido, que prescrevia que a herança passasse apenas de um varão a outro. Sem
dúvida, só em respeito a essa regra é que a mulher, em direito civil, não podia jamais ser
instituída herdeira[10].
O instituto da boa-fé já era previsto no direito romano, como assim já asseverava Gaio
em enunciado incluído no Digesto[12] e repetido no Codex. Assim, aquele que violava
este preceito, era punido com severidade caso exigisse quantia superior à devida,
perdendo o credor de má-fé tanto o excesso exigido como todo o crédito (C. 3, 10, 3).
Referidos conceitos são bastante semelhantes aos existentes nos artigos 422 e 940 do
Código Civil:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar
as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao
devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente
do que dele exigir, salvo se houver prescrição.
Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo,
nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Assim, particulares resolveram realizar este objetivo, reunindo toda a legislação editada
por Justiniano após a elaboração do Codex, do Digesto e das Institutas e transformá-la
num quarto volume, as Novelas. Tem-se notícia de três grandes compilações feitas por
particulares: o Epítome do professor Juliano, o Authenticum e outra do tempo de
Tibério II. Estas são, portanto, constituídas de constituições imperiais, que apresentam
prefácio, capítulos e epílogo.
4 CONCLUSÃO
Mais do que uma conclusão, aqui se faz uma constatação de tudo que foi apresentado
acima. Inegável a influência das conquistas do imperador Justiniano I na formação do
mundo atual, principalmente no campo jurídico. Por ser um direito escrito e
sistematizado, o direito romano justinianeu se sobrepôs ao direito costumeiro, haja vista
que trazia uma maior segurança jurídica. Ademais, tais características facilitavam a
transmissão das normas para as futuras gerações, o que explica ter se tornado um direito
comum de estudo na Europa.
Outra característica que salta aos olhos é a sua completude e riqueza em detalhes, pois
desde aquela época, através da compilação e análise dos clássicos jurisconsultos
romanos, tratavam de temas bastante específicos de diversos (o que chamamos hoje de)
ramos do direito. A consequência disto foi bem clara: referidos enunciados foram
incorporados nas legislações contemporâneas, sobretudo na brasileira, objeto deste
estudo.
Desse modo, é possível verificar que o direito romano não está verdadeiramente morto,
pois muitos de seus institutos não só continuam influenciando o pensamento pós-
moderno, como alguns deles também se mantêm íntegros mesmo com decurso do
tempo. Reforça, sobretudo, o que fora afirmado na introdução deste estudo: o Direito é
resultado de uma constante evolução histórica, que incorpora e transforma institutos de
acordo com as necessidades de cada sociedade.
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Luis Carlos de. Introdução à história do Direito. 3ª ed. rev. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2005.
GRANDE Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998. Vol. 14.
LIMA LOPES, José Reinaldo. O Direito na História. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2008.
PIRES, Maria Coeli Simões. Direito Adquirido e Ordem Pública: Segurança Jurídica e
Transformação Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
SILVA PEREIRA, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil – Vol. I. 21ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2005.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. II. 44ª ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2009.
Notas
[1]
Sendo esta segunda característica típica do sistema jurídico anglo-saxão.
[2]
Ressalta-se, inclusive, sua influência ao longo da história, como sendo a base para o
desenvolvimento das glosas por Irnério no século XI, ao desenvolvimento dos estudos
da Escola Culta no século XVI, aos métodos mos gallicus e mos italicus de
recomposição do direito romano justinianeu, ao ser objeto de estudos e reorganização
por Robert Pothier em sua obra Pandectae in novum ordienm Digestae de 1748 e aos
estudos realizados pela Escola Pandectística da Alemanha do século XIX, haja vista que
até então vigorava as normas do Corpus Iuris Civilis neste país.
[3]
GRANDE Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998. p. 3388.
vol. 14.
[4]
É importante ressaltar que o título do capítulo 9 da obra “História Secreta” tem como
título “Como Teodora, a mais depravada de todas as cortesãs, ganhou seu amor [de
Justiniano]” (tradução livre), trazendo à tona a má fama que Teodora possuía na alta
sociedade. Em certa passagem, Procópio relata que muitas vezes Teodora fazia
piqueniques com dez homens jovens ou mais, na flor de sua força e virilidade, flertando
com todos eles a noite inteira. His
[5]
Compunha a comissão o ministro do imperador e jurisconsulto de grande mérito
Triboniano e Teófilo, ambos professores de direito da escola de Constantinopla.
[6]
AZEVEDO, Luis Carlos de. Introdução à história do Direito. 3ª ed. rev. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 71-72.
[7]
Tradução livre: “quando concorrem várias ações pela mesma causa, deve-se exercitar
apenas uma delas”.
[8]
Tradução livre: “coisa julgada é verdade aceita e não mais possível de ser
modificada”.
[9]
AZEVEDO, Luis Carlos de. Introdução à história do Direito. 3ª ed. rev. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 73.
[10]
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 81-
82.
[11]
Fatos já trabalhados no subitem 2.1 supra.
[12]
Bona fides non patitur, ut bis idem exigatur (D. 50, 17, 57 Lib. Octavo Decimi ad
Edictum Provinciale).
ABSTRACT
This article has the objective to analyze the influence of the life and work of the
Byzantine emperor Justinian I in the formation and development of the current Brazilian
law. Thus, from a resumption of the main historical facts and especially an analysis of
the content of the Corpus Iuris Civilis, is made a comparison of legal institutions present
in this work and the current Brazilian legislation, identifying points that are in common.