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Corpus Juris Civilis: Justiniano e o


Direito brasileiro
José Eduardo Figueiredo de Andrade Martins

Publicado em 11/2012. Elaborado em 06/2012.

Por ser um direito escrito e sistematizado, o direito romano justinianeu se sobrepôs ao


direito costumeiro, haja vista que trazia uma maior segurança jurídica.

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a influência da vida e obra do
imperador bizantino Justiniano I na formação e desenvolvimento do direito brasileiro
atual. Assim, a partir de uma retomada dos principais fatos históricos e de uma análise,
principalmente, do conteúdo do Corpus Iuris Civilis, é realizada uma comparação dos
institutos jurídicos presentes nesta e na atual legislação brasileira, identificando pontos
em que são comuns.

Palavras-chave: Justiniano; Corpus Iuris Civilis; comparação; legislação brasileira.

1 INTRODUÇÃO

O Direito não é fruto de um acontecimento histórico pontual, mas resultado de uma


constante evolução. Por isso, não é incomum encontrarmos institutos jurídicos
contemporâneos em legislações antigas, ainda que em uma versão bastante primitiva.

Dentre os sistemas jurídicos disseminados pelo mundo, pode-se dizer sem sombra de
dúvidas que o romano-germânico é o que teve maior influência na formação dos
ordenamentos jurídicos nacionais, dada a constatação da grande quantidade de países
que adotaram o imperativo da escrita sobre a tradição oral[1]. E mais que isso, muitos
institutos jurídicos presentes no direito romano ainda persistem nas legislações
nacionais atuais, mesmo que com pequenas alterações ou com nova roupagem.

O caso brasileiro não é diferente. Conforme se verá neste trabalho, diversos institutos
jurídicos adotados atualmente nasceram no direito romano, sendo que alguns se mantêm
na forma integral, da mesma forma como foram concebidos na Antiguidade.

Parte desta manutenção se deve ao trabalho do imperador bizantino Justiniano I, que


teve a preocupação na época de organizar a legislação como um dos meios de efetivar a
unificação e expansão do império romano bizantino como pretendia. Manobra até certo
ponto bem sucedida, pois o império bizantino perdurou por quase novecentos anos e,
irremediavelmente, se tornou na Antiguidade símbolo de prosperidade[2].

Este trabalho busca não só retomar os principais acontecimentos na vida deste


importante imperador bizantino, mas também analisar a sua obra frente à legislação
brasileira atual, na tentativa de identificar pontos em comum que demonstrem a
influência do direito romano na formação do mundo jurídico contemporâneo.

2 A VIDA DE JUSTINIANO

Justiniano (Flávio Pedro Sabácio Justiniano) foi imperador bizantino desde 1º de agosto
de 527 até o seu falecimento. Tendo nascido em Constantinopla em 11 de maio de 483 e
morrido em 14 de novembro de 565, sucedeu seu tio Justino I no trono, após ter sido
nomeado cônsul. Foi casado com Teodora, mulher de vida desregrada e de origem
humilde. Era um imperador ambicioso, pois pretendia resgatar o momento de maior
esplendor de Roma, ao implementar um projeto de expansão e unificação territorial.

Ficou marcado também pelo seu autoritarismo. Seu governo é caracterizado pela
cobrança de altos impostos, fortalecendo bastante a desigualdade entre pobres e ricos,
tão marcante no período em que governou. Ademais, é descrito como um governo
autocrático e burocrático. A primeira característica advém da superioridade do
imperador que ficava no topo tanto político quanto religioso. Já a segunda característica
em razão da enorme quantidade de funcionários públicos de que dispunha.

Justiniano tinha a pretensão de unir o Ocidente e o Oriente através da religião (“Um


Estado, uma Lei, uma Igreja”). Tentou solidificar a doutrina monofisista, tendo ampla
aceitação no Egito e na Síria. Implacável, Justiniano perseguia judeus, pagãos e
heréticos, justamente com a intenção de impedir a existência de religiões diversas
daquela que considerava correta. Evidências disto é o fechamento da Escola Filosófica
de Atenas, símbolo pagão da Academia de Platão e considerar extinto o Talmude (Livro
Sagrado dos judeus) das sinagogas.

Seu interesse neste campo era tão grande que chegava a se intrometer em assuntos
próprios da Igreja.

[...] sob a influência de Teodora, favorável aos monofisistas, mandou deportar o papa
Silvério para a Ásia Menor; submeteu o papa Virgílio, residente em Constantinopla, e
impôs à Igreja a autoridade imperial pela pragmática de 554[3].

A grande ambição de Justiniano era o restabelecimento do Império Romano como um


só. Para tanto, Justiniano dedicou-se bastante às campanhas de recuperação de território
do Império. Uma das primeiras medidas tomadas foi a celebração de um tratado de não-
agressão com Cosroes I (“A alma imortal”, vigésimo rei sassânida da Pérsia), em que se
comprometeu a pagar anualmente um tributo a este para que não houvesse qualquer
invasão ao território bizantino.
Tendo o Oriente assegurado, Justiniano pôde se dedicar à recuperação do Ocidente.
Com a ajuda do general Belisário, conquistou a cidade de Cartago, a Sicília, as ilhas
Baleares e parte da costa levantina peninsular. Com certa dificuldade devido à
resistência ostrogoda, também conseguiu conquistar Roma e Ravenna.

A expansão territorial foi prejudicada, contudo, com a grande peste que assolou as
cidades do Mediterrâneo Oriental. Além disso, o resto do território italiano ofereceu
muita resistência, liderado pelo rei ostrogodo Totila. Narses, novo general de Justiniano,
conseguiu após vinte anos eliminar as forças ostrogodas e, com a conquista da região do
sul da Espanha, o território conseguiu alcançar sua maior expansão.

2.1 A importância de Teodora no governo de Justiniano

Grande parte das informações à disposição acerca da história de vida de Teodora antes
de seu casamento com Justiniano tem origem na obra “História Secreta” de Procópio de
Cesareia, importante historiador bizantino do século VI. No entanto, muitos estudiosos
contestam a veracidade das informações contidas nesta obra, haja vista que Procópio era
um grande crítico de Justiniano e parece ter exagerado em certos detalhes de sua obra.
Ainda assim, os que criticam os fatos apresentados por Procópio em “História Secreta”
não apresentam argumentos consistentes o bastante para desacreditá-la.

Teodora, nascida no ano 500 e falecendo no dia 28 de junho de 548, era filha de Acácio,
um tratador de ursos do circo, o que evidencia sua origem na mais baixa classe da
sociedade bizantina. Surgiu como atriz cômica no teatro burlesco e por certo tempo foi
uma cortesã de Hecébolo, o governador de Pentápolis. De acordo com os escritos de
Procópio de Cesareia, não era bem quista pela alta sociedade da época, principalmente
pela sua falta de vergonha e participação em acontecimentos de cunho pornográfico[4].

Após ser expulsa de Pentápolis por ter brigado com Hecébolo, Teodora retornou à
Constantinopla, aonde Justiniano, ainda magister militum praesentalis, se apaixonou
perdidamente. Na ânsia de agradar ao máximo que podia sua amada, Justiniano desejava
casar-se com ela. Contudo, as leis da época impediam o casamento de indivíduos das
classes mais baixas com a nobreza. Por isso, Justiniano convenceu o então imperador
Justino I a anular esta lei e editar uma nova, permitindo que qualquer um pudesse se
casar com sua cortesã.

Teodora se casou com Justiniano no ano de 523. Com sua ascensão ao trono imperial
romano no ano de 527, Justiniano a fez imperatriz consorte, concedendo-lhe atribuições
próprias de um governante, como, por exemplo, a responsabilidade de reunir os
monofisistas com o partido dos calcedonianos na Igreja.

Quanto a sua religião, há certa controvérsia dentre os historiadores. Alguns acreditam


que se tornou adepta do monofisismo – crença de que Cristo mantinha somente a
natureza divina, e não dupla como os calcedonianos defendiam – antes mesmo de
conhecer Justiniano, enquanto outros defendem que se tornou monofisista pela
responsabilidade como governante assim como exemplificada acima.

Não sendo apenas uma mulher que quebrou paradigmas na sociedade da época, Teodora
também teve importância na formação do Direito, sobretudo em questões bastante
polêmicas. Uma delas, como já dito alhures, foi possibilitar o casamento entre
indivíduos de castas sociais diversas, algo impensável até então. Foi Teodora também
quem Procópio afirma em sua obra que foi a primeira proponente e praticante do aborto.

Teodora também foi grande defensora dos direitos das mulheres. Foi contrária ao
homicídio de mulheres por causa do adultério, devendo na verdade serem socialmente
apoiadas. Por outro lado, no caso de estupro, defendeu a pena de morte para o
estuprador. Também defendia o apoio a prostitutas e mulheres abandonadas à miséria,
numa tentativa de afastá-las da marginalização. Para tanto, defendeu a concessão de
residências para ex-prostitutas e garantia às mulheres maiores direitos em casos de
divórcio, como a possibilidade das mulheres possuírem propriedades.

2.2 A Revolta de Nika

Durante o reinado de Justiniano, o império bizantino passava por um período de grande


miséria, fome e falta de moradia para a população. Além disso, o império insistia em
cobrar altos impostos para sua manutenção, sem que os valores fossem devidamente
revertidos para o bem da população. Havia, também, altos gastos com as empreitadas
militares, algo que desagradava bastante a população.

Nesse mesmo período era comum a prática esportiva de corrida de cavalos, nas quais
ficavam evidentes as divergências não somente do esporte, mas sociais, políticas e
religiosas das equipes que participavam. Dentre elas, duas se destacavam: os Azuis,
representados pelos grandes proprietários rurais e membros da Igreja ortodoxa, e os
Verdes, altos funcionários nativos das províncias orientais, comerciantes, artesãos e
adeptos da doutrina monofisista.

A prática comum dos imperadores à época era apoiar uma das equipes em detrimento de
outra, com o fito de balancear os poderes políticos entre os grupos. Justiniano adotou
postura diversa, resolvendo não apoiar nenhuma delas como forma de diminuir o atrito
político já existente entre elas. A medida, no entanto, não agradou ninguém, fazendo
com que os Azuis e os Verdes se aliassem e formassem uma rebelião para destituir
Justiniano do poder.

No ano de 532, em Constantinopla, houve uma corrida no hipódromo da cidade em que


o cavalo Nika era o favorito da população para ser o vencedor. Embora tenha
efetivamente ganho a corrida, Justiniano declarou que o vencedor da corrida tinha sido
outro cavalo, seu favorito. Tal atitude causou a revolta dos presentes, inclusive tendo
como fato marcante uma discussão entre as diferentes classes sociais, algo inadmissível
e impensado à época. Dentro desse contexto, os revoltosos massacraram a guarda real,
dominando quase toda a cidade e proclamando novo imperador.

Justiniano já estava convencido de abandonar o trono, quando sua esposa Teodora o


convenceu de se manter no poder com o seguinte discurso:

Ainda mesmo que a fuga seja a única salvação, não fugirei, pois aqueles que usam a
coroa não devem sobreviver à sua perda. Se quiseres fugir, César, foge. Tens dinheiro,
teus navios estão prontos e o mar aberto. Eu, porém, fico. Gosto desta velha máxima: a
púrpura é uma bela mortalha.
Concordando com sua esposa, Justiniano então encarregou seu general Belisário com a
missão de aniquilar os revoltosos, na qual obteve sucesso. Assim, sem oposição, pôde
governar livremente, como um autocrata e conquistando o povo ao utilizar os impostos
para pagar a reconstrução de igrejas.

3 A OBRA DE JUSTINIANO

Justiniano, com seu projeto de unificação e expansão do império bizantino, via a


necessidade de criar uma legislação congruente e capaz de atender às demandas e
litígios vivenciados à época. Para isso, redigiu, compilou e explicou inúmeras normas e
(hoje chamada de) jurisprudência em obra que foi designada como Corpus Iuris Civilis
pelo romanista francês Dionísio Godofredo em 1583.

A obra está dividida em quatro partes: Digesto (também chamado de Pandectas, seu
nome grego), Institutas, Novelas e Código. É uma revolução no âmbito jurídico, pois
organizou de forma sistemática a legislação e a jurisprudência romana da época, sendo
uma das estruturas para o Direito Civil moderno. Vejamos cada uma delas
separadamente.

3.1 Código de Justiniano

Dada a desorganização da legislação vigente à época e a necessidade de preservar as


normas de direito romano, Justiniano convoca uma comissão de dez membros[5] para
compilar as constituições imperiais vigentes. O trabalho foi encerrado em dois anos,
com a publicação do Nouus Iustinianus Codex (Novo Código de Justiniano) com a
constituição Summa rei publicae em 7 de abril de 529.

Mesmo com todo o trabalho, este Código teve vida curta, pois com a publicação do
Digesto, muitas contradições surgiram e as normas tiveram que ser revisadas. Por isso,
já no ano de 534, foi editado Código Novo, a ser comentado mais adiante.

3.2 Digesto (ou Pandectas)

Digesto, do latim digere, significa “pôr em ordem”. Trata-se de compilação e


organização dos jurisconsultos clássicos que não só eram inúmeros como também
sofriam de contradições e dificuldades de localização. Justiniano, percebendo esses
problemas, decidiu dar a missão à Triboniano de reunir uma comissão de dezesseis
membros para organizar toda a jurisprudência no prazo de dez anos. Como membros
foram selecionados Constantino, Teófilo e Crátino de Constantinopla, Doroteu e Isidoro
da Universidade de Berito e mais onze advogados que trabalhavam junto à alta
magistratura.

Após árduo trabalho de compilação, leitura e análise de textos, a comissão conseguiu


terminar o trabalho em apenas três anos, sendo chamado informalmente de Codex
enucleati iuris. O Digesto foi promulgado em 15 de dezembro de 533, entrando em
vigor após quinze dias. Extenso, o Digesto é composto por 50 livros, subdivididos em
aproximadamente 1.500 títulos organizados por assunto.
Os assuntos tratados no Digesto podem ser divididos em sete partes. Do livro 1 ao 4, há
a regulamentação dos princípios gerais sobre o direito e a jurisdição. Do livro 5 ao 11, a
doutrina geral sobre as ações de proteção judicial da propriedade e os demais direitos
reais. Do livro 12 ao 19, de rebus, obrigações e contratos. Do livro 20 ao 27, umbilicus,
obrigações e família. Do livro 28 ao 36, do testamento, herança, legados e
fideicomissos. Do livro 37 ao 44, da herança pretoriana e matérias referentes a direitos
reais, possessão e obrigações. Por fim, do livro 45 ao 50, stipulatio, direito penal,
apelação e direito municipal.

Conforme dito anteriormente, a elaboração do Digesto não se resumia a compilar os


jurisconsultos clássicos, mas também organizá-los, de forma que adquirissem uma
coerência lógica. Por isso, Justiniano autorizou a comissão a alterar a redação original
dos fragmentos analisados, podendo fazer substituições, supressões ou acréscimos,
harmonizando-os com o sistema em construção. Essas mudanças foram chamadas de
emblemata Triboniani, tribonianismos (referência ao organizador da comissão
Triboniano) ou interpolações.

As interpolações em grande parte são de difícil identificação, haja vista que muito da
literatura jurídica do período clássico foi perdida e, portanto, é difícil distinguir a
redação primitiva dos jurisconsultos clássicos das adições feitas no Digesto pela
comissão. Existem, todavia, alguns métodos que auxiliam na identificação das
interpolações: textual, histórico, lógico e filológico.

O método textual consiste na comparação entre o texto clássico original – se não foi
perdido, obviamente – e o presente no Digesto. O método histórico, por sua vez,
consiste na verificação da existência de institutos e conceitos no texto clássico que só se
desenvolverão futuramente, revelando um anacronismo. O método lógico é a simples
verificação de incongruência no texto do Digesto. Por fim, o método filológico verifica
estilos de linguagem e escrita diversos daquele dos jurisconsultos clássicos.

3.3 Comparação entre o Digesto e a legislação civil e processual civil brasileira


atual

Neste tópico serão apresentadas algumas semelhanças entre as normas jurídicas


previstas no Digesto e a legislação brasileira atual, demonstrando a grande herança
romana na formação do direito contemporâneo. Claro que não é possível esgotar o
assunto em tão breve trabalho científico, mas serve para se ter uma breve noção da
influência romana na formação da ciência jurídica brasileira.

3.3.1 Leis gerais e especiais (Papiniano)

Em mandamento atribuído a Papiniano, está previsto no Digesto (D. 50.17.80; 33


quaestionum) o seguinte: “In toto iure generi per speciem derogatur et illud potissimum
habetur, quod ad speciem derectum est”. Por uma tradução bastante sintética, trata-se da
regra geral de direito que o específico derroga o genérico. Significa, pois, que “não é
toda a lei antiga que deixa de prevalecer, mas somente aquilo que se mostra
incompatível com a lei nova[6]”.

A regra prevalece até os dias atuais na legislação brasileira, vide o artigo 2º, §2º da Lei
de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657/42):
Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a
modifique ou revogue.

[...]

§ 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes,
não revoga nem modifica a lei anterior.

Dessa maneira, assim como já concluído pelos romanos, a disposição especial


disciplinará casos especiais, sem que colida com a norma geral, podendo
harmonicamente e de forma simultânea vigorar. Caberá ao intérprete verificar no caso
concreto qual delas será aplicada, isto é, se ele se depara com um dos casos especiais ou
geral.

3.3.2 Critérios de satisfação do débito (Gaio e Ulpiano)

Quanto à satisfação do débito, já lecionava Gaio (Digesto, 27, 10, 5):

Curator ex senatus consulto constituitur, cum clara persona, veluti senatoris vel uxoris
eius, in ea causa sit, ut eius bona venire debeant: nam ut honestius ex bonis eius
quantum potest creditoribus solveretur, curator constituitur distrahendorum bonorum
gratia vel a praetore vel in provinciis a praeside.

A regra traz a ideia de que só deverão ser vendidos os bens do executado que se
mostrarem suficientes para a satisfação dos seus débitos. É o princípio da
satisfatividade, informativo da tutela jurisdicional executiva previsto no artigo 659 do
Código de Processo Civil:

Art. 659. A penhora deverá incidir em tantos bens quantos bastem para o pagamento do
principal atualizado, juros, custas e honorários advocatícios.

Outro critério presente no Digesto acerca de critérios para satisfação do débito é a


ordem na venda de bens penhorados, em enunciado atribuído à Ulpiano no livro 42, 1,
15, 2. Em síntese, estabelece que sejam vendidas em primeiro lugar as coisas móveis e
os animais. Se não bastarem para a satisfação do débito, serão vendidos os bens imóveis
e, por fim, os direitos.

Trata-se de ordem bastante semelhante à existente hoje no artigo 655 do Código de


Processo Civil, verbis:

Art. 655. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:

I - dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira;

II - veículos de via terrestre;

III - bens móveis em geral;

IV - bens imóveis;
V - navios e aeronaves;

VI - ações e quotas de sociedades empresárias;

VII - percentual do faturamento de empresa devedora;

VIII - pedras e metais preciosos;

IX - títulos da dívida pública da União, Estados e Distrito Federal com cotação em


mercado;

X - títulos e valores mobiliários com cotação em mercado;

XI - outros direitos.

Verifica-se que a preocupação com uma ordem menos gravosa para o devedor e que
satisfaça devidamente os interesses do credor existia desde a época dos romanos, não
sendo, pois, novidade do mundo jurídico contemporâneo.

3.3.3 Litispendência e Coisa julgada (Ulpiano)

Os institutos da litispendência e da coisa julgada também derivam do direito romano.


No Digesto, em seu livro 50, há dois enunciados originários de Ulpiano que comprovam
a preocupação dos romanos com as ações repetidas, estejam elas em andamento ou
findas. No caso da litispendência: “1. Quotiens concurrunt plures actiones eiusdem rei
nomine, una quis experiri debet[7]” (D. 50, 17, 43). Já no caso da coisa julgada: “Res
iudicata pro veritate accipitur[8]” (D. 50, 17, 207).

Os institutos se mantêm íntegros na legislação brasileira atual, conforme se nota pela


redação do artigo 301, §§ 1º, 2º e 3º do Código de Processo Civil:

Art. 301, § 1o Verifica-se a litispendência ou a coisa julgada, quando se reproduz ação


anteriormente ajuizada.

§ 2o Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir
e o mesmo pedido.

§ 3o Há litispendência, quando se repete ação, que está em curso; há coisa julgada,


quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso.

3.3.4 Citação e domicílio (Paulo e Gaio)

O doutrinador Luis Carlos de Azevedo identifica nas passagens do Digesto questões


acerca da citação e do domicílio do réu:

Do mesmo modo, quanto ao direito à intimidade, ao resguardo do domicílio: Gaio já


acentuara, “ninguém pode ser citado dentro de sua própria casa, porque esta é o mais
seguro refúgio e asilo de cada um: e aquele que nela penetra, para citar, estará violando-
a” (D. 2, 4, 18, ad. leg. XII, Tab.).
O texto de Paulo reafirma a prerrogativa: poderá ser citado, se vier até a soleira da porta
e se com a convocação eventualmente consentir: mas, na casa, ninguém poderá entrar e
tirá-lo de lá, à força: “tamen de domo sua memo extrahi debet” (D. 2, 4, 21; 1, ad.
edictum e 50, 17, 103)[9].

Entendimento semelhante está presente pela leitura sistemática do artigo 5º, XI da


Constituição Federal e dos artigos 227 e 228 do Código de Processo Civil:

Art. 5º, XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para
prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

Art. 227. Quando, por três vezes, o oficial de justiça houver procurado o réu em seu
domicílio ou residência, sem o encontrar, deverá, havendo suspeita de ocultação,
intimar a qualquer pessoa da família, ou em sua falta a qualquer vizinho, que, no dia
imediato, voltará, a fim de efetuar a citação, na hora que designar.

Art. 228. No dia e hora designados, o oficial de justiça, independentemente de novo


despacho, comparecerá ao domicílio ou residência do citando, a fim de realizar a
diligência.

§ 1o Se o citando não estiver presente, o oficial de justiça procurará informar-se das


razões da ausência, dando por feita a citação, ainda que o citando se tenha ocultado em
outra comarca.

3.4 Institutas

Justiniano, após a elaboração do Digesto, selecionou os compiladores Triboniano,


Doroteu e Teófilo para organizar um manual introdutório às normas inclusas no
Digesto. As Institutas foram publicadas um mês antes do Digesto, em 21 de novembro
de 533, para que fosse possível o estudo prévio das normas que em breve entrariam em
vigor. Entrou em vigor no mesmo dia do Digesto, ou seja, 30 de dezembro de 533.

Sendo destinada ao ensino, as Institutas têm como característica o ponto de vista


teórico, expondo noções gerais, definições e classificações dos dispositivos presentes no
Digesto.

3.5 Comparação entre as Institutas e a legislação civil brasileira atual

Da mesma forma como foi procedido no subitem 3.3, neste tópico serão apresentadas
algumas semelhanças entre as normas jurídicas previstas nas Institutas – ainda que se
trate, como explicado alhures, de mero manual introdutório ao Digesto – e a legislação
brasileira atual, demonstrando a grande herança romana na formação do direito
contemporâneo, sem a pretensão de esgotar o assunto.

3.5.1 Herança da filha e da esposa

Na legislação civil atual, a filha, independentemente de já ter se casado ou não, e a


esposa são sucessoras legítimas de seu pai e marido respectivamente (artigo 1.829, I e II
do Código Civil). No entanto, no direito romano a regra não era a mesma, como se
depreende destes excertos da obra de Fustel de Coulanges:

Gaio e as Institutas de Justiniano relatam o fato de a filha só ser considerada como


herdeira de seu pai se lhe estivesse subordinada na ocasião da morte; mas se casasse
segundo os ritos religiosos, já não estaria mais sob a autoridade do pai.

[...]

As Institutas de Justiniano recordam o velho princípio então caído em desuso, mas não
esquecido, que prescrevia que a herança passasse apenas de um varão a outro. Sem
dúvida, só em respeito a essa regra é que a mulher, em direito civil, não podia jamais ser
instituída herdeira[10].

Nota-se que mesmo com o ativismo da imperatriz Teodora pelo reconhecimento de


direitos das mulheres em pé de igualdade com os homens[11], ainda assim a mulher não
gozava de tais direitos quando se tratava da questão hereditária.

3.6 Reforma no Código de Justiniano

Como já dito anteriormente, com a publicação do Digesto, muitas contradições surgiram


e as normas tiveram que ser revisadas. Por isso, já no ano de 534, foi editada uma
segunda versão do Código (Codex repetitae praelectionis). Uma comissão de cinco
membros ficou incumbida da tarefa de sistematizar e adequar o Código de Justiniano à
nova realidade do Digesto.

O novo Código é dividido em 12 livros, com subdivisões em títulos. Assim como no


Digesto, estão presentes as interpolações. Evidenciando a preocupação de Justiniano
com a religião como meio de uniformização do império, há logo no início uma
invocação de Cristo, seguindo-se para os livros que, em linhas gerais, dividem-se em
matérias. O Livro I trata das fontes do direito, ao direito de asilo e às funções dos
diversos agentes imperiais. O Livro II trata do processo. Os Livros III e VIII tratam
basicamente de regras de direito privado. O Livro IX de normas de Direito Penal. Os
Livros X a XII de regras de direito administrativo e fiscal.

3.7 Comparação entre o Código de Justiniano e a legislação civil brasileira atual

Novamente, sem a pretensão de esgotar o assunto, serão apresentadas algumas


semelhanças entre as normas jurídicas do Codex e a legislação brasileira atual.

3.7.1 A boa-fé e a cobrança indevida de dívida

O instituto da boa-fé já era previsto no direito romano, como assim já asseverava Gaio
em enunciado incluído no Digesto[12] e repetido no Codex. Assim, aquele que violava
este preceito, era punido com severidade caso exigisse quantia superior à devida,
perdendo o credor de má-fé tanto o excesso exigido como todo o crédito (C. 3, 10, 3).

Referidos conceitos são bastante semelhantes aos existentes nos artigos 422 e 940 do
Código Civil:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar
as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao
devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente
do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

E no artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo,
nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do


indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção
monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

3.8 Novelas (ou Autênticas, Plácida, Novellae)

Após o término das compilações, ou seja, da elaboração do Codex, do Digesto e das


Institutas, houve a reserva para que Justiniano pudesse editar novas leis. Utilizando-se
dessa faculdade, Justiniano realizou diversas modificações na legislação, as quais não
foram diretamente incorporadas ao Corpus Iuris Civilis, pois o governante veio a falecer
antes que fosse possível realizá-la.

Assim, particulares resolveram realizar este objetivo, reunindo toda a legislação editada
por Justiniano após a elaboração do Codex, do Digesto e das Institutas e transformá-la
num quarto volume, as Novelas. Tem-se notícia de três grandes compilações feitas por
particulares: o Epítome do professor Juliano, o Authenticum e outra do tempo de
Tibério II. Estas são, portanto, constituídas de constituições imperiais, que apresentam
prefácio, capítulos e epílogo.

4 CONCLUSÃO

Mais do que uma conclusão, aqui se faz uma constatação de tudo que foi apresentado
acima. Inegável a influência das conquistas do imperador Justiniano I na formação do
mundo atual, principalmente no campo jurídico. Por ser um direito escrito e
sistematizado, o direito romano justinianeu se sobrepôs ao direito costumeiro, haja vista
que trazia uma maior segurança jurídica. Ademais, tais características facilitavam a
transmissão das normas para as futuras gerações, o que explica ter se tornado um direito
comum de estudo na Europa.

Outra característica que salta aos olhos é a sua completude e riqueza em detalhes, pois
desde aquela época, através da compilação e análise dos clássicos jurisconsultos
romanos, tratavam de temas bastante específicos de diversos (o que chamamos hoje de)
ramos do direito. A consequência disto foi bem clara: referidos enunciados foram
incorporados nas legislações contemporâneas, sobretudo na brasileira, objeto deste
estudo.
Desse modo, é possível verificar que o direito romano não está verdadeiramente morto,
pois muitos de seus institutos não só continuam influenciando o pensamento pós-
moderno, como alguns deles também se mantêm íntegros mesmo com decurso do
tempo. Reforça, sobretudo, o que fora afirmado na introdução deste estudo: o Direito é
resultado de uma constante evolução histórica, que incorpora e transforma institutos de
acordo com as necessidades de cada sociedade.

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Luis Carlos de. Introdução à história do Direito. 3ª ed. rev. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

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http://www.fordham.edu/halsall/basis/procop-anec.asp. Acesso em 13 de junho de 2012.

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Acesso em 13 de junho de 2012.

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clássico (greco-romano). São Paulo: Revista da Faculdade de Direito, vol. 101, 2006. p.
21-32.

Notas
[1]
Sendo esta segunda característica típica do sistema jurídico anglo-saxão.
[2]
Ressalta-se, inclusive, sua influência ao longo da história, como sendo a base para o
desenvolvimento das glosas por Irnério no século XI, ao desenvolvimento dos estudos
da Escola Culta no século XVI, aos métodos mos gallicus e mos italicus de
recomposição do direito romano justinianeu, ao ser objeto de estudos e reorganização
por Robert Pothier em sua obra Pandectae in novum ordienm Digestae de 1748 e aos
estudos realizados pela Escola Pandectística da Alemanha do século XIX, haja vista que
até então vigorava as normas do Corpus Iuris Civilis neste país.
[3]
GRANDE Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998. p. 3388.
vol. 14.
[4]
É importante ressaltar que o título do capítulo 9 da obra “História Secreta” tem como
título “Como Teodora, a mais depravada de todas as cortesãs, ganhou seu amor [de
Justiniano]” (tradução livre), trazendo à tona a má fama que Teodora possuía na alta
sociedade. Em certa passagem, Procópio relata que muitas vezes Teodora fazia
piqueniques com dez homens jovens ou mais, na flor de sua força e virilidade, flertando
com todos eles a noite inteira. His
[5]
Compunha a comissão o ministro do imperador e jurisconsulto de grande mérito
Triboniano e Teófilo, ambos professores de direito da escola de Constantinopla.
[6]
AZEVEDO, Luis Carlos de. Introdução à história do Direito. 3ª ed. rev. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 71-72.
[7]
Tradução livre: “quando concorrem várias ações pela mesma causa, deve-se exercitar
apenas uma delas”.
[8]
Tradução livre: “coisa julgada é verdade aceita e não mais possível de ser
modificada”.
[9]
AZEVEDO, Luis Carlos de. Introdução à história do Direito. 3ª ed. rev. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 73.
[10]
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 81-
82.
[11]
Fatos já trabalhados no subitem 2.1 supra.
[12]
Bona fides non patitur, ut bis idem exigatur (D. 50, 17, 57 Lib. Octavo Decimi ad
Edictum Provinciale).

ABSTRACT

This article has the objective to analyze the influence of the life and work of the
Byzantine emperor Justinian I in the formation and development of the current Brazilian
law. Thus, from a resumption of the main historical facts and especially an analysis of
the content of the Corpus Iuris Civilis, is made a comparison of legal institutions present
in this work and the current Brazilian legislation, identifying points that are in common.

Keywords: Justinian; Corpus Iuris Civilis; comparison; Brazilian legislation.


Autor

José Eduardo Figueiredo de Andrade Martins

Mestre e doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo - USP.


Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo - PUC-SP. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica de Campinas - PUC-Campinas. Professor do curso de Direito da
Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC-Campinas. Advogado.

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Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)

MARTINS, José Eduardo Figueiredo de Andrade. Corpus Juris Civilis: Justiniano e o


Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3417,
8 nov. 2012. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/22969>. Acesso em: 16 ago.
2017.

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