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O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA

NO IMPÉRIO ROMANO*

INTRODUÇÃO

É um facto histórico que a partir dos fins do see. I — quando


o Cristianismo começava a sua implantação no Império Romano — se
deu uma mudança significativa, quer quanto ao número de escravos,
quer quanto às condições de vida de muitos deles.
As explicações para este facto divergem muito de autor para autor.
Uns acentuam a importância dos factores económicos e sócio-políticos ;
outros a influência duma nova mentalidade, devida sobretudo à filo-
sofia estóica; outros ainda, os elementos de ordem religiosa, concreta-
mente o Cristianismo. Nós julgamos que a solução não consiste em
privilegiar um desses factores, num sentido exclusivista. Qualquer
deles contribuiu certamente a seu modo.
O novo condicionalismo económico-social criado pelo fim das
guerras de conquista é um factor importante. A guerra fora sempre
a grande fonte da escravatura (*). Com o fim das conquistas, decres-
ceu muito a quantidade da mão-de-obra servil. Esta diminuição,
por sua vez, provocou uma grande mudança nas estruturas económi-
cas, sobretudo agrícolas. A produção directa nos grandes latifúndios,
através de autênticos exércitos de escravos, deu lugar à produção indi-
recta: as grandes propriedades foram divididas em pequenas parcelas
e distribuídas por rendeiros, muitas vezes escravos, que deviam pagar
a renda estipulada e dar uns tantos dias de trabalho na reserva do
senhor. Estes colonos estavam obrigatoriamente presos à terra, mas

* Trabalho apresentado no âmbito das actividades escolares da cadeira de


História das sociedades grega e romana. Cf. lista das siglas utilizadas, pp. 202-203.
(1) Cf. H. LéVY-BRUHL, «Théorie de FEsclavage», Revue Générale du Droit,
de la Legislation et de Jurisprudence, 55 (1931), p. 156: «La seule source originaire
véritable de l'esclavage est donc la guerre ou la piratarie».
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esta nova situação dava uma grande independência e personalidade


a esses 'servi casati' estabelecidos no seu 'mansum' com a sua casa
e a sua família. Era uma situação muito diferente da escravatura
clássica.
Mas também no campo da filosofia sopravam ventos novos, sobre-
tudo no estoicismo. Quando se trata de saber qual foi de facto a impor-
tância deste elemento, os autores dividem-se. Nós julgamos que não
é de minimizar o carácter realmente avançado dos postulados teóricos
a que chegou o estoicismo, mas também se não deve exagerar a sua
influência real na vida sócio-política do Império.
De facto, é inegável o carácter progressista das doutrinas estóicas
sobre a igualdade natural de todos os homens e, concretamente, pelo
menos a partir do séc. I a.C, sobre a dignidade dos escravos (l). Cícero,
por exemplo, ensina que todos os homens, conjuntamente com os
deuses, formam uma só sociedade «una civitas communis» ( 2 ). Séneca
defende energicamente o conceito de fraternidade humana: «membra
sumus corporis magni; natura nos cognatos edidit» (3) e proclama
expressamente a igualdade entre livres e escravos (4). Estes são qua-
lificados de «contubernales» e «humiles amici» (5) e os senhores
exortados a «servis imperare moderate» (6).
No entanto estas belíssimas afirmações ficam apenas no campo
da filosofia. Como observa Chateaubriand, «o estoicismo escreveu
um capítulo com letra de ouro para a abolição da escravatura, mas
só no campo da filosofia» (7). Apesar de muitos estóicos terem, ocupado
cargos governamentais, nenhum deles tentou fazer passar para o plano
da consciência social e das instituições jurídicas os princípios que
defendiam teoricamente. Séneca, por exemplo, que foi perceptor
de Nero e, mais tarde, «chefe do seu governo» durante oito anos, não
deixou qualquer traço da sua doutrina na legislação do seu tempo,
apesar de ele próprio reconhecer que recebera do imperador poderes

(i) Cf. Biondo BIONDI, / / Diritto Romano, Bologna 1957, p. 72-73 e 269-270,
e H. WALLON, Histoire de l'Esclavage dans l'Antiquité, III, Paris, 2 1879, pp. 19-20.
(2) De Legibus, I, 7, 23.
(3) Epistulae ad Lucilium, 95, 52.
(-») Ep. ad Luc, 47, 10.
(5) Ep. ad Luc, 47, 1.
(6) De dementia, 1, 18.
(7) Citado por BIONDI, 27 Diritto Romano, p. 270.
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quase ilimitados 0). Nem sequer Marco Aurélio, um imperador


estóico, «philosophiae plenus», apesar da sua grande actividade legis-
lativa, deixou qualquer lei nova que mitigasse a condição dos escravos.
Antes, segundo um seu biógrafo, «ius magis vetus restituit quam
novum» (2).
Tudo isto mostra, talvez, que a filosofia estóica não pretendia ser
traduzida em normas jurídicas nem aspirava a atingir a consciência
da grande massa. Como filosofia elitista, tendia a agir sobretudo
no íntimo das consciências. Pelo menos, é um facto que nunca pene-
trou no campo jurídico e que foi muito reduzida a sua repercussão
na consciência social da época (3).
Factor mais influente foi, sem dúvida, o Cristianismo (4). Ao con-
trário da filosofia estóica, apresentava-se com toda a força própria
duma religião; não se orientava a atingir apenas uma pequena elite
culta, mas a converter todo o povo, a transformar toda a vida e a ser
norma pessoal e social do agir. Por isso a sua propagação no Império
determinou uma notável mudança na consciência social e teve, sobre-
tudo no séc. IV, grande repercussão no Direito Romano.

(i) Cf. BIONDI, // Diritto Romano, pp. 74-75 e 270.


(2) Cf. BIONDI, II Diritto Romano, p. 75. Sobre M. Aurélio, cf. WALLON,
Hist, de l'Esclavage, III, pp. 42-43.
(3) Cf. Jean DANIéLOU — Henri MARROU, Nouvelle Histoire de l'Eglise.
I: Des Origines à Grégoire le Grand, Paris 1963, p. 362, onde se aceita que já no direito
romano clássico do Alto-Império houve uma tendência muito acentuada para melho-
rar a condição servil, devido à influência do estoicismo.
(4) Discute-se ainda hoje qual a relação que terá, de facto, existido entre
o cristianismo e o estoicismo, concretamente entre Séneca e S. Paulo e as respectivas
doutrinas. Apenas sabemos que são muitos os pontos de contacto, não só no con-
teúdo mas até na terminologia. E de salientar que as perseguições imperiais contra
os cristãos foram muitas vezes, sobretudo no séc. I, também contra os estóicos.
Podemos portanto supor que alguma coisa de comum havia efectivamente entre
eles. Sobre este ponto, cf.: M. SORDI, // Cristianesimo e Roma, Bologna 1956,
p. 461 sq.; P. BENOIT, Exegese et Théologie, II, Paris 1961, pp. 383-414: «Séneque
et S. Paul»; L. CERFAUX, «Le Monde païen vu par S. Paul» in Studia Helenistica 1948,
pp. 155-156; A. JAGU, «S. Paul et le Stoicisme», Revue des Sciences Religieuses 1958,
pp. 225-250; M. POBLENZ, «Paulus und die Stoa», Zeitschrift fur die Neutestamentliche
Wissenschaft 1949, pp. 69-104; J. N . SEVENSTER, Paul and Seneca Leiden 1961;
L. ALSTON, Stoic and Christian in the Second Century, London 1906; L. SPANNEUT,
Le Stoïcisme des Pères de l'Eglise de Clément de Rome à Clément d'Alexandrie,
Paris, 1957; A. RODRIGUEZ, «Incrustación de la Moral de Séneca en la Revelación
Cristiana» in Actas del Congreso Internacional de Filosofia en Conmemoración de
Séneca en el XIX Centenário de su Muerte, III, Madrid, 1967, pp 211-215.
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Julgamos que isto é hoje absolutamente inegável. Mesmo os


autores com uma visão materialista da história têm de aceitar que
houve, pelo menos, uma coincidência entre a afirmação progressiva
do Cristianismo na sociedade romana e essa mudança que se operou
na consciência social e no Direito, no referente à escravatura.
Raymond Bloch e Jean Cousin, por exemplo, acentuam muito
a importância dos novos condicionalismos económicos e sócio-políticos.
Referem, concretamente, o 'socialismo estatal' e a 'burocracia ligada
à economia dirigida' que, a partir de Diocleciano, aproximaram as
condições do homem livre e do escravo numa submissão comum ao
imperador e ao Estado. Dizem que este factor é bem mais poderoso
que qualquer 'prédica ideológica'. Reconhecem no entanto que
o sentimento cristão de fraternidade e a sua aspiração igualitária 'con-
cordavam' com esta corrente social — e socializante — e que foi com
o Cristianismo que 'audaciosamente' se deu um grande passo em frente,
embora o caminho tivesse sido preparado pelos factos de natureza
económica e sócio-política (*).
A este propósito, W. L. Westermann (2) cita o já clássico artigo
de E. J. Jonkers (3) que, embora defenda a tese de que a atitude cristã
frente à escravatura não foi devida apenas à força interna da sua dou-
trina e da sua 'caridade', mas sobretudo à pressão dos novos condi-
cionalismos económicos, acaba por ter de admitir que a influência do
Cristianismo foi, de facto, decisiva.
Mais moderada é a opinião do próprio Westermann. Segundo
ele, as grandes mudanças históricas só se dão quando se verifica uma
convergência das forças de natureza material e espiritual que constituem
o mundo (4). O abandono da escravatura, por exemplo, foi o resul-
tado da convergência de diversas forças. Entre estas estava, sem
dúvida, 'algo profundamente latente na moral cristã desde o seu iní-
cio' que se tornou, depois, plenamente eficiente quando se operaram
determinadas mudanças materiais provocadas pelos novos métodos de

(!) Cf. Raymond BLOCH — Jean COUSIN, Roma e o Seu Destino (trad, por-
tuguesa), Lisboa — Rio de Janeiro 1964, Ed. Cosmos, pp. 303-304.
(2) W. L. WESTERMANN, The Slave Systems of Greek arid Roman Antiquity,
Philadelphia 1955, pp. 153-154.
(3) E. J. JONKERS, «De l'Influence du Christianisme sur la Législation Relative
à l'Esclavage dans l'Antiquité», Mnemosyne, I (1933-34), pp. 241-280.
(4) Cf. WESTERMANN, The Slave Systems, p. 162.
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produção dentro dum novo quadro de relações de trabalho (l). Segundo


este autor, as mudanças materiais seriam condições necessárias para
que as forças de ordem espiritual, latentes já no Cristianismo desde
o seu início (e não fruto dos novos condicionalismos económicos,
como queria Jonkers), se pudessem desenvolver e produzir os seus
efeitos: o abandono da escravatura.
Westermann nunca define claramente em que consiste esse «algo
latente» no Cristianismo desde o seu início, que se desenvolveu depois
quando as novas condições materiais o permitiram. Analisando,
porém, as conclusões do seu capítulo sobre o Cristianismo e a escra-
vatura, encontramos aí alguns elementos que nos parecem pertinentes.
Refere, antes de mais, a doutrina cristã sobre a igualdade e frater-
nidade de todos os homens. No entanto ele acrescenta que este não
é o elemento mais surpreendente e mais específico, pois essa doutrina
havia já sido expressa no Império, sobretudo pelo estoicismo, antes
de o Cristianismo aí se afirmar. O mesmo se pode dizer da prática
da fraternidade que, sendo de facto uma característica importante
da vida das primeiras comunidades cristãs, não era muito diferente
da prática que se estabelecera nas associações dos 'coloni' e nos 'collegia'
dos artesãos e das classes laboriosas, incluindo os escravos, onde os
sócios se tratavam mutuamente por 'irmãos' (2). Este facto é tanto
mais de ter em conta, quanto sabemos que essas associações das classes
pobres e dos escravos foram o campo privilegiado para a expansão
do Cristianismo no Império (3).
O elemento novo e mais característico estava, segundo Westermann,
na força da fé cristã, pela qual os crentes viam em Deus o Pai de todos
os homens. Esta fé imprimia uma tal intimidade nas relações mútuas
dos cristãos e destes com o seu Deus, que se tornou capaz de destruir
todas as barreiras sociais como nunca fora conseguido antes. De facto,
os 'collegia' e outras 'corporações profissionais' propunham-se agrupar
os homens como irmãos, mas só horizontalmente, isto é, enquanto
se encontravam num mesmo nível, segundo a sua profissão ou con-
dição social. A fraternidade cristã, porém, unia todos os homens
também verticalmente e em profundidade, independentemente dos seus
estratos sociais. Eram todos iguais, filhos de Deus e participantes

(!) Cf. WESTERMANN, The Slave Systems, p. 161.


(2) Cf. WESTERMANN, The Slave Systems, p. 151.
(3) R. H. BARROW, Slavery in the Roman Empire, New York 1968, p. 164.
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da mesma salvação. Por isso todos podiam fazer parte da frater-


nidade cristã, quer fossem pobres ou ricos, romanos ou judeus, homens
ou mulheres, livres ou escravos.
Era, pois, a intimidade desta fé num Deus Amigo e Pai de todos
que criava esse clima de profunda fraternidade entre todos os 'irmãos' :
a tal 'caridade' de que falava Jonkers. Mas Westermann salienta
ainda a influência dum outro elemento que aumentava muito a união
entre os cristãos. Trata-se da importância dada nas comunidades
primitivas aos aspectos miraculosos, emocionais e místicos da expe-
riência religiosa, partilhada conjuntamente pelos senhores dos escravos
e pelos próprios escravos. Seria através desta fé e deste partilhar da
mesma experiência religiosa que o Cristianismo se tornou portador
duma força interna capaz de acabar com a escravatura, logo que as
condições materiais da sociedade o permitissem.
É dentro deste quadro que iremos desenvolver o nosso trabalho.
Começaremos por uma análise da doutrina bíblica e patrística sobre
a escravatura ; veremos depois os seus efeitos na vida interna das comu-
nidades cristãs dos primeiros séculos; analisaremos finalmente a sua
influência na opinião pública e, sobretudo, nas novas instituições
jurídicas do Império a partir do séc. IV.
Limitamo-nos, portanto, a estudar os elementos internos ao pró-
prio Cristianismo e a sua força, independentemente de todos os outros
factores económicos, políticos ou culturais que condicionaram a afir-
mação do Cristianismo na sociedade romana. E um trabalho neces-
sariamente parcial, pois consideramos que só um estudo de todos os
factores pode pretender explicar qualquer facto histórico Q-).

(') Recusamos deste modo qualquer teoria da história, segundo a qual a


causalidade histórica se dá apenas num sentido único e irreversível, a partir dos
sistemas ideológicos (idealismo) ou dos sistemas económicos (materialismo).
Aproximamo-nos mais da explicação 'culturalista' ou 'estruturalista' de K. Lewin
e de Malinowsky (cf. CLAUSSE, La Relativité Educationelle, Bruxelles 1975, pp. 24-28).
Segundo esta perspectiva, a sociedade é um todo dinâmico e forma uma estrutura
em que todos os seus elementos são interdependentes e interactuantes. A mudança
de um implica a mudança de todos os outros e a evolução do todo.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 151

I PARTE

A ESCRAVATURA NA BÍBLIA

O Novo Testamento é produto da comunidade cristã primitiva:


reflecte a sua vida e contém o fundamento programático da sua exis-
tência, tal como da existência posterior da Igreja. Os cristãos não
deixariam de continuamente se reportarem ao seu conteúdo, para
manter a frescura da sua doutrina e alimentar o dinamismo da sua
acção. Mais concretamente, a atitude da Igreja primitiva sobre a escra-
vatura iria ser decisiva na determinação da atitude que sobre ela have-
riam de tomar posteriormente os cristãos.
Por sua vez, as primeiras comunidades cristãs dependiam total-
mente de Jesus. Os apóstolos, que com ele conviveram, não cessavam
de o tornar presente como razão de ser da vida cristã. Jesus tinha
vivido e actuado numa sociedade determinada, com estruturas e ins-
tituições definidas, e era o seu comportamento em relação a essa socie-
dade que servia de orientação para o comportamento dos primeiros
cristãos.
Sendo assim, conhecer e compreender os dados do Novo Testa-
mento sobre a escravatura significa conhecer a sua existência e a sua
prática na Palestina dos primórdios da era cristã, determinar a atitude
de Jesus e analisar as suas repercussões na doutrina e acção da Igreja
primitiva.

1 — A ESCRAVATURA NA PALESTINA DO TEMPO DE JESUS

A escravatura na sociedade judaica é pelo menos tão antiga como


a nação israelita. Assim o indica o espaço significativo que aos escra-
vos dedica já o chamado «Código da Aliança» (*), um conjunto de
leis casuísticas que datam dos primeiros tempos da instalação defi-

(i) Ex 21, 22-23, 19.


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nitiva dos israelitas em Canaan, no séc. XII a.C. Q). Posterior-


mente tal instituição foi sendo regulamentada por outras leis, parti-
cularmente as do Dt 15,12-18; 21,10-14(2) e do Lv 25,3-14(3).
À volta dos primórdios da era cristã toda essa legislação era objecto
de estudo e de actualização por parte de diversos rabinos. As suas
reflexões foram depois fixadas por escrito na Mischna (séc. II d.C.)
e no Talmud. O próprio NT, nomeadamente os Evangelhos, faz-se
eco da prática corrente da escravatura na Palestina.
Mas, ao falar-se de escravos na Palestina, deve fazer-se uma dis-
tinção entre israelitas e estrangeiros. Tal como noutras sociedades,
também aí a escravatura, em sentido estrito, era uma instituição essen-
cialmente internacional. Chegou mesmo a ser proibido por lei que
um israelita fosse tratado como escravo por outro israelita ( 4 ). E no
caso de ser vendido a um estrangeiro, «então um dos seus irmãos (no
sentido de concidadãos) resgatá-lo-á» (5).
Porém, a existência de tal legislação já de si é indício de que a prá-
tica se processava de modo diferente. Trata-se, aliás, duma lei relativa-
mente recente. Nehemias na segunda metade do séc. V não apela para
ela, ao abolir certas situações de servidão entre os judeus ( 6 ). Outros
textos legislativos, bem mais antigos, admitem e regulamentam a escra-
vatura entre israelitas: o «Código da Aliança» em Ex 21,1-11 e, mais
tarde, Dt 15,12-18. Em qualquer destes textos os escravos são chamados
«hebreus». Na época neotestamentária existiam igualmente escravos
judeus na Palestina, embora o seu número não fosse muito elevado (7).

(i) Cf. M. NOTH, Das zweite Buch Mose. Exodus, A T D 5, Gõttingen 1968,
pp. 140-141.
(2) O Deuteronómio é um livro cujo conteúdo mais antigo — Dt 4-30 —
data pelo menos dos sécs. VIII-VII. O seu texto de 15, 12-18 é considerado reela-
boração actualizante de Ex 2, 1-11 (cf. G. VON R A D , Das filnfte Buch Mose. Deute-
ronomium, ATD 8, Gõttingen 1968, pp. 16-19).
(3) O Levítico foi provavelmente redigido depois do exílio dos judeus na
Babilónia entre 596 e 538 (cf. M. NOTH, Das dritte Buch Mose. Leviticus, ATD 6,
Gõttingen 1966, p. 6).
(4) Cf. Lev 25, 39-40.
(5) Lv 25, 48.
(«) Cf. Ne 5,1-13.
(7) Tal é a opinião fundamentada de J. JEREMIAS, Jerusalem zur Zeit Jesu.
Kulturgeschichtliche Untersuchung zur neutestamentlichen Zeitgeschichte, II Teil:
Die sozialen Verhàltnisse, Gõttingen 3 1962, A. Reich und Arm, pp. 25-26; B. Hoch
und Niedrig, p. 184.
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As causas que podiam levar um judeu a tornar-se escravo estavam


normalmente relacionadas com uma situação de miséria, própria ou
da família. A história do direito israelita supõe uma evolução na
fixação dessas causas. Na época neotestamentária resumiam-se
a três 0 ) :

— Os motivos mais correntes parecem ter sido o furto e as


dívidas não pagas. Segundo a exegese rabínica de Ex 21,2 um
ladrão que não pudesse restituir devia ser vendido para que o roubo
fosse pago. 2Rs 4,1-7; Is 50,1 e Ne 5,1-5 supõem a aplicação
da mesma lei para os devedores insolventes. Na época neotes-
tamentária esta lei era aplicada apenas aos israelitas do sexo mas-
culino (2). A venda podia ser feita apenas a judeus. Herodes
Magno, entretanto, decidiu que a venda se fizesse também a estran-
geiros.
— Segundo Lv 25,39-43 um israelita adulto do sexo mas-
culino em estado de extrema miséria podia vender-se voluntaria-
mente. Tratava-se certamente dum gesto de desespero. Lv 25,
47-52 permitia que a venda se fizesse a um estrangeiro, mas impunha
que a família ficasse com direito de resgate.
— Em razão de Ex 21,7 a «pátria potestas» concedia ao pai
israelita o direito de vender a judeus as suas próprias filhas, mas
unicamente as menores e só até à idade de 12 anos. Na maior
parte das vezes a filha era destinada a tornar-se mais tarde esposa
do comprador ou do seu filho. Caso contrário, devia ser libertada
ao atingir os 12 anos (3).

O escravo judeu em Israel gozava dum estatuto jurídico tendente


a favorecer-lhe uma situação muito mais confortável que a do comum

(!) Cf. J. JEREMIAS, Jerusalem, IIB, pp. 184-186; R. DE VAUX, Les Institutions
del'Ancien Testament, 1.1, Paris 1961, pp. 129-130; A.-G. BARROIS, Manueld'Archéo-
logie Biblique, t. II, Paris 1953, pp. 211-212; F. NõTSCHER, Biblische Altertumskunde,
Bonn 1940, p. 142; H. GULZOW, Christentum und Sklaverei in den ersten drei Jahr-
hunderten, Bonn 1969, p. 17 n. 2.
(2) É por isso que a parábola de Mt 18, 23-35, que supõe a venda da mulher
e dos filhos dum devedor insolvente, reflecte certamente uma legislação estranha ao
direito israelita (cf. J. JEREMIAS, Die Gleichnisse Jesu, Gõttingen 2 1977, pp. 208-209;
J. SCHMED, Das Evangelium nach Matthãus, Regensburg 1965, pp. 275-276.
(3) Cf. Ex 21,8.
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dos escravos. A ponto de se poder duvidar se a denominação de


escravo corresponde de facto totalmente a tal situação (*). Assina:

— Um judeu do sexo masculino não podia ser escravo doutro


judeu mais de seis anos completos (2), a não ser que, voluntaria-
mente, quisesse ficar ao serviço do seu proprietário enquanto
este vivesse. Isto acontecia — aliás raramente — ou para se não
voltar à miséria anterior ou então porque se tinha casado com
uma escrava não israelita do mesmo proprietário (3). Antes do
sétimo ano podia ser libertado por resgate (4). Se se tratava
duma escrava judia, devia ser libertada com a morte do seu
senhor ou aos 12 anos, caso não tivesse casado com o senhor ou
o seu filho.
— Juridicamente equiparado a um filho maior, o escravo
judeu tinha direito ao mesmo tratamento que o seu dono. Não
se podia exigir dele um trabalho de escravo ; não podia ser tratado
com dureza, mas como um mercenário ou um hóspede (5). Mais
concretamente, tinha direito a ser bem alimentado e bem vestido,
juntamente com a mulher e os filhos no caso de ser casado, e a pos-
suir bens que serviam para o resgate (6). Podia ser testemunha

(') Cf. J. JEREMIAS, Jerusalem, IIB, p. 184 n. 95.


(2) Cf. Ex 21,2; Dt 15,12, onde se não faz distinção entre homem e mulher.
Jo 8,35 faz-se eco dessa legislação: «O escravo não fica em casa para sempre». Esta
duração de 6 anos é independente do ano sabático, celebrado fixamente de 7 em 7 anos
ao ritmo dos trabalhos no cultivo dos campos, para o qual havia u m a legislação
muito pouco clara acerca do perdão das dívidas (cf. D t 15,1-2). Para os escravo,
o sétimo ano contava-se a partir do momento em que se tinha caído na escravidão
(cf. VáRIOS, Traduction Oecuménique de la Bible (TOB). Ancien Testament, Paris 1976,
p. 134 n. f, contra a opinião não fundamentada de J. LEIPOLDT-W. GRUNDMANN,
Umwelt des Urchristentums, I, Berlin 1965, p. 202). A libertação de todos os escra-
vos exigida para o ano jubilar — a celebrar de 50 em 50 anos (cf. Lv 25,39ss) — não
era praticada no tempo de Jesus e provavelmente nunca o foi (cf R. DE VAUX, ibidem,
pp. 137.270; M. NOTH, Leviticus, pp. 167-168.
(3) Cf. Ex 21,4-5.
(4) Este limite na duração da escravidão explica o preço relativamente baixo
dum escravo judeu — entre 1 e 10 minas — comparado com o preço dum escravo
estrangeiro — em média entre 15 e 20 minas (cf. J. JEREMIAS, Jerusalem, IIB, p. 184;
H. GULZOW, ibidem, p. 17 n. 4).
(5) Cf. Lv 5,39-43.
(6) Os bens adquiridos com trabalho de escravo pertenciam ao senhor
(cf. Mt 25,14-30; Lc 19,13-27).
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 155

em tribunal. O próprio NT faz-se eco de todo este tratamento


ao afirmar: «O discípulo não está acima do mestre, nem o escravo
acima do senhor ; basta ao discípulo ser como o mestre e ao escravo
como o senhor» (}). Havia apenas um caso em que o escravo
judeu estava privado, como já vimos, dum direito: se ele casou
com uma escrava pagã dada pelo proprietário, segundo Ex 21,4,
quer a escrava quer os filhos eram propriedade perpétua do senhor.

Embora na prática muitas destas regalias fossem provavelmente


esquecidas, a verdade é que o escravo judeu era considerado dum modo
muito diferente dum escravo estrangeiro. É que os filhos de Israel,
resgatados por Deus da escravidão do Egipto, não podiam ser escravos
dos homens (2).
O verdadeiro escravo em Israel era sempre estrangeiro. «O escravo
ou a escrava que pretendais adquirir, devem sair dos povos que vos
rodeiam» — legisla-se em Lv 25,44.
Tal como acontecia noutros povos, a maior parte deles eram
prisioneiros de guerra. O Deuteronómio fornece indicações muito
claras nesse sentido: quando a cidade a combater ficava fora do ter-
ritório dado por Deus a Israel, se os seus habitantes se rendiam, eram
reduzidos à obrigação da corveia e do trabalho; se resistiam, deviam
ser mortos os homens, sendo as mulheres e as crianças reduzidas à escra-
vidão. Quando a cidade se situava em território de Israel, toda ela
estava votada ao anátema: devia ser totalmente destruída, para se
significar a sua consagração a Deus, considerado seu verdadeiro senhor
e vencedor (3). Segundo dá a entender Flávio José, Herodes Magno
deve ter reduzido muitos árabes à escravidão, durante a guerra que
lhes moveu para dilatar o território sob a sua jurisdição, poucos decé-
nios antes da era cristã. Por isso se encontram em Jerusalém escravos

(i) Mt 10,24-25; cf. Jo 13,16; 15,20.


(2) Lv 25,55.
(3) Cf. Dt 20,10-18. Esta lei, quanto à sua última parte, é considerada
irreal, na medida em que foi escrita quando a conquista do país era um facto passado
longínquo. É provável, entretanto, que se fundamente em anátemas, como os
descritos em Jos 6,17-21; 8,26; 10,28s; ISam 15,3. Mas, duvida-se se alguma vez
foi posta em prática de modo absoluto (cf. R. DE VAUX, ibidem, p. 127; TOB, AT,
p. 421 n.r.).
156 ANACLETO D E OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

com nomes árabes: Jo 18,10 fala de Malcos, escravo do Sumo-Sacer-


dote, e Flávio José refere Corinto, guarda de corpo de Herodes (x).
Já na época neotestamentária a maior parte dos escravos ou nasciam
na casa do senhor ou eram comprados no mercado. Em Jerusalém
havia uma pedra onde se expunham os escravos para serem vendidos.
Era abastecida com escravos vindos sobretudo da Síria, transportados
através de Tiro por mercadores fenícios (2).
A grande maioria destes escravos era destinada ao serviço domés-
tico. O seu trabalho na indústria, no tempo neotestamentário, não
é testemunhado, e na agricultura também não deviam ser muitos (3).
Aliás mesmo nos tempos passados, as suas ocupações deviam ser sobre-
tudo no serviço doméstico, já que a legislação veterotestamentária
a seu respeito pressupõe sempre escravos domésticos. No tempo de
Jesus deviam ser em grande número na corte de Herodes (4) e nas
casas da nobreza sacerdotal (5).
Ao entrar numa família judaica, o escravo pagão sujeitava-se a
um rito de entrada no judaísmo: um banho, que para os homens era
acrescido da circuncisão (6). No séc. III d.C. concedia-se ao escravo
um ano para reflexão sobre a sua entrada no judaísmo; se recusasse
a conversão, devia ser vendido a não-judeus. Mas na época anterior
procedia-se imediatamente à circuncisão (7).
O escravo caía então numa situação particularmente ambígua:
embora circuncidado, com o que devia ser considerado judeu, con-
tinuava a não ser tido como membro da comunidade, enquanto não

C1) Cf. J. JEREMIAS, Jerusalem, IIB, p. 219.


(2) Cf. J. JEREMIAS, Jerusalem, I, p. 50.
(3) Os evangelhos mencionam diversas vezes escravos na agricultura (cf.
Mt 13,27-30; Lc 17,7-10; 15,22), mas sobretudo jornaleiros (cf. Mt 9,27-38; 20,1-16;
Lc 10,2; 15,17-19; Jo 4,35).
(4) De notar, a este propósito, as referências do N T a escravos na corte de
reis: Mt 22,3-10; Lc 19,12-27. Neste último passo os vv. 12.14.17.19.27 referem-se
provavelmente a Arquelau e às suas tentativas para ocupar o trono do seu defunto
pai Herodes Magno, no ano 4 a.C. (cf. J. JEREMIAS, Die Gleichnisse, p . 56).
(5) Cf. as referências a escravos dos Sumos Sacerdotes na história da paixão
e morte de Jesus: Mc 14,47 par; Jo 18, 10.18.26. Para outras referências extra-
bíblicas cf. J. JEREMIAS, Jerusalem, IIB, pp. 218-219.
(«) Cf Gn 17,12.23.27.
(7) Cf. J. JEREMIAS, IIB, p p . 221-222; H . GULZOW, ibidem, p . 18 n.2.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 157

fosse libertado. Tal situação acabava por se reflectir no seu estatuto


social e religioso, também ele ambíguo:

— Por um lado, o escravo era uma «coisa», uma propriedade


absoluta do dono, que dele se servia como queria. Por isso, não
podia "possuir qualquer bem, viesse donde viesse. Podia ser
vendido, dado, emprestado ou herdado como qualquer objecto.
Sobretudo encontrava-se indefeso contra os maus tratos e os cas-
tigos. Era equiparado a um animal : «Para o asno o penso, a vara
e a carga; para o escravo o pão, a correcção e o trabalho» Q-).
Se, por vezes, se aconselhava um tratamento humano, era unica-
mente para interesse do proprietário (2). No campo propria-
mente jurídico era considerado inapto para testemunhar e incapaz
de contrair matrimónio válido. A criança nascida da união dum
israelita com uma escrava era escravo e pertencia ao proprietário
da mãe (3). Também na esfera religiosa estavam vedados aos
escravos a maioria dos direitos: no templo, não podia, por exem-
plo, impor as mãos sobre a cabeça da vítima; na sinagoga, a sua
presença não contava para o número das dez pessoas exigidas
para a oração pública e não podia fazer a leitura. Em contra-
partida, os deveres religiosos eram também muito reduzidos.
Pelo menos, não estavam obrigados aos actos religiosos que deviam
ser realizados num momento determinado, uma vez que o escravo
não era senhor do seu tempo (4).
— Por outro lado, havia toda uma legislação que, pela pro-
tecção concedida aos escravos, tornava a sua situação muito mais
suportável e mais humana do que noutras sociedades do mundo
antigo. Assim, por exemplo, a mutilação dum olho ou dum dente
do escravo, ou duma das vinte e quatro extremidades dos mem-

(i) Sir 33,25.


(2) Cf. Sir 33,32-33.
(3) Cf. Ex 21,4. Gal 4,21-23 parece supor este princípio, ao interpretar
a condição de Ismael, filho de Abraão e da sua escrava Agar (cf Gn 16). Contra-
riamente, aquele que nascesse da união dum escravo com uma israelita, era consi-
derado judeu, embora a união fosse inválida (cf. J. JEREMIAS, Jerusalem, IIB,
p. 224 n. 70.
(4) Cf. J. JEREMIAS, IIB, p p . 222-223; H. G U L Z O W , ibidem, p . 19; G. KITTEL,
Theologisches Wôrterbuch zum Neuen Testament, I I , 1933-42, p . 274.
158 ANACLETO DE OLIVEIRA E R O G É R I O P. OLIVEIRA

bros (i) pelo senhor e na presença de testemunhas implicava a liber-


tação do escravo (2) ; o assassínio premeditado do escravo, caso
viesse a morrer no espaço de 24 horas após a agressão, era punido
com a pena capital, segundo Ex 21,20-21; por causa de Dt 23,
15-16 os rabinos do início da era cristã julgavam que os senhores
judeus não podiam vender os escravos a um pagão, 5 embora na
prática isto fosse seguido apenas nos círculos de estritos obser-
vadores da lei. Nesta mesma linha se explicam determinados
direitos religiosos: direito ao repouso de sábado, como todo o
israelita (3) ; direito a participarem na festa da Páscoa, incluindo
a refeição pascal (4) ; direito a fazer votos, sempre que isso não
comprometesse e senhor no seu cumprimento (5). N o campo
dos deveres religiosos, a pouco eram obrigados: praticamente
estavam equiparados às mulheres, também elas submetidas a
senhores (6). Por vezes aconselhava-se humanidade no tratamento
dos escravos. Para isso invocavam-se motivos relacionados com
o interesse do proprietário (7) e também motivos religiosos :
escravos e senhores eram considerados criaturas do mesmo
Deus (8).

Apesar de tudo isto, a condição do escravo, considerada no seu


todo, continuava pesada e revoltante. Era mesmo tida como uma
das maiores injúrias. Só assim se compreende a indignação com que
os ouvintes de Jesus se revoltam, quando ele os trata por escravos (9).

í 1 ) Dedos das mãos e dos pés, orelhas, ponta do nariz e membro viril, ou
extremidades dos seios nas mulheres (cf. J. JEREMIAS, Jerusalem, IIB, p. 208).
(2) Tal legislação fundamentava-se na exegese rabínica de Ex 21,26-27.
(3) Cf. Ex 20,10; Dt 5,14.
(•») Cf. Ex 14,44.
(5) Cf. J. JEREMIAS, Jerusalem, IIB, p. 223; H. GULZOW, ibidem pp. 18-19.
(6) A esse propósito J. JEREMIAS, Jerusalem, IIB, p. 223 n. 57: «õfter werden
Frauen, Sklaven und Minderjãhrige zusammen genannt». Cf. G. KITTEL, ibidem,
p. 274.
(7) Cf. Sir 33,25-33.
(8) Cf. Job 31,13-15.
(9) Cf. Jo 8,32-35. A esse propósito G. KITTEL, ibidem, p. 274: «So kommt
es, daB fíir das Rabbinat das Wort Sklave eine der schwersten Beschimpfungen
enthált, mit denen man einen Menschen belegen kann».
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 159

2 — A ATITUDE DE JESUS

É muito difícil determinar a atitude real de Jesus em relação à escra-


vatura. As dificuldades vêm-nos sobretudo da natureza das principais
fontes que possuímos para o conhecimento histórico de Jesus : os Evan-
gelhos. Estes não podem considerar-se uma crónica ou biografia de
Jesus. As condições em que se processou a sua formação proíbem
até que sejam interpretados como documentos estritamente históricos.
Entre a vida e morte de Jesus e a elaboração definitiva dos Evangelhos
interpõe-se um período de pelo menos 30/40 anos, o tempo em que se
foram formando as diversas tradições que viriam a ser fixadas pelos
evangelistas. Ora essa formação deu-se em condições nada propícias
ao rigor histórico:

1. De Jesus apenas se transmitia o que interessava à vida


eclesial. Nesse sentido havia uma preocupação, não tanto em
se ser preciso e rigoroso no que se contava, como sobretudo em
responder às situações e problemas das primeiras comunidades
cristãs. Consequências: esqueciam-se muitos elementos da vida
de Jesus; os dados geográficos e cronológicos eram mínimos,
senão nulos; acaba por se narrar mais a vida da Igreja do que
a de Jesus.
2. Todos os acontecimentos e palavras de Jesus eram inter-
pretados e transmitidos sob a influência decisiva da fé cristã na
sua ressurreição e exaltação — algo que ultrapassa as possibili-
dades duma verificação histórica. Consequência: os relatos, por
vezes, testemunham mais a fé na ressurreição de Jesus do que
a realidade histórica.
3. A transmissão fazia-se sobretudo em meios populares
e por via oral, pelo menos nos primeiros decénios — o método
menos ideal para uma precisão histórica, apesar dos recursos
mnemo-técnicos em uso no meio e na época.
4. Os evangelistas, mais do que historiadores, considera-
vam-se teólogos, na medida em que, ao fixarem por escrito as
tradições orais, se preocupavam com problemas de fé, e não tanto
de história.
160 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

Perante tudo isto, é muito difícil uma reconstituição rigorosamente


histórica e completa da vida de Jesus (x).
Ora estas dificuldades, que se encontram de modo geral em relação
a toda a vida de Jesus, aumentam no caso particular da sua atitude
para com a instituição da escravatura. O que os Evangelhos nos
transmitem directamente a esse respeito é quase nulo. Limitam-se
praticamente a uma série de parábolas que, enquanto ambientadas no
meio sócio-económico palestinense, deixam escapar algumas informa-
ções acerca da escravatura na Palestina. Mas duma tomada de posi-
ção de Jesus acerca do problema social e jurídico dos escravos, não há
qualquer informação directa. Porquê?
Parece-nos de rejeitar a hipótese, segundo a qual a situação dos
escravos não teria chamado a atenção de Jesus. E certo que os escravos
na Palestina não eram muitos ; é certo também que a maioria deles eram
domésticos e como tais usufruíam da instituição social básica — a famí-
lia, que lhes proporcionava trabalho, protecção e meios de subsis-
tência (2). Mas os escravos existiam e a sua situação social e humana,
como vimos, era desprezível e indesejável (3). Ora os Evangelhos
testemunham a cada passo a solicitude de Jesus para com os mais des-
prezados da sociedade do seu tempo (4). Nada mais natural do que
os escravos estarem incluídos. Portanto, pelo menos em princípio,
pode concluir-se que Jesus deve ter tomado posição em relação à escra-
vatura. Resta saber em que sentido.
Esperar-se-ia talvez uma tomada de posição no sentido duma
condenação directa e radical (5). Ora isto não aparece imediatamente

C1) A este propósito é extensa a bibliografia. Por exemplo: M. DIBELIUS,


Die Formgeschichte des Evangeliums, Tubingen 1919; R. BULTMANN, Die Geschichte
des Synopischen Tradition, Gõttingen 1921 ; G. BORNKAMM, Jesus von Nazareth,
Stuttgart 6 1963; X. LéON-DUFOUR, Les Évangiles et l'Histoire de Jésus, Paris 1963.
P) Cf. R. DE VAUX, ibidem, p. 132.
(3) J. JEREMIAS, Jerusalem, IIB, pp. 224 sqq., percorrendo os diversos níveis
da escala social da Palestina do tempo de Jesus, coloca abaixo dos escravos apenas
os Samaritanos, cuja situação se deve considerar apenas diferente e não pior que a dos
escravos.
(4) D e entre outras passagens, cf. Le 4.18-19; 6,20-26; Mt 11, 4-5.
(5) É nesse sentido que se manifesta S. SCHULZ, Gott ist kein Sklavenhalter.
Die Geschichte einer verspãteten Revolution, Zurich 1972, p. 139, com uma ponta de
desilusão não contida : «Fur uns heute gehõrt die institutionelle Sklaverei der Vergan-
genheit an. Nichts destoweniger ist es mebr ais unverstãndlich, daB das Neue Testa-
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 161

nos Evangelhos. Mas também não aparece nada que possa levar
a concluir pela sua aprovação. É verdade que Jesus nos seus ensina-
mentos alude com frequência à condição dos escravos, mas fá-lo geral-
mente em parábolas, isto é, em termos de comparação (i). Trata-se,
pois, duma referência a um «status quo», sem qualquer indicação ime-
diata de aprovação ou condenação. Aliás, pôr o problema assim,
em sistema de alternativa, talvez seja ficar aquém do alcance próprio
da intenção de Jesus. Nos Evangelhos fala-se, de facto, da escravatura
e até mesmo duma certa atitude de Jesus em relação a ela, mas num
sentido novo e talvez inesperado.
Tal como acontecia na tradição veterotestamentária, também nos
Evangelhos o termo òovXoç ou outros da mesma raiz, não são usados
num sentido absolutamente unívoco (2). Em sentido estrito significa
o escravo — alguém que alienou a sua liberdade e que coercitivamente
está sob a dependência e o poder de outro. Assim aparece em diversos
acontecimentos (3) e na maior parte das parábolas em que intervêm
escravos (4).
Já de si é significativa esta referência à condição ou actuação de
escravos em relação aos senhores, como termo de comparação no ensi-
namento de Jesus. O escravo aparece aí, sem dúvida, como alguém
privado de toda a liberdade. Porém, o modo como se fala nele não
revela o mínimo sinal de desprezo ou repugnância. O que não acon-
tecia na cultura grega ou helenista ou mesmo no judaísmo contempo-
râneo de Jesus. Nos Evangelhos o escravo é tratado como uma pessoa.
Mais ainda : como uma pessoa que merece toda a consideração. É o que
se pode concluir, se analisarmos os três tipos de personagens que têm
no comportamento dos escravos o seu termo de comparação: os chefes

ment (...) weder die Institution der Sklaverei verworfen noch gar aufgrund seiner
schlechthin zentralen Botschaft von der bereits anbrechenden Herrschaft und Gerech-
tigkeit Gottes die Abschaffung der Sklaverei geforderí hat!»
(i) Cf. Mt 10,24-25; 18,23-32; 24,45-51; 25,14-30; Mc 13,34; Lc 12,37-38;
17,7-10.
(2) Sobre os diversos significados do termo ôov'Aoç e derivados e a sua evo-
lução semântica no AT, cf. R. DE VAUX, ibidem, 125-126; G. KITTEL, ibidem, 268-272.
(3) Cura do escravo dum centurião: Lc 7,2-10; escravos do Sumo Sacerdote
na história da paixão: Mc 14,47 par e Jo 18,18; intervenção de escravos no relato
da cura do filho dum funcionário real: Jo 4,51.
(4) Mt 10, 24-25; 13,25-27; 21,34-36 par; 22,3-10 par; 24,45-51 par; 25,14-30;
Mc 13,34; Lc 12,37-38; 15,22; 17,7-10.
162 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

religiosos da comunidade judaica ( J ), os profetas (2), os discípulos


de Jesus (3). Do outro lado, como senhor, aparece sempre a mesma
pessoa : Deus (4).
Já no AT as relações entre Deus e os súbditos são apresentadas
à maneira das relações entre um senhor e os seus escravos (5). Isto
acontece depois de, também no AT, os súbditos do rei, especialmente
os seus mercenários, oficiais e ministros serem declarados òOVXOí do
rei, devido ao carácter absoluto do poder real e à sujeição e serviço
que ele exigia. Da mesma maneira as relações dos fiéis com o seu
Deus são apresentadas à imagem das relações com o soberano terrestre.
Nessa altura o termo acaba por constituir um título honorífico, aplicado,
por exemplo, a Abraão, Moisés, Josué, David e ao misterioso servo
de Javé do livro de Isaías (6). Note-se, entretanto, que, mesmo nestas
novas aplicações, o termo conserva a sua conotação primitiva de sujei-
ção e serviço incondicional.
Jesus introduz uma novidade na sua aplicação: exige aos seus
discípulos que nas suas relações mútuas assumam o comportamento
de sujeição e serviço, próprio dos escravos: «Sabeis como os gover-
nantes das nações fazem sentir o seu domínio sobre elas e os magnates
a sua autoridade. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser
grande entre vós faça-se vosso servo ôiáxovoç e quem quiser ser o
primeiro entre vós faça-se escravo òovkoç de todos» (7). O ideal
que deve animar os discípulos de Jesus contrasta, assim, com o prin-
cípio vigente nas relações humanas normais. Os/soberanos da terra
atingem o seu prestígio e mantêm os seus lugares através do domínio e da
opressão violenta dos seus súbditos. A ambição dos discípulos de Jesus
orienta-se no sentido contrário : para eles, a grandeza e a primazia con-
sistem na renúncia a si próprios e no serviço incondicional dos outros.

(i) Cf. Mt 24,45-51; 25,14-30; Mc 13,33-38; Lc 17,7-10. Isto se situarmos


estas parábolas ao nível do seu significado quando pronunciadas por Jesus; ao nível
eclesial ou redaccional posterior podem ter sentidos diferentes.
(?) Cf. Mt 21,34-36; 22,1-10.
P) Cf. Mt 10,24-25; 18,23-35.
(4) À excepção de Mc 10,24-25, em que é Jesus.
(5) Como eco disso cf. no NT a confissão de Maria em Lc 1,38 e Simeão
em Lc 2,29.
(6) Cf. Is 42,1-7; 49,1-9; 50,4-9; 52,13-53,12.
(7) Mc 10,43-44. Sobre a provável origem destas palavras na boca de Jesus
cf. E. SCHWEIZER, Das Evangelium nach Markus, NTD 1, Gõttingen 1973, pp. 124-125.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 163

O princípio atinge o auge do paradoxo, quando a Igreja primitiva


nos apresenta o próprio Jesus a pô-lo em prática: na cena em que
Jesus, na última ceia antes da sua morte, toma a iniciativa de lavar
os pés aos seus discípulos (l). Lavar os pés aos outros era tarefa
dos escravos mais desprezados (2). Os escravos judeus não estavam
obrigados a fazê-lo (3). Que o gesto era chocante, verifica-se na
recusa de Pedro (4). Mas para os discípulos tinha o valor de exemplo
a seguir: «Se eu vos lavei os pés, sendo senhor e mestre, também vós
deveis lavar os pés uns aos outros» (5). No fundo tratava-se dum
gesto de carácter simbólico, em que se punha em prática o mandamento
novo : «Que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei» (6).
Um mandamento que os discípulos põem em prática, na medida em
que como ôOVãOI renunciam a si próprios e se colocam ao serviço incon-
dicional dos outros.
Haverá em tudo isto uma condenação do esquema tradicional
escravo-senhor e da realidade nele contida?
Mais do que duma condenação deverá falar-se talvez duma rejeição.
Jesus, de facto, não parece condenar nem defender por si os princípios
por que se regia a sociedade. Refere-os simplesmente e, mais uma vez,
como um «status quo». Rejeita, porém, que sejam eles a actuarem
no âmbito das relações entre os seus discípulos. É apenas a eles que
se dirigem as suas palavras. Aí o método da rejeição consiste ines-
peradamente numa inversão do esquema : todos devem tornar-se «escra-
vos» uns dos outros... mas sem «senhores». Os «senhores» devem ser
os primeiros a tomarem a iniciativa do serviço. Nesta perspectiva,
não há dúvida que todo o esquema é destruído.

(!) Cf. Jo 13,4-6. Segundo H. KAHLEFELD, «Grundonnerstag. Joh 13,1-15»,


in H. KAHLEFELD — O. KNOCK, Die Episteln und Evangelien der Sonn- undFestíage, 2,
pp. 230-231, a lavagem dos pés dos discípulos por Jesus é uma encenação das segumtes
palavras, pronunciadas realmente por Jesus: «Quem é o maior? O que está sentado
à mesa ou o que serve? Não é o que está sentado à mesa? Ora eu estou no meio
de vós como aquele que serve». (Lc 22,27). Portanto ainda que a cena não seja
original, ela reflecte palavras originais de Jesus.
(2) Cf. ISam 24,41.
(3) Cf. R. DE VAUX, ibiden p. 134, G. KITTEL, ibidem, 280-281.
(4) Cf. Jo 13,6.
(5) Jo 13,14.
(«) Jo 15,12; cf. Jo 13,34,
164 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

3. A ATITUDE DOS PRIMEIROS CRISTÃOS

Não há dúvida que a escravatura interessou os primeiros cristãos.


A existência de muitos escravos entre eles assim o exigia. Em relação
à comunidade cristã de Corinto, por exemplo, a maior parte dos seus
membros provinha das classes sociais mais baixas, conforme indicação
de Paulo numa das cartas que lhe enviou: «Não há entre vós muitos
sábios segundo a carne (ou seja, aos olhos humanos), nem muitos pode-
rosos, nem muitos nobres. Mas o que é louco no mundo é que Deus
escolheu para confundir os sábios ; o que é fraco no mundo é que Deus
escolheu para confundir o que é forte; o que no mundo é vil (âyevfj
à letra: sem nascimento) e desprezado, aquilo que nada é, é que Deus
escolheu para reduzir a nada o que é» (J). Por sua vez, na lista de
vinte e sete pessoas a quem o mesmo Paulo envia uma saudação especial
em Rom 16,1-16 cerca de metade dos nomes são considerados típicos de
escravos ou libertos (2). Igualmente aos cristãos de Filipos manda
uma saudação especial dos cristãos da «casa de César» — uma expressão
que engloba todo o pessoal do imperador ao serviço do governador
de Éfeso, incluindo numerosos escravos e libertos (3). Neste mesmo
sentido se compreendem também as alusões dos Actos dos Apóstolos
à conversão de diversas personagens juntamente com as suas «casas» (4).
Isto significa que uma grande parte, talvez a quase totalidade dos pri-
meiros escravos cristãos, ao abraçarem a fé, seguiam os seus senhores.
Tratava-se aliás dum passo normal, se se tem em conta a estrutura da
sociedade judaica e romana, em que a instituição familiar desempenhava
um papel fundamental (5). Finalmente, indicativa da alta percen-
tagem de escravos entre os primeiros cristãos é a frequência com que
a eles se alude, quer em afirmações sobre a unidade e igualdade de
todos (6) ; quer nas orientações quanto ao comportamento dos escra-

(i) ICor 1,26-28.


(2) Cf. TOB, NT, Paris 1972, p. 487 n.s.; H . SCHLIER, Der Rõmerbrief,
Herder 1977, pp. 444-446; P. ALTHAUS, Der Brief an die Rorner, N T D 6, Gõttin-
gen 1970, p. 150.
(3) Fil 4,22; cf. TOB, NT, p. 596 n.f.
C) Cf. Act 10,2.7.24; 16,15.31.34; 18,8 (cf. ICor 1,16).
(5) Cf. H. GULZOW, ibidem, pp. 26-27.42-47.
(«) Cf. ICor 12,13; Gal 3,28; Col 3,11; Apoc 6,15; 13,16; 19,18.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 165

vos e às relações escravo-senhor (l); quer ainda como ilustração no


tratamento do tema doutrinal escravidão-libertação (2).
Há, sobretudo, um princípio básico que parece ter estado bem
presente na definição da condição de cada membro da Igreja: o prin-
cípio da unidade e da igualdade entre todos: «Não há judeu nem grego,
não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós
sois um só em Cristo» (3). O ponto de partida para afirmações
como esta era sempre o baptismo — o rito da iniciação e da entrada
na comunidade cristã. Com ele todas as diferenças religiosas, sociais
e naturais, próprias do «homem velho» (4), são suprimidas. Porque
nele todos «bebem de um só Espírito» (5), todos «são revestidos de
Cristo» (6), que é um em todos (7). A partir de então, o que conta
é a condição idêntica em todos os membros da Igreja, na qual todos
formam um só corpo.
Quais as consequências deste princípio? Implicava ele a abolição
da instituição da escravatura entre os cristãos?
É provável que nalguns meios tenham surgido movimentos nesse
sentido, nomeadamente em Corinto entre cristãos de tendência gnóstica.
Eram entusiastas que pretendiam transpor imediatamente para
o dia-a-dia e levar até às últimas consequências o princípio da unidade
e igualdade de todos em Cristo: entre cristãos deviam ser abolidas
todas as diferenças sociais : os senhores cristãos deviam libertar os seus
escravos cristãos; estes deviam lutar pela emancipação total. A isso
não era certamente estranha a legislação do AT sobre os escravos
judeus na sociedade judaica: a situação relativamente privilegiada de
tais escravos devia ser aprofundada e alargada em relação aos escravos
cristãos que tinham outros cristãos por senhores (8).
Estas teriam sido as circunstâncias que provocaram o esclareci-
mento de Paulo em ICor 7,20-24: «Que cada um permaneça na condi-

(i) Cf. ICor 7,21-23; Ef 6,5-9; Col 3,22-4,1; Film 10-19; ITim 6,1-2; Tit 2,
9-10; IPed 2,18-22.
(2) Rom 6,16-20; Gal 4,1-7; 2Ped 2,19.
(3) Gal 3,28; cf. ICor 12,13; Col 3,11.
(4) Col 3,9.
(5) ICor 12,13.
(«) Gai 3,27.
(7) Col 3,11.
(8) Cf. H. GULZOW, ibidem, pp. 45-46.55-56; S. SCHULZ, ibidem, pp. 165-167;
H.-D. WENDLAND, Die Briefe an die Korinther, N T D 7, Gõttingen 1972, p. 59.
166 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

ção em que se encontrava, quando foi chamado. Eras escravo, quando


foste chamado? Não te preocupes. Mas ainda que te possas tornar
livre, aproveita antes a condição de escravo (t). Porque o escravo
que foi chamado no Senhor é um liberto do Senhor. Assim como
o que foi chamado sendo livre é um escravo de Cristo. Fostes com-
prados por grande preço. Não vos torneis escravos dos homens.
Que cada um, irmãos, permaneça diante de Deus na condição em que
se encontrava quando foi chamado».
Aqui está um princípio que Paulo certamente estabeleceu para
a vida de todas as suas comunidades (2). O cristão deve permanecer
na condição social em que o encontrou o chamamento à comunidade
de Cristo. Foi como homem determinado, escravo ou livre, que
recebeu o chamamento, e é como tal, no seu lugar social, que deve dar
provas dele. Por outro lado, com a entrada na Igreja, deu-se uma
autêntica inversão social, à semelhança da que era preconizada por
Cristo no Evangelho: o que era escravo tornou-se liberto de Cristo
e o que era livre tornou-se escravo de Cristo. Embora aqui a lingua-
gem passe a ser sobretudo metafórica, e reafirmação desta inversão
social significa, pelo menos, que deixam de existir as desigualdades na
Igreja. Ora, é muito importante que a defesa desta igualdade seja
feita na mesma passagem em que se afirma também que as diferenças
sociais não devem ser ainda abolidas. Isso significa que os cristãos
ao mesmo tempo são todos iguais e continuam a viver socialmente
diferenciados, como escravos e senhores. Nisto há evidentemente
uma contradição, que só podemos resolver se, para já, nos situarmos
em duas esferas distintas : dentro do campo estritamente eclesial, sobre-

(i) O final do versículo 21 em si é ambíguo: ôovÂoç êxXrj6r]ç; JíYJ aoi /usÀérco.


á/U* si peai òvvaadai SãSVOSQOç yevéodcu, ftãÁÃov xQfjoai. Pode ter dois sentidos:
«aproveita de preferência» a ocasião de te libertares; ou «aproveita de preferência»
a condição de escravo. O contexto leva-nos a adoptar a segunda interpretação;
caso contrário, seriam difíceis de entender as palavras que se seguem acerca da indi-
ferença para com todas as condições terrenas. Tal é a interpretação seguida por
H. CONZELMANN, Der erste Brief an die Korinther, Gõttingen 1969, pp. 152-153;
M. ZERWICK, Analysis Philologica Novi Testamenti, Romae 1966, p. 372; TOB, NT,
p. 504 n.n; H.-D. WENDLAND, ibidem, p. 58. Defendem a primeira interpretação
E. SCHWEIZER, «Zum Sklavenproblem im Neuen Testament», Evangelische Théolo-
gie 32 (1972), p. 503 n. 2; G. KITTEL, ibidem, pp. 274-275; P. STUHLMACHER, Dei-
Brief an Philemon, Neukirchen 1975, pp. 44-45.
(2) Cf. H.-D. WENDLAND, ibidem, p. 59.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 167

tudo nas assembleias litúrgicas, todos são iguais, porque todos os


crentes são um só em Cristo ; foi ele que os libertou do pecado (!),
pagando caro o resgate com a sua própria vida (2) ; criar as divisões
ou manter as desigualdades na comunidade de Cristo (3), é retornar
à servidão do pecado (4), é voltar a ser «escravo dos homens» (5).
Na esfera civil, entretanto, deve cada qual manter-se no seu lugar,
porque é aí, como pessoa concreta, na sociedade a que pertence, que
deve dar testemunho da sua vivência cristã; não o fazer, significaria
uma fuga das realidades terrestres, preconizada pelos gnósticos, e impli-
caria também fazer-se «escravo dos homens» (6).
Só assim se compreendem as exortações repetidas no sentido
de que os escravos cumpram bem a sua função de escravos dentro da
sociedade em que vivem. Devem fazê-lo no «temor e respeito» para
com os senhores (7), procurando «agradar-lhes e não os contradi-
zer» (8), «evitando qualquer fraude» (9), mas também sem cair
em «servilismos, como se se tratasse de agradar aos homens» ( 10 );
porque acima de tudo são «escravos de Cristo, que se esforçam por
fazer a vontade de Deus» (U); por isso, devem servir «de boa vontade,
como quem serve ao Senhor» (12). Os motivos profundos que exigem

(i) Cf. R o m 6, lósqq.; Gal 4,1-7.


(2) Cf. R o m 3,24-25.
(3) Cf. ICor l.llsqq.; ll,17sqq.
(4) Cf. R o m 6,6sqq.
(5) ICor 7,23.
(6) A conjugação deste duplo procedimento já estava implícita nas passagens
atrás citadas sobre a unidade e igualdade entre todos os cristãos (cf. ICor 12,13;
Gal 3,28; Col 3, 11). Dizer, por exemplo, que «não há escravo nem livre» em para-
lelismo com «não há homem nem mulher» significa que, tal como as diferenças de
sexo não são plenamente abolidas, também o não são as diferenças sociais. O que
se afirma é que «toutes les différences entre les hommes cessent d'être des sépara-
tions» (TOB, NT, p. 557 n.g.). O mesmo indica a imagem do corpo para exprimir
a unidade (cf. ICor 12,13): assim como o corpo é considerado o princípio unificador
dos diferentes membros, «de la même façon, le Christ, dans sa personne, est le centre
unificateur qui fait de la multitude des chrétiens une réalité une» (TOB, NT,
p. 513 n. w).
(7) Ef 6,5; cf. ITim 6,1; IPed 2,18.
(8) Tit 2,9.
(9) Tit 2,10.
(10) Ef 6,6; cf. Col. 3,22.
(") Ef 6,6.
(12) Ef 6,7; cf. Col 3,23.
168 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

este comportamento são de diversa ordem: pode ser a herança final


que Cristo dará como recompensa pelo bem que se fez 0 ; pode ser
o dever de dar testemunho prático do Evangelho, pelo serviço dedicado,
«para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados» pelos
senhores (2) ; pode ser ainda porque se considera «uma graça, na
perspectiva de Deus, suportar contrariedades que se sofrem injusta-
mente», no caso de os senhores exercerem violências; foi exactamente
para isso que os escravos cristãos foram chamados, já que Cristo tam-
bém sofreu por eles, deixando-lhes assim um exemplo a seguir (3).
De facto, nos seus sofrimentos Cristo assumiu uma verdadeira «condi-
ção de escravo» (4).
Assim, para fora do âmbito eclesial não foi traçado qualquer
programa de libertação de escravos. Tudo se orientava antes, para
que a função do escravo dentro da sociedade fosse exercida numa
perspectiva cristã. Excluía-se, portanto, qualquer revolução fundada
religiosamente (5). Segundo H. Schlier, «die politische Gesellschaft
ist niemals identisch mit dem Leib Christi» (6).
E ao nível interno da Igreja? Que rumo levaram as diferenças
sociais? Todas elas se encontravam objectivamente anuladas. Mas
quais eram as consequências que daí advinham para a prática das
relações sociais entre os cristãos?
No dizer de H. Conzelmann, «die Unterschiede in der Welt sind
fiir den Glauben irrelevant» (7). Por isso, Paulo não sentia qualquer

C1) Cf. Ef 6,8; Col 3,24. «Paradoxe de l'ordre chrétien: l'esclavage devient
héritier» (TOB, NT, p. 609 n.g.).
(2) ITim 6,1; cf. Tit 2,10.
(3) Cf. IPed 2,18-25.
(4) IPed 2,7. Significará isto uma aprovação da escravatura? «Pierre ne
se prononce pas sur la légitimité du système social de son temps, mais trace une
ligne de conduite concrète pour le serviteur chrétien» (TOB, NT, pp. 720-721 n.b.).
A chamada de atenção para o sofrimento de Cristo compreende-se, se se tem em
conta que muitos escravos cristãos no final do sec. I (data provável deste escrito)
eram perseguidos e maltratados muitas vezes pelos próprios senhores pagãos, por
causa da sua fé: «...weil die heraufziehende Verfolgung gerade fur die Sklaven inner-
halb heidnischer Háuser besondere Gefahren und Belastungen mit sich bringt, werden
sie so ausfiihrlich auf das Leiden Jesu Christi verwiesen» ((W. SCHRAGE, Die katho-
lischen Briefe, N T D 10, Gõttingen 1973, p. 91).
(5) Cf. H.-D. WENDLAND, ibidem, p. 59.
(6) H. SCHLIER, Der Brief an die Galater, Gõttingen 1971, p. 175 n. 4).
(7) H . CONZELMANN, Der Brief an die Kolosser, N T D 8, Gõttingen 1972, p. 154.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 169

repugnância em recrutar os seus colaboradores entre a classe servil.


Assim aconteceu com Onésimo, um escravo que o Apóstolo converteu
ao cristianismo e que a partir de então lhe foi particularmente útil (*).
O mesmo aconteceu certamente com os escravos nomeados em
Rom 16,3sqq. Aliás, a saudação especial que Paulo aí lhes envia é, de
si, bastante significativa: «Der GruB gibt ein Zeichen der Gemeinschaft,
der Teilnahme an dem Leben des Anderen. Paulus pflegt die Sitte
mit Betonung: das GruBen in seinen Briefen bezeugt die Bruderschaft
miteinander und stãrkt sie dadurch» (2).
Pode perguntar-se, entretanto, em que medida é que essa frater-
nidade era vivida no plano das relações sociais e jurídicas entre escravo
e senhor, quando ambos comungavam da mesma fé cristã. Quanto
aos escravos, a fraternidade eclesial que os unia aos seus senhores não
devia constituir motivo para reivindicar deles a libertação. Antes,
segundo ITim 6,2 deviam servi-los «ainda melhor porque são crentes
e amados (3), que beneficiam dos seus serviços» (4). Quanto aos
senhores, também deles se não exige um anulamento imediato da
ordem social. Mas exige-se-lhes que nas relações com os escravos
evitem as ameaças, os tratem com justiça e equidade. É que ambos
têm um único e mesmo senhor no céu, que «não faz acepção de pes-
soas» (5). E neste caso é já evidente a repercussão da igualdade
eclesial na ordem profana. O escravo cristão reencontrava assim
a afirmação clara da sua dignidade humana. Ter-se-á ido mais longe?
Paulo na carta a Filémon trata dum caso concreto, particular;
«Mais peut-être précisément est-ce parce qu'il s'agissait en l'occur-
rence d'un cas particulier qu'il en est venu à nous dire, sur les rapports
entre maître et esclave, davantage que dans les lettres plus doctrina-
les» (6). As circunstâncias que provocaram a carta, embora bas-

Ci) Cf. Film 10-11.


(2) P. ALTHAUS, ibidem, p. 150.
(3) «Amados»: por Deus? ou pelos irmãos? Talvez as duas coisas (cf. TOB,
NT, p. 645 n.k.).
(4) No original: oi rfjç svegysaiag àvriXafifíavófievoí. Este particípio pre-
sente médio tanto pode significar algo que se recebe, e nesse caso refere-se aos
senhores que beneficiam dos serviços dos escravos (tradução adoptada) ; como pode
significar algo de que se está incumbido, e então refere-se aos senhores que se apli-
cam a fazer o bem (aos escravos). Cf. M. ZERWICK, ibidem, p. 476.
(5) Ef 6,9; cf. Col 4,1.
(6) TOB, NT, p. 658.
170 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

tante obscuras, podem deduzir-se a partir de diversas alusões feitas


nela pelo autor. Onésimo, escravo de Filémon, um cristão de Colos-
sos, fugiu ao seu senhor, possivelmente depois de qualquer indelica-
deza (!). Tendo encontrado Paulo, provavelmente em Éfeso, gerou-se
entre eles u m a certa afeição que levou à conversão do escravo ao cris-
tianismo e à sua permanência junto do apóstolo. Porém, tal situação,
ao prolongar-se, tornava-se delicada: Paulo, acolhendo u m escravo
fugitivo, tornava-se cúmplice duma grave infracção do direito privado
e Onésimo arriscava-se a ser preso e levado ao seu proprietário, que
lhe podia infligir u m duro castigo. Por isso, Paulo decidiu reenviar
Onésimo a Filémon. Ao mesmo tempo escreveu-lhe u m a breve carta
em que delicadamente lhe pede que acolha o seu escravo, n ã o apenas
como u m «irmão muito amado» ( 2 ), mas, ainda mais, c o m o se fosse
o próprio Paulo ( 3 ). N ã o pedia a libertação de Onésimo, mas con-
fiava que Filémon faria ainda mais do que lhe pedia ( 4 ). Pertencia
a Filémon compreender o alcance desse «mais». De qualquer modo,
Paulo dava a entender, com bastante clareza, confiar que Onésimo,
libertado ou não, iria ser reenviado para junto de si em serviço do
Evangelho ( 5 ).
Como se vê, também neste caso Paulo exige a abolição da escra-
vatura. Talvez tenha visto como seria inútil u m a tentativa p a r a abolir
um tal sistema. Mas, ao pedir que Onésimo fosse recebido como
«um irmão», fazia-o porque certamente achava incompreensível que
u m cristão fosse proprietário de outro cristão, especialmente tendo
em conta Gal 3,27-28 e Col 3,11. Por isso a sua exigência era feita
«em nome do amor» (v. 8) ( 6 ). N ã o se podia aceitar facilmente
u m a distinção dualista rígida entre o plano religioso e o plano civil.
«En fait, Paul ne juxtapose pas du tout : la fraternité, l'unité en Christ

0) Cf. v. 18.
(2) C. 16.
(3) Cf. v. 17.
C») Cf. v. 21.
(5) Cf. P. STUHLMACHER, ibidem, pp. 20sq; TOB, NT, pp. 657-658; H. GUL-
zow, ibidem, pp. 30sqq. A partir de Col 4,7-9, onde Onésimo é nomeado como
colaborador de Paulo na vida eclesial, é de concluir que Filémon acedeu ao pedido
de Paulo : Onésimo, como escravo ou liberto, foi realmente reenviado para junto
do Apóstolo. Cf. P. STUHLMACHER, ibidem, pp. 53-54.
(6) Cf. J. A. FITZMYER, «Carta a Filémon», in VáRIOS, Comentário Bíblico
«San Jerónimo», trad, do inglês, t. IV, Madrid 1971, p. 204.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 171

s'empare plutôt de cette relation maître-esclave, la brise et l'accomplit


sur un tout autre plan. Onésime sera considéré, non seulement comme
un égal, un autre membre de l'Eglise, il sera membre de la famille de
Philemon, il sera pleinement frère. Il ne reste donc marge de pater-
nalisme : ce sera une totale fraternité» (!). De facto, é ao mesmo
tempo «como homem e como cristão» (2) que Onésimo deve ser
fraternalmente recebido por Filémon.
Perante isto pode concluir-se com T. Preiss : «Si le Nouveau Testa-
ment n'est pas révolutionnaire, au sens moderne, il est encore moins
conservateur: tout ordre social est en fait déboulonné, et passe avec la
structure de ce monde» (3).

C1) T. PREISS, «Vie en Christ et Étique Sociale dans l'Epître à Philemon»,


Aux Sources de la Tradition Chrétienne, Festschrift fur M. Goguel, Paris, 1950,
pp. 177-178.
(2) V. 16: à letra «segundo a carne e segundo o Senhor».
(3) T. PREISS, ibidem, p. 179.
II PARTE

A ESCRAVATURA NA PATRÍSTICA

Enquanto o Cristianismo ia fazendo a sua entrada silenciosa, mas


eficaz, nos mais diversos sectores do Império, os Padres da Igreja desen-
volviam os princípios doutrinais e práticos recebidos de Cristo e dos
Apóstolos, sobretudo de S. Paulo, de acordo com as novas condições
históricas e sociais em que os cristãos deviam viver.
Analisaremos, primeiro, a atitude geral dos Padres em relação
à escravatura e os seus princípios doutrinais fundamentais e, depois,
as implicações práticas desses princípios e os resultados alcançados.

1 — A ATITUDE GERAL DOS PADRES QUANTO A ESCRAVATURA

Os Padres da Igreja primitiva aceitaram a escravatura como um


facto social (x). Nunca reclamaram a sua abolição, nem nunca
chegaram a pôr em causa a sua legitimidade como instituição econó-
mica e social. Exortam até os escravos a permanecerem nessa sua
condição (2) e permitem aos próprios cristãos irem aos mercados
comprar escravos (3).
No entanto, embora aceitem a escravatura como um dado de
facto, desde o início a consideram como consequência do pecado dos
homens, isto é, como oposta ao plano original do Criador e, portanto,
como uma desordem, fruto do egoísmo, da avidez e do pecado (4).

(i) Cf. H . WALLON, Hist, de l'Esclavage, I I I , p . 320.


(2) Cf. S. J O ã O CRISóSTOMO; «In I ad Corinthios homilia», I X , 4-5: PG,
t. LXI, col. 156-157.
(3) Cf. «Constitutiones Apostolicae», l.II, c. LXII; F. X. F U N K , Didascalia
et Constitutiones Apostolorum, t. I, Paderborn 1905, p . 179.
(4) Cf. S. JoÃo CRISóSTOMO, «In Epistolam ad Ephesios homilia», VI, 22,2:
PG, t. LXII, col. 156-158; cf. Idem, «In I ad Corinthios homilia», XII, 7: PG, t. LXI
col. 105.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 173

Por isso se recusam decididamente a considerá-la como iei da natu-


reza'. Antes, manifestam consciência nítida de que ela é contrária
à Lei de Deus e da natureza. S. Gregório de Niza, por exemplo,
responde assim a um senhor de escravos que pretendia justificar-se
e considerar-se inocente: «não vês a monstruosidade da tua vaidosa
jactância? Que condenas à escravidão homens que são livres por
natureza e que fazes leis em rivalidade com Deus, destruindo a Sua
Lei?» (i).
Por isso, embora não encontremos no Cristianismo dos primeiros
séculos um propósito claro de intervir socialmente para pôr fim à escra-
vatura como sistema de produção e organização social, não há dúvida
que a sua atitude profunda, talvez nem sempre consciente, ia no sentido
de se lhe opor. Primeiro, no interior da vida e da organização das
assembleias e comunidades cristãs e depois, à medida que a Igreja se
foi implantando como força social, nas próprias instituições do Império.
S. João Crisóstomo, por exemplo, nas suas três homilias sobre
a Epístola de S. Paulo a Filémon, proclama que a Igreja não faz dis-
tinção entre escravos e homens livres (l. a homilia); chama irmãos
aos escravos e exige que todos os cristãos os tratem como tais (2. a homi-
lia) e apela aos senhores cristãos para que os libertem (3. a homilia) (2).
Santo Ambrósio considera legítimo que um homem tenha escravos
ao seu serviço, mas com a condição de ser moderado com eles, de os
tratar como companheiros e de os governar como filhos (3). Ora
esta atitude significava acabar com a escravatura dentro da própria
escravatura. Talvez tenha sido esse o objectivo último dos Padres
da Igreja.
A verdade é que nas comunidades cristãs, onde se encontravam
como irmãos homens livres, senhores e escravos, reinava um espírito
novo, que ia criando uma nova mentalidade e um novo tipo de relações
entre os escravos e os seus senhores, o que viria naturalmente a ter
consequências também na vida social.
O papa S. Clemente, escrevendo aos cristãos de Corinto na época
da perseguição de Domiciano, afirma conhecer muitos cristãos que se
entregaram às prisões em resgate de outros e se tornaram voluntaria-

(i) Cf. PG, t. XLIV, col. 644: citado por W. L. WESTERMANN, The Slave
Systems, p. 160.
(2) Cf. J. QUASTEN, Patrologia, II vol., BAC, Madrid 1962, p. 471.
(3) Cf. «Epist. II», 31 ; PL, t. XVI, col. 887.
174 ANACLETO D E OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

mente escravos para, com o dinheiro assim alcançado, alimentarem


irmãos necessitados (J). Santo Inácio de Antioquia, no início do
séc. II, exorta os cristãos a não desprezarem os escravos e refere o exem-
plo de algumas comunidades que, através das esmolas dos seus mem-
bros, procuravam libertar os escravos (2).
Este empenho individual e comunitário pela libertação dos escravos
é, sem dúvida, revelador da direcção em que ia o Cristianismo: o fim
da escravatura. S. Clemente de Alexandria, no final do séc. II, já
condena os que têm muitos escravos (3). Dá normas muito concretas
aos senhores cristãos para que diminuam o número dos seus escravos,
censurando, por exemplo, muito severamente o uso das liteiras (4).
Também S. João Crisóstomo, no séc. IV, falando contra o luxo e a osten-
tação, aconselhava os ricos a terem menos escravos. Cada um deveria
ter apenas os que lhe fossem absolutamente necessários e, segundo ele,
bastaria um escravo para cada senhor e até, em muitos casos, u m escravo
para dois ou três senhores. Aos que lhe respondiam que ele era dema-
siado rigoroso, aconselhava a que pensassem naqueles que não têm
nenhum (5). Num outro passo dessa mesma homilia, proclama
mesmo como ideal cristão que os senhores mandassem ensinar um
ofício aos seus escravos e que depois os libertassem (6). Também
as «Constituições Apostólicas», falando do bom uso das riquezas,
dizem claramente : «servi-vos do dinheiro para resgatar os santos e liber-
tar os escravos, os prisioneiros e os cativos» (7).
Tudo isto indica que havia uma tendência para acabar com a escra-
vatura. Ia nessa linha a lógica dos princípios doutrinais desenvolvidos
nas assembleias cristãs e na literatura patrística. No entanto, os
empenhos imediatos mais visíveis não iam tão longe. Mais do que
abolir a escravatura, procuravam minorar os seus inconvenientes e trans-
formá-la, convertendo a mentalidade e o coração das pessoas. Segundo
alguns historiadores, esta seria a única atitude possível naquela época.
Fosse como fosse, o que é evidente é que os Padres estavam empenhados

(!) Cf. «I Cor.», LV, 2: F. X. FUNK, Patres Apostolici, t. I, Tubinga


1901, p. 168.
(2) Cf. «Ad Polycarpum», IV, 3: F. X. FUNK, ibidem, p. 168.
(3) Cf. PL, t. VIII, col. 592.
(4) Cf. ibidem, col. 609 e 650.
(5) Cf. «In I ad Corinthios homilia», XL, 5: PG, t. LXI, col. 353
(6) Cf. ibidem, col. 354.
(7) L. IV, c. IX.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 175

sobretudo em dignificar os escravos, considerando-os sempre como


homens dignos, radicalmente livres e iguais aos seus senhores, e em
moderar as atitudes destes para com aqueles, de modo que os tratassem
como seus semelhantes e até como irmãos 0). As relações entre
uns e outros deveriam ser de amor e serviço recíproco, até se chegar
ao ponto de não haver mais escravidão (2). Sem atacar directamente
as estruturas sociais, os Padres procuravam, consciente ou inconscien-
temente, revolucioná-las por dentro e instaurar na própria escravatura
relações humanas e fraternas de amor e de serviço recíproco.
Veremos mais adiante os resultados desta estratégia, considerada
por uns como 'utopismo cristão' e por outros como 'projecto realista'
adaptado às condições da época. Antes, porém, convém referir alguns
dos princípios doutrinais que inspiravam a atitude cristã anti-escla-
vagista.

L — PRINCíPIOS DOUTRINAIS FUNDAMENTAIS

O princípio fundamental do Cristianismo frente à escravatura


era o da igualdade entre todos os homens, quer fossem livres ou escra-
vos. Todos são filhos de Deus, que ama e chama a todos igualmente,
sem olhar a qualquer diferenciação social. Cristo viera para servir
e salvar a todos. Por isso todos deviam ter lugar na Sua Igreja, sem
qualquer acepção de pessoas (3). Também Minúcio Félix, advogado
cristão dos fins do séc. II, se faz eco deste mesmo princípio: «omnes
tamen pari sorte nascimur, sola virtute distinguimur» (4) e Santo
Ireneu, bispo de Lião na mesma época, escreve : «Ex liberis et ex servis
Christus statueret filios Dei, similiter omnibus dans múnus Spiritus
vivicantis nos» (5).
Portanto este princípio da igualdade radical de todos os homens,
afirmado já por S. Paulo, continua a ser desenvolvido pelos Padres
ao longo dos primeiros séculos da Igreja. Para ela não há estrangeiros

C1) Cf. S. J. CRISóSTOMO, «In Epist. ad Ephesios», 1: PG, t. LXII, col. 155.
(2) Ibidem, col. 134.
(3) Cf. «Epistola do Pseudo-Bernabé» XIX, 7: F. X. FUNK, Patres Apos-
tolici, p. 92.
(4) PL, t. Ill, col. 354.
(5) «Contra Haereses», IV, 21,3: PG, t. VII, col. 1046.
176 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

(principal fonte da escravatura) como não há diferença entre o s homens


livres e os escravos. São todos iguais, com a mesma dignidade (i).
Aos pagãos que, admirados com a fraternidade que h a v i a entre os
cristãos, independentemente da sua condição de homens livres ou de
escravos, pediam u m a explicação, Lactâncio respondia simplesmente:
«quia pares nos credimus» ( 2 ). Para Santo Ambrósio n ã o havia
dúvida que todos os cristãos eram iguais, porque receberam a mesma
adopção divina, tornando-se irmãos, membros do mesmo c o r p o e par-
ticipantes da mesma mesa ( 3 ). Consequentemente, «os senhores
devem servir-se dos seus escravos como de si mesmos, p o i s eles são
homens como nós e Deus é o mesmo tanto p a r a os homens livres como
para os escravos. Todos têm a mesma origem e podem ter o mesmo
valor moral» ( 4 ). Esta referência ao possível valor moral dos escra-
vos é muito significativa n u m a sociedade em que, t a m b é m sob este
aspecto, eles eram profundamente depreciados. Tinham m á fama,
porque se julgava comummente que eles eram, por sua p r ó p r i a natu-
reza, indolentes, rebeldes, pouco receptivos à virtude, mentirosos, etc.
A propósito desta má fama dos escravos, S. João Crisóstomo diz
peremptoriamente que isso n ã o é devido a qualquer deficiência da sua
natureza nem corresponde ao plano de Deus. São as atitudes desu-
manas dos senhores que fazem que muitos escravos t e n h a m essas
atitudes, pois os n ã o educam, os privam de ajuda, de convívio e de
amizade e só lhes exigem trabalho. São portanto os senhores, a sua
avareza, a sua dureza e os seus maus exemplos, os culpados das más
inclinações de muitos escravos ( 5 ). Portanto, n ã o há qualquer infe-
rioridade natural dos escravos. Se, sob o aspecto moral ou qual-
quer outro, eles algumas vezes podem parecer subdesenvolvidos, isso
é por culpa da própria sociedade que os marginaliza.
Por este motivo, S. Gregório de Nazianzo convidava os cristãos,
habituados ainda à antiga maneira de ver os escravos como inferiores,
a que mudassem essa sua mentalidade. «Não consideres indigno
— dizia ele aos que estavam para receber o baptismo — ser baptizado

C1) Cf. S. J. CRISóSTOMO, «Homilia de Ressurrectione», 3: PG, t. I, col. 437.


(2) «Divinae Institutiones», V, 16: PL, t. VI, col. 601.
(3) «De Abraham», II, 28: PL, t. XXXVI, col. 396-397.
(4) S. CLEMENTE DE ALEXANDRIA, «Stromata», IV, 8: PG, t. VIII, col. 1277.
(5) Cf. «In Epist. ad Titum homilia», IV, 3: citado por H. WALLON, Hist,
de l'Esclavage, III, p. 334-335.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 177

com aquele que até agora foi teu escravo; tu hoje és transformado;
o que é antigo desaparece e um mesmo distintivo é imposto a todos:
Jesus Cristo» (}).
Isto é tanto mais importante, quanto sabemos que nas comunidades
cristãs houve sempre, desde o princípio, grande número de escravos.
Como refere Orígenes, esse facto constituía mesmo uma das acusações
com que Celso e outros pagãos pretendiam humilhar o Cristia-
nismo (2). Mas Orígenes defende-se, afirmando prontamente que
os escravos também têm uma alma livre e que todos os homens são
igualmente dignos (3).
Quanto a este ponto, a doutrina patrística é clara e unânime.
Veremos agora quais foram as suas consequências na organização das
comunidades e na vida social dos cristãos.

3 — CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS DOS PRINCÍPIOS DOUTRINAIS

Como já vimos, o Cristianismo primitivo era profundamente igua-


litário e não olhava à condição social dos seus membros. Conside-
rava todos iguais e qualquer distinção social entre eles devia ficar à porta
da Igreja. Na sua perspectiva não tinha qualquer sentido. A escra-
vatura era, por isso, algo inexistente, pois os escravos eram pessoas
humanas que deviam ser salvos como qualquer outra pessoa. Talvez
por isto mesmo, o Cristianismo permaneceu, durante tanto tempo,
alheio às distinções sociais que eram um facto e que dividiam realmente
os homens. Esta é a tese de Westermann, que neste aspecto se faz
já eco do pensamento de Harnack, segundo o qual, a Igreja primitiva
nunca teve consciência do problema da escravatura (4).
No entanto, nós julgamos que, como veremos mais adiante, se
não pode exagerar este alheamento da Igreja primitiva em relação ao
problema social da escravatura. É um facto que, até ao momento
em que a Igreja se tornou grupo maioritário com responsabilidades
sociais, ela permaneceu bastante estranha às estruturas sócio-políticas
do Império. Sendo, porém, a Igreja dessa época constituída por

(i) «In S. Baptisma»: PG, t. XXXVI, col. 396-397.


(2) Cf. «Contra Celsum», II, 44: PG, t. XI, col. 976-977.
(3) Cf. ibid., I l l , 54: P G , t. XI, col. 992.
(4) Cf. W. L. WESTERMANN, The Slave Systems, p. 150.
178 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

pequenos grupos absolutamente minoritários, dificilmente podemos


conceber que pudesse ter sido de outra maneira, isto é, dificilmente
a Igreja poderia ter tomado com seriedade uma posição frontal contra
a escravatura enquanto estrutura social e sistema de produção.
Por tudo isto, o 'igualitarismo' cristão, ao nível das realizações
práticas, manifestou-se exclusivamente na organização interna das
comunidades cristãs. Foi aí que ele teve os seus reflexos imediatos.
As «Constituições Apostólicas», por exemplo, determinam que
nas assembleias não haja qualquer distinção de lugares, à excepção das
pessoas idosas, às quais se devem dar os lugares sentados. Os escravos
devem ficar misturados no meio dos homens livres e, na devida altura
todos devem trocar entre si rò êv XVQíOJI cpiXrjfxa (}). Entre as
preces que se faziam, tendo em conta as diversas situações em que se
encontravam os cristãos, havia uma pelos que eram esmagados pela
cruel escravidão : vneQ rœv èv juxQãi òovXsíai xazcmovovftevctiv (2).
Portanto, para lá da mesma oração e da invocação do mesmo
Deus como Pai (3), havia ainda a mesma prece pelos que gemiam
sob a cruel escravatura. Vemos assim que, ao contrário do que dizia
Harnack e Westermann, a Igreja primitiva tinha certa consciência do
problema social da escravatura e que reagiu contra ela, a seu modo.
Antes de mais, através da oração, manifestando assim o seu pensar,
a sua esperança e o seu empenho. Mas não só pela oração. É ainda
expressivo desta atitude o facto de as mesmas «Constituições Apos-
tólicas» prescreverem, peremptoriamente, que as comunidades deviam
rejeitar qualquer oferta daqueles que maltratassem os seus escravos
ou que os deixassem passar fome (4).
Com o mesmo intuito de dignificar os escravos, determina-se ainda
que os senhores cristãos devem dar os sábados e os domingos aos seus
escravos cristãos, para que estes possam ocupar-se nesses dias da sua
formação religiosa. Do mesmo modo se prescreve que na Páscoa
lhes concedam duas semanas livres: a da Paixão e a da Ressurreição,
para poderem conhecer Aquele que morreu e ressuscitou (5).

(!) Cf. 1. II, c. LVII: F. X. FUNK, Didascalia et Constitutiones Apostolorum,


t. I, Paderborn 1905, pp. 160-161.
(2) L. VII, c. X, 15: F . X. FUNK, ibidem, pp. 490-491.
(3) Cf. PL, t. XXXVIII, col. 393: «Pater noster (...) hoc dicit servus, hoc
dicit dominus eius».
(*) Cf. 1. IV, c. XIX: FUNK, ibidem, pp. 230-231.
(5) Cf. 1. VIII, c. XXXIII: FUNK, ibidem, pp. 548-539.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 179

Sinal ainda da importância alcançada pelos escravos nas comuni-


dades cristãs é, como já vimos, o seu grande número no interior dessas
comunidades (*). Dissemos já como isso era aproveitado pelos
adversários do Cristianismo para o ridicularizar como 'religião de
escravos', dando a esta expressão todo o sentido pejorativo que ela
tinha para eles. Mas o que era considerado como uma infâmia pelos
perseguidores do Cristianismo constituía uma glória para os seus
apologistas. A este propósito, Barrow cita um texto do 'Octavius'
de Minúcio Félix, o advogado romano e apologista cristão do séc. II,
que já citámos. Aí se descreve uma polémica entre um pagão, Cecí-
lio, e um cristão, Octávio. O primeiro escarnece do Cristianismo
por este acolher a ralé da sociedade: homens ignorantes, escravos
e mulheres; Octávio responde-lhe que isso não deve ser motivo de
acusação, mas de glória, pois não se pode considerar pobre o que
é rico e digno diante de Deus, e os escravos, por exemplo, são dignos
diante de Deus (2).
Mas além do número, há ainda outro facto bastante significativo :
a facilidade com que alguns deles eram eleitos para funções hierárquicas
na Igreja (3). Sabemos que muitos escravos foram ordenados pres-
bíteros e bispos da Igreja primitiva e que na lista dos papas se encon-
tram alguns escravos. Deixando de lado o caso, pouco provável,
de o papa S. Clemente ter sido o colaborador de S. Pedro e S. Paulo,
a que este faz referência em Fil. 4,3, e um escravo (ou liberto) da famí-
lia imperial dos Flávios (4), temos os casos de Anacleto (ou Cleto),
papa entre 76-90, e de Calixto, que era um escravo fugido e que foi
papa entre 217-222 (5).
O modo como os cristãos consideravam o casamento dos escravos
é também elucidativo quanto à dignidade que a Igreja lhes reconhecia.
Para a legislação romana, não havia entre escravos verdadeiro matri-

(!) Sobre o número dos escravos nas comunidades cristãs primitivas, cf.
a obra já citada de WESTERMANN, p. 150 e a de R. H. BARROW, SIavevery in the Roman
Empire, pp. 163-164. '
(2) Cf. R. H. BARROW, Slavery in the Roman Empire, p. 163.
(3) Cf. S. JERóNIMO, Epist. LXXXII, 6: PG, t. LXXII, col. 739.
(4) Cf. J. QUASTEN, Patrologia, I vol., Madrid 1961, p. 51.
(5) Portanto, parece-nos sem fundamento a opinião de Westermann,. na
obra já citada, p. 158, onde se diz que o Cristianismo primitivo aceitava escravos
entre os seus ministros, mas apenas nos ministérios inferiores. O autor nunca prova
esta sua afirmação.
180 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

mónio, mas simples 'contubernium' permitido pelo senhor e que durava


enquanto este quisesse. A Igreja primitiva, ao contrário, não acei-
tando a distinção entre livres e escravos, considera tão válido e indes-
solúvel o casamento de uns como de outros. Mostra, assim, que
todos os seus membros são iguais e que o que a sociedade considerava
simples 'contubernium' (entre escravos) ou 'concubinatus' (uma espé-
cie de casamento entre um escravo e um livre, que primeiramente foi
proibido e mais tarde permitido, embora oficialmente continuasse
a ser considerado nulo e sem efeitos civis), era entre os cristãos cele-
brado sempre como 'sacramento' com toda a dignidade e com os mes-
mos efeitos do matrimónio entre livres. Quando no séc. III se levan-
taram dúvidas quanto à legitimidade e validade do 'concubinatus',
logo o papa S. Calixto afirma, sem hesitação, a sua legitimidade e vali-
dade (!). Deste modo, a Igreja, dando a sua bênção a tais matri-
mónios, desafiava os preconceitos populares do tempo e a própria
legislação imperial; derrubava as fronteiras estabelecidas pela socie-
dade entre escravos e homens livres e testemunhava a igualdade entre
todos os homens (2).
Um outro factor que muitíssimo contribuiu para estreitar a comu-
nhão entre os cristãos, independentemente da sua condição de homens
livres ou de escravos, foram as perseguições e o martírio. É o que se
pode concluir da leitura dos escritos dos Padres Apologistas e das
«Actas dos Mártires» (3).
A participação nos mesmos sofrimentos, na mesma esperança e no
mesmo ideal de não renegar a sua fé e de dar corajosamente testemunho
de Cristo unia os cristãos, quer fossem escravos ou livres. Sempre,

(i) Cf. S. HIPóLITO, «Philosophumena», IX, 12: PG, t. XVI, col. 3380.
(2) Cf. QUASTEN, Patrologia, I vol., pp. 493-494.
(3) Cf. DuTiLLEUL, «Esclavage» in D.Th.C, t. V, col. 465-466; J. GUIRAUD,
Histoire Partiale — Histoire Vraie, vol. I, Paris 331944, p. 157; PAUL ALLARD, Les
Esclaves Chrétiens, Paris 51914 (esta edição foi reeditada pela Georg Olms Verlag,
Hildesheim — New York 1974), 1. II, c. I I I : «Les esclaves martyrs»; W. L. WES-
TERMANN, The Slave Systems, p. 151, onde o autor refere a importância que tiveram
as perseguições na criação duma maior unidade e igualdade entre os cristãos. Não
nos parece, porém, aceitável a conclusão que este autor tira desse facto. Segundo
ele, essa união de todos diante do perigo comum teria contribuído para que os cris-
tãos, desprezando qualquer distinção entre livres e escravos, não tomassem cons-
ciência do problema da escravatura, isto é, o «igualitarismo» cristão teria acabado
por ser negativo (um «obstáculo»), enquanto os fazia esquecer a situação social real.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 181

a iminência do perigo tornou os homens mais próximos e irmãos.


Mas, além disso, a fé e a coragem dos escravos contribuiu para rea-
bilitar ainda mais, na consciência dos cristãos, a dignidade desses
homens e dessas mulheres socialmente desprezados. Isto é tanto mais
importante, quanto sabemos que foram muitos os escravos que sofre-
ram o martírio por se dizerem cristãos e serem corajosamente coerentes
com a sua fé. A propósito do martírio de Santa Blandina, que era
escrava, um texto antigo escreve: «ela mostrou que aquilo que para os
homens é vil e desprezível é honrado por Deus com uma grande gló-
ria, devido ao amor que ela testemunhou a Cristo» (!). Evelpisto,
escravo do imperador e companheiro de martírio de S. Justino, quando
lhe perguntaram quem era, respondeu: «Servus quidem Caesaris sum,
sed christianus a Christo ipso libertate donatus» (2). Esta resposta
é bem expressiva da consciência que este escravo e toda a Igreja de
então tinham da sua dignidade.
Quando algum dos escravos pagava com a sua própria vida a sua
fidelidade a Cristo, como o fizeram as duas mártires Blandina e Feli-
cidade e tantos outros, era celebrado pela Igreja com honras que
se negavam ao mais poderoso e nobre dos homens (3). Este era
mais um motivo de riso para os pagãos que ridicularizavam o Cris-
tianismo por «honrar como deuses estes condenados à morte» que não
passavam de escravos infiéis. Eram considerados infiéis, porque
tiveram a ousadia de ter uma fé e uma dignidade humana que os levava
a resistir à vontade dos seus senhores e às leis anti-cristãs do Império.
Mas a auréola da sua fidelidade e da coragem do martírio brilhava na
Igreja que os celebrava e sobre todos os escravos que se sentiam desse
modo dignificados (4).
Quanto à sepultura dos escravos, os romanos costumavam enterrá-
-los no 'columbarium', mas os cristãos colocavam-nos lado a lado com
os homens livres e as inscrições funerárias esqueciam geralmente as
diferenças sociais da vida terrena (5).

(i) P G , t. XX, col. 416.


(2) Citado em J. DUTILLEUL, «Esclavage», in D.Th.C, t. V, col. 465.
(3) Cf. J. GuiRAUD, Histoire Partiale, p. 157; R. H. BARROW, Slavery
in the Roman Empire, p. 164, onde se cita o caso das duas mártires Blandina e Feli-
cidade, celebradas pela Igreja primitiva com honras que a Igreja negava ao mais
nobre e poderoso dos homens.
(4) Cf. J. GOTRAUD, Histoire Partiale, p. 157.
(5) Cf. S. BOUR, «Epigraphie», in D.Th.C., t. V, col. 352.
182 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

Não se pode, no entanto, ignorar que a Igreja primitiva nunca


exigiu dos seus membros que renunciassem ao serviço dos seus escra-
vos. Aceitava-se que qualquer cristão tivesse os seus escravos, mesmo
que estes fossem baptizados. As 'Constituições Apostólicas' reco-
mendam apenas a esses cristãos que têm escravos que os amem e os
considerem seus semelhantes, pois que são homens como eles, e que
os tratem como filhos ou irmãos no caso de serem cristãos. Igualmente
recomenda aos escravos cristãos que devem amar os seus senhores
e, no caso de serem cristãos, tratá-los como irmãos na fé e servi-los
dedicadamente (i). S. João Crisóstomo descreve do seguinte modo
as relações que deveriam existir entre senhores e escravos cristãos:
«Que haja reciprocidade de serviço e de subordinação; desse modo já
não haverá escravidão. Se senhores e escravos se servirem mutua-
mente, então é melhor ser escravo nessas condições do que senhor em
condições opostas, em que as relações entre uns e outros são marcadas
pelo despotismo e pelo servilismo» (2).
É evidente que estamos diante de uma mentalidade absolutamente
nova. Levada às suas últimas consequências, significaria necessaria-
mente o fim da escravatura.
No entanto a maior parte dos escravos pertenciam a senhores
pagãos e nesses casos não se poderia falar duma reciprocidade de ser-
viço, de amor e de subordinação. Que orientações dava a Igreja a esses
escravos que tinham senhores pagãos? Dentro dos princípios já
referidos, podemos admitir que os exortava a serem benevolentes para
com os seus senhores, mesmo que estes fossem ímpios e maus. É o que
se pode deduzir dum texto de S. Justino, onde se diz claramente que os
escravos cristãos devem contentar os seus senhores para que estes
«não blasfemem da religião», isto é, não se indisponham contra o Cris-
tianismo. Esta atitude inseria-se na preocupação de que os escravos
fossem, através da sua benevolência, apóstolos de Cristo junto dos seus
senhores. É neste contexto que se deve compreender a exortação
aos escravos para que aceitassem livremente permanecer como escravos
em casa dos seus senhores e se aproveitassem dessa sua condição para
aí servirem como apóstolos de Cristo, tal como Ele próprio se humi-
lhara e se fizera servo para resgatar os que andavam no erro. Assim

(i) Cf. 1. VII, c. XIII.


(2) «In Epist. ad Ephesios homilia», XIX, 5: PG, t. LXII, col. 134.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 183

também eles poderiam ser ocasião de conversão para os seus


senhores (}).
É nesta perspectiva que devemos entender este apelo para seguir
o exemplo de Cristo que se fizera servo para libertar os homens seus
irmãos. Não se pretendia desse modo legitimar ou sublimar a exis-
tência da escravatura, para que esta se pudesse perpetuar. Havia
apenas uma dupla finalidade:

1 — Dignificar os escravos, que eram uma realidade, com


esse exemplo de Cristo que se fizera servo de todos, para que
ninguém ousasse desprezá-los (2). É clara esta finalidade num
texto de S. João Crisóstomo, onde se recorda, primeiro, o exemplo
de S. Paulo que, na sua carta a Filémon, não se envergonhou de
chamar a um escravo seu filho, seu irmão e seu amigo e, depois,
o exemplo de Cristo: se até Ele se não envergonhou de chamar
aos nossos escravos seus irmãos, como poderemos nós ter vergonha
de o fazer? (3). Portanto, o exemplo de Cristo feito servo lan-
çava uma nova luz sobre a dignidade dos escravos.
2 — Investir os escravos duma missão a cumprir, como cris-
tãos e enviados de Cristo, no meio da família em que viviam.
Era uma missão livremente aceite e não uma imposição servil.
Por isso, se lhes dizia que permanecessem voluntariamente na casa
dos seus senhores para aí darem testemunho de Cristo e os atraírem
à fé. «Se eles virem — dizia S. João Crisóstomo aos escravos,
referindo-se aos seus senhores — um escravo a filosofar à luz de
Cristo, a mostrar maior domínio de si do que os seus filósofos
e a servi-los tão dedicadamente, serão levados a admirar com entu-
siasmo a força da doutrina cristã, não tanto pelos seus ensina-
mentos, mas pela prática da sua vida. Deste modo, os escravos
pela sua vida virtuosa servirão de mestres aos seus senhores» (4).

Pelo que vimos, muitos aspectos da antiga escravatura desapare-


ceram do interior das comunidades cristãs dos primeiros séculos. Pode-

(i) Cf. S. JUSTINO, «Dialogus cum Tryphone», 134: PG, t. VI, col. 788.
(2) Cf. S. CIRILO de JERUSALéM, «Cathecheses Mistagogicae», XV, 23: PG,
t. XXXIII, col. 901.
(3) «In Epist. ad Philem. homilia», II, 3: PG, t. LXI1, col. 711.
(+) «In Epist. ad Titum homilia», IV, 3: PG, t. LXII, col. 658.
184 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

mos no entanto perguntar: terá sido uma mudança situada apenas


ao nível religioso e dentro do espaço das assembleias litúrgicas ou teve
também repercussões na vida social dos cristãos ? Atendo-nos a alguns
testemunhos da época, podemos supor que o novo clima de fraterni-
dade, que caracterizava as assembleias cristãs, se alargou à vida social
dos cristãos, a ponto de provocar algum impacto na sociedade e a reacção
das próprias autoridades. «Vede — dizia S. João Crisóstomo — como
a virtude de Cristo entrando no mundo aproximou até à fraternidade
aqueles que antes tinham o nome de escravos» (i). Eram exacta-
mente estas novas relações de fraternidade entre escravos e homens
livres (portanto: dentro da própria escravatura) que levavam alguns
senhores a terminar com essa antiga instituição, libertando os seus
escravos. A manumissão, favorecida e tornada possível pelas novas
condições sócio-económicas, era vista não só como uma obra humani-
tária mas também como uma obra de caridade cristã agradável a Deus
e como o melhor modo de obter a Sua misericórdia, a remissão dos
pecados e a salvação da alma. Por isso os cristãos começaram, desde
cedo, a tender para libertarem os escravos (2). Já citámos a caso
daquelas comunidades cristãs que, segundo o testemunho de S. Cle-
mente e de Santo Inácio, procuravam libertar os presos e resgatar os
escravos. Podemos ainda recordar alguns testemunhos de libertações
de escravos feitas por senhores cristãos.
«As Actas dos Mártires», por exemplo, relatam o caso de Hermes
que, no tempo de Trajano, libertou 1250 escravos, num domingo de
Páscoa. Um tal Cromácio, antigo prefeito de Roma, duma só vez,
emancipou 1400. Santa Melânia libertou 8 000, num só dia (3).
Poderíamos ainda recordar muitas outras libertações concedidas por
testamento «pro redemptionem animae suae» ou «em nome do Senhor
para que, quando deixar esta vida e a minha alma comparecer diante
de Cristo, mereça alcançar a misericórdia» (4).
Havia até casos em que, por ocasião da morte dum parente ou
dum amigo, se oferecia a Deus a libertação de um ou mais escravos,

C1) «In Gen, 9 homilia», XXIX, 7: PG, t. LUI, col. 270.


(2) Cf. J. GUILLEN, «La Esclavitud en Roma», Helmantica XXIII (1972), p. 81.
(3) Cf. J. GUIRAUD, Histoire Partiale, p. 159 e J. GUILLEN, «La Escla-
vitud», p. 81.
(4) Cf. J. GUIRAUD, Histoire Partiale, p. 159.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 185

como sufrágio pela sua salvação (l). Tudo isto deveria representar,
à medida que o Cristianismo ia conquistando o Império, um número
razoável de manumissões, de tal modo que Diocleciano, em 303, proi-
biu as libertações de escravos cristãos, porque eram demasiado nume-
rosas (2).
Podemos, pois, concluir que os resultados foram bastante positivos
e que uma revolução lenta, mas permanente e eficaz, atacava pela raiz
o velho sistema esclavagista. As suas consequências iam para além
do espaço litúrgico das assembleias cristãs e até para além do círculo
da vida social dos seus membros. Elas apareciam cada vez mais
à luz do sol, à medida que os cristãos cresciam em número e influência.
Lactâncio, por exemplo, refere que o clima de fraternidade que
reinava entre os cristãos provocava admiração entre os pagãos : «Nonne
sunt apud vos, alii pauperes, alii divites; alii servi, alii domini?» (3).
Isto mostra que se tratava de algo socialmente visível. Mas aqui
podemos pôr um outro problema: para lá dessa admiração dos pagãos,
qual foi, de facto, a influência destes princípios e desta prática cristã
ao nível das instituições e das leis civis do Império?
É o que iremos ver em seguida.

0) Cf. J. GUIRAUD, Histoire Partiale, p. 159.


(2) Cf. J. GUILLEN, «La Esclavitud», p. 81.
(3) «Divinae Institutiones», 1. V, c. XVI: PG, t. VI, col. 600.
Ill PARTE

A ESCRAVATURA NO DIREITO ROMANO CRISTÃO

1 — O DIREITO ROMANO CRISTÃO

O direito romano, como em geral todo o mundo antigo, conhece


a escravatura, pela qual as pessoas que se encontram nessa situação
são consideradas como coisas, chegando mesmo ao ponto de se esta-
belecerem sobre elas todos aqueles direitos patrimoniais que se costu-
mam estabelecer sobre as coisas : propriedade, usufruto, penhora, posse,
aluguer, etc. ( J ).
Devido aos novos condicionalismos económicos, culturais e reli-
giosos, surgiu uma tendência na sociedade romana para corrigir, mesmo
ao nível jurídico, o estatuto clássico da escravatura. O direito absoluto
de propriedade, que a lei atribuía ao senhor e que lhe permitia até matar
impunemente o seu escravo, passou a ser muito mais moderado. Pri-
meiro, pelo próprio interesse do senhor que começou a sentir mais
dificuldade em substituir esse escravo e, depois, por essa mentalidade
mais humana que exercia uma certa função censória e moderadora
sobre aqueles que, injustificadamente, matassem ou maltratassem os
seus escravos.
Pouco a pouco, era natural que tudo isto se viesse a reflectir no
campo propriamente jurídico e que surgissem leis mais moderadas
e mais humanas. Foi o que de facto aconteceu. Não tanto com
o estoicismo, que, apesar dos seus ideais avançados, não teve grande
influência nas instituições do Império. «Il fattore piu eficiente e géné-
rale delia nuova legislazione si deve ricercare nel cristianesimo, la cui
propagazione ed evvento determinano gradualmente nella coscienza
sociale una svolta decisiva, nuova, ed inconsueta, la quale non poteva
non avère ripercussione sul diritto» (2).

(!) B. BIONDI, II Diritto Romano, p. 268.


(2) B. BIONDI, II Diritto Romano, p. 53.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 187

Embora com explicações diferentes — acentuando uns o novo


condicionalismo económico e social e fazendo outros ressaltar a força
íntima do Cristianismo — quase todos os autores são concordes em
que o reconhecimento jurídico e institucional da personalidade humana
do escravo só começou a ter expressão com a legislação cristã do séc. IV.
Westermann, por exemplo, depois de mostrar como a moderna
tendência materialista de muitos historiadores mudou a opinião tra-
dicional, segundo a qual a influência do Cristianismo foi determinante
para o abandono da escravatura, é forçado a reconhecer o seguinte:
«In the past two decades support has come from an unexpected source
for the older point of view that Christianity exercised a powerful influence
upon the direction taken by the though of the Roman Empire upon
slavery as it displayed itself in civil legislation enacted in the post-
-Diocletian era. The reaction toward the older belief, that of a strong
influence exercised by Christianity, has come from scholars who have
devoted their abilities to a new interpretation of the Roman law. Among
them one finds an unobtrusive, but firm, insistence upon the influence
of Christian doctrine upon later Roman legislation affecting the ins-
titutions of the time, in which the Church was directly, and necessarily,
interested. These include the family organization, the law of property,
slavery, and other matters remote from ritualistic and theological
preoccupations» (*). Em seguida o autor cita alguns exemplos em
que se pode notar a influência directa do Cristianismo na legislação
civil romana. Teríamos nesse caso a abolição da pena de crucifixão,
que foi decretada por Constantino e que se deve atribuir à repugnância
dos cristãos por este suplício, que lhes recordava a crucifixão de Jesus.
Do mesmo modo se devem atribuir à influência da Igreja no Direito
Romano certas leis publicadas por Justiniano.
De facto, embora a Igreja dos primeiros séculos nunca tenha pro-
posto a abolição da escravatura, tudo no Cristianismo se orientava para
a transformar e, finalmente, a eliminar: a doutrina cristã exposta pelos
Padres, o novo tipo de relações que se estabeleciam no meio cristão
entre senhores e escravos e ainda a tendência para libertar estes últimos,
como uma obra profundamente cristã e agradável a Deus. Ao con-
trário das especulações filosóficas dos estóicos, limitadas a um círculo
restrito de intelectuais, o Cristianismo devia ser vivido nas assembleias

f1) W. L. WESTERMANN, The Slave Systems, p. 155-156.


188 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

litúrgicas e, depois, na vida familiar, social e política dos seus membros.


Possuído daquela «força de penetração que é própria da religião»
tendia a penetrar na consciência individual e social e a tornar-se norma
inspiradora de toda a vida.
Isto é tanto mais de ter em conta quanto é certo que se estava num
período de decadência marcado por um certo vazio cultural: quase
todas as actividades do espírito, desde a arte, à filosofia e à própria
jurisprudência passavam a segundo plano, enquanto a religião se inves-
tia em pleno na vida dos indivíduos e do próprio Estado. Ora o Cris-
tianismo, que desde há muito se vinha enraizando e alastrando no
Império com força de vida nova, no início do séc. IV cobria pratica-
mente já todas as províncias e camadas sociais, podendo afirmar-se
triunfante com Constantino Q-). Foi assim que o Cristianismo preen-
cheu facilmente esse vazio cultural e pôde influenciar decididamente
a evolução social, política, cultural e jurídica do Império (2). Era
o início duma nova época a que Santo Agostinho chamou «têmpora
Christiana», em que a teologia substituiu a antiga filosofia. Os filó-
sofos eram sobretudo os Padres da Igreja, que reflectiam sobre os
textos sagrados, orientando desse modo a consciência social do tempo.
Desde muito cedo se encontram cristãos a ensinar as mais diversas dis-
ciplinas nas escolas do Império. Conhecemos alguns exemplos do
séc. III e sabemos que no séc. IV havia cristãos em todos os graus do
ensino, desde os mais humildes mestres-escola até às mais altas cátedras
de retórica, jurisprudência, etc. (3).
É neste contexto que, como diz B. Biondi, «i legislatori di Roma,
pretori et imperatori, nonché i grandi giuristi che crearono ed elabo-
rarono il sistema giuridico, entrarano nell'ombra al cospetto delia
legge di Dio e delia interpretazione che di essa fa la Chiesa» (4).

C1) Cf. J. D A N I é L O U — H . MARROU, Nouvelle Histoire de l'Eglise. I, pp. 112


sqq. e 265-266.
(2) Cf. B. BIONDI, // Diritto Romano, p. 53. Sobre a decadência e o vazio
do Império no início do séc. IV, onde actuou o Cristianismo, cf. F . LOT, La Fin du
Monde Antique et le Début du Moyen Age, Paris, 1968: c. VIII: «Décadence et trans-
formation de l'art antique»; c. IX: «Décadence de la littérature, disparition de la
philosophie et de la science antique»; c. X: «Corruption de l'esprit public». Cf. tam-
bém S. GALLI, «Cristianismo, Razões do seu Triunfo», Anais da História, Assis 6
(1974), pp. 221-227.
(3) Cf. H. I. MARROU, Histoire de VÉducation dans VAnaiquité, Paris 6 1965,
p. 462-463.
(4) B. BIONDI, II Diritto Romano, p. 54.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 189

A teologia cristã penetrava assim na corte imperial. Segundo um cro-


nista da época, Graciano estava absorvido noite e dia em questões
teológicas e pediu a Santo Ambrósio que fosse o seu mestre em matéria
religiosa. A este pedido respondeu o bispo milanês com cinco livros
dedicados «ad Gratianum Augustum» em que exorta o príncipe a «pro-
gredi plane scuto fidei, septus et gladium Spiritus habens» de modo
a poder proceder sempre com «sapientiam non temporalem (...) sed
sempiternam». Falando depois de Santo Ambrósio, o mesmo autor
afirma que ele é «senza esagerazione, il personaggio piit rappresentativo
di tutto 1'impero verso la fine del sec. IV. La sua influenza sulla politica
e la legislazione dei suo tempo si può documentare, ed è cosi larga che
questo período legislativo, che abbraccia un quarto di secolo, si può
ben qualificare come ambrosiano» Q-).
Deste modo o Cristianismo ia operando uma profunda revolução
ético-social, que pacificamente mudava as próprias bases da civilização
pagã. Podemos considerar expressão desta mudança a intensa acti-
vidade legislativa dos imperadores cristãos que alteraram profunda-
mente a fisionomia do direito romano (2). Tratou-se sobretudo de
introduzir no vetusto tronco da tradição romana um espírito novo,
que o alterou profundamente. De facto, o Cristianismo não possuía
um corpo de preceitos precisos e taxativos, já formalmente articulados
de modo a poderem ser transpostos para a legislação dum império.
Mais do que normas concretas, havia nos escritos neotestamentários
uma directiva no sentido da igualdade, do amor e da libertação. Era
preciso traduzir o Evangelho em normas sociais e jurídicas concretas,
adaptadas à realidade da situação histórica. Isto exigiu um processo
necessariamente lento, em que podemos encontrar certas incertezas
e até algumas dissonâncias. O resultado, às vezes, é apenas uma
linha intermédia entre duas forças contrastantes: o peso da antiga
tradição romana e o pulsar do novo espírito cristão (3).
Quanto às vias que o Cristianismo seguiu para penetrar na legis-
lação imperial, os autores notam que elas foram múltiplas, sendo
a influência pessoal dos Padres da Igreja e dos seus escritos a principal.

(x) B. BIONDI, // Diritto Romano, p. 54 e 72, onde se cita sobretudo Santo


Ambrósio.
(2) Cf. J. DANIéLOU — H. MARROU, Nouvelle Histoire de l'Église, I, p. 362.
(3) Cf. B. BIONDI, // Diritto Romano, pp. 66-67; H. WALLON, Histoire de
l'Esclavage, p. 2.
190 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

Já referimos a influência de Santo Ambrósio na vida política e legisla-


tiva de Graciano. Podemos ainda recordar a presença de Ósio de
Córdova, de Eusébio de Cesareia e de Lactâncio na corte de Cons-
tantino. Ainda hoje se pode documentar a influência directa da Patrís-
tica na nova legislação, que não só repete os ensinamentos dos Padres,
mas que chega a reproduzir frases textuais dos seus escritos (l).
Mas houve também recomendações e sugestões do Papa e demais
bispos da Igreja e sobretudo as normas emanadas dos concílios ecumé-
nicos e dos sínodos regionais. Sabemos, por exemplo, que os quatro
primeiros concílios ecuménicos foram reconhecidos pelo Estado e que
todas as suas determinações se tornaram leis do mesmo Estado. Mui-
tas outras leis civis declaram explicitamente terem sido feitas «secundum
cânones». Como faz notar B. Biondi, tratou-se dum. grande esforço
no sentido de se estabelecer uma harmonia entre a ordem divina
e a ordem humana, social e política, da mesma maneira que devia
haver «bona quaedam consonantia» entre o «imperium» e o «sacer-
dotium» (2).
Compreende-se assim como, apesar das dificuldades atrás apon-
tadas, a influência cristã se fez sentir tão rapidamente na legislação
do Império, logo que este se tornou cristão. Conhecemos leis de
Constantino sobre a escravidão, publicadas entre 319 e 326, onde é já
bem visível o selo cristão. Mas toda a obra legislativa deste impera-
dor, que Biondi considera «uno dei più grandi legislatori romani»,
é claramente marcada por um novo carácter (3). Alguns autores
falam do «helenismo» e do «orientalismo» próprio de Constantino,
contrapondo-o a Diocleciano e à sua «romanidade». Outros, porém,
julgam que se trata sobretudo duma contraposição entre o paganismo,
já decadente, e o Cristianismo, já triunfante. Segundo Biondi, seria
expressão deste choque provocado pela crescente afirmação do Cris-
tianismo no Império a má vontade de Juliano, o Apóstata, contra o seu
antecessor, acusando-o de ter sido «novator turbatorque priscarum
legum et moris antiquitus recepti» e a sua decisão expressa de anular
a orientação cristã que Constantino havia imprimido à legislação do
Império (4).

(!) Cf. B. BIONDI, II Diritto Romano, p. 72.


(2) Cf. Idem, p. 196, onde se cita Nov. 6, 535.
(3) Idem, p. 54.
(4) Cf. Idem, p. 55.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 191

Igualmente, com uma clara feição cristã aparece toda a obra


legislativa de Teodósio II: em 429 mandou fazer diversas compilações,
para recolher todas as leis já feitas com espírito cristão desde Cons-
tantino e para se tentar adaptar as antigas a esse novo espírito. Ainda
nessa linha se coloca também toda a obra de Justiniano, mostrando
como o novo sistema jurídico do séc. IV e V se separava nitidamente
do precedente e se inspirava numa orientação profundamente cristã (!)•
Concretamente, em. relação à escravatura, encontramos novas
determinações, onde se pode ver já o espírito cristão. A escravatura
continua ainda, mas tende-se a minorar os seus aspectos mais desu-
manos até se reconhecer o escravo como pessoa humana igual a todos
os homens, com a mesma natureza e filho do mesmo Pai, e a favorecer
decididamente a possibilidade de escravos conseguirem a liberdade.

2 — ALGUNS EXEMPLOS CONCRETOS DA NOVA LEGISLAÇÃO

Antes de mais, a escravatura é definida como anti-natural : «ser-


vitus est constitutio iuris gentium qua quis domínio alieno contra
naturam subicitur» (2). A novidade desta citação, que afirma a
igualdade natural de todos os homens como seres livres e que a escra-
vatura é devida a motivos históricos e contingentes que criaram deter-
minadas relações entre os povos («ius gentium»), está no facto de não
ser um simples texto doutrinário (filosófico ou religioso), mas uma
norma jurídica e portanto institucional.
Apesar disso, a nova legislação romano-cristã deixa ainda persis-
tir a distinção social entre livres e escravos, embora favorecendo, dum
modo decidido, o princípio da liberdade.
Por um lado, são abolidas algumas das causas que antes levavam
à escravatura. Por exemplo:
— Acaba-se com a «servitus poenae» : um homem livre nunca
mais podia ser condenado à escravidão (3), contrariamente ao
que acontecia na legislação anterior, a partir dum dado momento
em que a condenação judicial se tornou uma das fontes da escra-
vatura.

(i) Cf. Idem, pp. 55-58.


(2) Inst. I, 3, 2.
(3) Nov., 22,8.
192 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

— As crianças abandonadas pelos pais — os «expositi» —


passaram a ser consideradas como pessoas livres (i). Como
tais deviam ser recolhidas: «cum voluntate misericordiae arnica»,
para que «nee videantur quasi mercimonio contracto ita pietatis
officium gerere» (2).

Por outro lado, são muito alargados os casos de manumissão


legal, sobretudo a partir de Constantino até Justiniano (3). Eis
alguns exemplos:

— São abolidas antigas formalidades que dificultavam as


libertações. Doravante ficam reduzidas a uma simples declaração
da vontade do senhor «coram testibus». O escravo não precisa
sequer dum «adsertor» (4).
— Os escravos doentes ou já idosos que sejam abandonados
pelos seus senhores ficam automaticamente livres e não «servus
nullius», como antes (5).
— Admite-se a «manumissio coram ecclesia». Concedida
por Constantino em 316, esta faculdade aparece depois em todos
os códigos posteriores : «iamdudum placuit ut in ecclesia libertatem
domini suis famulis praestare possint» (6). Estas libertações
perante a Igreja eram geralmente feitas aos domingos ou nos dias
de festa, sobretudo na Páscoa, coincidindo muitas vezes com
o baptismo desses mesmos escravos (7).

(i) Cl, 1,4,24.


(2) Cl, VIII, 52,2-3.
(3) Cf. J. GUIRAUD, Histoire Partiale, p. 161; F. LOT, La fin du Monde
Antique, p. 112, onde se citam algumas das inovações legislativas de Constantino,
tais como a abolição do suplício da cruz, substituído pela forca, e da marca na fronte
dos escravos e ainda a assimilação do crime de assassínio dum escravo ao assassínio
dum homem livre.
(4) Cl, VII, 17, 1.
(5) Cl, VII, 6, 3.
(6) Cl, IV, 7,1 : «qui religiosa mente in ecclesiae grémio servulis suis meritam
cocesserint libertatem...»
(7) Cf. J. GUILLEN, «La Esclavitud», p. 81, onde se refere um sermão de
Santo Agostinho que descreve a «manumissio in ecclesia» : «tu levas pela mão perante
a assembleia cristã o escravo que queres libertar. Todos aguardam em silêncio
e então faz-se a leitura da acta redigida por ti ou manifestas tu próprio a tua intenção
de viva voz. Declaras que libertas o teu escravo porque te foi sempre fiel em tudo,
que agradeces essa fidelidade e a honras, recompensando-a com o dom da liberdade».
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 193

— As actrizes que se convertiam ao Cristianismo obtinham


a liberdade, pois «melior vivendi usus vinculo naturalis conditionis
evolvit» (!).
— São ainda derrogadas todas as antigas restrições à manu-
missão ( 2 ): revoga-se a antiga lei «Fusia Canisia» que punha
várias limitações à manumissão por testamento (3) ... «nec
impediente testantiúm pro suis servis clementes dispositiones
effectui mancipari» (4). Permite-se até aos menores poderem,
legalmente, emancipar os seus escravos «vacante lege quae hoc
primitus prohibebat» (5).
— Os herdeiros não podem retardar a libertação que, por
testamento, tenha sido concedida a qualquer dos escravos herda-
dos: «cum satis impium atque absurdum sit ut heredes testatoris
diferre voluntatem, maxime cum ad libertatem respiciat» (6).
Se acontecer que um herdeiro venha a morrer antes de cumprir
o testamento que lhe mandava libertar um dos escravos à sua
escolha, todos ficarão livres (7).
— Justiniano considera a libertação dos escravos como um
mandamento divino e adverte os funcionários imperiais que, nas
causas relativas à manumissão dos escravos, devem seguir o prin-
cípio de que «libertas salva est» (8), de modo a favorecer «ipsas
servorum libertates» para que «eis omnino puras et infucatas
et perfectas efficere» (9). De facto, esta intenção de, por prin-
cípio, defender sempre a liberdade parece ser um pressuposto
de toda a legislação. Justiniano, por exemplo, confessa expres-
samente: «muitos labores pro libertate subiectorum sustinuimus»
e acrescenta: «semel etenim libertate potitam per tale dedecus in
servitutem reduci religio temporum meorum nullo patimur

(i) CT, XV, 7,4.


(2) Inst., I, 7; Cl, VII, 3, 1.
(3) Cf. J. GUILLEN, «La Esclavitud», p. 79.
(<*) Cl, VII, 3.
(5) Nov., CXIX, 2.
(S) Cl, VII, 22, 3.
(7) Cl, VII, 4, 16. Temos aqui um caso típico em que, numa situação de
dúvida, se manifesta claramente a vontade de abolir a escravatura e favorecer a liber-
dade. Manifesta-se assim o espírito da nova legislação.
(8) Inst., I I I , 11, 1.
(9) Nov., LXXVIII.
13
194 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

modo» (!) e, noutro texto : «maxime pro libertate quam fovere


et tueri romanibus legibus praecipue nostro nomini peculiare
est» (2).

Portanto mais do que esta ou aquela lei, há sobretudo uma nova


consciência e um novo princípio de acção, que ia no sentido da liber-
tação.
Ninguém hoje duvida que nessa altura teria sido impossível uma
emancipação geral que abolisse de vez a escravatura. As estruturas
económicas, sociais e políticas não o permitiam. Por isso são ainda
mais de salientar todos esses pequenos passos: redução do número de
escravos, melhoria da condição social e jurídica daqueles que ainda
deviam continuar escravos, apesar de serem já reconhecidos como
pessoas humanas e até como irmãos.
Sob este aspecto da legislação romano-cristã, podemos recordar,
por exemplo, duas leis de Constantino que moderam o direito de «casti-
gatio» ou «emendatio servorum». Embora este direito mantenha
ainda muita da antiga severidade, só é considerado legítimo quando
se tornar verdadeiramente necessário para corrigir o escravo e deve ser
exercido com moderação (3). A lei garante, desde então, a inte-
gridade física e moral dos escravos. Assim é proibida a tradicional
marca servil no rosto, para que «fácies quae ad similitudinem pulchri-
tudinis coelestis est figurata, minime maculetur» (4). Temos aqui
uma referência explícita à antropologia bíblica, segundo a qual o homem
é feito à imagem e semelhança de Deus. Quanto à integridade moral,
a nova legislação determina, por exemplo, que, se um senhor tentar
prostituir «mancipia tam aliena quam propria», esta fica automatica-
mente livre e o senhor deve ser «gravissime verberatus ...ad exemplum
emendationemque pellatur» (s).
São também proibidos os ergástulos, encarregando-se os bispos de
fazerem evacuar todos os escravos aí retidos: «ipsis qui custodiuntur,
Dei amicissimorum loci episcoporum providentia a detentione remis-
sis» (6).

0) Cl, VII, 24.


(2) Cl, VII, 15,1.
(34) Cl, IX, 14, 1; CT, IX, 12, 1-2.
() Cl, IX, 47; CT, IX, 40, 2.
(5) Cl, XI, 41, 6; CT, XV, 8, 2.
(6) Cl, I, 4, 23.
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 195

Muito significativa é ainda a nova legislação sobre o matrimónio


de escravos. Como observa B. Biondi, «oramai nel diritto giusti-
niano ogni diversité di condizione sociale ai fini delia capacita di con-
trarre matrimonio, è scomparsa dei tutto» (*). Se um senhor se
unia com a sua escrava e depois lhe concedia a liberdade, esse matri-
mónio era considerado válido perante as leis do Estado (2). Temos,
pois, um reconhecimento quase completo do casamento dos escravos.
A união de dois escravos continua ainda a ser qualificada de «contu-
bernium», mas reconhece-se que essa união é quase conjugal, já que
o senhor desses escravos não tem a faculdade de a dissolver, como
acontecia antes (3). Constantino prescreve que, quando se tiverem
de dividir os escravos dum senhor, se evite desmembrar as famílias
dos escravos e acrescenta: «quis enim ferat liberos a parentibus, a fra-
tribus sorores, a viris coniuges segregari?» (4). Pelo menos impli-
citamente, está aqui reconhecida a família dos escravos como um
verdadeiro matrimónio e com todos os apelativos próprios do paren-
tesco legal : esposos, pais, filhos, irmãos, etc. O senhor deve reconhecer
e respeitar esses laços familiares. Justiniano considera que o desmem-
bramento das famílias servis é «nostris plane temporibus indi-
gnum» (5).
Com isto não queremos dizer que o direito romano cristão tenha
atingido a sua meta; mas julgamos indiscutível que se deu um passo
decisivo no sentido do reconhecimento da igualdade entre todos os
homens e da abolição da escravatura antiga. A garantia da integridade
física e moral dos escravos e o reconhecimento da sua dignidade humana
com alguns direitos legais e da sua família representava já um grande
avanço. Os senhores deixam de ser considerados proprietários de
escravos-objectos («res») e passam a ser patrões de servos-súbditos
(«subiecti» ou pessoas). A antiga concepção e até a antiga instituição
esclavagista estava ultrapassada, nas suas próprias bases, pela nova
legislação.
De facto, este reconhecimento do escravo como sujeito de direitos,
embora socialmente dependente, representa um salto qualitativo, tanto

02 B. BIONDI, // Diritto Romano, p. 328.


() Cl, V, 4, 26.
(3) Cf. B. BIONDI, 11 Diritto Romano, pp. 328-329.
(4) CI, III, 38, 11.
(5) Nov., CLVII.
196 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

mais de salientar quanto tivermos presente que o que caracterizava


a escravatura antiga não era a «apropriação» mas a ausência total de
reconhecimento legal e de qualquer direito. Porque o escravo não
tinha direitos — era um «out-law» — é que qualquer um podia apro-
priar-se dele e fazer dele o que quisesse, inclusive matá-lo impune-
mente C1)..
Ora com o Cristianismo começou a surgir uma das caracterís-
cas principais da nossa civilização moderna: todos os homens são
amados de Deus, irmãos dos outros homens e concidadãos duma
única comunidade humana, na qual todos possuem os mesmos direitos
e deveres mútuos. Portanto, reconhecer que um escravo é membro
duma comunidade humana e não um «estrangeiro» é reconhecê-lo
como sujeito de direitos, isto é, como pessoa e como irmão. Ficava
assim para atrás o princípio básico da escravatura antiga.

CONCLUSÃO

Tendo em conta as concepções do Cristianismo e a sua influência


sobre as instituições do Império, teria sido fácil prever para breve o fim
da escravatura. Seria o resultado mais lógico, não só do princípio
cristão da igualdade fundamental entre todos os homens, como do
domínio cada vez maior da igreja sobre as realidades temporais. Assim
seria teoricamente, mas a prática foi muito mais complexa.
A verdade é que os escravos continuaram a existir ainda durante
séculos, mesmo nas regiões onde a Igreja mais fazia sentir a sua pode-
rosa influência. Para isso contribuiu a evolução que se deu dentro
do próprio Cristianismo.
Assim, a partir do séc. IV, o Cristianismo começou a ser marcado
por um espiritualismo que o desmobilizou do seu empenho de trans-
formar a sociedade. Perante a decadência económica, social e política
do mundo romano, os cristãos nem sempre escaparam à tentação de
se refugiarem na perspectiva duma salvação espiritual, transcendente
e eterna, separada da libertação e salvação deste mundo. Esta con-
cepção dualista, que desvalorizava a importância da vida terrena em

C1) Cf. H . LéVY-BRUHL, «Théorie de l'Esclavage», pp. 164-166.


O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 197

favor duma vida ulterior e super-urânica, é de nítida influência plató-


nica. De facto um neo-platonismo dominava então os meios inte-
lectuais cristãos. A sua influência é, por exemplo, palpável em S. Agos-
tinho que, com a doutrina das duas cidades — a cidade do Demónio
neste mundo e a cidade de Deus no além — irá dominar o pensamento
cristão medieval. Com esta cobertura ideológica, também os cristãos,
perante a decadência, tenderam a minimizar a importância dos proble-
mas sociais, a animarem-se com a esperança duma salvação vinda do
céu e, consequentemente, a desmobilizarem-se da tarefa de salvar este
mundo. Como escreve M. Bloch: «Puisque la vie présent n'est qu'un
lieu de passage transitoire, et par définition mauvais, puisque la grande
affaire ici-bas est de se préparer à la Vie Éternelle, entreprendre de
réformer, de fond en comble, l'ordre social établi, dans l'espoir d'amener
le triomphe d'un bonheur en lui-même impossible, ne saurait être
qu'une oeuvre vaine; bien plus, un gaspillage sacrilège de forces qui
devaient être réservées pour une tâche plus urgente et plus haute» (l).
Para além desta evolução do próprio Cristianismo, devemos notar
ainda a política de «consonantia» que se estabeleceu entre o «impe-
rium» e o «sacerdotium». Muito cara a Constantino, tornou-se,
muitas vezes, um compromisso entre os princípios fundamentais do
Cristianismo e os interesses da política imperial. Aqueles acomoda-
ram-se frequentemente a estes, quer no plano doutrinal, quer sobretudo
no campo prático, como reacção natural aos favores e privilégios do
Império. Instalada na nova situação, relativamente confortável,
a Igreja acabou por perder muita da sua capacidade de provocar impacto
e transformar a sociedade de acordo com os ensinamentos recebidos
de Cristo e dos Apóstolos.
Foi o que se verificou concretamente em relação à escravatura.
Quando a própria Igreja se tornou proprietária, possuindo também ela
escravos em grande número, nessa altura a sua capacidade de inter-
venção ficou extremamente reduzida. A propósito, M. Bloch cita
alguns cânones conciliares que proibiam os bispos de libertarem os
escravos das propriedades eclesiásticas e os abades de emanciparem
os escravos dados aos seus mosteiros (2). Os bens da Igreja eram,
em princípio, inalienáveis e os seus administradores não deviam dispor
deles segundo razões pessoais de piedade.

C1) M. BLOCH, Mélanges Historiques, t. I, Paris 1963, p. 270.


P) Cf. M. BLOCH, Mélanges, pp. 272-273.
198 ANACLETO DE OLIVEIRA E ROGÉRIO P. OLIVEIRA

Se é verdade que estes cânones datam duma época posterior àquela


sobre a qual nos debruçamos, eles manifestam o resultado duma trans-
formação da mentalidade da Igreja, que começou a processar-se já
no séc. IV. Assim, em 324 (?), o concílio de Granges proclamava:
«se alguém, sob pretexto de piedade, levar um escravo a desprezar
o seu senhor, a subtrair-se à escravidão ou a não servir com respeito
e boa vontade, seja anátema» (l). Há portanto um compromisso evi-
dente entre a caridade cristã e a ordem estabelecida, a partir da paz
de Constantino e do consequente enquadramento da Igreja nas estru-
turas imperiais.
Entretanto nada disto nos impede de reconhecer o influxo do
Cristianismo na transformação da escravatura antiga. Esta prati-
camente desapareceu. Os escravos tornaram-se servos. Embora
formassem ainda uma classe social inferior, dependente, explorada
e desprezada, eram considerados como pessoas e, como tais, perten-
centes à sociedade que serviam.
Para isso, fora decisivo o facto de o Cristianismo ter alguma vez
dito a esse «instrumentam vocalis»: «tu és um homem»; para Cristo
não há distinção entre escravos e livres e «tu és um cristão» (2).

ANACLETO C. GONçALVES DE OLIVEIRA

ROGéRIO PEDRO DE OLIVEIRA

í1) Citado por BLOCH, Mélanges, p. 271.


(2) Cf. M. BLOCH, Mélanges, p. 272.
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AT —Antigo Testamento
ATD — D a s Alte Testament Deutsch
Cl — Codex Iustinianus
Col — Carta de S. Paulo aos Colossenses
ICor — Primeira Carta de S. Paulo aos Coríntios
CT — Codex Theodosianus
D — Digesta
Dt — Deuteronómio
D.Th.C. — Dictionaire de Théologie Biblique
Ef — Carta de S. Paulo aos Efésios
Ex —Livro do Êxodo
Fil — Carta de S. Paulo aos Filipenses
Film — Carta de S. Paulo a Filémon
Gal — Carta de S. Paulo aos Gálatas
Gn —Livro do Géneses
Inst —Institutiones lustiniani
Is — Livro do Profeta Isaías
Jo — Evangelho segundo S. João
Job —Livro de Job
Lc — Evangelho segundo S. Lucas
Lv —Livro do Levitico
Mc — Evangelho segundo S. Marcos
Mt —Evangelho segundo S. Mateus
Ne —Livro de Nehemias
Nov —Novellae lustiniani
NT —Novo Testamento
NTD — Das Neue Testament Deutsch
Par. — Lugares paralelos
PG — «Patrologia Graeca» (J. P. MIGNE, Patrologiae Cursus Completus, series
graeca, Paris 1857-1866)
O CRISTIANISMO E A ESCRAVATURA 203

PL — «Patrologia Latina» (J. P. MIGNE, Patrologiae Cursus Completus, series


latina, Paris 1844-1855)
IPed — Primeira Carta de S. Pedro
2Ped — Segunda Carta de S. Pedro
Rom — Carta de S. Paulo aos Romanos
Rom — Carta de S. Paulo aos Romanos
2Rs — Segundo Livro dos Reis
Sir —Livro de Ben-Sirac ou do Eclesiástico
ISam —Primeiro Livro de Samuel
1 Tim — Primeira Carta a Timóteo
Tit — Carta a Tito

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