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Vinhos de talha, um regresso às raízes

publico.pt/2019/05/25/fugas/noticia/vinhos-talha-regresso-raizes-1873359

Rui Falcão

Fugas

Exclusivo
Especial Vinhos
Estes vinhos começam a estar na moda, dentro, mas sobretudo fora, de Portugal. O
que é bom, mas é ao mesmo tempo um dos dramas do Alentejo, a região que
historicamente mais os produz. E o Alentejo precisa de impor o nome “vinho de
talha”: é fundamental ter um nome forte para conseguir impor o reconhecimento de
um estilo.

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Foto
Ricardo Lopes

Os vinhos de ânfora, vinhos fermentados e/ou estagiados em potes de barro, voltaram a estar na moda.
Quando pouco o fazia prever, estes vinhos de registo tão clássico, elaborados com o recurso a técnicas
ancestrais, voltaram a marcar a actualidade, resgatando práticas antigas que só um punhado de países
e regiões teimavam em manter presentes. Em Portugal, a região do Alentejo foi durante muitos séculos a
guardiã inequívoca dos vinhos de ânfora que no Sul de Portugal sempre foram conhecidos como vinhos
de talha.

E de repente, muito graças ao ímpeto de um punhado de produtores italianos, sobretudo do extremo-


norte, na fronteira entre a Itália e a Eslovénia, e do extremo-sul, nas profundezas da Sicília, os vinhos de
ânfora voltaram a ganhar um insuspeito protagonismo. O que tinha começado como um regresso às
raízes de um grupo de produtores das franjas, muitos deles ligados ao movimento dos vinhos naturais,
acabou por, em pouco mais de duas décadas, conquistar o coração de muitos.

Um movimento que acabou por criar raízes em paragens inesperadas, seguindo o percurso habitual de
todas as revoluções silenciosas: começar na obscuridade para atingir o mainstream em que se encontra
na actualidade. Presentemente, fazem-se vinhos em ânfora um pouco por todo o planeta, do Chile
à Áustria, dos Estados Unidos à China, do Canadá à Alemanha. Mesmo em Portugal, onde a tradição se
resumia ao Alentejo, fazem-se hoje vinhos em ânfora por todo o país, do Alentejo ao Douro, do Vinho
Verde à Bairrada.

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Foto
Adega José de Sousa da José Maria da Fonseca,
em Reguengos de Monsaraz MARGARIDA BASTO

Porém, com a devida e notável excepção da Geórgia e Arménia, países onde a tradição de usar grandes
ânfora de barro se terá iniciado, o Alentejo é a única região vinícola internacional que se pode gabar de
um longo historial de produção ininterrupta de vinhos vinificados em potes de barro. Uma tradição que
terá começado há pouco mais de 2300 anos, com a colonização romana, e que continuou a ser
teimosamente preservada, passada de geração em geração.

Uma transmissão de sabedoria muito particular porque ao longo de séculos os alentejanos jamais
sentiram necessidade de proceder a grandes inovações ou alterações às práticas de vinificação que
chegaram a ser consideradas risíveis pelos seus pares de outras regiões. Durante mais de dois mil anos
continuaram a fazer-se vinhos simples e despretensiosos destinados a um consumo caseiro, à
celebração da vida, vinhos de convívio nos finais de dia de trabalho passados na tasca, vinhos tintos e
brancos para matar a sede, para acompanhar petiscos e celebrar as festividades locais.

Vinhos que se erguem como símbolo da autenticidade da cultura popular alentejana, brancos e
tintos que o povo foi tranquilamente fermentando em casa, em velhas ânforas, e que as tascas do
Alentejo profundo continuaram a produzir e a comprar para assegurar o vinho da casa. Fermentados em
talhas de diferentes tamanhos e formatos, de muitos e poucos almudes, desde as mais pequenas, com
cerca de 100 litros, até às maiores, que chegam a acomodar mais de 1000 litros de capacidade, os
vinhos de talha foram mantendo a pureza e ingenuidade que os caracterizavam, dando seguimento
àquilo a que hoje se convencionou chamar vinhos naturais.

A sustentabilidade, palavra que começa finalmente a fazer parte do nosso léxico, está intimamente
associada às talhas. Não foi por acaso que o Alentejo preservou os potes de barro para fazer vinho.
Enquanto no Norte do país as florestas abundavam, no Sul a floresta era, e é, constituída sobretudo por
montado e olival, árvores sagradas e centenárias, úteis na sua função agrícola e impróprias para a
construção de barricas.

Em compensação, o barro foi sempre matéria-prima abundante, como o atestam as muitas olarias
alentejanas e a faiança de cariz popular de muitas regiões da grande planície. O barro, graças às suas
propriedades térmicas intrínsecas, permitia ainda emular as condições de frescura e controle de
temperatura das adegas mais a norte, mesmo que de forma rudimentar, evitando assim os perigos da
torreira do Sul do Alentejo.

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A sua longevidade, a capacidade de se poder usar as mesmas talhas durante séculos, permitia ainda
não só diminuir os custos de produção, mas também contribuir para a tal sustentabilidade que hoje
defendemos com tanto afinco. Ainda hoje se mantêm a uso, em casas particulares e em produtores
tradicionais, talhas com mais de dois séculos de exploração contínua, subsistindo mesmo alguns potes
com mais de 500 anos de utilização.

A dificuldade de fabricar as talhas


Ao contrário das práticas tradicionais da Geórgia e Arménia, que sempre enterraram as suas talhas no
solo da adega, a tradição alentejana manteve as talhas assentes no chão, característica que é hoje
prática corrente nos novos produtores internacionais de vinhos de ânfora. Se os dois países do Cáucaso
enterravam as suas ânforas para conseguirem regular a temperatura de fermentação, o Alentejo, ao
colocar as suas talhas sobre o solo, não dispunha de tal benesse.

Foto
Herdade do Rocim RICARDO SILVA

Teve, por isso, de recorrer a uma alternativa ingénua mas engenhosa para controlar a temperatura de
fermentação sob a inclemência dos calores de Verão. Bastava regar e molhar as talhas. Por isso todas
as talhas são ornamentadas com um anel decorativo junto da boca do pote, para que a água seja
dispersa de forma uniforme pelas paredes exteriores da talha, permitindo descer a temperatura para
garantir uma fermentação homogénea. Por vezes as talhas são cobertas com trapos de serapilheira
molhada para maximizar o arrefecimento. Uma técnica simples e intuitiva que permite baixar a
temperatura de fermentação até aos 17-18ºC, de forma natural e sem custos energéticos.

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As talhas são, porém, uma das maiores dificuldades do Alentejo moderno, por já não haver quem as
faça de forma regular e por quase se ter perdido a arte de as fabricar. O último produtor de talhas morreu
faz quase meio século, apesar de nos últimos anos se ter começado a tentar recuperar a ciência de
forma mais ou menos empírica. Não é fácil construir talhas, como o atestam os poucos que se arriscam
a tentar recuperar a arte. O processo é moroso e penoso, exige paciência e muito esforço, carece de
conhecimento e dedicação. Não existem duas talhas iguais e cada talha demora mais de quatro meses a
ser construída, camada a camada, com paciência, obrigando a que cada camada seque antes de se
poder acrescentar mais uns centímetros de barro fresco.

Não espanta, por isso, que a maioria dos produtores que se sente tentado pela elaboração de vinhos de
talha de forma clássica pene por encontrar talhas para os seus vinhos. Uns procuram talhas antigas
junto de particulares, outros esperam meses por uma das novas talhas que o senhor António vai
produzindo, outros desesperam. Mas a maioria acaba por comprar talhas feitas em Itália, transformado
em principal país produtor das novas talhas que povoam Portugal e o mundo.

Com muita frequência talhas com tampos modernos, por vezes com tampos em inox e, outras vezes,
revestidas com espuma epoxi ou outro material inerte. Será fácil compreender que ânforas revestidas
com espuma epoxi ou materiais semelhantes não passam de simples intenções de aparência, ingénuas
ou espertas, formas descaradas de fingir que se fazem vinhos de talha para apanhar o comboio da
exposição mediática sem querer aceitar as suas condicionantes.

As verdadeiras talhas, produzidas inteiramente com barro cru, têm de ser revestidas com pez a cada 12
a 15 anos, por o barro ser um material naturalmente poroso. Uma operação difícil, demorada e temerária
que acarreta um risco considerável de rachar os potes. Cada família e região alentejana tem as suas
receitas tradicionais de pez, embora a maioria consista numa combinação de ingredientes que incluem
resina, azeite, cera de abelha ou mel. Tal como hoje os produtores compram barricas de tanoarias
diferentes, que atribuem características diferentes a cada vinho, os produtores de vinhos de talha
procuram ter potes impermeabilizados por fórmulas de pez distintas para influir propriedades diferentes a
cada vinho.

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Foto
Sandra Alves, enóloga do Esporão Rui Gaudêncio

O pez aquecido, em ponto de ebulição, é derramado no interior de cada talha, que em seguida é deitada
e rolada pelo chão de maneira a espalhar uniformemente o pez pelas paredes interiores da talha. Pez
esse que é distribuído através de uma boneca de cortiça e pano, tal como se fazia no passado. O
primeiro ano de pesga acrescenta um sabor forte a resina, que terá de ser domado através da arte do
lote com talhas mais antigas.

Hoje, tal como no passado, continuam a fazer-se vinhos brancos e tintos. No passado, e no presente
para um pequeno número de produtores, os cachos eram desengaçados à mão numa mesa de
“ripanço”, método ancestral de separar as uvas dos cachos que obriga a mão-de-obra intensiva num
esforço que é cada vez mais inglório.

O que não é nada inglório é a escolha de uvas para os vinhos de talha. Por uma felicidade do destino,
as castas que mostram maior afinidade natural com o estilo são as clássicas do Alentejo, castas
quase perdidas que durante as últimas décadas começavam a abeirar-se da extinção. Castas brancas
como a Perrum, Diagalves e Manteúdo, ou castas tintas como o Moreto e o Castelão, que continuavam
a ser arrancadas de forma sistemática, demonstram ser as mais apropriadas para este estilo de
vinificação tão particular que foge por completo às normas contemporâneas. Por vezes, parte das uvas
são parcialmente pisadas, para de seguida serem colocadas nos potes com o engaço, num estilo de
vinificação que pode ser considerada verdadeiramente minimalista.

Os vinhos de talha começam a estar na moda, dentro, mas sobretudo fora de Portugal. O que é bom,
mas é ao mesmo tempo um dos dramas do Alentejo. Porque usando o nome vinho de talha começam-se
a perceber verdadeiros atentados ao estilo. Antes de chegar a alguns esses atentados, convém, porém,

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olhar para a Geórgia, antiga república socialista soviética que há pouco mais de década e meia se
limitava a tentar vender vinho para a Rússia. Hoje a Geórgia está no centro das atenções mundiais de
jornalistas, sommeliers e compradores internacionais, graças ao sucesso dos seus vinhos de ânfora.
Vindos do nada, conseguiram afirmar-se no mundo graças a este estilo de vinho. E , talvez mais
importante, conseguiram impor um nome ao léxico internacional do vinho, Qvevri, o nome local dado às
ânforas.

O Alentejo precisa de fazer o mesmo, precisa de internacionalizar, de impor o nome “vinho de


talha”, porque é fundamental ter um nome forte para conseguir impor o reconhecimento de um estilo.
Atente-se aos nomes Cava ou Prosecco para perceber o impacto de ter um nome sonante. Se
continuarmos a vender os vinhos de talha como vinhos de ânfora, sem designação original, sem os
tornar únicos, será muito difícil ao Alentejo ganhar o reconhecimento como um dos berços deste estilo
de vinificação.

Mas talvez seja importante começar pelo trabalho de casa, pela necessidade de a região ter de ser
rigorosa na certificação, intransigente na utilização do nome “vinho de talha”. Porque hoje existem vinhos
com o nome “talha” que nem sequer passaram por ânforas de barro, vinhos que estagiam mas não
fermentam em barro, vinhos que passam por ânforas revestidas com materiais inertes e isolantes, vinhos
que de talha só usam o nome. Sem essa rigidez na certificação, estaremos mais uma vez a matar a
galinha dos ovos de ouro e a comprometer um estilo que é único no mundo. Seria um absurdo que
países como a Itália, Espanha, Alemanha, Austrália ou Argentina se transformassem no padrão dos
vinhos de ânfora.

Esporão Vinho de Talha Vinhas Velhas Tinto 2016

Fresco, concentrado, embora etéreo, frutado, embora contido na entrega da fruta, efusivo no nariz, mas
mais austero na boca, este lote de vinhas velhas com mais de 60 anos reúne muitas das castas típicas
do Alentejo, destacando-se, entre outras, o Castelão e o Moreto.

Taninos macios temperados por uma acidez vibrante, equilíbrio perfeito, preciso e carregado de
personalidade.

Uma fusão quase perfeita entre um lado mais clássico e uma visão mais moderna dos vinhos de talha.

7/9
JMF Puro Talha Branco 2016

Tremendamente elegante, cheio de carácter, intenso e sedutor, carregado de notas de feno, este lote
das vinhas velhas de Antão Vaz, Manteúdo e Diagalves impressiona desde a primeira abordagem.

Veemente, fresco, tenso, vibrante na acidez e mineralidade, consegue ser denso e complexo sem perder
a elegância que o marca de forma indelével.

O tempo em copo faz-lhe bem e por isso ganha em ser decantado e servido a temperaturas não
demasiado frias, perto do 11/12ºC.

Herdade do Rocim Amphora Branco 2017

Austero mas elegante, especiado e delicado, este lote de Antão Vaz, Perrum, Rabo-de-
Ovelha e Manteúdo é inequivocamente um vinho de talha clássico mas com traços distintos de
elegância.

Fresco, salino, mineral, firme e com um travo a terra húmida, termina longo, sereno, elegante e
incrivelmente tenso.

Um belíssimo vinho branco.

8/9
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