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Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias do

Hospital Universitário Clementino Fraga Filho

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Diretrizes para Diagnóstico e


Tratamento de Leptospirose

Tiago Ferreira
Valéria Carvalho Costa
Nelson Gonçalves Pereira
Introdução

A leptospirose é uma zoonose causada por bactérias do gênero


leptospira que compreende duas espécies: L. biflexa, de vida livre e L.
interrogans, patogênica. Esta última é subdividida em sorovares, de acordo
com diferenças antigênicas.

O ciclo de transmissão é iniciado e mantido através da eliminação


prolongada de leptospiras na urina de reservatórios animais, sendo o rato o
principal, além de outros animais como cães, bovinos e suínos. Em ambiente
com condições adequadas, a leptospira pode permanecer infectante durante
semanas.

A infecção ocorre, na maioria das vezes, de maneira indireta, através do


contato com água ou solo úmido contaminado e subseqüente penetração da
leptospira em abrasões na pele e mucosas, intactas ou não. O contato direto
com urina e tecidos de animais é responsável por uma proporção menor das
infecções, sendo mais comum em algumas profissões como veterinários e
açougueiros.

Em nosso meio, o paciente típico da forma ictérica é um indivíduo adulto


(20-45anos) do sexo masculino (6-10 homens:1 mulher) com história de
exposição à água de enchente ou esgoto. A incidência aumenta na época das
grandes chuvas de verão, acometendo, principalmente, indivíduos com
condições precárias de moradia e trabalho.

Quadro Clínico

A apresentação clínica pode variar desde os casos assintomáticos e


oligossintomáticos até formas graves e fatais. Dentre os sintomáticos, cerca de
90-95% apresentarão a forma anictérica da doença e 5-10% a forma ictérica,
considerada mais grave.

A doença é classicamente descrita como bifásica, sendo a primeira fase


caracterizada pela disseminação da leptospira pelo organismo, com duração de

4 a 7 dias, conhecida como fase septicêmica. A segunda inicia-se com o

aparecimento de anticorpos e tem duração de 10 a 30 dias. É a fase imune.


Embora possa haver um período de remissão dos sintomas entre as
duas fases (de 1 a 3 dias de intervalo), esta distinção nem sempre é clara,
ocorrendo em menos de 50% dos casos.

Forma anictérica:

O início do quadro é súbito com febre alta, calafrios, mialgia e cefaléia. A


dor muscular é mais acentuada nas panturrilhas e a cefaléia, frontal ou retro-
orbitária, algumas vezes com fotofobia associada. São freqüentes também:
hiperemia conjuntival, dor abdominal, náuseas, vômitos e diarréia. Pode haver
acometimento pulmonar, manifestado por tosse e dor torácica.

Após cerca de sete dias há resolução dos sintomas, que coincide com a
fase imune, quando os anticorpos são produzidos. Posteriormente, os sintomas
recorrem, podendo somar-se ao quadro rigidez de nuca e sinais de irritação
meníngea, caracterizando meningite asséptica. Ocasionalmente podem surgir
artralgias e exantema.

Desse modo, na avaliação de paciente com febre, sintomas gripais,


mialgias importantes ou meningite asséptica, deve-se considerar o diagnóstico
de leptospirose, principalmente se há dados epidemiológicos sugestivos. Nesta
forma clínica não há faixa etária predominante e ocorre igualmente em ambos
os sexos.

Forma ictérica:

O início do quadro é semelhante à forma anictérica, podendo


desenvolver-se após a fase aguda, representando a segunda fase de uma
doença bifásica ou simplesmente como doença progressiva única. Assim, três
a sete dias após o início dos sintomas sobrevém icterícia, insuficiência renal e
hemorragias, caracterizando a síndrome de Weil. Devido à hiperemia
conjuntival e cutânea como pano de fundo, a icterícia possui tom amarelo-
avermelhado (icterícia rubínica), sendo característica marcante da leptospirose.
A insuficiência renal geralmente manifesta-se como oligúria, mas comumente
pode existir com volume urinário normal e até aumentado. Dentre as
manifestações hemorrágicas destacam-se: petéquias, púrpura, hematomas,
epistaxe e hemorragia conjuntival. Hemorragia digestiva e em sistema nervoso
central são mais raras. Além disso, discreta hepatomegalia dolorosa pode estar
presente, enquanto o baço, em geral, é impalpável. Queixas respiratórias são
comuns e cerca de ¼ dos pacientes apresenta infiltrados pulmonares sem
gravidade importante.

Forma Pulmonar Grave da Leptospirose:

Caracteriza-se por hemorragia pulmonar maciça. Costuma ser precedida


pelo quadro clínico habitual da doença seguido por sintomas respiratórios
(taquidispnéia, tosse, hemoptóicos, hemoptise) que rapidamente evoluem para
insuficiência respiratória aguda. Esta forma é extremamente grave e
comumente fatal, ocorrendo eventualmente.

Complicações:

Dentre as complicações destacam-se: hemorragias graves, insuficiência


renal aguda, insuficiência respiratória, arritmias cardíacas (Fibrilação atrial,
Flutter atrial, BAV 1º grau), miocardite, rabdomiólise, insuficiência cardíaca
congestiva, uveíte e pancreatite aguda. Além disso, infecções bacterianas
hospitalares como pneumonia e infecção de cateter (periférico, profundo,
diálise e urinário) configuram importante fator de morbi-mortalidade.

Diagnóstico:

O diagnóstico da leptospirose pode ser dividido em duas etapas. A


primeira sendo composta por exames inespecíficos, que somados com a
apresentação clínica do paciente sugerem o diagnóstico. A segunda,
compreendendo os exames específicos que buscam encontrar a leptospira de
forma direta ou indireta, confirmando o diagnóstico.

Exames inespecíficos:

O hemograma, em geral, apresenta leucocitose com neutrofilia e desvio


à esquerda, além de plaquetopenia e anemia. A velocidade de
hemossedimentação é elevada, contrastando com a febre amarela que cursa
com valores baixos.
Há aumento de escórias nitrogenadas (U, Cr) nas formas ictéricas de
acordo com o grau de insuficiência renal. Apesar disso, o potássio costuma ser
normal ou baixo, sendo característica singular (mas não exclusiva) da
leptospirose. A sedimentoscopia urinária, embora inespecífica, evidencia piúria,
hematúria microscópica e proteinúria leve, além de cilindros granulosos e
hialinos. A amilase eleva-se geralmente pela redução de sua depuração renal,
mas pode indicar comprometimento pancreático.

Nas formas ictéricas há aumento de bilirrubinas desproporcional às


demais provas de função hepática. Isso ocorre devido ao prejuízo de excreção
de bilirrubina pelos hepatócitos com conseqüente colestase intra-hepática.
Assim, o predomínio é de bilirrubina direta com aumento de fosfatase alcalina e
gama-gt. As transaminases elevam-se 3-5x os valores de referência, atingindo
valores próximos de 200, contrastando com os padrões apresentados nas
hepatites virais e febre amarela (>1000).

O TAP e PTT geralmente alteram-se pouco. Os sangramentos são


atribuídos à capilarite e à plaquetopenia, raramente podendo ocorrer
coagulação intravascular disseminada (CIVD).

A miosite generalizada pode elevar os níveis de CK, enquanto a CK-MB


estará elevada nos casos de miocardite. O ECG pode mostrar taquicardia
sinusal, fibrilação atrial e BAV de 1º grau, além de evidências de miocardite ou
alterações metabólicas (hipocalemia).

Quando há acometimento pulmonar, o achado radiológico mais


freqüente é infiltrado micronodular difuso, que pode evoluir para áreas de
infiltrado alveolar confluente, indicando hemorragia intersticial e intra-alveolar.
A gasometria arterial na forma pulmonar grave quase sempre revela hipoxemia,
além de acidose metabólica.

O líquor pode estar alterado mesmo na ausência de sinais de irritação


meníngea. Geralmente ocorre pleocitose moderada (<500) com predomínio
inicial de polimorfonucleares com posterior predomínio linfo-mononuclear. A
proteína liquórica é moderadamente aumentada (50-100) e a glicose é normal.
Pode ser útil na diferenciação com encefalopatia hepática onde o líquor é
normal (ictérico)
.

Exames específicos:

Como esses exames baseiam-se na recuperação do agente e na


detecção de antígenos ou anticorpos, é fundamental correlacionar a fase da
doença com o exame a ser solicitado.

Assim, na primeira semana de doença (fase septicêmica) a cultura do


sangue, líquor e o PCR serão positivos. Nesta fase, as sorologias podem ser
negativas ou apresentarem títulos baixos, sendo usadas como parâmetro para
pareamento posterior. Na segunda semana (fase imune), as leptospiras são
encontradas na urina, positivando a urinocultura ou são evidenciadas na
pesquisa por PCR. Nesta fase os testes sorológicos tornam-se positivos.

Exame direto: Baseia-se na visualização das leptospiras através de


microscopia em campo escuro. Deve, portanto, ser realizada no sangue e no
líquor na primeira semana de doença ou na urina a partir da segunda semana
de doença. Possui baixa sensibilidade e especificidade, além de ser pouco
disponível.

Cultura: A cultura do sangue, líquor ou urina é realizada em meio de Fletcher


ou Stuart. Além de possuir baixa sensibilidade, é lenta, levando até 1 mês para
o resultado, estando disponível apenas em laboratórios de referência.

PCR: Consiste na amplificação e identificação do DNA da leptospira.


Proporciona o diagnóstico precoce, ainda na fase leptospirêmica/ septicêmica,
antes do aparecimento dos anticorpos, com sensibilidade superior à cultura.
Possui, portanto, grande valor nos casos fulminantes quando o óbito ocorre
antes da soroconversão. É um exame caro e pouco disponível, além de não
identificar sorovar, prejudicando estudos epidemiológicos.

Sorologia: A maioria dos casos de leptospirose é diagnosticada por sorologia.


O padrão-ouro é o teste da aglutinação microscópica, onde antígenos de
leptospira são colocados com amostras de soro do paciente e examinados em
microscopia de campo escuro para verificação de aglutinação. Devem ser
colhidas duas amostras seqüenciais com intervalo de 7 a 21 dias . Considera-
se positivo uma diluição maior ou igual 1:800 ou aumento de 4x o valor do título
da 2ª amostra em relação à 1ª. A sorologia negativa na fase inicial não exclui
doença, já que os anticorpos começam a ser produzidos a partir da 2ª semana.
Outros métodos ainda utilizados incluem a macro-aglutinação e ELISA IgG e
IgM.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial deverá ser feito de acordo com a forma clínica


da doença e com a área de origem do paciente.

Forma anictérica: Influenza, dengue, meningoencefalite asséptica, pielonefrite e


síndrome de soroconversão pelo HIV, além de doenças febris agudas em geral.

Forma ictérica: Hepatites virais agudas (principalmente as graves), colecistite


aguda, febre tifóide, malária grave (P. falciparum), febre amarela e ricketsioses.
Sepse é o diagnóstico diferencial mais difícil (40% cursam com icterícia).

Forma pulmonar grave: Pneumonias graves, síndrome respiratória do


hantavírus.

Tratamento

Por tratar-se de uma doença bacteriana, parece lógica a necessidade de


antibioticoterapia. De fato, esta deve ser instituída de maneira precoce, sendo a
penicilina G cristalina a droga de escolha para os casos graves e a doxiciclina
para os de menor gravidade. Porém, a partir do 5º dia de doença, não há
consenso na literatura quanto ao uso de antibióticos, sendo questionado seu
benefício. Ainda assim, a maioria dos autores, inclusive a OMS e o ministério
da saúde preconizam o uso de antibióticos, mesmo após o 5º dia de evolução.
O tempo total de tratamento é de 7 dias.

Ceftriaxona pode ser usado como alternativa com a vantagem de ser


administrado uma vez ao dia, além de ser uma opção nos pacientes alérgicos a
penicilina. É preferido também quando há possibilidade de sepse comunitária.

É importante lembrar que em casos de crianças menores que 8 anos e


grávidas, a doxiciclina é contra-indicada pelo risco de pigmentação dentária
nos primeiros e mal-formações ósseas e dentárias no feto. Desse modo as
alternativas são penicilinas, cefalosporinas ou macrolídeos. (Tabela 1)
Embora rara, a reação de Jarisch-Herxheimer pode ocorrer dentro de
horas após o início da antibioticoterapia, consistindo em reação inflamatória em
resposta à intensa liberação de antígenos provenientes da destruição maciça
de leptospiras. Esta se expressa como exacerbação da febre, calafrios e
cefaléia. O tratamento é apenas sintomático (analgésicos e antitérmicos),
involuindo espontaneamente em 12 a 48h não justificando a interrupção do
antibiótico.

Deverá ser instituída hidratação venosa para reposição volêmica. Caso


não ocorra diurese espontânea, utilizar furosemida. Se não houver resposta,
discutir hemodiálise com nefrologia (ver capítulo de IRA). Vale destacar que a
diálise é de indicação precoce. É fundamental a manutenção do equilíbrio
eletrolítico com atenção especial ao potássio.

Para distúrbios da coagulação, insuficiência respiratória aguda e


arritmias, checar capítulos correspondentes.

Quimioprofilaxia

A quimioprofilaxia está indicada nos casos pós-exposição (enchentes,


limpeza de fossas) e deve ser feita com doxiciclina 100mg VO 12/12h por 5-
7dias.

Nos casos pré-exposição como esportes aquáticos e exercícios militares


deve ser administrada doxiciclina 200mg VO 1x/semana, estando indicada
apenas em casos de curto período de exposição. Lembrando que seu uso é
contra-indicado em crianças menores que 8 anos e grávidas. (Tabela 1)
Tabela 1 – Opções de antibioticoterapia e quimioprofilaxia para leptospirose.

Casos de menor Doxiciclina 100mg VO 12/12h


gravidade
Ampicilina 500-750mg VO 6/6h 7 dias

Amoxicilina 500mg VO 8/8h

Casos graves Penicilina G cristalina 1.5milhões ui IV


6/6h
7 dias
Ceftriaxona 1g IV 1x/dia

Doxiciclina 100mg IV 12/12h

Eritromicina 500mg IV 6/6h

Quimioprofilaxia Doxiciclina 100mg VO 12/12h 5-7 dias

Pós-exposição

Quimioprofilaxia Doxiciclina 200mg VO 1x/semana Curtos


períodos de
Pré-exposição
exposição

Referências:

1- E Dale Everett, et al. Microbiology, epidemiology, clinical manifestations and


diagnosis of leptospirosis. In: <http://www.uptodate.com. Acesso em
20nov.2008

2- E Dale Everett, et al. Treatment and prevention of leptospirosis. In:


<http://www.uptodate.com. Acesso em 20nov.2008

3- Ajay R Bharti, et al. Leptospirosis: a zoonotic disease of global importance.


The Lancet infectious diseases vol 3, december 2005, 757-771

4- Martha Maria Pereira. Leptospirose. In: Dinâmica das doenças infecciosas e


parasitárias. Ed Guanabara Koogan, 2005. Cap 125, p. 1497-1508.

5- João osé Pereira da Silva. Leptospirose. In: Rotinas de diagnóstico e


tratamento das doenças infecciosas e parasitárias. Ed Atheneu, 2007. Cap 106,
p. 674-679.

6- Peter Speelman, Rudy Hartskeerl. Leptospirosis. In: Harrison’s principles and


practice of internal medicine. Ed McGraw-Hill, 2008. Cap 164, P. 1048-1051
7- Paul N. Levett. Leptospirosis. In: Mandell, Douglas and Bennett’s principles
and practice of infectious diseases. Ed Churchill Livingstone, 2005. Cap 237, p.
2789-2795

8- Ahmad SN, Shah S, H Ahmad FM. Laboratory diagnosis of leptospirosis

Postgrad med 2005; 51: 195-200

9- G. Pappas, A. Cascio. Optimal treatment of leptospirosis: queries and


projections. International journal of antimicrobial agents 28 (2006) 491-496

10- P. abgueguen, et al. Clinical aspects and prognostic factors of leptospirosis


in adults. Retrospective study in France. Journal of infection (2008) 57, 171-178

11- Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde.


Guia de vigilância epidemiológica / Ministério da Saúde, Secretaria de
Vigilância em Saúde. – 6. ed. – Brasília: Ministério da Saúde, 2005. P. 502 –
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12- Human leptospirosis: guidance for diagnosis, surveillance and control.
Geneva, World Health Organization/ International Leptospirosis Society, 2003
(ISBN9241545895;http://whqlibdoc.who.int/hq/2003/WHO_CDS_CSR_EPH_20
02.23.pdf).

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