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UNIVERSIDADE DO PORTO

Faculdade de Letras

É suposto entender a arte ou apenas senti-la?

A importância do recetor no objeto artístico


Ana Pérez

Trabalho para a Unidade Curricular de Sociologia da Cultura

orientado pelo Professor João Teixeira Lopes

PORTO

Junho de 2021

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Sumário

Objetivo geral

A democracia cultural, o que é e como influência os públicos

Sobre a globalização e o seu impacto nas características do recetor

O papel do recetor na assimilação e compreensão do objeto artístico

Objeto artístico segundo Bourdieu

Entender ou não entender, o que alguns autores pensam

Nota final

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Objetivo geral
Este ensaio surge como resposta à proposta de ensaio individual na Unidade Curricular
de Sociologia da Cultura, lecionada pelos Professores João Lopes Teixeira e Natália Azevedo.
Este ensaio procura entender o papel do recetor na assimilação e compressão da obra artística,
será que devemos compreender a arte ou apenas senti-la? Para isso foram abordados diferentes
autores com perspetivas opostas sobre o tema, de forma a se entender os dois polos de debate.
Foi escolhido este tema de ensaio devido à minha licenciatura, História da Arte, pelo que se
procurou desenvolver um tema que relacionasse as duas áreas de estudo
Entendendo que se trata de um tema profundo e muito atual, o ensaio organiza-se na
seguinte forma: em primeiro lugar é apresentado o conceito de democratização cultural, uma
vez que aparece frequentemente no estudo da arte contemporânea e na sociologia da arte e como
estas medidas são possível devido às características da sociedade em que vivemos; em segundo
lugar, expõe-se sobre a globalização, o que é, os tipos de globalismos que existem, e como a
natureza da globalização influência o tipo de recetor que existe na sociedade contemporânea;
em terceiro lugar, faz-se uma caracterização do recetor segundo vários autores, os tipo de
recetor, diferentes teorias sobre o mesmo, os diferentes tipos de assimilação e compreensão que
se pode fazer do objeto artístico; em quarto lugar, uma apresentação sobre o objeto artístico
segundo Bourdieu; em quinto lugar, um ponto onde se reflete sobre as diferentes posições sobre
a arte como meio de comunicação e por ultimo, uma breve nota final onde se apresenta um
sumário das aprendizagens realizadas ao longo do estudo, assim como de algumas questões que
foram aparecendo que não se viram respondidas.
Para o desenvolvimento deste ensaio foram consultador diversos autores, onde se
destacam Boaventura Sousa Santos, Pierre Bourdieu, Adorno e Horkheimer, Leo Tolstoy,
Wassily Kandinsky, João Lopes Teixeira, Victoria D. Alexander, Alexandre Melo, entre outros.

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A democracia cultural, o que é e como influência os públicos
Para se poder debater sobre o papel do recetor e a sua importância, abordar-se-á em
primeiro lugar o conceito de democracia cultural, que de alguma forma, na contemporaneidade
é mobilizado com frequência quando se fala de arte.
Sobre a democracia cultura, Teixeira Lopes no seu livro Da Democratização à
Democracia Cultural (2000), explica que o conceito de democracia cultural aparece
relacionado às políticas de democratização cultural e que existem duas posturas que delimitam
as práticas deste conceito. A primeira, com tendência para o populismo, ou seja, ativistas,
mediadores ou animadores assumem um papel de porta-vozes do povo, onde criticam a arte
consagrada, por esta ser a única considerada cultura, e defendem que todos os gostos são válidos
e que a cultura não depende dos artistas.; questionam os agentes/sujeitos que determinam o que
é cultura e poem em causa a legitimidade destes agentes/sujeitos. O segundo, o voluntarismo,
associado à arte na rua e ao diálogo entre as comunidades e os artistas; nesta tendência, a arte
depende inteiramente do recetor e como ele se apropria, reage e interage com a arte pública.
Diz ainda que, a democracia cultural é posta em prática através de “manuais comportamentais”,
onde se ensinam os códigos de “boas maneiras culturais” de forma a controlar os públicos para
se comportarem de acordo à “civilização” (Lopes, 2000: 84-89; 95-96).
No artigo Democracia cultural, museu e património: relações para a garantia dos
direitos culturais (2018), Sampaio e Mendonça apresentam uma perspetiva semelhante sobre o
assunto. Explicam que o conceito de democracia cultural aparece na década de 60 do século
XX com o governo francês, que procurava criar condições de acesso e multiplicar a distribuição
da cultura ocidental erudita às classes populares com o intuito de levá-las à erudição. Segundo
Botelho (2001), a verdadeira democracia cultural é a possibilidade de escolher entre gostar ou
não gostar, e de viver a sua própria cultura, não impondo a cultura erudita como a única válida,
educando públicos para a entender e aceder.
Entendendo que o conceito de democracia cultural está associado às políticas de
democratização cultural, e que os diferentes grupos podem viver e disfrutar da cultura que
quiserem seja ela popular ou erudita, é um fenómeno recente associado à teoria do modelo dos
vasos comunicantes, apenas vivido na sociedade contemporânea. Esta fluidez, movimento e
acesso a todas as diversas produções culturais advêm de uma sociedade altamente conectada,
fruto da globalização.

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Sobre a globalização e o seu impacto nas características do recetor
Para entender o impacto da globalização no recetor e as suas características, é pertinente
apresentar este conceito tão mobilizado na sociedade contemporânea.
Giddens (2008), refere que, ver a globalização apenas como um fenómeno económico
é redutor, é necessário entendê-lo como uma convergência de fatores políticos, sociais e
culturais também, fruto dos sistemas de comunicação e a internet. Este autor explica que,
relativamente ao fator político, as mudanças no sistema político da União Soviética e o
crescimento dos mecanismos regionais e internacionais dos governos, influenciaram
diretamente o crescimento da globalização no mundo. O maior fluxo de informação proveniente
da revolução tecnologia que se vive, permite que maior informação viaje de forma rápida em
lugares muito distantes (Giddens, 2008: 60-64).
Boaventura Sousa Santos partilha a mesma postura sobre o tema, refere que se trata não
só de uma globalização económica, mas que este é um fenómeno de várias facetas que moldam
a sociedade contemporânea e apresenta uma clara definição de globalização: globalização é o
processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o
globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou
entidade rival (Santos, 2001: 10).
No seu artigo Para uma Conceção Multicultural dos Direitos Humanos (2001), o autor
explica que existem dois fenómenos relacionados com a globalização: localismo globalizado,
onde um fenómeno local se torna global, e temos como exemplo recente, a música lançada em
2020 pelo artista Master KG e Nomcebo, Jerusalema (disponível em:
https://youtu.be/fCZVL_8D048), que se tornou um fenómeno global, tratando-se de uma
música cantada numa língua local de África do Sul, com um ritmo africano, que foi apropriada,
cantada, dançada e ouvida pelo mundo todo. O segundo fenómeno denomina-se de globalismo
localizado, que se trata de apropriações e impactos de práticas globais, em ambientes locais
(Santos, 2001: 13).
Não foi possível neste ensaio, deixar de parte o fenómeno da globalização, por estar na
base do alcance atual da arte. Este fenómeno está relacionado quer com o artista/produtor de
arte, quer com o recetor da mesma uma vez que afeta/influência ambos polos (artista-recetor).
Existem por tanto, dois fatores da globalização que estão relacionados com a arte atual: a
velocidade e o alcance.

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Hoje em dia o público é afetado/influenciado pela globalização uma vez que ele tem a
possibilidade de ver, perceber e conhecer diferentes realidades, inclusivamente diferentes
formas de ver e interpretar o mundo, que na arte é plasmado através da realidade interpretada
pelo artista. O recetor é cada vez mais eclético uma vez que tem acesso a mais informação
diversificada, a globalização permitiu que as massas globais tenham acesso a arte produzida
pelo mundo.
Tendo em conta que o tema deste ensaio está centrado na importância do recetor, serão
apresentados os diferentes tipos de recetor, os variados graus de absorção e assimilação da obra
de arte, a interpretação e o papel do recetor na obra artística, de forma a se entender melhor o
seu lugar, no que parece ser uma cadeia da produção (ideia/ encomenda- execução- exposição-
receção).

O papel do recetor na assimilação e compreensão do objeto artístico


“The audiences are the key to understanding art, because the meaning created from
art and the ways it is used depend on its consumers”
(Alexander, 2010: 181)
Sendo determinante entender o consumidor/ recetor, Melo (2001), no seu livro O que é
Arte?, apresenta uma classificação, com muito influência Bourdiana, do público, segundo a
sua classe social e o tipo de arte que consome.
O autor atribui o termo de “zona”, às diferentes classificações do público. Assim,
existem cinco zonas: a zona tradicional, marcada pelo gosto da arte antiga e conservadora,
rejeitando a arte contemporânea, é um grupo com um nível económico elevado, “novo-rico
armado a aristocrata” (Melo, 2001:138); a zona mundana, que o autor refere ironicamente como
a zona “chique”, este grupo consome a arte mais mediática, dinâmica, juvenil e de forte impacte
visual, são considerados os novos-ricos; a zona especializada, que integra o núcleo mais erudito
e intelectual, normalmente ligados a profissões na área cultural e artística, o art world, segundo
George Dickie, é um grupo de classe media com alto capital cultural; a zona mediana, que se
trata da classe media, e caracteriza-se pelo consumo de arte popular, assim como artistas/ obras
mais acessíveis do gosto especializado, e por último o gosto popular, marcado pelo consumo
das artes populares não consagradas ou musealizadas, como a arte naïf e artesanato (Melo,
2001:136-143).

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Já abordados os tipos de públicos, é pertinente referir que podem existir diferentes graus
de absorção e assimilação da obra de arte. Assim com outros autores, Hall acredita que a arte é
um meio de comunicação, um código visual que se decifra, e a mensagem tem diferentes níveis
de compreensão e entendimento. Dominante- hegemónico, quando o recetor entende a
mensagem passada; posição oposta, quando o recetor compreende a mensagem, no entanto opta
por fazer uma interpretação pessoal; a posição negociável, acontece quando há uma mistura dos
dois anteriores e a aberrante, quando o recetor não entende e por consequência interpreta de
forma completamente diferente (Alexander, 2010: 184).
Ainda sobre a interpretação do recetor, Alexander no seu livro Sociology of the arts,
apresenta um levantamento de algumas teorias de diferentes autores. Fiske acredita que arte é
um meio de controlo das classes dominantes sobre as classes populares, e que quando um
consumidor interpreta o objeto artístico (simiotic power) trata-se de uma resistência, o que ele
chama de semiotic resistence. Griswold apresenta uma teoria para um melhor entendimento
sobre o objeto artístico, onde se analisa a parte do criador e a do recetor, aqui analisa-se o
porquê de ter elaborado a obra, e as expectativas, assim como os principais acontecimentos/
factos da vida do recetor que possam afetar o entendimento da obra, respetivamente. Refere
ainda que estes dados estão sujeitos a mudanças (Alexander, 2010: 186; 194).
Desta forma, é visível como existem diferentes graus de compreensão e diferentes
teorias do papel do recetor no objeto artístico. É importante entender também que o valor e
“estatuto” da obra é dependente inteiramente da perspetiva do recetor. Através do caso de
estudo de Teixeira Lopes, é visível como para o grupo com menor grau de escolarização sentiu
que a obra excedeu as suas expectativas. No entanto, um grupo com o um maior capital escolar
sentiu-se “confortável” com a obra, e que respondeu às suas expectativas, neste caso, segundo
Jauss, como a obra foi plenamente entendida e respondeu ao esperado, ou seja, aproxima-se da
arte de culinária. Desta forma, é possível inferir que, segundo o que Jauss considera, a
qualidade, objetivo e significado da obra depende do recetor, dando ou não, significado e valor
à obra de arte (Lopes, 2000: 10-13).
Entendendo que existem diferentes públicos, diferentes graus de compreensão e mesmo
diferentes perspetivas sobre a importância da receção, é possível sentir aquilo que não se
compreende? Jauss explica que existem duas formas de experienciar o objeto artístico, uma
experiência estética, onde o recetor apenas sente o que vê, sem realmente entender, aquilo que
sente advém da sua condição como indivíduo, ou seja, perceciona segundo a sua história de

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vida, etnia/ raça, idade, género, origem, classe e posição social, entre outros. Por outro lado, a
experiência artística acontece quando o recetor compreende de forma holística aquilo que se
vê, ou seja, entende a mensagem da obra, e conhece o artista e o seu percurso. Trata-se de
perceções diferentes, podendo acontecer de forma seguida, primeiro o recetor vive uma
experiência estética ao ver e receber o objeto artístico e depois uma experiência artística, por
exemplo com a leitura da folha de sala de um museo.
Vistas as diferentes formas de compreender o objeto artístico e de se relacionar com ele,
será apresentada uma pequena perspetiva do que é o objeto artístico segundo Bourdieu, de
forma a se entender o porquê da necessidade do recetor jogar um papel vital na vida da coisa
artística.

Objeto artístico segundo Bourdieu


Bourdieu, no seu livro As Regras da Arte, explica que o artista vive uma trajetória
social, neste percurso há uma serie de posições sucessivas ocupadas em espaços sucessivos.
Esta trajetória determina a história de vida do artista, uma vez que se vê obrigando a tomar
certos caminhos que condicionam o seu percurso. A esta mudança de posição, Bourdieu
denomina de deslocamentos, e explica que existem dois tipos de deslocamentos: o
deslocamento dentro do mesmo setor do campo de produção cultural, onde há um acumular de
capital simbólico e económico e o deslocamento de setor, e por consequência há uma mudança
no capital específico que o artista produz (Bourdieu, 1996: 292-293).
Para além de explicar que existem diferentes trajetórias e deslocamentos, o autor reflete
sobre as diferentes possibilidades de trajetória social do artista e explica que podem existir
trajetórias ascendestes, transversais e deslocamentos nulos. Bourdieu termina dizendo que o
objeto artístico é produto destas trajetórias e deslocamentos nos setores ou campos (Bourdieu,
1996: 293-294). Desta forma, entende-se que a arte é produto da história de vida/ percurso/
trajetória/ habitus do artista enquanto individuo.
Entendendo que o objeto artístico se trata do fruto da vida do artista, é possível entender
de forma clara como a obra pode ser uma mensagem que o artista procura passar. Pode ter uma
componente religiosa, política, reivindicativa, entre outros, mas trata-se sempre de uma
mensagem que o artista procura passar e que deve ser interpretada pelo recetor. Mas deverá
essa mensagem ser sempre entendida? É de facto um meio de comunicação?

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Entender ou não entender, o que alguns autores pensam
Umberto Eco diz que a arte se trata de um conceito aberto, sem fronteiras e que as suas
próprias fronteiras, são a falta delas, no entanto, a partir do século XVII e XVIII o debate sobre
a coisa artística passou a ser institucionalizado e por isso normalizado. Ao longo dos séculos o
conceito de arte e a sua função foi-se alterando e apenas com Diderot o conceito de público
aparece, e com Baumgarten, o público como sujeito, ou seja, a experiência e perceção
individual e pessoal sobre o objeto artístico. O sujeito ganha tal importância que a obra passa a
ser destinada para o recetor/ sujeito.
Um meio e comunicação depreende que se expressa algo, Casey (1971) explica o
fenómeno de expressão, dizendo que se trata de um processo de exteriorização de algo que nós
somos, sentimos, queremos e que nos podemos expressá-lo pelo choro, gestos, expressões ou
arte. Diz que a este processo de exteriorização depende de uma linguagem e outras formas de
expressão como myth, gesture and art (Casey, 1971: 197). Ainda sobre a arte como linguagem
e meio de comunicação, Tolstoy no seu livro What is art? diz que a capacidade que o ser
humano tem de passar os seus sentimentos, estados de espírito e opiniões para outros, e que
esta capacidade é a base da arte. Ou seja, a emissão de impressões entre o artista e a capacidade
recetora do público é o propósito da arte, desta forma, Tolstoy, assim como Casey, entende que
a arte é primeiramente um meio de comunicação.

Assim, se vários autores consideram que a arte é um meio de comunicação, porque é


que não deve ser entendida? Se a arte procura passar e transmitir uma mensagem, seja ela mais
erudita ou popular, mais religiosa ou laica, por que razão não deverá ser compreendida? Quando
deixa de ser arte e passa a ser arte de culinária? Quais são as fronteiras da obra de arte enquanto
obra “digna” e não digna?

Adorno e Horkheimer no seu livro Dialética do Esclarecimento (1947), explicam que o


esclarecimento/ o entender das coisas tira o medo ao ser humano, e a capacidade de conhecer é
o que nos diferencia, a superioridade do homem está no saber, disso não há dúvida (Adorno,
Horkheimer, 1947: 5). Para isso, servem-se de várias comparações, alegorias e referências aos
mitos clássicos, explicam que o ser humano procura entender o seu entorno e para isso cria
mitos com personagens semelhantes ao Homem, os deuses, assim sente-se satisfeito com a
explicação, o mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade (Adorno,

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Horkheimer, 1947: 7). Ao mesmo tempo que entendem o porquê da explicação e esclarecimento
e em última instância, o entendimento, ser necessário ao Homem, reconhecem que conhecer e
saber não é o mais importante, mas sim o processo e o caminho que leva a esse conhecimento
(Adorno, Horkheimer, 1947: 5).
Os autores explicam que a indústria cultural, manifestada através do cinema, revistas e
rádio, procuram manipular as massas, respondendo à necessidade dos consumidores, resultando
num sistema coeso e que a arte para as massas vem da consciência terrena, ao contrário de uma
“arte séria” que vem da consciência de Deus. Partindo desta premissa, entende-se como há um
regresso da ideia de arte como caminho para a Ideia/ belo como conceito moral (Adorno,
Horkheimer, 1947: 57-59), é uma reação aos processos de massificação vividos na segunda
metade do seculo XX. Adorno e Horkheimer, dizem ao longo do livro que esta indústria cultural
apenas procura o prazer dos públicos e que o faz porque não exige esforço, toda a produção
artística da indústria de cultura é uma arte leve, que não propõe esforço intelectual (Adorno,
Horkheimer, 1947: 64-65). Desta forma, entende-se que para estes autores, pertencentes à
Escola Crítica, entendem que a “arte séria” é incomunicável, a arte só é integra quando não
entra no jogo da comunicação (Lopes, 2000: 46).
Para além destes autores, o consagrado artista Kandinsky partilha deste pensamento.
Wassily Kandinsky entende a arte como algo espiritual, superior ao terreno e cria um
paralelismo claro entre o mundo da espiritualidade e o mundo da arte. Para Kandinsky ambos
têm como base um sistema piramidal, no topo do mundo artístico encontram-se os intelectuais
e os historiadores da arte e na base, as massas/ ateus, desprovidos de espiritualidade e
sensibilidade artística. O artista explica que quando a arte não é entendida pelas massas o artista
é considerado demente. Ele explica ainda que a arte tem objetivos morais e espirituais.
Numa palestra em Cologne em 1914 sobre o seu trabalho, Kandinsky diz que ele apenas
quer pintar bem, mesmo sendo apenas entendido na sua totalidade por alguns espectadores
(Harrison, 1999: 86-98). Assim percebemos que Kandinsky entende que a arte é algo superior
e de difícil acesso intelectual, tal com Adorno e Horkheimer, e é preferível a produção de boa
arte, sendo ela apenas alcançável por um limitado grupo de pessoas, que a arte de fácil
entendimento. Desta forma, Kandinsky e Adorno e Horkheimer, entendem a arte como algo da
mente, requer contemplação, reflexão, espiritualidade e sacrifício, a boa arte não dá prazer
instantâneo, se der é um sinal de decadência.

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Assim, a arte demasiado fácil de entender, a arte que dá prazer sem esforço, a arte leve
produzida pela indústria da cultura pode ser considerada, como diz Jauss, arte de culinária.
Demasiado “mastigada”, respondendo inteiramente às expectativas do recetor.
Saindo da esfera teórica e passando para a prática, a arte, seja popular ou erudita/
consagrada, consumida na televisão ou num museu, responde às necessidades de quem a
consome. Para responder a estas necessidades, deve ser compreendida, sobretudo porque a arte
é consumida consoante a história de vida e o habitus do recetor.

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Nota final
Através da estudo e desenvolvimento deste ensaio foi possível entender que o fenómeno
da receção da arte é altamente complexo, já não implica apenas o gosto de recetor e o trabalho
do artista. Na sociedade contemporânea envolve outras variáveis que devem ser equacionadas,
como os globalismos, os localismos, a internet, a modernidade, a velocidade da modernidade,
a economia, entre outros.
Diferentes autores, ao longo do tempo, têm-se dedicado a explicar e a refletir sobre o
que é a arte, o seu propósito, para que serve, para quem é direcionada, e a partir do seculo XIX
surge o conceito de públicos e desde então reflete-se sobre os públicos e as suas perspetivas.
No entanto, na sociedade em que vivemos, não há uma apenas uma forma de perceber e
interpretar o mundo, a arte já não é dirigida apenas para os eruditos e as classes altas, mas sim
para todos, há diferentes públicos, diferentes artes, diferentes formas de arte e de interpretar a
mesma. Graças às políticas de democratização da cultura e à democracia da arte, conceitos
altamente mobilizados e debatidos desde há meio século, e que por isso alcançaram um
dominante papel no mundo artístico, permitiu à maior parte das pessoas acesso à arte, que até
então era destinada a um público restrito.
Algumas questões foram surgindo ao longo do estudo do tema que seriam interessantes
debater, refletir e explorar, questões que poderão ser respondidas ou apaziguadas noutro
contexto. Será que a obra de arte tem necessariamente de agradar ou causar algum impacto no
espectador ou ela vale por si mesma? Podemos aceitar que sobre a arte, o seu papel, a sua
função, o que ela é e para quem, tem diferentes interpretações e perspetivas? Ou devemos
mesmo encontrar uma única resposta, um único sentido? A arte provoca diferentes emoções,
vibrações, discussões, não pode ela por si só ter vários sentidos dependendo de quem os
interpreta? Perde a arte o seu valor ao ser um tópico tao mediático na sociedade contemporânea
ou o seu valor provém disso?

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Referências bibliográficas:

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Universidade de Coimbra. Disponível em: http://journals.openedition.org/eces/3674

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