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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE

LAVINIA CARVALHO BRITO

A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em
Psicanálise

Orientador: Prof. Doutor Luciano Elia

RIO DE JANEIRO, DEZEMBRO DE 2007


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Para João, pelo tempo que não pude estar com você
para que este trabalho fosse concluído.
Agradeço aos meus pais e marido pelo apoio e
paciência;
à Laís pela acolhida calorosa;
aos professores por suas contribuições nas aulas;
ao Luciano pela orientação, pelas conversas fecundas e
pela troca sempre prazerosa;
ao Marco Antonio por sua escuta;
à banca examinadora por ter aceito nosso convite
aos amigos, colegas e todos que de alguma forma
torceram por mim.
Resumo

A pesquisa acerca da formação do psicanalista aborda a relação da


psicanálise com a Universidade e discute como uma formação desta natureza não
pode se dar no espaço universitário. Além disso, é feita uma retrospectiva da
história da formação do psicanalista desde os primórdios da psicanálise até os
dias atuais. A psicologia de grupo de Freud é o referencial utilizado para analisar
as sociedades de psicanálise, sua constituição e os mecanismos operantes, até se
chegar à proposta de Escola de psicanálise feita por Lacan.
O percurso da formação, seus impasses e vicissitudes são abordados como
parte do processo de análise e da passagem de analisante a analista. Destituição
subjetiva, travessia da fantasia, encarnação do objeto a causa de desejo, tendo em
seu horizonte o desejo do analista como suporte.
Finalmente, o real da experiência psicanalítica, apontando para uma formação
infinita e permanente.

Résumé

La recherche sur la formation du psychanalyste aborde le rapport


entre la psychanalyse et l’Université et discute comment une formation de
cette nature ne peut pas avoir lieu dans l’espace universitaire. En outre,
on fait une retrospective de l’histoire de la formation du psychanalyste,
depuis la naissance de la psychanalyse jusqu’aujourd’hui. Le
“Psychologie des foules” de Freud est le referential utilisé pour analyser
les societés de psychanalyse, leur constituition et leurs mechanismes
d’opération, jusqu’à la proposition de l’École de Pychanalyse par Lacan.
Le parcour de la formation, ses impasses et ses vicissitudes sont
abordés dans leur rapport à l’analyse personelle et du passage de
l’analysant à l’analyste. Destitution subjective, la traversée du fantasme,
l’encarnation de l’object a comme cause du désir, en ayant l´horizon le
désir du psychanalyste comme support. Finalement, le reel de
l’experiénce analytique impliquant une formation infiniée et permanente.
Sumário

Introdução – 1
Psicanálise e Universidade – 2
• Perspectiva historic -3
• Jacques Lacan – 9
• Situação atual – 19
• A teoria dos quarto discursos – 26
Freud e a psicologia de grupo – 31
• Eu ideal e Ideal do eu –
• As instituições psicanalíticas – 43
• A criação da IPA –
A formação do psicanalista – 50
• Tornar-se analista – 61
• Fim de análise e destituição subjetiva – 65
• A travessia da fantasia – 74
• Teoria, prática e transmissão – 75
• Transmissão da psicanálise – 81
Conclusão – 92
Bibliografia - 94
A formação do psicanalista

Introdução

A formação dos psicanalistas constitui uma importante questão que está presente
desde o início da psicanálise até os dias de hoje. Acompanhando as questões de sua época,
o contexto em que estava inserida e os participantes do movimento psicanalítico, o tema da
formação do psicanalista – calcada inicialmente no clássico tripé: análise pessoal, estudo
teórico e supervisão - foi assumindo contornos próprios ao longo do tempo. No entanto,
algumas questões conservam seu frescor e merecem ser discutidas e pensadas, o que levou
à elaboração desta dissertação.
Neste sentido, um dos pontos trabalhados é a relação entre a Psicanálise e a
Universidade. Existe possibilidade de diálogo entre as duas? Uma vez que a Psicanálise
está de alguma forma inserida no espaço universitário, qual o estatuto dessa relação? E
mais importante: qual a diferença fundamental entre a Psicanálise na Universidade e a
proposta das instituições psicanalíticas? Para pensar tais questões, é realizada uma
retrospectiva histórica que pretende dar um panorama geral da relação
Psicanálise/Universidade desde a época de Freud até os dias atuais.
Para dar continuidade à diferenciação entre a Universidade e instituição
psicanalítica, nos debruçamos mais sobre as últimas, considerando sua especificidade.
Tomando como referência o texto de Freud sobre psicologia de grupo, examinamos a
constituição deste tipo de grupo, bem como os mecanismos que nele operam. Desde as
reuniões de caráter informal, realizadas na residência de Freud no início do século XX, até
a necessidade de formalização decorrente do crescimento do movimento psicanalítico,
tendo como uma das conseqüências a formalização também da formação do psicanalista a
partir de um protocolo estabelecido pela IPA (International Psychoanalytical Association).
Os rumos que as sociedades de Psicanálise e a formação do psicanalista tomaram serve
como mote para se chegar à subversão provocada por Jacques Lacan. Inicialmente
efetuando alterações em sua prática clínica, as inovações e questionamentos de Lacan
provocaram não só sua expulsão da IPA, mas inauguraram também um novo modo de se
pensar a formação do psicanalista.
Sem negar o tripé clássico da formação, mas indo além dele, Lacan se debruça sobre
a falha que ele aponta na passagem de analisante a analista e convoca os analistas a fazerem
o mesmo. A partir de então passamos a considerar a formação do psicanalista segundo a
“dobradiça” Psicanálise em intensão/Psicanálise em extensão. Discutimos pontos
importantes concernentes à sua elaboração, como o importante aforisma segundo o qual “o
analista só se autoriza por si mesmo”, o qual devolve ao analista a responsabilidade em
sustentar seu desejo: desejo do analista.
A análise pessoal como única via possível para a formação dentro da qual se
desenrola o processo de tornar-se analista e as vicissitudes que ele comporta. Abordamos a
passagem de analisante à analista considerando as operações que estão no cerne desta
passagem. A relação intrínseca entre a travessia da fantasia e a destituição subjetiva,
condições para se sustentar no lugar de analista. A desidealização desta posição: lugar de
“cala” e não de fala, de abstinência e não de gozo, enfim, lugar de objeto e não de sujeito.
Finalmente, o encontro com o real da experiência analítica apontando para o
inexorável da castração, o qual lembra que em se tratando de formação do psicanalista não
é possível sustentar a ilusão de que há saber suficiente ou há formação suficiente, de
maneira que esta não pode ser outra que permanente.

Psicanálise e Universidade

A inserção da Psicanálise no âmbito da Universidade constitui um dos aspectos a


serem discutidos em um trabalho acerca da formação do psicanalista por diversos motivos.
Inicialmente por ser a relação Psicanálise/Universidade por si só complexa, dividindo
opiniões entre os próprios psicanalistas acerca de sua pertinência; segundo porque ainda
que esta relação seja marcada por impasses, é um fato que a Psicanálise está de alguma
forma inserida na Universidade, de maneira que é preciso interrogar como isso ocorre; e,
finalmente, porque uma das questões colocadas frente à realização do trabalho foi: por que
trabalhar uma questão eminentemente analítica – ou seja, a passagem de analisando a
analista – no espaço universitário.
Assim, este trabalho, além da pesquisa através de revisão e elaboração teórica,
apresenta em seu seio uma proposta de interrogação da prática analítica no que diz respeito
à formação do psicanalista.

Perspectiva Histórica

A história da relação entre Psicanálise e Universidade remonta mesmo ao início da


própria carreira de Freud e da história da Psicanálise. É possível dizer que a relação de
Freud com a Universidade foi marcada por dificuldades desde o início. Ainda jovem, ao
ingressar na Universidade para estudar medicina, sentiu os preconceitos anti-semitas, o que
acabou por colocá-lo, logo de cara, “na oposição” 1 , posição esta que ocuparia
definitivamente a partir da criação da Psicanálise.
Os primeiros trabalhos de Freud foram justamente na área de pesquisa, no
laboratório de Brücke, mas devido à falta de recursos financeiros, ele foi obrigado a
interromper sua carreira de pesquisador e a se dedicar à clínica. No entanto, o trabalho com
a clínica geral não lhe interessava e Freud continuava a fazer pesquisas de naturezas
diversas, como seu estudo sobre a cocaína, por exemplo. Seu ingresso na Universidade se
deu inicialmente por meio de sua nomeação como Privatdozent (Livre Docente) da
Universidade de Viena, mas o próprio Freud sempre caracterizou sua inserção na
Universidade como “apenas periférica”2.
Logo após sua nomeação como Privatdozent, Freud ganhou uma bolsa para uma
viagem de estudos e escolheu o serviço de Charcot na Salpêtrière, em Paris. A
aproximação de Charcot e o interesse pelas manifestações histéricas acabou distanciando
Freud da Universidade por um tempo. Ao voltar de Paris, em 1886, Freud passou umas
semanas em Berlim, a fim de aprender, na clínica de Adolf Baginsk, algo sobre doenças
infantis em geral. Segundo Ernest Jones, Freud sabia que não teria outra oportunidade
como esta ao voltar a Viena e, talvez por razões sociais, não conseguiria um cargo na
1
MANNONI, O. - Freud uma biografia ilustrada, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994, p.24.
2
FREUD,S. -Introdução do Editor Inglês para as Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Edição
Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. XV, (1996)
clínica Psiquiátrica-Neurológica da Universidade de Viena, o que de fato nunca aconteceu3.
No entanto, se por um lado ele se afastou do meio acadêmico, nunca abandonou suas
pesquisas, as quais só mudaram de foco, no que é possível notarmos uma passagem do
Freud médico para o Freud criador da Psicanálise.
Os seus textos desse período, o qual compreende a última década do século XIX, se
tornaram mais voltados para as descobertas acerca das neuroses, embora ainda estivesse
presente um certo modo médico de pensar, como é possível perceber em suas tentativas de
articular psicologia e fisiologia no Projeto para uma Psicologia científica4. Aliás, uma das
preocupações de Freud era justamente que a Psicanálise estivesse dentro dos padrões
científicos, em parte por sua própria formação médica, em parte por ver aí um modo de
conferir-lhe credibilidade.
A entrada efetiva na Universidade poderia proporcionar a credibilidade que Freud
precisava para seus estudos, mas na Viena do final do século XIX o avanço profissional só
era alcançado mediante ligações conhecidas como Protektion, às quais Freud era avesso. O
cargo de Privatdozent proporcionou a Freud mais conforto do ponto de vista econômico,
pois a sociedade vienense preferia pagar os honorários de um Privatdozent a procurar outro
clínico capacitado, mas isto não mudava sua situação no meio científico e acadêmico.
Assim, no início de 1897, após ter ocupado o mesmo cargo por doze anos Freud aceitou a
recomendação de seu nome por Kraft –Ebing e Frank Hochward para ocupar uma vaga de
Professor Adjunto5. No entanto, uma atitude anti-semita e a antipatia por sua reputação em
relação às questões sexuais na etiologia das neuroses o deixaram de fora da disputa e Freud
viu, ano após ano, seus colegas serem promovidos na hierarquia profissional. Seu nome
chegou a ser aprovado por unanimidade pela comissão responsável pela indicação, mas o
corpo docente da faculdade não endossou a indicação e o Ministério da Educação nada fez.
Freud relutou o quanto pôde em ceder ao sistema de proteção que vigorava nas nomeações
dentro da Universidade, não só por orgulho, mas principalmente porque sabia de seus
méritos e da importância de seu trabalho. Mas em 1901, quatro anos após a primeira

3
JONES,E. Á vida e a obra de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol.I (1989).
4
FREUD, S. - Projeto para uma Psicologia científica [1895], Edição Standard Brasileira das Obras
completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. I, (1996)
5
A este respeito, o relato de Ernest Jones e Peter Gay divergem sobre dois aspectos. Na biografia escrita por
Jones os colegas citados são Kraft-Ebing e Frank Hochward e trata-se de uma vaga para Professor Adjunto. Já
Peter Gay menciona na mesma passagem Kraft-Ebing e Hermann Nothnagel e diz tratar-se de uma vaga para
Professor Extraordinário.
indicação, Freud resolveu agir e pediu a interferência de uma ex-paciente e amiga influente
junto ao Ministério, o que ainda assim não resolveu a questão. Foi preciso que outra amiga
e paciente, com uma posição social ainda mais elevada, interviesse diretamente junto ao
ministro da Educação para que Freud conseguisse a tão sonhada cátedra. A partir daí os
resultados foram rápidos e em fevereiro de 1902 o imperador assinou o decreto que dava a
Freud o título de Professor Extraordinário6. A nomeação de Freud levou a um aumento
ainda maior de sua clínica e ao seu reconhecimento, mas na verdade, não acarretou uma
mudança significativa em sua posição acadêmica, dando-lhe apenas o direito de realizar
conferências no espaço universitário7.
Paralela a todo esse processo na Universidade de Viena, a produção intelectual de
Freud era grande e nesse período teve como marco a publicação da Interpretação dos
sonhos8 em 1900, considerada a inauguração da Psicanálise. Os encontros de quarta-feira
na casa de Freud, os quais reuniam interessados no estudo e discussão de temas
relacionados à Psicanálise, parecem ter-se constituído como o lugar em que o
desenvolvimento da Psicanálise se iniciou. Constituindo-se como terreno fértil para a troca
de idéias e experiências, a Sociedade das Quartas-feiras pode ser apontada como um
embrião do que mais tarde foram chamadas Sociedades Psicanalíticas. Por outro lado, no
meio médico e acadêmico as idéias de Freud eram rechaçadas com todo vigor e suas
aparições públicas em congressos foram um verdadeiro fracasso. O Inconsciente, a natureza
sexual apontada na etiologia das neuroses, a sexualidade infantil, foram suficientes para
colocar Freud à margem, fazendo com que a Psicanálise se desenvolvesse paralelamente,
apesar das resistências do meio científico em que ele inicialmente buscou aprovação. Isso
fica claro quando Freud diz que a Psicanálise se desenvolveu num outro espaço não por
vontade própria, mas por sua exclusão da Universidade9.
Em 1910, durante o Congresso Internacional de Psicanálise, realizado em Nürnberg,
foi criada a IPA (Interantional Psychoanalytical Association). A redação dos estatutos da
IPA em 1914 e sua posterior consolidação como espaço das Sociedades e Institutos de

6
GAY, P., Freud: uma vida para nosso tempo, São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
7
JONES,E.- op. cit.
8
FREUD, S. - A interpretação dos sonhos, [1900] Edição Standard Brasileira das Obras completas de
Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. IV e V. (1996)
9
FREUD, S. - Sobre o ensino da Psicanálise nas Universidades [1919], Edição Standard Brasileira das Obras
completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. XVII, (1996)
Psicanálise, responsáveis pela formação dos analistas e da preservação do legado de Freud,
constituiu o ponto final de um possível diálogo entre a Psicanálise e a Universidade. No
entanto, é importante ressaltar que ainda que a Psicanálise não fosse bem-vinda nos
currículos universitários, ficando excluída das grades dos cursos, uma relação informal
parece ter tido lugar e ela acabou entrando pela “porta dos fundos” da Universidade. Prova
disso foram as Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, as quais tiveram lugar na
Universidade de Viena em dois períodos de inverno consecutivos durante a Primeira Guerra
Mundial: 1915-16 e 1916-17, além dos convites que Freud recebeu para proferir
conferências em várias outras Universidades, incluindo a Clark University, nos Estados
Unidos. A este respeito, Theodor Reik menciona que Freud não gostava de dar
conferências, o que segundo James Strachey, na tradução inglesa das conferências, torna-se
difícil de acreditar, não só devido ao número de conferências proferidas por Freud ao longo
de sua vida, mas também à quantidade de trabalhos publicados sob a forma de
conferências10. Somente em 1920 Freud recebeu o título mais elevado da Universidade –
Professor Ordinarius, ou seja, Professor Catedrático - mas como tinha sua prática clínica
independente, não foi feito membro do corpo de docentes nem recebeu o encargo de um
departamento.
Na realidade, o mérito da entrada oficial da Psicanálise em uma Universidade é
conferido a Sandor Ferenczi, discípulo de Freud e primeiro professor a introduzir a
Psicanálise dentro da grade de disciplinas de uma Universidade, em Budapeste. Em 1925,
quando Schilder, membro de uma Sociedade Psicanalítica, foi reconhecido por seu chefe e
recebeu o título de professor, Freud mostrou-se satisfeito com o fato de alguém ligado à
Psicanálise receber uma promoção na Universidade pela primeira vez. No entanto,
suspeitava que o chefe de Schilder não sabia exatamente qual era sua posição no
movimento psicanalítico11.
Uma relação de natureza tão ambivalente pode ser entendida por meio da própria
ambivalência despertada pelo novo: por um lado, fascínio, curiosidade acerca de algo que
mobiliza tantos seguidores quanto resistências; mas também repúdio ao novo, a isso que

10
Comentário de Theodor Reik a STRACHEY, J. - Introdução do Editor Inglês para as Conferências
Introdutórias sobre Psicanálise, Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud, Rio de
Janeiro, Imago, vol. XV, (1996)
11
JONES,E. A vida e a obra de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago,vol. III (1989)
vem de alguma maneira desestruturar as balizas da sociedade e do pensamento ocidental: o
homem racional, civilizado, moderno. A própria relação de Freud com a Universidade
passou a ser marcada pela mesma ambigüidade: ao mesmo tempo em que ele buscava o
reconhecimento e a aceitação no meio universitário, dizia que a Psicanálise prescindia
completamente da Universidade para seu desenvolvimento. 12 Em relação ao ensino da
Psicanálise na Universidade, Freud via tal inserção como vantajosa para a Universidade, a
qual só teria a ganhar com a inclusão da Psicanálise em seu currículo e não deixou de
idealizar um curso de Psicanálise. Diz ele:

“(...) se alguém tivesse que fundar uma faculdade de psicanálise, nesta teria de
ser ensinado muito do que já é lecionado pela escola de medicina: juntamente
com a psicologia profunda,que continua sempre como a principal disciplina,
haveria uma introdução à biologia, o máximo possível de ciência da vida sexual
e familiarização com a sintomatologia da psiquiatria. Por outro lado, a
instrução analítica abrangeria ramos de conhecimento distantes da medicina
(...): a história da civilização, a mitologia, a psicologia da religião e a ciência da
literatura”.13

Embora diga que a vantagem seria da Universidade, é possível reconhecer o desejo


do próprio Freud de que a Psicanálise fizesse parte do âmbito universitário, uma vez que
sempre esteve, ainda que informalmente, vinculado a ela. No entanto, as resistências à
entrada de Freud nos meios intelectual e científico se fizeram sentir em diferentes frentes.
Por ocasião da comemoração de seu aniversário de 70 anos, nem a Universidade, nem a
Academia, nem a Sociedade de Médicos o congratularam. De acordo com Jones, os
comentários elogiosos feitos a Freud por um historiador da Universidade foram nesta
recebidos com um “silêncio gélido”14.
É possível dizer que a difusão da Psicanálise pela Europa dando origem ao grupo
inglês e sua inserção nos Estados Unidos de alguma maneira facilitou a entrada da
Psicanálise nas Universidades. Muitas críticas são feitas acerca das distorções sofridas pela
teoria psicanalítica pelos pós-freudianos, mas talvez tais distorções e mesmo supressões na

12
FREUD, S. – Sobre o ensino da Psicanálise nas Universidades.
13
ibidem, p. 236.
14
JONES,E., op. cit.
teoria encontrem suas razões nas resistências desses próprios psicanalistas que priorizaram
determinados aspectos da teoria em detrimento de outros. Embora não tivesse a natureza de
uma estratégia para facilitar a entrada da Psicanálise na Universidade, é possível pensar que
as distorções sofridas pela teoria tiveram origem em questões dos próprios pós-freudianos –
constituindo uma resistência deles – o que acabou por amenizar a grande rejeição das idéias
de Freud no meio acadêmico em função da conotação que passaram a ter. Assim, as
pulsões, ferozes em suas exigências de satisfação sexual – o que era encarado até mesmo
como um caráter doentio – não constituiriam mais uma ameaça à civilização; pulsões
parciais se conjugariam no amor genital; no lugar do isso, o eu assumiria o comando,
através de uma aliança com o eu do analista. A Psicanálise, em alguns círculos, passou a ter
um caráter quase adaptacionista e de promessa de felicidade, contrariando um dos preceitos
éticos de Freud segundo o qual não há nada que garanta a felicidade, nem no microcosmo,
nem no macrocosmo15. Não é à toa que foi nesta mesma época em que o mundo estava em
guerra e as pessoas precisavam de um certo alento - a partir da década de 40 - que surgiram
diversas formas de terapia, as quais de alguma maneira vinculavam suas origens à
Psicanálise e se propunham a acabar com todo tipo de sofrimento. Dessa forma, a
Psicanálise perderia um pouco sua virulência tão característica e estaria mais condizente
com as salas de aula.
Já a formação dada pela IPA, embora tivesse lugar nas Sociedades de Psicanálise,
parecia seguir o modelo universitário, onde todas as decisões cabiam a uma comissão de
ensino, a qual decidia o número de horas semanais de análise, as disciplinas que deviam ser
assistidas, enfim, todas as condições subjacentes à aceitação na sociedade. As condições
impostas diziam respeito a vários aspectos, desde a admissão ou rejeição do candidato a
analista, feita com base em três entrevistas, até a escolha de um analista didata, com quem o
candidato deveria fazer uma primeira análise de seis meses, ao fim dos quais seu analista
decidiria se ele poderia tomar parte nas etapas ulteriores da formação; também ficava a
cargo da comissão decidir quando a análise poderia ser dada como terminada e, por fim, o
candidato devia se comprometer, por escrito, a não se intitular analista antes de sua

15
FREUD, S. - O mal-estar na civilização, [1930[1929]], Edição Standard Brasileira das Obras completas de
Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. XXI, (1996)
11SAPHOUAN, M. - Jacques Lacan e a questão da formação do analista, Porto Alegre, Artes Médicas,
(1989)
admissão formal à sociedade.16 Embora tal descrição se assemelhe mais aos processos de
recrutamento e seleção de grandes empresas, não é possível ignorar a palavra ensino que
compõe o nome de tais comissões.

É importante ressaltar que a palavra ensino comporta dois sentidos neste trabalho.
Por um lado, diz respeito ao uso que dela é feito no espaço universitário, onde se supõe que
há algo a ser ensinado, ou seja, que há alguém que sabe e um outro que não sabe. É
justamente este o sentido que ensino assume quando vinculado às comissões da IPA. Por
outro lado, Lacan também faz uso da mesma palavra para designar sua atividade ao mesmo
tempo em que a diferencia de produção teórica. No entanto, ao utilizar ensino, Lacan
refere-se a uma acepção muito precisa desta palavra, a qual está estritamente vinculada ao
conceito de Escola adotado por ele, o que veremos mais adiante.

Jacques Lacan

Embora não tenhamos a intenção de fazer uma biografia de Lacan aqui, é


interessante situar alguns pontos importantes de seu percurso para chegarmos até sua crítica
acerca da formação do analista e as modificações que ela provocou no meio analítico.

Antes de se interessar pela Psicanálise, Jacques Lacan, formado em medicina, fez


um percurso clássico, passando da neurologia à psiquiatria. Estudou a clínica das doenças
mentais no Hospital Sainte-Anne, centro do universo manicomial, estagiou na enfermaria
da Chefatura de Polícia, para onde eram levados os criminosos considerados “perigosos” e
passou dois anos no mais avançado centro de pesquisas psiquiátricas, o Hospital Henri-
Rousselle, onde obteve seu diploma de médico legista. Após um estágio de dois meses na
célebre clínica Burghölzi, retornou, no início de 1931, como interno ao Hospital Sainte-
Anne. Ali, teve contato com três grandes mestres – Henri Claude, Georges Dumas, e
Clérambault – e o encontro com a paciente que o levaria a estudar mais a paranóia:
Marguerite Pantaine. De acordo com Roudinesco, este foi um ano importante para Lacan,
momento em que ele faz uma síntese do saber psiquiátrico, do saber psicanalítico e do
segundo surrealismo a partir da paranóia, o que o possibilita, com uma forte base de
filosofia, escrever sua tese de medicina: De la psychose paranoïaque dans ses rapports
avec la personnalité (Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade), mais
conhecido como “o caso Aimée”17.

Embora num primeiro momento a tese de Lacan tenha sido ignorada no meio
psicanalítico, algumas personalidades do meio literário- Paul Nizan, René Crevel, Salvador
Dalí e Jean Bernier - se manifestaram a respeito de sua obra, contribuindo, em 1933, para
trazer Lacan para a cena política de extrema-esquerda intelectual. Até então, Lacan tinha
como referência filosófica a fenomenologia de Husserl e Jaspers, além de uma leitura
pessoal de Spinoza, mas o fato de sua tese ter sido bem recebida sob o signo do surrealismo
e do comunismo contribuiu para que ele passasse ao estudo de uma filosofia materialista18.

Outro ponto importante do percurso de Lacan foi o início de sua análise em 1932
com Rudolph Loewenstein - representante da linha ortodoxa, analisante de Hans Sachs,
discípulo direto de Freud - com quem Lacan estabeleceria uma relação de rivalidade. De
acordo com Roudinesco, durante todo o tempo de sua análise, Lacan desenvolveu seu
trabalho teórico fora do meio psicanalítico, embora participasse de alguns debates na SPP-
Sociedade Psicanalítica de Paris, primeira sociedade psicanalítica fundada na França - da
qual era associado desde sua criação em 1926 19. Após elaborar a tese de medicina Lacan
passaria a dedicar-se mais profundamente a uma investigação da obra freudiana e a partir
daí, pôde enunciar suas primeiras hipóteses sobre o desejo, o estatuto do sujeito e o
imaginário.

Em 1936, Lacan preparou seu primeiro trabalho a ser apresentado num congresso
da IPA, que teria lugar em Marienbad. Tratava-se do famoso trabalho sobre o “estádio do
espelho”, baseado nas noções de estádio do espelho de Henri Wallon - médico e psicólogo
francês - e inspirado pelo seminário de Kojéve, o qual havia levado Lacan a uma

17
Aimée, cujo nome verdadeiro era Marguerite Pantaine, atacou uma atriz na porta do teatro em 1931.Passou
pela delegacia e pela enfermaria, até chegar ao Sainte-Anne com um parecer de “delírio sistemático de
perseguição à base de interpretação com tendências megalomaníacas e substrato erotomaníaco”.
18
ROUDINESCO, E. -.Jacques Lacan Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento, São
Paulo, Companhia das Letras, (1994)
19
ibidem.
interrogação sobre a gênese do eu por intermédio de uma reflexão filosófica acerca da
consciência de si.

O congresso de Marienbad tinha como pano de fundo uma verdadeira batalha que se
iniciava entre Anna Freud, Melaine Klein e seus respectivos seguidores, e o simpósio
acerca dos resultados terapêuticos da Psicanálise provocou um confronto explícito entre
estas posições. Talvez devido ao clima de tensão instaurado, Lacan foi interrompido por
Ernest Jones no meio de seu discurso, fato este que o marcou profundamente.

É interessante observar que durante o período da Segunda Guerra Mundial, Lacan


adotou uma postura política de não produzir nada escrito, retomando sua produção somente
após o término da guerra, quando, em 1946, escreveu seu artigo sobre o tempo lógico: O
tempo lógico e a asserção da certeza antecipada.

A situação da SPP no ano de 1953 era de grande discórdia, levando a um processo


de ruptura que culminaria em cisão. O conflito incidia sobre a questão da formação dos
analistas e denunciava um quadro que conjugava um autoritarismo médico atrelado a um
modelo universitário de formação. Nesse momento de crise, nomes importantes se
desligaram da instituição e fundaram a Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP), para a
qual Lacan migrou. No entanto, ao desligarem-se da SPP esses analistas perderam também
sua condição de membros da IPA. Segundo Roudinesco, a situação desses ex-membros da
SPP tornou-se bastante delicada, pois, se por um lado questionaram e romperam com uma
tradicional instituição psicanalítica francesa, por outro não pretendiam romper com a
legitimidade freudiana. Assim, logo eles tentaram iniciar uma negociação para sua
reintegração a IPA20.

Lacan, particularmente, já não seguia as regras técnicas estipuladas pela IPA em sua
clínica há algum tempo, instituindo um tempo variável na duração das sessões. As regras
estipuladas pela IPA determinavam análises de pelo menos quatro anos de duração, com
quatro ou cinco sessões semanais de pelo menos cinqüenta minutos21. Assim, a postura de
Lacan constituía um entrave para a reintegração a IPA, pois uma das condições era que
todos os analistas didatas da SFP seguissem as regras- padrão relativas à formação.Quando

20
ibidem
21
SAPHOUAN, M.- op.cit.
ainda membro da SPP, ele expôs três vezes sua posição em relação ao tempo variável das
sessões: em dezembro de 1951, em junho de 1952 e por último em fevereiro de 1953.
Como não houve nenhuma concessão por parte dos titulares, Lacan mudou de estratégia e
passou a escamotear a realidade de sua prática clínica, mas na realidade, sabia-se que ele
continuava a seguir suas próprias regras.

O posicionamento crítico de Lacan frente a essas questões e sua postura desafiadora


frente às normas relativas à formação do analista não o deixariam impune. Sua exclusão da
SFP foi sendo feita aos poucos, por meio de restrições cada vez mais rigorosas. Através de
um documento chamado “Recomendações de Edimburgo”, de 2 de agosto de 1961,
estabeleceu-se que novos casos de análise didática e supervisão não deveriam ser
encaminhados nem para Lacan nem para Dolto, psicanalista francesa que compartilhava das
idéias de Lacan. Finalmente, em 2 de agosto de 1963, o processo de exclusão culminou no
que o próprio Lacan chamou de sua “excomunhão” da IPA 22.

De 1953 a 1963, enquanto Lacan ainda era membro da SFP, o anfiteatro do hospital
Sainte-Anne foi o palco onde ele realizou semanalmente seu seminário, que reunia
filósofos, psicanalistas e escritores. A partir da perda de seu estatuto de analista didata na
SFP, Lacan optou por tornar-se um mestre livre e teve que deixar o Sainte-Anne. Em 1964,
fundou a Escola Francesa de Psicanálise (EFP) a qual tomaria mais tarde o nome de Escola
Freudiana de Paris23. Graças à intervenção de Louis Althusser, Lacan obteve um cargo de
conferencista na École Practique des Hautes Études (EPHE) passando a realizar seu
seminário na sala Dussane da ENS (École Normale Supérieure) 24 , onde sua primeira
intervenção foi intitulada “A excomunhão”. Durante seis anos Lacan pôde desfrutar de uma
posição confortável dentro de uma instituição de ensino público, o que lhe assegurou a
possibilidade de renovação de seu ensino e permitiu a ele celebrizar-se.

No entanto, em março de 1969 Lacan recebeu do diretor da ENS, Robert Flacelière,


uma carta na qual foi anunciado que ele não mais tinha permissão para ocupar a sala
Dussane com seu seminário. Se na carta nenhuma justificativa além da reorganização dos

22
CHAUCHAT, H., A propos du désir de l’analyste [1988], in: Les racines de l’expérience: intension et
extension de la psychanalyse, Paris, Lysimaque, (1989)
23
PORGE, E. - Os nomes do pai em Jacques Lacan, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, (1998)
24
ROUDINESCO, E.- op.cit.
estudos da ENS foi dada, extra-oficialmente correram rumores de que o seminário de Lacan
era considerado por demais “mundano” e ia contra os bons costumes pregados pela
Universidade25 . Lacan esperou pelo dia 26 de junho, data de seu último seminário daquele
ano para tornar a carta pública. Seus ouvintes ficaram revoltados e resolveram ocupar a sala
do diretor da ENS, mas a pressão foi em vão. Após várias divergências e negociações,
Lacan obteve o direito de dar continuidade ao seu seminário no anfiteatro da Faculdade de
Direito, perto do Panteão. O local, ainda maior que a sala Dussane, ficou lotado para o novo
seminário dedicado a O avesso da Psicanálise, no qual Lacan desenvolveu a teoria dos
quatro discursos, a qual abordaremos mais adiante. Já na primeira sessão Lacan comunicou
sua intenção de apresentar quatro improvisos na Universidade de Vincennes, a convite da
UER (unidade de ensino e pesquisa) de filosofia. Segundo Roudinesco, mais uma vez
Lacan transformou a derrota em triunfo, não só por instalar seu auditório num lugar de
maior grandeza, mas também por “propor conduzir sua luta no coração da fortaleza
universitária mais contestadora da França”26.

Se desde 1963 Lacan já construía com a Universidade uma relação marcada pelo
paradoxo de ser ao mesmo tempo marginal e bem integrada27, por outro lado não foi por
suas mãos que inicialmente a Psicanálise teve acesso à Universidade na França. Pelo
contrário, durante muito tempo Lacan foi um crítico ferrenho da Universidade e foi contra a
experiência de implantação da Psicanálise nesta, somente mudando seu posicionamento
bem mais tarde, a partir dos matemas que redimensionaram seu ensino a partir do seminário
intitulado O avesso da psicanálise.

Para tentar compreender a via de inserção da Psicanálise na Universidade, é


importante esclarecer um pouco o funcionamento da instituição universitária na França.

Até 1968 as faculdades eram administradas por um decano que contava com um
secretário-geral e um conselho de professores titulares, sendo os demais professores,
pessoal administrativo e estudantes privados de voz ativa em qualquer decisão. A partir
desta reviravolta, as instituições universitárias passaram a funcionar com base em um

25
ROUDINESCO, E. - História da Psicanálise na França - A batalha dos cem anos: 1925-1985, vol. 2 , Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, (1988)
26
ibidem, p.584
27
ROUDINESCO, E.- Jacques Lacan Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento.
projeto pedagógico segundo o qual os professores eram convidados a trabalhar em torno de
Unidades de Ensino e Pesquisa (UER), com poder para se reunir em federações e
transformar-se em Universidades28.

É nesse contexto que duas experiências distintas vão reorganizar as vias de


implantação da Psicanálise na Universidade francesa. A primeira delas teve lugar em Paris
VII e foi comandada por Daniel Lagache, o qual já mantinha a Psicanálise como hóspede
da Psicologia na Universidade desde 1945. Como é sabido, as diversas vertentes da
Psicologia Clínica surgiram como produto da combinação da Psicanálise com correntes da
Psicologia, mas a própria Psicologia Clínica não era reconhecida do ponto de vista teórico.
Muito pelo contrário, ela brigava por um lugar entre a Psicologia Experimental e a
Psicologia Social, as quais lhe dedicavam a maior hostilidade.

Em 1968, às vésperas do grande movimento estudantil que tomou a França, os


seguidores de Lagache encontravam-se na seguinte situação: o caminho aberto à
Psicanálise pela Psicologia havia se tornado, na verdade, o caminho para a implantação da
Psicologia Clínica, onde a Psicanálise ocupava uma posição secundária. Como a Psicologia
Clínica não tinha nenhum reconhecimento do ponto de vista teórico, a teoria freudiana
também constituía uma ficção29, ou seja, a Psicologia Clínica se utilizou da grande difusão
da Psicanálise para se implantar na Universidade, mas como não era reconhecida enquanto
teoria, também a Psicanálise, que passou a fazer parte dela, não o era.

Os estudantes aproveitaram a movimentação e exigiram a reformulação dos estudos


de Psicologia. Reclamavam a formação de uma UER de Psicologia Clínica, e após várias
divergências conseguiram a formação de uma UER de Ciências Humanas Clínicas, que
difundiu seu ensino a centenas de estudantes. De acordo com Roudinesco, devido ao
desinteresse de Jean Laplanche pela Psicologia Clínica, ele foi o primeiro a introduzir o
termo “Psicanálise” nesta experiência, ao fundar, em 1969-70 o “Laboratório de Psicanálise
e Psicopatologia”, o qual continha quatro eixos de pesquisa, todos orientados para a
Psicanálise.30 Este trabalho teve como fruto diversas publicações, culminando em 1979 no
tão esperado lançamento das obras completas de Freud em língua francesa, tarefa na qual

28
ROUDINESCO, E. - História da Psicanálise na França A batalha dos cem anos vol. 2: 1925-1985
29
ibidem.
30
ibidem.
Laplanche tratou de unificar os conceitos freudianos junto com André Bourguignon e Pierre
Cotet.

Mas a verdadeira inovação ficou por conta de Serge Leclaire, que em 1968 foi o
idealizador de uma experiência na qual o estudo de Freud e Lacan fizeram sua entrada na
Universidade de uma maneira sem precedentes. Nascia assim o primeiro Departamento de
Psicanálise dentro do Centro Universitário de Vincennes-Paris VIII, desvinculado tanto da
Medicina, como ocorria em Paris V, quanto da Psicologia Clínica, experiência que tinha
espaço em Paris VII. Leclaire convidou Lacan para participar desta empreitada junto com
ele, mas Lacan recusou. A proposta de Leclaire era manter a Psicanálise o mais longe
possível do domínio da Psicologia e, para tanto, vinculou seu departamento a UER de
filosofia, onde encontrou o apoio de Michel Foucault.31

O Departamento de Psicanálise não oferecia diploma nem formação clínica que


atestasse a entrada no mercado de trabalho, constituindo um ensino teórico incluído na
formação em filosofia ou literatura. No entanto, indiretamente levou muitas pessoas a
procurarem a formação psicanalítica através da análise pessoal. Alguns professores não
eram psicanalistas, mas todos eram membros da EFP - que, como já dissemos, foi criada
por Lacan em 1964, por ocasião de seu desligamento da SFP -. Na Escola, os que não
faziam parte da experiência de Vincennes eram radicalmente contra a inserção da
Psicanálise na Universidade, utilizando como mote a crítica à noção de crédito que
vigorava nas Universidades. Lacan, embora contra, mantinha-se em silêncio, até que ao
saber de sua expulsão da ENS no início de 1969 passou a atacar duramente Leclaire.
Roudinesco faz uma análise da posição de Lacan, que muda de estratégia conforme a
evolução interna de sua Escola ou a situação política da França. Se por um lado ele não
tolerava a experiência de Vincennes, só admitindo seu seminário como modo de
descentralização, também desejava expandir seu ensino para outros domínios, e viu na
Universidade uma grande promessa32.

Observamos aí uma significativa diferença de posicionamento entre Freud e Lacan,


o que não deixa de encontrar explicação na situação em que cada um e a própria Psicanálise
se encontrava. Para Freud, a inserção da Psicanálise na Universidade tratava-se de uma
31
ibidem
32
ROUDINESCO, E. - História da Psicanálise na França A batalha dos cem anos vol. 2: 1925-1985
questão de reconhecimento, uma vez que a aprovação desse novo campo de saber inventado
por ele seria também o seu próprio corolário. Como isso não aconteceu durante um bom
tempo, a Psicanálise precisou se desenvolver num espaço paralelo, embora Freud afirmasse
que ela prescindia totalmente da Universidade33. Parece tratar-se aí mais de uma questão de
cunho pessoal do que político, onde as marcas da hostilidade sofrida ao longo de sua vida e
de sua carreira ainda motivavam Freud a querer se destacar e a buscar reconhecimento.
Lacan, por sua vez, não precisava lutar pelo reconhecimento e expansão da Psicanálise. Ao
contrário, seu projeto consistia em promover um retorno a Freud com o objetivo de retomar
conceitos e idéias que haviam se perdido ou se distorcido justamente devido à grande
expansão de que a teoria psicanalítica foi objeto. Assim, ao final dos anos 60, Lacan já
havia conseguido reunir em torno dele diversas pessoas e conseguido o reconhecimento de
que a IPA procurava privá-lo. É verdade que a mudança de seu seminário para os domínios
da Universidade incrementou seu auditório, mas ele, sim, prescindiu da Universidade para
se fazer ouvir. Nesse sentido, resta a dúvida de saber se entrar para a Universidade consistia
para ele uma questão de vaidade ou uma estratégia política para descentralizar um ensino
que se encontrava concentrado numa Escola em crise, já que a EFP encontrava-se num
momento delicado.O tumulto que tomou conta da Universidade a partir de maio de 1968
atingiu também o Departamento de Psicanálise que acabou se desestruturando devido a
vários acontecimentos. Leclaire foi confrontado com diversos problemas do departamento,
foi duramente criticado por Lacan em um de seus improvisos em Vincennes; Judith,
professora e filha de Lacan, concedeu uma entrevista na qual bombardeou a Universidade,
o que resultou em sua demissão. Além disso, Lacan fez muita pressão junto aos membros
da EFP para desestabilizar Leclaire e este acabou se demitindo do cargo34.

A relação de Lacan com a Universidade sofreu uma mudança radical a partir da


última elaboração que ele fez de seu ensino. Já na Faculdade de Direito, o seminário O
avesso da psicanálise é influenciado pela leitura do livro de Ludwig Wittgenstein dedicado
à filosofia da linguagem, o Tractatus Lógico-Philosophicus. Segundo este autor, “o que
pode ser dito, pode ser dito claramente, e quanto àquilo que não se pode falar, é preciso

33
FREUD, S. - Sobre o ensino da Psicanálise nas Universidades.
34
ROUDINESCO, E,- História da Psicanálise na França A batalha dos cem anos vol. 2: 1925-1985
deixar passar em silêncio”35, ou seja, este indizível ou inefável é definido como um resto.
Wittgenstein separa dois domínios incompatíveis: o que se diz, de um lado, e o que se
mostra, de outro, sendo que a partir dessa incompatibilidade a filosofia reconheceria a
“obrigação do silêncio e de uma espécie de ‘não-todo’ que escapa à formalização”36.

Lacan se interessou pelas idéias de Wittgenstein sobre o dizer e o mostrar, mas nem
por isso concordou com ele no que diz respeito à obrigatoriedade dos incompatíveis. Lacan
tentou pensar o domínio do inefável integrando aí o “não-todo”. Ele parece ter encontrado
o caminho para isso na noção de matema. Roudinesco afirma, sem muita certeza, que este
termo parece ter sido forjado a partir do mitema de Claude Lévi-Strauss e da palavra grega
mathema, que significa conhecimento37. Lacan inventou o termo para responder à questão
de como transmitir de modo apropriado um saber que aparentemente não podia ser
ensinado. Segundo ele, “o matema seria a escrita daquilo que não se diz, mas que pode ser
transmitido”38. Ao contrário de constituir uma aproximação do discurso universitário e por
isso poder ser ensinado na Universidade, o matema possibilitaria conservar o que há de
mais analítico, constituindo uma “proteção” contra a “universitarização” da Psicanálise.

Outro fator que contribuiu de maneira decisiva para a entrada de Lacan no


Departamento de Psicanálise foi sua relação cada vez mais estreita com Jacques Alain-
Miller, estudante de filosofia da ENS e posteriormente seu genro. Mais tarde, já casado
com a filha de Lacan, Miller criticou as tentativas empreendidas na transcrição do
seminário de Lacan e, frente a um desafio do sogro, se propôs ele mesmo fazê-lo. O que
Lacan chamou de transcrição, Miller denominou de estabelecimento do texto, o que teve
algumas conseqüências que não vêm ao caso aqui. O primeiro livro do seminário a ser
transcrito, o livro 11 intitulado Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, foi muito
bem recebido e somente após a morte de Lacan e a publicação de três outros seminários – o
livro 1: os escritos técnicos de Freud, o livro 20: mais ainda e o livro 2: o eu na teoria de
Freud e na técnica psicanalítica - é que Miller foi alvo de críticas, devido ao fato de não ter
sido fiel à estenografia. Na verdade isso nunca foi negado por Miller, o qual não se

35
WITTGENSTEIN, L. apud ROUDINESCO, E, op.cit. p. 607.
36
ibidem
37
ibidem
38
ibidem, p.610.
propunha a copiar um texto estenografado, mas a inventar uma escrita a partir de uma
fala.39

Ao ser o viabilizador da passagem da fala de Lacan à escrita, Miller passou a ocupar


uma posição muito especial junto a ele, o que lhe permitiu ganhar terreno na Universidade
de Paris VIII, na EFP e nas Éditions du Seuil, a qual havia publicado anteriormente os
“Escritos” de Lacan.

Quando Leclaire se demitiu de sua função no Departamento de Psicanálise, Miller,


que lecionava como professor assistente, decidiu reorganizar o departamento em novas
bases. Ele propôs então que Lacan assumisse a reorganização, uma vez que o departamento
se dizia lacaniano. Apesar de não ter direito a dirigir um departamento dentro da
Universidade, Lacan possuía um prestígio muito grande e Miller utilizou isso a seu favor,
assumindo a parte administrativa do processo. Sua legitimação se deu em 1974 através do
texto Bases Nouvelles pour le Département de Psychanalyse, no qual foi apresentada a tese
do matema.

Em função do matema, os professores deviam remeter seus projetos a Lacan, do


qual dependia a aprovação para o início dos cursos. O método de Lacan foi criticado por
diversos professores e ocorreu então uma divisão no departamento. De um lado, um grupo
agia como se a pessoa de Lacan e sua doutrina fossem uma só coisa e, dessa maneira, ele
teria o direito de dirigir um departamento que se utilizava de seu nome; do outro, o grupo
propriamente de Vincennes, o qual oscilava entre a vontade de ajudar Lacan e a recusa a
jurar fidelidade a sua pessoa40. O mais crítico da situação era que ou se estava com Lacan,
ou se estava contra ele, de modo que no final ele foi aprovado nas funções de chefe do
departamento.

No final de 1974, após o Congresso de Roma em que Miller proferiu seu discurso
centrado no matema, Lacan foi convidado por Claude Frioux, presidente comunista da
Universidade, para dirigir um curso. Ele respondeu oferecendo ao departamento sua
assessoria científica, com a condição de que Miller o substituísse no conselho
administrativo. Os professores não aceitaram o procedimento, declarando-o ilegal. A partir

39
ibidem
40
ibidem
de então, uma nova batalha teve início dentro do departamento, na qual Miller manteve-se
firme em sua posição, sendo inclusive acusado de promover uma “ditadura lacano-
milleriana” 41 . A despeito de toda a crise, ele continuou a dirigir o departamento e a
promover projetos importantes. A criação, em 1976, de um doutorado de terceiro ciclo do
Campo Freudiano, constituiu mais uma conquista para a Psicanálise, seguida de uma
formação permanente destinada a psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais e finalmente
a homologação de um “diploma de clínica psicanalítica”, fornecido por uma seção clínica
do Campo Freudiano, a qual tinha por objetivo “fundar um ensino que pudesse
corresponder a uma definição lacaniana da clínica”.42

Aprovando as decisões do genro, Lacan foi se afastando cada vez mais de


Vincennes, deixando os projetos a cargo de Miller, o qual se mantém até hoje como
responsável pelo Departamento de Psicanálise de Vincennes -Paris VIII. No entanto, a
passagem de Lacan teve uma força tamanha que chegou a apagar as origens da criação do
departamento, onde Serge Leclaire parece ter sido esquecido. Assim, é possível ler na
brochura de apresentação dos cursos: “Desde sua criação, por Jacques Lacan, o
Departamento de Psicanálise de Paris VIII (...)”43.

Situação Atual

Inicialmente, é fundamental circunscrever a proposta de nossa discussão,


ressaltando que tratamos aqui das questões relativas à inserção da Psicanálise dentro da
Universidade no Brasil. Deste modo, a situação pode se apresentar de forma diferente em
outros países onde a Psicanálise também possui bastante expressividade, como a Argentina
e a França, por exemplo.
Atualmente é inegável o fato de que a Psicanálise, querendo ou não, está inserida
dentro da Universidade no Brasil e isso se dá de diversas formas. O mais comum é vermos
a Psicanálise dentro do curso de graduação em Psicologia. Neste caso é possível

41
ibidem
42
ibidem, p. 628
43
Brochura editada pela Navarin. Ver também Na alytica, 39,1984 apud ROUDINESCO, E.- História da
Psicanálise na França A batalha dos cem anos vol. 2: 1925-1985, p.629
encontrarmos a Psicanálise - ainda que de modo equivocado - entre as correntes ou sistemas
da Psicologia, em disciplinas como “Teorias e Sistemas Psicológicos” ou “Teorias da
Personalidade”, ou entre as psicoterapias, como nas disciplina “Teorias e técnicas
psicoterápicas” onde diversas escolas são apresentadas, como se fosse um portfólio, um
mostruário do que se poderá seguir após optar-se pela Psicologia Clínica. Existem também
disciplinas bastante específicas, muitas vezes oferecidas de maneira eletiva, tais como
Seminário de Psicanálise I, II, etc. entre outras variações. As ementas incluem textos
introdutórios que de alguma maneira apresentam a Psicanálise e textos considerados
clássicos, como Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Totem e Tabu, A Interpretação
dos Sonhos. No entanto, é possível que a Psicanálise esteja em uma disciplina devido à
orientação do professor em questão. Assim, independentemente da ementa, a orientação
adotada é a Psicanálise seja defendendo seus pontos de vista, seja numa postura crítica em
relação ao tema abordado pela disciplina. É importante observar que tal postura não
constitui uma regra, mas algo circunstancial que pode ou não acontecer nos cursos de
graduação.
Ainda no que diz respeito aos cursos de graduação, também é possível citar os
casos em que a Psicanálise se encontra presente em outros cursos que não o de Psicologia,
como o de Medicina, por exemplo - onde aparece como Psicologia Médica - ou mesmo nos
cursos das chamadas Ciências Humanas, as quais incluem disciplinas da “área psi”. É
importante chamar atenção para o fato de que nesses casos trata-se mais de uma visão
psicanalítica de um determinado contexto, ou de um caráter informativo acerca da
Psicanálise.
Uma outra forma de inserção da Psicanálise dentro da Universidade são os cursos de
especialização, os quais constituem não só uma forma de aprofundamento no estudo da
teoria psicanalítica, como também às vezes oferecem estágio supervisionado. Neste caso, a
especialização seria uma forma de suprir a carência de experiência prática, mas também
uma maneira de se iniciar uma clínica particular, o que às vezes não está explícito na
proposta dos cursos, mas não deixa de ser uma realidade para os alunos. Além disso,
existem os cursos de extensão e cursos de verão, os quais incluem a Psicanálise em suas
propostas.
Finalmente chegamos aos cursos de pós-graduação stricto sensu, ou seja, os cursos
de mestrado e doutorado em Psicanálise ou Teoria Psicanalítica. É interessante observar
que muitas vezes estes cursos são procurados no sentido de complementar a formação do
psicanalista, não constituindo propriamente uma forma de rivalização com a instituição
psicanalítica, onde é proposta a formação do analista.
No que diz respeito aos cursos de pós-graduação, o caráter mais marcante é a ênfase
na pesquisa, o que já levanta uma outra questão: o que é a pesquisa em Psicanálise? Tal
questão toca em um ponto essencial no que diz respeito à práxis (a um só tempo teórica e
clínica) psicanalítica, em função de sua articulação intrínseca com o inconsciente. Na
medida em que o próprio Freud disse que em Psicanálise tratamento e pesquisa
coincidem44, é interessante pensar a pesquisa em Psicanálise associada à prática. Aqui, é
importante ressaltar que quando nos referimos à prática psicanalítica, não nos restringimos
ao consultório particular, mas abrangemos qualquer prática profissional que leve ao
confronto com questões relativas à saúde mental, toxicomanias, delinqüências, deficiências
e outras que despertem o interesse do pesquisador.
De saída, é fundamental reconhecer que, ainda que a Psicanálise derive da
Ciência45, não se reduz a ela. A Psicanálise dá um passo além, uma vez que ela inclui em
seu discurso o sujeito da Ciência que a própria Ciência excluiu do discurso científico. Isto
tem como conseqüência o fato de a pesquisa em Psicanálise diferir da pesquisa científica. É
possível dizermos, com Elia46, que o ponto central da questão metodológica da pesquisa
psicanalítica é a necessária inclusão do sujeito em toda a extensão e em todos os níveis do
campo da Psicanálise: saber teórico, prática clínica, atividade de pesquisa, etc.
Este passo tem como implicação direta o fato de que toda pesquisa em Psicanálise é
eminentemente clínica, na medida em que, estruturalmente, implica que o pesquisador
realize sua pesquisa a partir do lugar definido no dispositivo analítico como lugar do
analista, lugar de escuta e sobretudo de causa para o sujeito, o que pressupõe o ato
analítico e o desejo do analista, como trataremos adiante. Elia aponta para a singularidade

44
FREUD,S.- Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise, [1912] Edição Standard Brasileira das
Obras completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol.XII. (1996)
45
Para acompanhar todo o desenvolvimento desta idéia recorrer ao texto de Lacan A ciência e a verdade , in:
Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, (1998).
46
ELIA, L. - Psicanálise: clínica e pesquisa, in: Clínica e pesquisa em psicanálise, Sonia Alberti e Luciano
Elia (orgs.), Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, (2000).
da posição ocupada por este pesquisador que, se por um lado é um analista, operando no
dispositivo a partir de seu lugar, de seu desejo e em seu ato, por outro, é a partir do lugar de
analisante que sua atividade de pesquisa terá lugar e vai se desenvolver 47 . Tal
posicionamento foi nomeado por Elia como o lugar do “pesquisante”, numa alusão à
combinação do pesquisador com o analisante.
Para situar o lugar da Psicanálise no curso de pós-graduação strictu–sensu, é
interessante evocar aqui alguns dos pontos que justificaram a criação do Mestrado em
Pesquisa e Clínica em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ.48 Primeiramente, o
projeto de criação do mestrado se baseia no fato de que a Psicanálise se inscreve no
discurso da ciência como campo do saber com um alcance muito maior do que a prática
clínica do consultório particular. Dessa maneira, a Psicanálise “abre amplas possibilidades
de rediscussão de relevantes questões que compõem a problemática do sujeito
contemporâneo, viabilizando modos concretos de intervenção clínica-social, tanto no
aspecto clínico (...) quanto no aspecto institucional (...)”49. O segundo ponto vem no esteio
do primeiro, na medida em que a abertura de novos campos de pesquisa e a conseqüente
ampliação da prática do psicanalista traz em seu bojo novos questionamentos. Assim, além
de se exigir dele uma postura investigativa e o domínio conceitual, a questão fundamental
que se impõe é: como atuar em outros campos sem, no entanto, ceder quanto ao rigor de
sua prática? O terceiro ponto vem desmistificar a idéia de a Psicanálise ser uma prática
individual e individualizante, uma vez que o sujeito do inconsciente, eixo central do saber
psicanalítico, é constituído sob condição da alteridade, de forma estrutural. Dessa maneira,
institui-se um outro campo para pensar o sujeito e a ordem social, distinto do já existente
Mestrado em Psicologia e Processos Sócio-culturais. De um modo bastante preciso e
conciso, é possível apontar como objetivo do referido mestrado a criação de pesquisadores,
ou seja, o incentivo a pensadores e o acolhimento de profissionais que se interessem pela
Psicanálise50.

47
Ibidem.
48
Projeto do Mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise do Programa de Pós Graduação em Psicanálise
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro apud ALBERTI, S., Apresentação, in: Clínica e pesquisa em
psicanálise, Sonia Alberti e Luciano Elia (orgs.), Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, 2000.
49
ibidem. p. 13.
50
ibidem
No que diz respeito a trabalhar uma questão referente à Psicanálise pura - ou seja,
relativa à formação do analista - na Universidade, é possível dizer que esta constituiria um
lugar interessante para se discutir a formação do analista justamente porque não é a isso que
se propõe. Desta maneira, as disputas entre instituições e Escolas de Psicanálise constituem
algo em relação ao qual a Universidade seria extraterritorial, abrindo caminho para se falar
do modo como diversas Escolas pensam e efetivamente trabalham a formação do
psicanalista. Embora em muitos aspectos a Universidade esteja atrelada a um
funcionamento que a descaracteriza como espaço neutro, sob este aspecto existiria a
possibilidade de abertura para discussão. No entanto, tais colocações não podem ser aceitas
de maneira ingênua, sem se questionar pelo menos duas coisas fundamentais: será que a
Universidade, ainda que não se proponha a isso, não opera algum tipo de formação para o
analista? E mais: será que não existem disputas camufladas (ou não) dentro da própria
Universidade? Embora as análises pessoais não sejam feitas na Universidade, não é raro
encontrarmos alunos que procurem os professores para tal, o mesmo acontecendo em
relação às supervisões. Não é isso justamente o que faz parte do tripé da formação do
psicanalista a que se referiu Freud? E se considerarmos Lacan quando ele fala da
Psicanálise em intensão – tornar-se analista por meio de sua própria análise - e da
Psicanálise em extensão, mais particularmente - aquela que presentifica a psicanálise no
mundo51 - não é disso que se trata na Psicanálise no âmbito universitário?
Em primeiro lugar, é importante esclarecer que ao falar de presentificar a
Psicanálise no mundo, Lacan faz uma referência muito precisa à Escola 52, que implica
fundamentalmente na sustentação do discurso psicanalítico. Quanto à Universidade, o que
ela faz não é da ordem da formação do analista, mas pode ser definido como uma forma de
veicular a Psicanálise através de um ensino. Nesse sentido é interessante fazer uma
diferenciação precisa entre difusão, ensino e transmissão da psicanálise, pois ainda que
sejam três formas de veicular a psicanálise, guardam entre si diferenças bastante
específicas.
A difusão da Psicanálise ocorreu em grande escala e diz respeito ao alcance que a
Psicanálise teve no mundo, nos mais diversos campos do saber e inclusive no meio leigo.

51
LACAN, J. - Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, [1967], in: Outros
Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,(2002)
52
ibidem
Por um lado, isso serviu para tornar Freud e a teoria psicanalítica conhecidos, despertando
um maior interesse acerca da Psicanálise e possibilitando sua penetração no cotidiano do
homem e da sociedade em que ele vive. Mas a divulgação da psicanálise – muitas vezes de
maneira grosseira ou mesmo equivocada – trouxe também em seu bojo uma série de
deturpações de conceitos, e mesmo uma estigmatização de seu criador. A grande
penetração que a Psicanálise obteve nos meios de comunicação, nas artes e na cultura de
uma forma geral, cobrou um tributo bastante alto e perdeu-se muito do rigor característico à
teoria psicanalítica. Conceitos extremamente complexos do ponto de vista teórico e clínico
sofreram tamanha banalização e redução que passaram a ser utilizados de qualquer
maneira, como vocabulário corriqueiro, sem o menor comprometimento com o rigor e a
ética subjacentes à prática psicanalítica. A dimensão que este problema assumiu constitui
uma outra questão, mas o certo é que um campo que afetou tão profundamente tantas áreas
do saber não poderia passar despercebido pelo senso comum nem pela tentativa de
banalização decorrente disso.
No que diz respeito ao ensino da Psicanálise a questão é ainda mais delicada, uma
vez que, nesse ponto, as diferenças em relação à transmissão tornam-se mais tênues e
difíceis de serem apreendidas. Logo de saída é possível dizermos que toda prática de ensino
está calcada essencialmente em uma intenção e uma sistematização do ensino, o que já o
difere da mera difusão. A importância do ensino da Psicanálise na Universidade foi atestada
pelo próprio Freud em suas duas séries de conferências proferidas na Universidade e ainda
em outros textos posteriores, já como discutimos anteriormente.
Tanto Freud, em 1926, com o artigo sobre análise leiga53, como Lacan, ao assumir o
Departamento de Psicanálise na Universidade de Vincennes, apontam para uma mesma
direção no que diz respeito à inserção da Psicanálise em diferentes meios: “o real da clínica
psicanalítica que permitiu a ele a construção da Psicanálise pode ser encontrado em outros
campos da cultura. Encontramos o ser falante para além da clínica psicanalítica, nos
campos que lhe são conexos e que mais circulam e interagem no meio acadêmico”54. De
acordo com Alberti, aqui encontra-se a justificativa para a possibilidade de transmissão da
Psicanálise na Universidade. A Universidade constitui o espaço que possibilitaria à

53
FREUD,S. A questão da análise leiga[1926] Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund
Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. XX, (1996).
54
ALBERTI, S., op.cit.
Psicanálise um maior intercâmbio com outras áreas de saber, promovendo um diálogo
enriquecedor para todas as partes.
No entanto, tais afirmações não podem ser tomadas de uma maneira ingênua e não
devem ser ultrapassados determinados limites. Alberti adverte para o fato de que existem
questões que podem e devem ser tratadas quando a oportunidade de desenvolver a pesquisa
da e sobre a Psicanálise se apresenta, mas é importante não perder de vista o essencial, ou
seja, que “a análise não tem nenhum outro material que não os processos psíquicos do
homem, só podendo ser estudada no homem”.55
Assim, ainda que ensino e transmissão se perpassem mutuamente em alguma
medida, é importante não perder de vista que eles não se confundem. A transmissão da
Psicanálise propriamente dita só ocorre sob transferência, em análise, e sua verificação só
se dá através da transmissão inerente ao ato psicanalítico. As condições necessárias para
que haja transmissão são a transferência por amor ao saber e a transferência ao analista no
lugar de objeto a, como será visto adiante.
No que diz respeito à Universidade constituir-se como um espaço neutro, ou seja,
não estando ligado a nenhuma instituição psicanalítica, consideramos importante relativizar
um pouco esta afirmação. A Universidade é constituída por professores que em sua maior
parte pertencem a Escolas de Psicanálise ou instituições de formação psicanalítica. Dessa
maneira, seria ingênuo acreditar que quando estão na Universidade não estão, de algum
modo, referenciados à sua instituição, para dizer o mínimo, pois há casos em que se torna
uma questão de nome e sobrenome: fulano de tal, da instituição tal. Não que isso seja algo
maligno, mas deve ser levado em consideração. É importante chamar a atenção para o fato
de que a existência de pessoas, dentro da Universidade, de diferentes instituições, a
descaracteriza como um espaço neutro, mas pode torná-la um espaço democrático, o que
faz com que esse seja um ponto não de crítica, mas justamente de riqueza, uma vez que
possibilita a emergência da dimensão de conflito inerente à Psicanálise. A existência de
diferentes formações dentro da Universidade – o que em Psicanálise pode parecer algo
redundante, mas não é, pois a pluralidade de formações não anula o fato de cada formação
ser única – propicia um constante debate que nas instituições tende a ficar mais camuflado,
pois, teoricamente, segue-se a mesma orientação. Nesse sentido, o maior desafio e a maior

55
FREUD, S. – A questão da análise leiga, apud ALBERTI, S. op.cit., p. 12.
dificuldade é a sensibilidade de tornar a Universidade um espaço que acolha as
diversidades que somem à Psicanálise e não palco de disputas de poder.
Para introduzir a questão da antinomia entre Psicanálise e Universidade, é
interessante evocar uma colocação de Lacan feita durante uma sessão com os universitários
em Vincennes, no final de 1969. Segundo ele, a Psicanálise não se transmite como qualquer
outro saber”56, e tal peculiaridade poderia fazer obstáculo ao seu ensino na Universidade. A
afirmação citada de Lacan, um tanto instigante e enigmática, aparece no Seminário 17, no
qual ele elabora e analisa a teoria dos quatro discursos: o discurso do mestre, o discurso da
histérica, o discurso do psicanalista e o discurso da universidade. Tal seminário é
contemporâneo à revolução estudantil que mobilizou a França em 1968, especialmente no
âmbito das Universidades. Se por um lado é nas Universidades que se inicia o movimento,
Lacan propõe pensar qual é a posição que o aluno ocupa dentro dela e qual a função mesma
da Universidade57. Para tanto, faz-se importante abordar a teorias dos quatro discursos.

A Teoria dos Quatro Discursos

Como já foi mencionado, a teoria dos quatro discursos é desenvolvida por Lacan no
Seminário 17, intitulado O avesso da psicanálise. É importante ressaltar que qualquer
referência ao Seminário 17 merece uma contextualização, como nos adverte Elia58, dado o
lugar de destaque que ele ocupa no ensino de Lacan.
Os primeiros dez anos do Seminário de Lacan foram dedicados ao estudo da obra e
dos conceitos freudianos à luz do que ele próprio vinha desenvolvendo na época, isto é, a
tese do inconsciente estruturado como uma linguagem. A este respeito, é interessante ainda
observar que os temas do seminário se alternavam, priorizando ora o significante (livros 1,
3, 5, 7 e 9), ora o sujeito (livros 2, 4, 6, 8 e 10), constituindo uma elaboração das
conseqüências teóricas, clínicas, éticas e metodológicas da relação entre os dois.

56
LACAN, J.- O Seminário livro17: o avesso da psicanálise, [1969-1970],Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
(1992)
57
MAURANO, D.- Um estranho no ninho ou a Psicanálise na Universidade, in: Lacan e a formação do
psicanalista, Marco Antonio Coutinho Jorge (org.) Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, 2006
58
ELIA, L. O “Avesso da psicanálise” e a formação do psicanalista, in: Saber verdade e gozo: Leituras de O
Seminário, livro 17, de Jacques Lacan, Doris Rinaldi e Marco Antonio Coutinho Jorge (orgs.), Rio de Janeiro,
Rios Ambiciosos, 2002.
O seminário 10, sobre a angústia, é considerado o primeiro corte nesta seqüência,
uma vez que é aí que Lacan introduz o conceito de objeto a - considerado por ele sua única
contribuição à Psicanálise – o qual vai promover uma revolução em seu ensino. Elia
comenta que “não é anódino o fato de que o tema da angústia constitua o objeto de um
primeiro corte, em uma clara exemplificação de que os ‘efeitos de real’ da experiência do
saber do inconsciente afetam inflexivelmente as elaboração de um ensino que se abriu a
essa experiência”59.
Também o livro seguinte do Seminário – Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise - ocupa uma posição singular dentro do ensino de Lacan. Por um lado, ele
marca sua primeira experiência após ter sido expulso da IPA, o que merece um comentário
do próprio Lacan no início do Seminário, em um capítulo dedicado a sua “excomunhão”,
como ele mesmo chama. Por outro lado, Lacan trabalha as conseqüências do corte operado
pela introdução do objeto a, que resulta inclusive em uma distinção entre o inconsciente
freudiano e o lacaniano, como ele elabora em um capítulo intitulado “O inconsciente
freudiano e o nosso”.
Os três anos seguintes do Seminário são dedicados a temas fundamentais,
considerados, no entanto, um tanto árduos. São os livros respectivos aos Problemas
cruciais da psicanálise, O objeto da psicanálise e A lógica do fantasma, que caracterizam
esse momento do ensino de Lacan como relève logicienne, em função da espécie de
elaboração lógica que passa a ocupar o lugar central de seu ensino. O livro 15 do
Seminário, dedicado ao ato psicanalítico pode ser considerado o início do preparo para um
novo corte. Segundo uma das teses aí desenvolvidas, o significante deixa de ser
coextensivo ao campo da linguagem para, sem refutá-lo como campo e como linguagem, ir
além dele: o ato, como tal é um significante. No Seminário 16, intitulado “de um Outro ao
outro”, o conceito de objeto a é enriquecido pelas novas noções desenvolvidas por Lacan,
as quais relativizam a primazia da linguagem e do registro do simbólico em relação ao
campo do gozo e ao real, de modo que ele é renomeado como objeto mais-de-gozar.
Finalmente, O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, opera o segundo corte
significativo no ensino de Lacan, o qual constitui uma grande virada.

59
ibidem, p.35.
Toda esta contextualização histórico-conceitual tem como objetivo chamar atenção
para o fato de que o Seminário 17 não foi fruto de um trabalho qualquer, mas sim o
resultado de uma longa elaboração analítica de Lacan, a qual redimensionou todo seu
ensino.
Os quatro discursos lacanianos constituem modalidades de laço social. No início do
Seminário 17 Lacan refere-se a eles como “uma estrutura necessária, que ultrapassa em
muito a palavra” 60 . Os quadrípodes, como Lacan os chama, são compostos por quatro
lugares – agente ou semblante, Outro ou trabalho, produção ou perda e verdade –e por
quatro elementos que se alternam nos lugares de acordo com a modalidade discursiva: $,
sujeito barrado; S1, significante mestre, que não é exatamente um significante, mas um
enxame de significantes que constituem uma referência unária para o sujeito; S2, saber do
Outro, significante que representa todos os outros significantes que não possuem valor de
S1 para o sujeito; e, finalmente, a, inicialmente definido como objeto causa de desejo,
aparece no Seminário 16 “como uma perda”61, é também o objeto mais-de-gozar.
O primeiro discurso é o discurso do mestre, o qual apresenta no lugar do agente S1,
o significante mestre que se dirige ao saber, S2, para que este produza um gozo (a),
enquanto $ fica recalcado sob a barra no lugar da verdade.É interessante observar que o
discurso do mestre apresenta a estrutura mesma do Inconsciente: um significante (S1) que
se dirige a outro (S2), fazendo surgir neste intervalo o sujeito dividido ($) e deixando como
resto desta operação a. Operando um quarto de giro no sentido horário as letras mudam de
lugar dando origem ao discurso da histérica.
No discurso da histérica a dominante é o $, o sujeito que se queixa de seu sintoma
para o mestre (S1), para que este produza um saber (S2) sobre seu sofrimento. Diz-se de
uma maneira imprudente que é próprio da histérica desbancar o mestre e, neste sentido,
qualquer saber produzido por ele não será suficiente para dar conta do gozo (a) que está na
origem deste sintoma. Na verdade, trata-se de algo mais complexo: o próprio discurso da
histérica já constitui, por si só, um avanço em relação ao discurso do mestre e por isso este
não pode responder à questão colocada por ela. O discurso da histérica denuncia que o
mestre está castrado, pois o sujeito barrado $ está no lugar de agente, evidenciando tal

60
LACAN, J. - O Seminário livro 17: o avesso da psicanálise, p.11.
61
ibidem. p. 13.
castração. Mais um quarto de giro e temos o discurso do analista, que como causa de desejo
(a) se dirige ao sujeito em análise ($) para que este produza seus significantes mestres (S1),
ainda que o acesso ao saber sobre ele (S2), “esteja obstaculizado pela parcialidade de nosso
acesso à verdade”62. Por último, no discurso universitário o que dá a tônica é o próprio
saber (S2), que se dirige ao estudante, o a estudado, astudado63, segundo Lacan, para que se
produzam sujeitos pensantes ($), tendo como a verdade recalcada a motivação do
mandamento do mestre (S1): “Vai, continua. Não pára. Continua a saber sempre mais.”64
Analisando o discurso universitário, observamos que o saber, ocupando um lugar
privilegiado, exige que o estudante trabalhe, pois é sempre quem está no lugar do Outro –
no alto e à direita – que trabalha. Vemos aí o estudante num lugar semelhante ao do escravo
na Antigüidade e também do proletariado 65 . Como já foi dito, a pretensão do discurso
universitário é produzir um sujeito pensante, o que vai ao encontro do que Freud falou
sobre educar ser uma das profissões impossíveis. Aliás, cada um dos discursos comporta
um impossível mencionado por Freud: no discurso universitário estaria o educar, no
discurso do mestre, governar e no discurso do psicanalista, analisar. Lacan acrescenta ao
discurso da histérica um quarto impossível: fazer desejar.66
Mas se por um lado o discurso universitário tem como pretensão produzir um
sujeito pensante, não se pode esquecer que, uma vez que se faça valer a ordem do mestre,
este discurso não pretende que o sujeito fale.67 O único que se dirige ao Outro enquanto
sujeito é o psicanalista, na medida em que o alça à sua condição de sujeito falante,
desejante. Muito pelo contrário, a Universidade não deseja que se venha atrapalhar o que
está instituído. Assim, num ensino livre de questionamentos, o que vemos é uma mera
reprodução do saber, como no ensino dispensado na formação feita pela IPA. De acordo
com Maurano, “Desenvolve-se aí um discurso que promove citações (...) o saber que
decorre desse discurso é um saber de repetição, burocratizado na aspiração de tudo saber e
da regularidade que visa a anulação do sujeito”68

62
MAURANO, D. - op. cit, p.12.
63
No Seminário 17 Lacan joga com o astudé, que remete foneticamente ao particípio do verbo étudier
(estudar), que é etudié (estudado).
64
LACAN, J . - O Seminário livro 17: o avesso da psicanálise, p.98.
65
MAURANO, D. , op. cit
66
LACAN, J. - O Seminário livro 17: o avesso da psicanálise
67
MAURANO, D .- op.cit
68
ibidem, p.15-16.
Lacan chama a atenção dos estudantes para o fato de que eles são o produto da
Universidade, saem de lá equiparados a créditos. Parece com isso querer despertar os
estudantes de sua posição passiva frente ao saber, frente ao mercado para o qual a
Universidade parece estar voltada na sociedade capitalista.
Tudo isso nos permite observar que a dificuldade relativa à transmissão da
Psicanálise na Universidade não está vinculada ao espaço físico, institucional, ou seja, a
teoria dos discursos de Lacan não possui uma referência geográfica. Trata-se antes de uma
posição discursiva, de sua entronização pelo sujeito. Isso implica no fato de que nada
garante que a transmissão se dê numa Escola de Psicanálise, se o analista não estiver ali
referido ao método, à ética e ao discurso da Psicanálise. A facilidade para se cair no
discurso universitário ou no discurso do mestre mesmo fora da Universidade exige uma
constante reflexão e análise acerca da formação que vem sendo feita nas instituições
psicanalíticas.
Freud e a Psicologia de grupo

Antes de qualquer consideração acerca das instituições psicanalíticas e mais


particularmente do que Lacan chamou mais tarde de Escola de Psicanálise, é importante
uma análise dos grupos de uma forma geral. Esta análise se torna particularmente
interessante se considerarmos a observação de Miller no que diz respeito à dificuldade dos
psicanalistas em fazer algo no plano coletivo. Isto seria até mesmo antinômico em relação à
experiência analítica, na qual só um entra, na qual a formação se faz um a um69. Mas talvez
seja justamente por sua experiência ser tão solitária que os psicanalistas se unam para
discuti-la, pensá-la, compartilhá-la com os pares. Talvez seja por sua dificuldade com o
grupal que os psicanalistas se ocupem tanto dele. E esta questão sobre os grupos – embora
não diretamente dirigida aos analistas – já ocupava as reflexões de Freud em sua Psicologia
de grupo e análise do eu70, onde ele analisa os grupos e o empuxo humano à coletividade,
ao que ele se refere em alguns momentos como gregarismo.
Uma primeira explicação para o que seria um instinto gregário é encontrada na idéia
de Trotter, que inclui este instinto entre aqueles que considera primários, juntamente com a
preservação, a nutrição e o sexo. Segundo Trotter, “biologicamente, esse gregarismo
constitui uma analogia a multicelularidade, sendo, por assim dizer, uma continuação
dela”71. No entanto, Freud considera esta explicação um tanto incompleta por não atribuir
um papel significativo ao líder na formação do grupo, aspecto altamente valorizado em suas
observações. Aliás, Freud atribui à existência de intensos vínculos emocionais no grupo –

69
MILLER, J.A.,- Lacan elucidado Palestras no Brasil, [1992] Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, (1997).
70
FREUD, S. - Psicologia de grupo e análise do eu [1921], in: Edição Standard Brasileira das Obras
completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. XVIII, (1995).
71
TROTTER, W. (1916) apud FREUD, S. ibidem., p.128.
dos membros com o líder e dos membros entre si – algumas das características mais
importantes de um grupo.
Para empreender uma análise do grupo, Freud recorre à obra de Le Bon,
Psychologie des foules,72 de 1855. De acordo com este autor, uma primeira peculiaridade
do grupo que chama a atenção é o fato de que seus componentes, sejam quem forem,
passam a compartilhar de uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir de
uma maneira muito diferente daquela que fariam caso se encontrassem sozinhos. Ao invés
de atribuir este comportamento ao aparecimento de novas características nos membros do
grupo, como faz Le Bon, Freud defende a idéia de que no grupo a censura seria
enfraquecida, possibilitando a emergência de moções pulsionais inconscientes até então
recalcadas.73 Outra característica apontada por Le Bon é o contágio, o qual faz com que os
membros do grupo tenham seus atos e interesses dirigidos para os interesses do grupo em
detrimento de seu benefício individual. O aparecimento de características especiais nos
indivíduos quando em grupo deve-se à grande sugestionabilidade a que estão sujeitos e da
qual o contágio, na verdade, não deixa de ser um efeito. Le Bon chega a comparar de
maneira bastante enfática a condição de um indivíduo no grupo com a de alguém sujeito à
hipnose. Embora Freud não discorde dessa colocação, aponta uma falha na exposição de Le
Bon, dizendo que falta mencionar a pessoa que substituiria o hipnotizador no caso do
grupo. Novamente aqui há uma alusão ao papel do líder, o qual, devido à importância
atribuída por Freud, merece ser examinado mais detidamente.
McDougall, em seu livro The group mind74 ressalta como resultado mais importante
da formação de um grupo a exaltação ou intensificação das emoções num grau dificilmente
atingível sob outras condições. A razão disso se encontra no fato de que pelo menos
temporariamente, o grupo passa a substituir, para aqueles indivíduos, toda a sociedade
humana, e em razão da autoridade que lhe atribuem, passam a devotar-lhe todo o respeito.
A intensificação da emoção pode estar no cerne daquilo que McDougall chamou de
condição para a constituição de um grupo no sentido psicológico: “esses indivíduos devem
ter algo em comum uns com os outros, um interesse comum num objeto, uma inclinação

72
LE BON, (1855) apud FREUD, S. ibidem.
73
ibidem
74
MCDOUGALL,W. (1920) apud FREUD, S., ibidem
emocional semelhante numa situação ou noutra e certo grau de influência recíproca”75 .
Assim, continua ele, quanto mais alto o grau dessa “homogeneidade mental”, mais
facilmente se constitui um grupo psicológico e mais notáveis são as manifestações da
mente grupal.
É possível identificarmos este interesse comum nos laços que os membros do grupo
têm com o líder, uma vez que Le Bon atribui o aparecimento das peculiaridades observadas
no grupo à sugestão mútua e ao prestígio do líder. Freud avança um pouco mais em sua
análise e recorre a sua teoria da libido para investigar o fenômeno da sugestão e como ela
opera no grupo. Segundo ele, o termo libido refere-se à “energia, considerada como uma
magnitude quantitativa das pulsões que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido pela
palavra ‘amor’” 76 . Ressalta ainda que embora tenha como núcleo o amor sexual, não
separa disso o amor próprio, por um lado, e por outro o amor pelos pais e filhos, a amizade
e o amor pela humanidade em geral, além da devoção por objetos e idéias, sendo este
último grupo chamado por ele de “libido inibida em sua finalidade”. De acordo com Freud,
as relações amorosas estão presentes na mente grupal de duas maneiras: por um lado, o
grande poder que manteria os laços unidos no grupo seria o amor, e por outro, este mesmo
amor faria com que seus membros procurassem manter a harmonia entre eles através de
influências mútuas.
Os laços libidinais – com o líder prioritariamente e com os membros do grupo num
segundo plano – são o que mais essencialmente caracterizam o grupo e do que derivam
suas outras características. A identificação é considerada a forma de expressão mais remota
de laço emocional com outra pessoa, desempenhando inclusive um papel fundamental na
primitiva história do complexo de Édipo77. Neste ponto é importante fazer uma distinção
em relação ao que tratamos como identificação em um momento inicial e outros tipos de
identificação. Em um primeiro momento, a identificação remonta à pré-história do sujeito
e, nesse sentido, só pode ser uma identificação com o significante. Já as demais formas de
identificação são decorrentes da dialética das relações de objeto.
Assim, um dos tipos de identificação decorrentes das relações de objeto pode ter
origem no complexo de Édipo. No caso do menino, ele tomará o pai como ideal:

75
MCDOUGALL,W. (1920) apud FREUD, S., ibidem, p.95.
76
ibidem, p.101.
77
ibidem
demonstrará um interesse especial por ele, desejará ser como ele e tomar seu lugar em tudo.
Além dessa identificação com o pai, existe uma outra corrente afetiva a partir da qual o
menino faz um investimento objetal em relação à mãe, de acordo com o tipo de ligação
descrito por Freud como anaclítico78. Como existe uma tendência em relação à unificação
da vida mental, estes dois tipos de ligação acabam por se unir, dando origem então ao
complexo de Édipo. O menino passa a enxergar o pai como um obstáculo, uma vez que ele
deseja substituí-lo também no desejo em relação à mãe e a identificação anteriormente
existente adquire uma dimensão de hostilidade. É possível haver também uma inversão no
complexo de Édipo e o pai ser tomado como objeto de uma atitude feminina. Neste caso, a
identificação com o pai é precursora de uma vinculação de objeto com ele79. Freud faz uma
diferenciação bem clara entre identificação e escolha de objeto. Como já foi dito, a
identificação remonta a um momento primeiro da experiência do sujeito e precede qualquer
tipo de escolha de objeto. Neste caso, trata-se do que o eu gostaria de ser, ou seja, o eu
esforça-se por se moldar segundo aquele que foi tomado como modelo. No caso da escolha
de objeto, trata-se daquilo que o eu gostaria de ter.
Freud ilustra o tipo de identificação que tem origem no complexo de Édipo a partir
do exemplo de uma menina que desenvolve o mesmo sintoma que a mãe. Existe um desejo
hostil da menina de tomar o lugar da mãe e o sintoma aparece como a expressão, sob
influência do sentimento de culpa, de seu amor objetal pelo pai. Um segundo tipo de
identificação faz com que a pessoa manifeste o mesmo tipo de sintoma da pessoa amada,
sendo clássico o exemplo da jovem Dora, paciente de Freud que desenvolve a mesma tosse
apresentada pelo pai. Neste caso, “a identificação apareceu no lugar da escolha de objeto e
a escolha de objeto regrediu para a identificação” 80 . Em ambos os casos em que a
identificação ocorre tomando como base a relação de objeto, chama a atenção o fato de a
identificação ser parcial e extremamente limitada, de modo que é possível dizer que se trata

78
Em alemão Anlehnungstypus, literalmente “tipo de inclinação”, traduzido para o inglês por “tipo anaclítico”
por analogia ao termo gramatical “enclítico”, que designa as partículas que não podem ser a primeira
palavra de uma frase, mas devem servir de apêndice ou devem apoiar-se em outra mais importante. Já nos
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade Freud apresenta a idéia de que a criança chega ao seu primeiro
objeto sexual à base de sua pulsão nutricional. FREUD, S., Sobre o narcisismo: uma introdução [1914 ],
Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. XVIII,
(1995).
79
FREUD,S. -Psicologia de grupo e análise do eu.
80
ibidem, p.116.
de identificação com determinado traço da pessoa que é objeto dela. No que diz respeito à
formação de sintomas, existe ainda um terceiro caso que, no entanto, desconsidera
completamente a relação de objeto. Neste caso, o mecanismo da identificação baseia-se na
possibilidade ou mesmo no desejo de colocar-se na mesma situação da outra pessoa. Em
um primeiro momento, há a inclinação a atribuir tal mecanismo ao contágio e à sugestão,
fenômenos comuns nos grupos. No entanto, Freud lembra que ao contrário do que se pode
imaginar, a sugestão e o contágio não são os causadores da identificação, mas sim efeitos
da mesma81. No grupo, os laços libidinais que unem seus membros são da natureza de uma
identificação baseada em uma característica emocional comum, ou seja, o laço emocional
com o líder.

Narcisismo, Ideal do eu e Eu ideal

Para entender melhor o mecanismo da identificação é importante recorrermos a


alguns outros conceitos importantes em Psicanálise, entre eles o conceito de narcisismo,
referência na qual se baseia este tipo de ligação.De acordo com Freud, o termo narcisismo
deriva da descrição clínica realizada pelos médicos Paul Näcke e Havelock Ellis no final da
década de 1890. Foi utilizado inicialmente na descrição da atividade de uma pessoa que
toma seu próprio corpo como o corpo de um objeto sexual até obter satisfação com ele. No
entanto, a observação clínica forneceu indícios de que existiria uma localização da libido
descrita como narcísica que faz parte do curso normal do desenvolvimento sexual humano.
Ao tentar incluir o que se conhecia da demência precoce ou esquizofrenia – as quais
Freud propôs chamar parafrenias – na hipótese da teoria da libido, percebeu-se que o
grande desvio de interesse para seu mundo interno os tornava inacessíveis à influência da
psicanálise. O parafrênico parece realmente ter retirado sua libido das pessoas e dos objetos
externos para dirigir-se para seu próprio eu, dando margem a uma atitude que se pode
chamar de narcisista. O narcisismo primário poderia ser confundido com o auto-erotismo,
descrito como o estado inicial da libido. No entanto, existe uma diferença fundamental
entre os dois, uma vez que ao falarmos de pulsões auto-eróticas ainda não existe uma

81
ibidem
unidade comparável ao eu. O eu tem de ser desenvolvido, assim, é necessária uma nova
ação psíquica a fim de dar origem ao narcisismo.
Freud recorre ainda à vida mental dos povos primitivos e das crianças – o quais
superestimam o poder de seus desejos e pensamentos – para mostrar que há um
investimento libidinal original do eu, parte do qual é mais tarde desviado para outros
objetos, mas que fundamentalmente persiste e está relacionada com o investimento dos
objetos. A partir de suas pesquisas Freud observou duas características importantes. A
primeira diz respeito ao aspecto reversível do investimento libidinal, ou seja, a libido pode
ser transmitida aos objetos, posteriormente retirada e novamente investida. Em segundo
lugar, existe uma antítese entre a libido do eu e a libido objetal, o que significa que quanto
mais uma é empregada, mais a outra se esvazia82. Um exemplo bastante claro disso é o
estado de quem está apaixonado, onde é possível observar um empobrecimento do eu em
contrapartida a uma supervalorização do objeto amoroso.
Ao longo do desenvolvimento mental o narcisismo original é arrefecido e a energia
libidinal tem como destino as instâncias ideais, via recalque. Uma análise mais detida
indica que o recalque operado tem como fator condicionante a fixação de um ideal, o qual
mede e julga o eu real. Este eu-ideal passa a ser investido de todo amor que era dirigido ao
eu na infância e passa a ser possuidor de toda a perfeição e valor. De acordo com Freud, o
eu não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de que desfrutava na infância. Assim,
para recuperar a perfeição perturbada pelas exigências exteriores e pelo próprio julgamento,
o eu projeta diante de si uma imagem idealizada sob a forma de um eu-ideal. A pesquisa
psicanalítica revela alguns outros casos em que o mecanismo da identificação atua. Um
deles diz respeito à gênese da homossexualidade, quando, ao fim da puberdade, o menino
não abandona a fixação que teve na mãe no início do complexo de Édipo. Ao contrário, o
jovem se identifica com sua mãe, passa a procurar objetos que possam substituir seu eu e dá
a eles o mesmo tratamento carinhoso que sua mãe lhe dispensava. Outro caso foi relatado
por Freud a partir da análise da melancolia, a qual é motivada pela perda real ou emocional
de um objeto amado e tem como característica importante uma grande depreciação do eu.
Na verdade, uma análise mais detida do sujeito melancólico revelou um eu dividido em

82
FREUD, S.- Sobre o narcisismo: uma introdução [1914 ],in: Edição Standard Brasileira das Obras
completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. XVI, (1995).
duas partes, sendo que a primeira parte vocifera contra a segunda, identificada com o objeto
perdido. A primeira parte diz respeito à consciência, - Gewissen - a qual deve ser
diferenciada da consciência segundo o ponto de vista fenomenológico: Bewusstsein - uma
instância crítica dentro do eu, capaz de isolar-se do resto dele e mesmo de entrar em
conflito com ele. A esta instância Freud deu o nome de ideal do eu, o qual tem as funções
de auto-observação, consciência moral, censura nos sonhos e influência no recalque,
constituindo o herdeiro do narcisismo original, em que o eu infantil desfrutava de auto-
suficiência.
Mais tarde em seu texto de 1923, O ego e o id, Freud nomeia tal instância de
supereu, à qual cabe esta função de julgamento83. O supereu constitui justamente o agente
psíquico especial responsável pela tarefa de assegurar a satisfação narcisista proveniente do
ideal do eu, medindo e julgando o eu por este ideal. Além disso, ao longo da vida o ideal do
eu vai acumulando as influências da cultura e as exigências impostas ao eu pela sociedade,
à altura das quais o homem nem sempre consegue estar84.
Freud chama a atenção para a relação entre a formação de um ideal e a sublimação.
A sublimação é um processo que diz respeito à libido objetal e consiste no direcionamento
da pulsão para um alvo não sexual, sem envolver o recalque. Já a idealização pode operar
tanto em relação à libido do eu quanto em relação à libido objetal, aumentando as
exigências do eu e constituindo o fator mais poderoso a favor do recalque. Freud adverte
ainda que na medida em que a sublimação tem a ver com a pulsão e a idealização com o
objeto, os dois conceitos devem ser distinguidos um do outro.
Neste ponto é importante fazer algumas considerações. Em primeiro lugar, é preciso
observar que o valor da distância entre este ideal do eu e o eu real é variável de um
indivíduo para outro. Outro ponto a ser discutido é a distinção entre eu-ideal e ideal do eu,
tema que gera dúvidas e confusão. Esta mesma questão foi objeto de discussão no
Seminário1 de Lacan - Os escritos técnicos de Freud – em uma lição chamada “Ideal do eu
e Eu-ideal”85.

83
FREUD,S. – O ego e o id [1923], in: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud,
Rio de Janeiro, Imago, vol. XIX, 1995.
84
FREUD,S. -Psicologia de grupo e análise do eu.
85
LACAN,J. -O Seminário livro1: Os escritos técnicos de Freud [1953-1954], Rio de Janeiro, Jorge Zahar
editor, 1986.
Um dos pontos discutidos se refere a um trecho já comentado do texto de Freud
Sobre o narcisismo: uma introdução: “Esse eu ideal é agora o alvo do amor de si mesmo
desfrutado na infância pelo eu real” e prossegue: “Ele não está disposto a renunciar à
perfeição narcisista de sua infância (...) procura então recuperá-la sob a nova forma de um
ideal do eu”86. A discussão é suscitada justamente pela utilização dos dois termos – eu-ideal
e ideal do eu – no mesmo trecho. Uma colocação de Serge Leclaire, que participava do
seminário de Lacan, tem um efeito bastante esclarecedor, pois, de acordo com ele “Freud
afirmou a existência do eu-ideal, a que chama em seguida ideal do eu, ou forma do ideal do
eu”87 Logo de saída já fica claro qual a posição ocupada pelo eu ideal neste processo, isto é,
posição de objeto. Assim, o sujeito se relaciona com o eu-ideal da mesma maneira como se
relaciona com qualquer outro objeto, ou seja, no nível da fantasia, do gozo, do investimento
e do desinvestimento libidinal. Além de estar no campo do investimento libidinal, está no
campo do amor, fenômeno cuja dimensão imaginária pode ser considerada prevalente e que
segundo Lacan, provoca uma verdadeira subdução do simbólico, ou mesmo uma anulação,
uma perturbação da função do ideal do eu, abrindo as portas para a perfeição88. O estado de
enamoramento ou de estar apaixonado promove um superinvestimento no objeto amado,
elidindo as imperfeições do mesmo, como já dizia Freud em sua Psicologia de Grupo e
análise do eu89.
O ideal do eu, por sua vez, está situado no vértice de interseção entre Simbólico e
Imaginário como indicado abaixo no esquema R desenvolvido por Lacan, e diz respeito ao
significante da criança esperada e, nesse sentido, precede o eu-ideal. A troca simbólica é o
que promove laço social, ou seja, é o que liga os seres humanos entre si. O ideal do eu é o
que representa o outro enquanto falante, o qual na dinâmica da relação simbólica, é ao
mesmo tempo semelhante e diferente. Além disso, é importante ressaltar que o ideal do eu
também faz parte do imaginário, pois como já foi dito, encontra-se justamente no vértice
dos dois triângulos, fazendo parte ao mesmo tempo do imaginário e do simbólico (fig.1).
De acordo com Lacan, “é a palavra, a função simbólica que define o maior ou menor grau
de perfeição, de completude, de aproximação do imaginário. O ideal do eu comanda o jogo

86
FREUD, S. -Sobre o narcisismo: uma introdução.
87
Comentário de Serge Leclaire citado em O Seminário livro1: Os escritos técnicos de Freud , p. 157.
88
LACAN, J.- O Seminário livro 1: os escritos técnicos de Freud, p.166.
89
FREUD,S. -Psicologia de grupo e análise do eu.
de relações de que depende toda a relação a outrem E dessa relação a outrem depende o
caráter mais ou menos satisfatório da estruturação imaginária”90.

Uma vez que eu-ideal e ideal do eu foram distinguidos um do outro, é possível fazer
algumas considerações sobre a relação do ideal do eu com o grupo. Freud diz que a
constituição libidinal do grupo está baseada no fato de que todos os indivíduos do grupo
elegeram um só e mesmo objeto externo como ideal do eu e, conseqüentemente, se
identificaram uns com os outros em seu eu.91 Este objeto externo é o líder do grupo, o qual
promove uma dupla ligação entre os membros do grupo: eles se encontram unidos por um
laço comum, ou seja, sua ligação emocional com o líder e o fato de se identificaram
elegendo-o como mesmo ideal do eu. Na verdade a posição do líder enquanto ideal do eu
poderia comportar o risco de ser confundido com o eu ideal, na medida em que se trata de
uma pessoa que encarna tal posição, mas Freud é bem claro ao designar o líder como ideal
do eu.
Uma outra vertente para se abordar o grupo é a análise dos povos primitivos. Tal
análise permite constatar que a origem da constituição da sociedade só foi possível a partir
de uma subtração da parcela de gozo, ou seja, através da restrição da liberdade sexual. Na
verdade, a questão da restrição da vida pulsional como condição de possibilidade para a
constituição da civilização marca uma anterioridade lógica, pois o que vem antes da
civilização é da ordem do mito e não da experiência humana enquanto tal. A partir do mito

90
LACAN,J. -O Seminário livro 1: os escritos técnicos de Freud, p.166.
91
FREUD, S. - Psicologia de grupo e análise do eu.
descrito em Totem e Tabu92 Freud pretende dar conta da formação do conjunto de pessoas
instituídas socialmente. Segundo ele, a mais antiga instituição encontrada é o totemismo, ou
seja, pequenas tribos chamadas clãs, que mantêm uma relação especial com um animal – o
totem - o qual nomeia cada clã. As duas principais leis que imperavam no clã eram a
interdição do assassinato do animal totem e a interdição ao incesto. No entanto, para Freud,
a lei de interdição do incesto ultrapassa o sistema totêmico e vai servir de base para o
estabelecimento do laço social e a organização da civilização. Outro aspecto do sistema
totêmico descrito por William Robertson Smith93 é a “refeição totêmica”, a qual possui um
significado e uma origem interessantes no que diz respeito à origem da lei, da subtração do
gozo e da constituição da civilização. A matança e a ingestão comunal do animal que
representava o totem, cujo consumo era proibido em qualquer outra ocasião, constituía uma
característica fundamental do totemismo. A participação de todos era obrigatória e quando
o festim terminava, o animal morto era lamentado e pranteado. A refeição totêmica tem
como objetivo que os membros do clã adquiram santidade e reforcem sua identificação com
o totem e uns com os outros, mas principalmente que eles reneguem a responsabilidade
pela matança, uma vez que no final chora-se pelo animal morto. O ritual comporta uma
clara ambivalência: se por um lado constitui um ato festivo, por celebrar a liberdade de
fazer o que é via de regra proibido pelo grupo, por outro lado exige dos comensais o
lamento e o pranto pela matança94.
As contribuições de Freud lançaram nova luz sobre os estudos de até então. A
Psicanálise revelou que o animal totêmico é na verdade um substituto do pai, o que
esclarece ainda mais a ambivalência das atitudes em consonância com o comportamento do
menino em relação ao pai no complexo de Édipo, marcado por uma intensa rivalidade ao
mesmo tempo em que comporta afeição e admiração. O mito freudiano de Totem e Tabu
reúne as teorias de Darwin sobre o estado primitivo da sociedade humana com aspectos do
totemismo sob a luz da Psicanálise. De acordo com Freud, no início tudo o que havia era
um macho violento e ciumento (Pai) que gozava de todas as mulheres e expulsava os outros
machos (filhos) do clã na medida em que eles cresciam e se tornavam possíveis rivais. Um

92
FREUD, S. -Totem e Tabu, [1912] in: Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud,
Rio de Janeiro, Imago, vol. XII (1995)..
93
SMITH,W.R. apud FREUD, S. ibidem.
94
ibidem.
dia, os filhos se uniram e em grupo tiveram coragem para enfrentar o Pai, coisa que não
lhes era possível individualmente. Os filhos retornaram, mataram o Pai e devoraram-no.
Apesar de temido, o Pai era também invejado e servia de modelo para os filhos. O ato de
devorar o Pai tinha como base uma identificação com ele, de modo que cada um que
participava do banquete adquiria parte de sua força. Freud aponta para o fato de que a
refeição totêmica mencionada anteriormente, o mais antigo festival da humanidade, talvez
seja uma repetição e ao mesmo tempo uma comemoração desse ato dos filhos. O
assassinato do Pai marcaria o início da organização social, das restrições morais e da
religião.
Tal como no complexo de Édipo, ao mesmo tempo em que o Pai era odiado por
barrar seus desejos sexuais, era admirado e a afeição tanto tempo recalcada, começou a
aparecer sob a forma de remorso. A partir do sentimento de culpa do grupo o Pai morto
tornou-se mais forte do que quando era vivo. Na verdade, o assassinato do pai não tornou as
coisas mais fáceis para os filhos. Eles passaram a brigar e a matar entre si para ocupar o
lugar do Pai. Se eles se uniram para matar o Pai, a partir de então passaram a ser rivais no
que dizia respeito às mulheres. Freud observa que “os desejos sexuais não unem os homens,
mas os dividem”95. Nenhum dos filhos possuía a força e a ascendência do Pai e a luta pelo
poder continuaria, não fosse a decisão dos filhos de instituírem a lei da interdição ao
incesto, o que permitiu que eles vivessem juntos.
Assim, é possível observar que foi a partir de uma subtração do gozo que os irmãos
puderam se organizar socialmente. Inicialmente rivais, os membros daquele grupo
acabaram se identificando uns com os outros por meio de um objetivo comum: primeiro,
assassinar o Pai e, segundo, amor ao Pai oriundo do remorso por tê-lo matado. Freud
observa que o que aparece posteriormente como um “espírito de grupo”, de maneira alguma
desmente a sua derivação do que foi originalmente inveja96. Isto deixa clara a natureza
ambivalente dos laços emocionais entre os indivíduos, uma vez que o sentimento social tem
sua origem na ambivalência afetiva onde duas correntes convivem de forma dialética. A
mesma lógica pode ser aplicada se considerarmos as instituições psicanalíticas, o que nos
leva a fazer alguns comentários sobre sua história e seu funcionamento.

95
ibidem, p.147.
96
ibidem.
As instituições psicanalíticas

Talvez devêssemos começar questionando se as associações de Psicanálise se


reúnem em torno de uma pessoa – Freud – ou de um pensamento – a Psicanálise. Uma vez
que Freud não considerava a Psicanálise capaz de produzir uma Weltanschaunng, ou seja,
“uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existências
uniformemente”97, muito pelo contrário, ele acolhia os furos que sua teoria produzia para
debruçar-se sobre eles, não sabemos se seria pertinente iniciar aqui uma discussão desta
natureza. De qualquer maneira, não consideramos que seja o caso. A título de formalização,
adotaremos a idéias de que as associações psicanalíticas se reúnem em torno de Freud.
Como já foi mencionado no capítulo anterior, a Sociedade Psicológica das Quartas-
Feiras constituiu o primeiro passo para a reunião em torno do estudo da Psicanálise. Ela
teve início de forma modesta e informal em 1901 quando um grupo se reuniu para estudar e
discutir casos clínicos junto com Freud em sua casa. Inicialmente Freud enviou cartões
postais convidando Wilhelm Stekel, Max Kahane, Rudolf Reitler e Alfred Adler a
participarem dos encontros de quarta-feira à noite. Durante os primeiros anos, o ingresso no
grupo era feito mediante a apresentação por algum membro e embora tivesse como
condição a aprovação unânime, devido à atmosfera cordial, tratava-se de mera formalidade.
Anos mais tarde Freud definiu o grupo como “um certo número de médicos mais jovens
(que) reuniu-se em torno de mim com a intenção expressa de aprender, praticar e difundir a
Psicanálise”98.
Em 1906, quando Freud completou cinqüenta anos e a Sociedade Psicológica das
Quartas-Feiras completou cinco, a estrutura do grupo sofreu uma alteração. Os membros
decidiram contratar um secretário para registrar a presença, manter as contribuições em dia
e tomar notas a cada reunião. Este cargo foi ocupado por Otto Rank, judeu inteligente e
leitor voraz, por quem Freud passou a nutrir grande simpatia e interesse paternal. Segundo
o relato de um dos membros do grupo, Max Graf - pai do menino que mais tarde ficaria
conhecido como “o pequeno Hans” – as reuniões seguiam um ritual preciso: primeiro um

97
FREUD, S.- A questão de uma weltanschaunng, (1933[1932]) in:Edição Standard Brasileira das Obras
completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. XXII, (1995).
98
FREUD, S. apud GAY, P., Freud, uma vida para nosso tempo, p.170.
texto era apresentado por alguém. A seguir, café preto e bolo eram servidos, enquanto
cigarros e charutos ficavam à disposição na mesa. Após alguns minutos de conversas
sociais, a discussão começava, sendo que a palavra final e decisiva era sempre do próprio
Freud. As notas tomadas por Rank registravam a discussão propriamente dita além de
análises de obras literárias e personalidades públicas, resenhas de novos lançamentos
psiquiátricos e apresentações prévias de futuras publicações dos membros do grupo99.
No entanto, com o passar do tempo, as reuniões foram se tornando tensas devido ao
tom cada vez mais agressivo que as discussões estavam assumindo. Segundo Peter Gay, os
membros do grupo se utilizavam como pretexto a “franqueza analítica” para expressar a
antipatia e hostilidade para com os colegas à medida que cresciam as disputas por posições
e a necessidade de alardear a própria originalidade. Assim, em 1908 foram propostas
medidas formais a fim de reformular os procedimentos em voga, e debateu-se a proposta de
acabar com o “comunismo intelectual”, ou seja, a partir de então, cada idéia deveria ser
identificada como propriedade particular de seu criador. Freud propôs então que esta
decisão ficasse a critério de cada um: as contribuições de cada membro deveriam ser
tratadas como públicas ou privadas de acordo com a decisão do autor. Peter Gay chama a
atenção para o fato de que tais manifestações na Sociedade das Quartas-Feiras não
consistiam em sintomas comuns a qualquer grupo. O tema provocativo suscitado pelas
investigações psicanalíticas, as quais tocavam em pontos até então preservados da mente
humana, de alguma maneira vinha cobrar seu tributo. Afinal de contas, como lembra o
biógrafo de Freud, nenhum dos membros desse grupo havia sido analisado e os colegas
fazendo interpretações selvagens100 entre si, deixavam ainda mais evidentes as rivalidades e
tensões.
Na verdade, um ano antes Freud já havia proposto dissolver o grupo informal da
Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras para reconstituí-lo como Sociedade Psicanalítica
de Viena, defrontando-se com uma questão de cunho político. Roudinesco chama a atenção
para o fato de Freud ter fundado uma “sociedade de Psicanálise” e não uma “associação de
psicanalistas”. Segundo ela, a intenção era a de que os psicanalistas se reunissem em torno

99
ibidem.
100
O Vocabulário de Psicanálise define interpretação selvagem como uma interpretação que desconhece uma
situação analítica determinada na sua dinâmica atual e na sua singularidade, principalmente revelando de
modo direto o conteúdo recalcado sem levar em consideração as resistências e a transferência.
de uma causa comum, de modo que o vínculo que os unisse se baseasse numa ética que
minimizasse o efeito das relações imaginárias entre os membros do grupo. A criação de
uma política da Psicanálise centralizada numa teoria do inconsciente trazia a idéia de que os
psicanalistas se reconhecessem entre si por trabalharem por uma causa, e não pelo
reconhecimento horizontal entre os membros de um clã, baseado no prestígio e em
afinidades pessoais101. A respeito desta primeira dissolução na história da Psicanálise, Peter
Gay observa que Freud viu nesse ato a possibilidade de renovação, uma vez que tal
reorganização permitiu aos membros que haviam perdido o interesse ou não partilhavam
mais dos propósitos de Freud se desligarem do grupo discretamente.
É possível vermos aí os mecanismos descritos por Freud para caracterizar um grupo
psicológico. Cada psicanalista isoladamente pode ser considerado um “rival”, um
“concorrente” do outro, do ponto de vista da clínica, da realização pessoal e profissional e
mesmo do status e do prestígio. Também é verdade que aquele que permanece em sua
prática de maneira solitária, sem dividir suas experiências com seus pares, tem muito
menos visibilidade no meio psicanalítico, até porque tal psicanalista não se faz conhecer.
Desta maneira, a tendência à formação de grupos afins pode ser vista como uma tendência à
própria preservação do eu e não a um “espírito de grupo” inato. Fazer parte de um grupo
promove uma maior visibilidade, além de reforçar um sentimento de pertencimento por
meio da identificação em objetivos comuns. Isso evidencia uma tendência à satisfação do
próprio eu, pois é este que se satisfaz por encontrar outros não com quem se identifica, mas
que se identificam com ele, o que tem um efeito de auto-afirmação. Isso fica claro se
pensarmos que ao encontrar um grupo com o qual alguém se identifica, geralmente diz-se
“que bom que eles pensam como eu” e não “que bom que eu penso como eles”, o que
mostra que mesmo o investimento libidinal nos objetos traz latente um desejo de realização
narcísica.
No entanto, é importante ressaltar que não podemos atribuir a tendência à formação
de grupos desta natureza única e exclusivamente ao narcisismo. É possível encontrarmos
razões muito mais complexas que levam à constituição de uma sociedade de psicanálise,
por exemplo. O confronto com o real na experiência clínica impõe questões que levam os
psicanalistas a procurarem seus pares para discutirem, pensarem, enfim, trabalharem. Além

101
ROUDINESCO, E.- História da Psicanálise na França - A batalha dos cem anos:1925-1985.
disso, é possível pensarmos o outro lado da questão a partir de uma posição sustentada por
muitos analistas, segundo a qual o analista que se exime do trabalho nas instituições de
Psicanálise não quer se defrontar com a própria castração. Uma vez que procura
permanecer isolado, longe do diálogo e do confronto com seus pares, tal psicanalista
sustenta a ilusão de se bastar, procurando elidir a falta. Tal discussão acerca do grupo e da
satisfação do eu remete ao O mal-estar na civilização 102 , quando Freud questiona o
altruísmo humano e o mandamento de “amar o próximo como a ti mesmo”. É muito
comum ouvir as pessoas dizerem que ajudar os outros, praticar a caridade faz um enorme
bem a si mesmo. Nada mais egoísta do que praticar o bem ao próximo para obter a própria
satisfação. Um ato verdadeiramente altruísta visaria o bem do outro ainda que fizesse mal a
quem o pratica, o que é muito raro. Tal argumentação traz em seu seio a idéia de que
qualquer atitude do homem, em última instância, tem como objetivo a sua própria
realização. E a formação dos grupos não foge à regra. Já foi dito que o grupo promove um
relaxamento da censura, possibilitando ações que provavelmente não se praticariam por um
membro do grupo quando sozinho. No entanto, tais atos nada mais são do que a expressão
motora de desejos anteriormente recalcados, que encontraram uma via de realização através
do grupo. A satisfação de uma moção pulsional através de um ato praticado em grupo dilui
o sentimento de culpa que ele potencialmente acarretaria, através de uma espécie de
“responsabilidade compartilhada”.
Talvez seja precipitado colocar toda a responsabilidade pelos atos e realizações do
grupo na figura do líder. No entanto, é inegável que seu carisma leva os outros membros a
atitudes que beneficiam seus próprios objetivos, uma vez que uma das características do
grupo é justamente uma sobreposição de uma atitude emocional de seus membros em
detrimento do uso da razão e do senso crítico. Nesse sentido, é importante que o carisma
não esteja velando a tirania por trás da liderança. Freud citou a Igreja e o Exército como
exemplos de grupos organizados 103 e Lacan mais tarde se referiu a eles para falar das
sociedades de Psicanálise104. Isso nos indica o caráter de seita religiosa que uma sociedade

102
FREUD,S.- O mal estar na civilização [1929], in:Edição Standard Brasileira das Obras completas de
Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. XXI, (1995)
103
FREUD,S. -Psicologia de grupo e análise do eu .
104
LACAN, J.- Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola .
psicanalítica pode assumir se permanecer fechada em suas próprias idéias e no que Freud
chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”105
Felizmente, parece que atualmente a tendência tem sido justamente no sentido de
uma oposição ao fechamento. É possível observar a realização de eventos
interinstitucionais no meio psicanalítico, ou mesmo de eventos promovidos por instituições
que procuram cada vez mais ir além de seus próprios membros, contando com a
participação de convidados, dando a palavra a outros. Além disso, é possível vermos
iniciativas que vão ainda mais longe, como Convergência, Movimento Lacaniano para a
Psicanálise Freudiana, a qual admite diversos modos de organização de cada instituição
membro que participa. Fundada em 1998, em Barcelona, Convergência tem como propósito
fundamental fazer avançar as questões cruciais da Psicanálise, apostando na multiplicidade
de enlaces, a partir da formação de cartéis e grupos de trabalho.106
De acordo com Miller, a própria IPA já reconhece a importância de Lacan no
movimento psicanalítico e tem incluído sua leitura na formação que oferece. Ainda é cedo
para afirmar que o reconhecimento do ensino de Lacan pela IPA vá resultar em um diálogo
entre suas sociedades e as Escolas de orientação lacaniana. No entanto, já podemos
considerar um primeiro passo neste sentido, pois ainda que a prática de Lacan seja
execrada, o estudo de sua teoria já é valorizado. Contradição, paradoxo, ou pura
resistência? Só o tempo dirá.

A criação da IPA

De acordo com Gay, na época da dissolução da Sociedade Psicológica das Quartas-


Feiras o grupo de Viena já não se mostrava mais tão entusiasmado e foi com a adesão de
estrangeiros que o movimento psicanalítico tomou novo fôlego.107
Entre o grupo dos não vienenses que se interessaram pela Psicanálise, Carl Gustav
Jung logo se tornou um dos seguidores preferidos de Freud. Suíço, psiquiatra clínico e
experimental, Jung parece ter ocupado para Freud num primeiro momento o lugar de
105
FREUD,S. - O mal estar na civilização.
106
Convergência Movimento Lacaniano para a Psicanálise Freudiana, Ata de Fundação, Barcelona, 3 de
outubro de 1998.
107
GAY,P. op.cit
“herdeiro da Psicanálise” e eles passaram a ter um relacionamento intenso não só do ponto
de vista profissional, como também no âmbito pessoal.
Quando em 1910 surgiu a idéia da criação de uma Associação Internacional de
Psicanálise (International Psychoanalysis Association –IPA), Jung foi indicado por Freud
para ser seu primeiro presidente. Segundo o próprio Freud, sua idade estava bastante
avançada para assumir um compromisso dessa espécie e ele viu em Jung um jovem com
dotes excepcionais, que muito já havia contribuído para a Psicanálise e que além de tudo
estava disposto a manter um bom relacionamento pessoal com ele, Freud. Mais tarde, o
criador da Psicanálise chegou a dizer que todas as vantagens vistas por ele não o livraram
de uma má escolha. De acordo com as impressões de Freud, Jung mostrou-se uma pessoa
incapaz de lidar com a autoridade ou mesmo de exercê-la e suas energias voltavam-se
completamente para seus próprios interesses108.
A Psicanálise já havia conquistado adeptos em vários países da Europa e nos
Estados Unidos, encerrando um período que o próprio Freud chamou de “infância do nosso
movimento”109. Assim, durante o Congresso Internacional de Nürnberg, em 1910, Ferenczi
foi porta-voz do desejo de Freud de organizar o movimento psicanalítico e apresentou as
propostas para a criação de uma Associação Internacional de Psicanálise. Desde o primeiro
Congresso Internacional de Psicanálise, Freud tinha a intenção de organizar o movimento,
transferir seu centro para Zurique e dotá-lo de um presidente. Segundo ele, Viena não era o
lugar apropriado para esta nova fase da Psicanálise e tampouco ele considerava oportuno
que sua figura ficasse em evidência, devido às calorosas oposições de que era alvo. Além
disso, Freud julgava necessário formar uma associação oficial por temer os abusos a que a
Psicanálise estaria sujeita com sua crescente difusão pelo mundo. Em suas palavras, era
importante haver uma sede cuja função seria declarar: “Todas essas tolices nada tem a ver
com a análise, isto não é Psicanálise”110.
A Associação Internacional de Psicanálise seria constituída por grupos locais em
cujas sessões seria ensinada a prática da Psicanálise e seriam preparados médicos, cujas
atividades receberiam uma espécie de garantia. Outra preocupação de Freud era preservar

108
FREUD, S.- [1914],in: Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro,
Imago, vol. XIV, (1995).
109
GAY,P. op.cit, p.209.
110
FREUD, A história do movimento psicanalítico, p.52.
um espaço onde os partidários da Psicanálise pudessem se reunir para a troca de idéias e
apoio mútuo, uma vez que a ciência “oficial” havia lançado um anátema solene contra a
Psicanálise e declarado um boicote contra os médicos e instituições que a praticassem. Seu
objetivo seria “promover e apoiar a ciência da Psicanálise fundada por Freud, tanto como
psicologia pura como em sua aplicação à medicina e às ciências mentais e cultivar o apoio
mútuo entre seus membros para que fossem desenvolvidos todos os esforços no sentido da
aquisição e difusão de conhecimentos psicanalíticos”111.
A IPA consolidou –se como uma instituição forte, resistindo mesmo a Primeira
Guerra Mundial, a qual dissolveu tantas organizações, como lembra Freud em seu Estudo
Autobiográfico. Nos anos 20, Freud acreditava que finalmente a Psicanálise havia
conseguido seu reconhecimento tanto como um ramo do conhecimento quanto como um
método terapêutico. O número de grupos locais filiados a IPA havia crescido
consideravelmente, estendendo-se inclusive por países da Ásia, África e América112. Com
seus próprios recursos, as sociedades locais apoiavam institutos de formação, nos quais a
instrução na prática da Psicanálise era ministrada em conformidade com um plano
uniforme, além de haver clínicas para pacientes externos de recursos financeiros limitados,
atendidos por profissionais experientes ou alunos.
Posteriormente, o diagnóstico de câncer de Freud em 1923 e o terrível prognóstico
dado pelos médicos funcionaram como uma causa precipitante para a necessidade de
estabelecimento de um protocolo de formação do psicanalista. Os discípulos de Freud – e
ele próprio- não imaginavam que ele ainda viveria 16 anos produzindo e, dessa maneira,
apressaram a formalização de tal protocolo, a fim de proteger sua obra da heterodoxia.113
Retomando a análise feita por Freud dos grupos, é possível percebermos nesse
episódio a importância que os laços libidinais com o líder assumem neste contexto. Além
disso, a iminência da perda desses laços, deixando o grupo numa situação de desamparo,
leva o grupo ao pânico e a uma tentativa de manter sua coesão.Assim, se os discípulos de
Freud viam-se desamparados pela ameaça de sua morte, procuraram se organizar em torno

111
ibidem, p.53.
112
FREUD, S.-Um estudo autobiográfico [1925], in:Edição Standard Brasileira das Obras completas de
Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. XX (1995).
113
SAPHOUAN, M.- Jacques Lacan e a questão da formação do analista.
de um protocolo que, recebida a legitimidade conferida pela autoridade de Freud, os
manteria unidos entre si e a seu líder.
O alto nível de organização assumido por alguns grupos psicanalíticos – filiados a
IPA ou não – fez com que apresentassem as cinco condições enumeradas por McDougall
para que um grupo seja considerado organizado e se veja livre das desvantagens de um
grupo “não organizado”. São elas: 1) haver certo grau de continuidade de existência no
grupo; 2) em cada membro do grupo deve se formar uma idéia definida da natureza,
composição, funções e capacidades do grupo, de forma a poder desenvolver uma relação
emocional com o grupo como um todo; 3) o grupo deve ser colocado em interação (talvez
sob a forma de rivalidade) com outros grupos semelhantes, mas que dele difiram em vários
aspectos; 4) o grupo deve possuir tradições, costumes e hábitos que determinem a relação
dos membros uns com os outros; 5) o grupo deve ter uma estrutura definida, expressa na
especialização e diferenciação das funções de seus constituintes. Segundo o autor, tal
organização, que tem na Igreja e no Exército seus melhores exemplos, afasta desvantagens
como excesso de emoção, impulsividade, violência, inconstância, contradição e extremismo
em suas ações, grande suscetibilidade à sugestão, julgamento apressado, entre outras.114
No entanto, não seremos ingênuos a ponto de considerar que uma alta organização
dessa natureza, se é que livra o grupo de todos os problemas descritos, não traz outras
conseqüências igualmente desvantajosas. É possível pensar que se um grupo “não
organizado” sofre por ser extremamente emocional, desconsiderando qualquer raciocínio
lógico, o grupo organizado padece de um excesso de racionalidade e formalismo, o que não
o exime das identificações e influências mútuas dentro do grupo. O grau de organização
apresentado por algumas sociedades de Psicanálise fez com que se fechassem em si
mesmas e passassem a funcionar segundo um mecanismo burocrático que favorecia o
prestígio e o dogmatismo.
Embora esta situação não seja restrita unicamente às instituições filiadas a IPA – o
que seria partir para um maniqueísmo de forma alguma profícuo - é fato que as primeiras
críticas tiveram como alvo seu modo de funcionamento e a maneira como tratavam a
formação do analista.115 Assim, ao contrário do que muitos podem pensar, não foi Lacan o

114
MCDOUGALL (1920) apud FREUD, S.- Psicologia de grupo e análise do eu.
115
A formação do analista dispensada pela IPA é descrita e analisada mais detalhadamente em minha
Monografia de Especialização intitulada “A questão da formação do analista”.
primeiro a expressar suas opiniões a este respeito, embora suas críticas tenham tido as
maiores conseqüências. Antes de Lacan, Balint, em 1947 e Bernfeld, em 1950, elaboraram
uma severa crítica quanto à formação dos analistas em vigor na IPA. A denúncia de Balint
se dirigia particularmente à relação entre a hierarquia institucional, o dogmatismo e a
ignorância relativos ao problema da análise didática, isto é, análise feita pelo candidato a
tornar-se analista (o termo análise didática merece ressalvas após a colocação de Lacan de
que toda análise se levada até o fim produz um analista116). Balint denunciava a “submissão
dos alunos a um tratamento dogmático e autoritário, sem qualquer protesto, e seu
comportamento reverencioso”117. Vemos aqui uma situação típica em que a individualidade
deve ser sacrificada em nome do interesse do grupo: qualquer questionamento que possa
colocar em risco a estabilidade do grupo deve ser sufocado em nome de sua coesão e da
harmonia entre seus membros. Por outro lado, o sistema hierárquico produz novos líderes
que passam a agir como se detivessem um valioso saber e o poder de determinar o destino
dos outros. Trata-se na verdade de uma crença num saber sobre a formação do psicanalista,
afinal de contas, se dizer que os grupos se formaram em torno de Freud é um tanto vago,
mais preciso seria dizer que os psicanalistas se reuniram em torno de alguém ou algo que
pudesse orientá-los no sentido de sua formação.

A formação do psicanalista

Alguém que, como Lacan, não só não concordasse, mas também desafiasse o
modelo vigente da formação - conseqüentemente desestabilizando o grupo - não sairia
impune, como já foi dito anteriormente. Ao contrário dos críticos anteriores, Lacan propôs
novas idéias para o problema da formação do analista. Didier-Weill118aponta três textos
que, segundo ele, marcam a evolução da posição de Lacan em relação a esta questão. O
primeiro deles é Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956, momento em
que Lacan expressa de maneira mordaz suas críticas em relação ao funcionamento da
formação. O segundo texto, referente à fundação da EFP (Escola Francesa de Psicanálise) é

116
LACAN, J. -Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.
117
BALINT, apud DIDIER-WEILL,- A questão da formação do psicanalista para Lacan, in: Lacan e a
formação do psicanalista, Marco Antonio Coutinho Jorge (org.), Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, 2006.
118
Ibidem.
o Ato de fundação de 21 de junho de 1964, escrito oito anos mais tarde. Tal texto reflete um
outro cenário, no qual Lacan, já expulso da SFP (Sociedade Francesa de Psicanálise) tenta
alicerçar sua própria Escola. E, finalmente, a célebre Proposição de 9 de outubro de 1967
sobre o psicanalista da Escola, onde é introduzida não só uma noção chave do ensino de
Lacan segundo a qual “o psicanalista só se autoriza por si mesmo”, mas também a
proposição do passe. Na realidade, é importante observar que existem duas versões da
Proposição, sendo que uma delas enfatiza a proposta do passe e introduz uma alteração no
aforisma de Lacan transformando-o em “o analista só se autoriza por si mesmo… e por
alguns outros”119.
Mas se Lacan se opunha tão radicalmente ao funcionamento das sociedades
psicanalíticas, bem como à formação vigente, o que ele pretendia ao fundar uma Escola de
Psicanálise? Em que seu propósito diferia das outras formas de organização a ponto de
garantir que não reproduziria os moldes da Igreja e do Exército, tal como Freud os
descreveu?
Na realidade, Lacan não se viu livre de críticas nesse sentido. Segundo Erik Porge,
ao fundar uma Escola, ele se deixa prender na armadilha da posição de líder descrita por
Freud na Psicologia de grupo e análise do eu. Henri Ey, ao ser convidado a fazer parte da
Escola, questiona Lacan sobre o que teria ele a ganhar com a fundação de uma Escola em
bases jurídico-administrativas precárias, se o que realmente constitui uma Escola é o ensino
livre a alunos livres, e nisso sua Escola já constituía uma realidade. Ey argumenta que uma
Escola não é uma instituição, mas justifica com uma frase que parece ter sido retirada de Le
Bon: “ela (a Escola, não se funda sobre sua oficialidade, mas no prestígio de seu mestre”120.
Roudinesco nomeia a fundação de uma Escola por Lacan de contradição, pois, segundo ela,
a originalidade da leitura lacaniana de Freud reside em afirmar sua ortodoxia em detrimento
de qualquer desvio gerado na era pós-Freud. A fundação de uma Escola em seu nome faz
com que de alguma maneira ele rompa com Freud, validando pelo menos a existência
política do que ela chama “lacanismo”. Assim, por este auto-reconhecimento, seu
movimento entra em contradição com a doutrina que o sustenta e que se quer freudiana121.

119
Embora o passe tenha sido formulado na Proposição, esta frase de Lacan foi proferida no Seminário livro
21 Les non dupes errent , de 1974.
120
PORGE,E. - Os nomes do pai em Jacques Lacan, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, (1998)
121
ROUDINESCO, E.- História da Psicanálise na França - A batalha dos cem anos:1925-1985.)
Porge ressalta que o lugar que Lacan passou a ocupar suscitou uma espécie de interpretação
segundo a qual a fundação de uma nova Escola seria uma tentativa metafórica de
assassinato do pai (Freud).122 Aí reside um mal entendido segundo o qual romper com a
IPA equivale a romper com Freud, quando o que acontece é outra coisa. Lacan opta por se
manter fiel à Psicanálise, ainda que a conseqüência seja um desequilíbrio da instituição,
gesto que ele repete no futuro ao dissolver a Escola que ele próprio fundou.E, se de alguma
maneira a IPA é a herdeira legítima do legado de Freud, foi justamente ao separar-se dela
que Lacan se mostrou freudiano.
Um aspecto fundamental que destaca a Escola fundada por Lacan das instituições
até então existentes é o fato de que ela não se organizou em torno de um saber, saber “o que
é um analista”, saber “formar” um analista. Ao contrário. Nas palavras de Miller “o mais
importante da Escola não é o que ela sabe – mas o que sabe que não sabe, o mais precioso
do saber da Escola é que ela sabe que não sabe”123. Este constitui um aspecto fundamental
até mesmo no fato da Escola ser chamada “freudiana”, uma vez que segue o preceito de
Freud e opera a partir do não-saber. Na verdade, trata-se de uma questão ainda mais radical,
ou seja, não é que não se saiba o que é o analista, mas sim que o analista em si não existe.
Desta maneira, o analista seria simplesmente o analisado, o analisante que levou sua análise
a termo e, não existindo um modelo de analista, sua formação, ou melhor, sua produção, se
daria da forma mais particular possível, o que exige uma reflexão constante por parte da
comunidade analítica.
Além disso, a utilização do termo “Escola” por Lacan não é sem razão, as quais ele
deixa claro no Ato de fundação: “o termo Escola deve ser tomado no sentido em que, nos
tempos antigos, significava certos lugares de refúgio ou bases de operação contra o que já
então se podia chamar mal-estar na civilização”124. Ele segue dizendo ainda que no que se
refere ao mal-estar reinante na Psicanálise, a Escola se oferece não só ao trabalho de crítica,
mas à abertura do fundamento da experiência, ao questionamento do estilo de vida em que
ela desemboca. A Escola se pretende diferente do grupo porque o último em geral se forma
em torno de um líder que mantém este grupo à distância, não empreendendo uma análise ou
mesmo um julgamento da prática analítica de seus membros.

122
PORGE,E., op.cit
123
MILLER,J.A., .A Escola de Lacan.
124
LACAN, J.- Ato de fundação (1964), in: Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p.244.
O próprio Ato de fundação da Escola Francesa de Psicanálise já apresenta uma
proposta de análise e mudanças significativas na estrutura da formação do analista. Logo de
início Lacan propõe a existência de uma Seção de Psicanálise Pura – além de outras duas: a
Seção de Psicanálise Aplicada e a Seção de Recenseamento do Campo Freudiano – a qual
deve se ocupar das questões relativas à Psicanálise didática, possuindo uma subseção
exclusivamente dedicada à crítica interna de sua práxis como formação. Seu objetivo
parecia ser avaliar não só os analistas em formação, mas principalmente os analistas
responsáveis pela formação, ou seja, os analistas didatas. Assim, é possível apontar como
mudança mais sensível aquela que se refere ao analista didata. Diz Lacan: “um psicanalista
é didata por ter feito uma ou mais psicanálises que tenham se revelado didáticas”.125 Ao
transpor para o campo da formação algo da experiência analítica, ou seja, a análise
enquanto uma aposta, o analista enquanto um efeito a ser verificado só depois, Lacan
parecia querer acabar com os vícios de uma nomeação por prestígio. Miller afirma isto ao
dizer que o que faz uma analista não é sua participação na Escola, seu engajamento, seus
trabalhos. Isto é outra coisa. O que faz uma analista é sua análise.126 A autorização como
didata se dá pela escolha e iniciativa de um candidato a analista, mas isto só vai se verificar
depois.
A Escola fundada em torno do não-saber o que é o analista convoca os analistas a
trabalharem, a pensarem sobre esta questão. Retornamos então ao que diz respeito à
coletividade no que tange os analistas. Talvez possamos encontrar um motivo para o fato de
se associarem no desejo de pensar e produzir isto que os une - no caso, a Psicanálise, o
analista em sua prática privada e entre seus pares. Talvez seja uma conseqüência da análise
querer dizer isso e encontramos aí uma continuidade entre a análise enquanto experiência
pessoal e individual e a vida em Escola.
Para introduzir esta discussão, recorremos ao terceiro texto que, segundo Alain
Didier-Weill, marca a evolução do pensamento de Lacan sobre a formação do analista: a
Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. Neste texto Lacan
revoluciona a concepção de formação, até então baseada no clássico tripé análise pessoal,
estudo da teoria e supervisão, para formalizá-lo segundo uma outra lógica que introduz a

125
ibidem., p. 239.
126
MILLER, J.A. -A Escola de Lacan, in: Lacan elucidado Palestras no Brasil
raccord Psicanálise em intensão – que não se refere senão à análise didática - e Psicanálise
em extensão – a qual trata de presentificar a Psicanálise no mundo127.
É importante ressaltar que para alguns autores, como Marco Antonio Coutinho
Jorge, Lacan de modo algum rompeu com a tradição clássica no que diz respeito ao tripé da
formação, mas introduziu um questionamento radical em cada um de seus elementos128.
Uma primeira problematização feita por Lacan pode ser observada quando ele “quase
chistosamente” declara nunca ter falado em formação do analista e sim em formações do
inconsciente, enquanto passa a falar em seus seminários que seu ensino visa produzir
efeitos de formação. Ao dizer que nunca falou em formação do psicanalista e sim em
formações do inconsciente Lacan parece reafirmar a única via pela qual um analisante
passa a analista, ou seja, sua análise pessoal. E o material da análise é constituído de
sonhos, chistes, atos falhos, ou seja, derivados do recalcado aos quais Freud chamou de
formações do inconsciente.
No que diz respeito aos três elementos do tripé, Jorge observa que a postura de
Lacan não foi refutá-los e sim problematizá-los. De uma maneira geral, é possível dizer que
a principal modificação introduzida por Lacan foi devolver ao domínio da escolha o que
havia passado para o domínio da obrigação com a formação instituída pela IPA. A análise
pessoal, considerada o aspecto mais importante da formação, encontrou na proposição do
passe uma relativização da afirmação segundo a qual o analista só se autoriza por si
mesmo129.
Num primeiro momento a afirmação segundo a qual “o analista só se autoriza por
si mesmo”, sugere que ninguém, a não ser o próprio analista, pode dizer se ele é ou não
analista, ou seja, ninguém pode autorizá-lo a não ser ele mesmo. Mas ao mesmo tempo não
se trata da “própria pessoa” autorizar-se, pois não é algo que se passa ao nível do eu e dizer
“pessoa” remete diretamente a uma referência egóica.
O analista se autorizar por si mesmo poderia trazer grande conforto àqueles que
pretendem “ser analistas”, uma vez que são eles mesmos quem decidem quando o são, não
dependendo de nenhum aval, certificado, diploma ou coisa parecida. No entanto, para

127
LACAN, J.- Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.
128
JORGE, M.A.C.- Jacques Lacan e a estrutura da formação psicanalítica, in: Lacan e a formação do
psicanalista, Marco Antonio Coutinho Jorge (org.), Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, 2006.
129
QUINET,A.- As 4+1 condições de análise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,2000.
aqueles que pretendem trilhar o caminho deixado por Freud e seguir o ensino de Lacan, o
comprometimento com a ética da Psicanálise impõe uma árdua tarefa. Nesse sentido, é
justamente essa “liberdade” para se autorizar que pode constituir um ponto de impasse no
percurso de quem se propõe a isso. Assumir este ato é muito mais difícil do que freqüentar
um curso de formação, cumprir todos os requisitos necessários e sair formado. Isso sim dá
tranqüilidade a alguém cuja implicação não esteja em primeiro lugar, pois é no mínimo de
se estranhar que possa haver um psicanalista formado, no sentido em que encontramos no
dicionário. O formar do dicionário refere-se a facilitar a formatura, estabelecer, fixar,
determinar. E mais: amoldar, educar, instruir, amestrar, entre outras acepções do termo que
denotam algo pronto, terminado, aprendido a partir de técnicas e procedimentos. Se existe
algo que constitui outra peculiaridade da Psicanálise é o fato de que nenhuma técnica pode
ser ensinada como garantia. É a partir de sua prática e de seu desejo que alguém pode se
autorizar.
O dispositivo do passe, por sua vez, foi criado por Lacan como forma de os analistas
darem testemunho de suas análises ao que ele chamou de passadores, os quais se dirigem,
separadamente, para relatarem o que ouviram, ao Cartel do passe, o qual decidirá se houve
ou não passe, ou seja, passagem de analisando a analista. É importante considerar que a
criação do passe por Lacan não altera o aforisma lacaniano, uma vez que não diz respeito à
autorização. No entanto ele opera uma alteração de duas vias na relação entre a Escola e
seus membros. Por um lado, a Escola passa a atestar que o analista em questão traz
garantias suficientes em sua formação e por outro o analista, por sua própria iniciativa,
deseja informar a Escola do que foi sua análise para ele. É importante ressaltar que de
maneira alguma o passe foi uma resposta de Lacan à questão do papel da análise pessoal na
formação. O passe constituiu uma espécie de aposta na produção de saber sobre a passagem
de analisante a analista, a qual, segundo Jorge, estava obscurecida pela idéia de uma análise
didática130. No entanto, a proposição do passe não foi bem aceita por vários membros de
sua Escola, desencadeando uma reação abrupta por parte de alguns membros da Escola.
É possível dizer que houve uma confusão entre a autorização – algo que diz respeito
ao ato do analista autorizar-se enquanto tal – e o passe – que atesta se houve ou não
transmissão da passagem de analisante a analista. O júri do passe, embora tenha um nome

130
JORGE, M.A.C. – Jacques Lacan e a estrutura da formação psicanalítica.
que diz respeito a algo da esfera do julgamento, não tem o papel de julgar se o analista é ou
não é analista, mas sim testemunhar do que pôde receber ou não a transmissibilidade desta
passagem. Na verdade, também o passe pode ser considerado um ato do analista, pois é ele
que se candidata a analista da Escola (AE) e não a Escola que o designa enquanto tal, como
ocorre com o analista membro da Escola (AME).Lacan vincula a autorização do AME a
formação da Escola da qual ele faz parte, definindo-o como “analista que deu provas de seu
trabalho”131. A própria estrutura do passe, comparada por Lacan e ressaltada por Didier-
Weill à estrutura do chiste 132 , demonstra que não se trata de aprovação e sim de
transmissão. Segundo ele, assim como no chiste basta que só um capte a mensagem para
que ele se constitua como chiste, também no passe basta que só um ateste que houve
passagem para dizermos que houve transmissão da passagem pelo analista. De qualquer
forma, é possível dizer que a polêmica em torno do passe diz respeito à confusão que existe
entre simbolização e nomeação e até hoje este constitui ponto de discordância e mesmo de
cisão em algumas instituições, o que torna importante nos atermos um pouco a ela.
A formação do analista pode ser pensada como uma possibilidade da teoria
analítica insistir, ou seja, como uma via de transmissão inconsciente, a partir da qual o
sujeito se apropria da teoria. Nesse sentido, isso não seria um obstáculo contra a exigência
da instituição de criar novos nomes próprios através da nomeação de analistas pela mesma?
Didier-Weill chama a atenção para o risco de pensar que o nome próprio seja uma garantia
para aquilo que se diz, pois um discurso desse tipo, chamado por Lacan de discurso do
mestre, esgota a possibilidade de emergência do sujeito do inconsciente, o qual fica
recalcado. Ora, o que a experiência analítica pretende é justamente reverter esse discurso,
torná-lo um discurso analítico. Tomando como base o discurso da histérica, Didier-Weill
propõe que para que essa passagem ocorra, surja, no lugar do agente, o sujeito do
inconsciente, ao invés do nome próprio ou do ideal do eu, e no lugar da produção, um outro
significante, um significante novo.133 Essa passagem, que tira de cena a autoridade e faz
surgir o sujeito do inconsciente, produzindo um novo significante, é o que autoriza a
divisão do sujeito. É somente quando o sujeito é afetado por essa experiência, quando ele

131
LACAN, J.- Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, p.249.
132
DIDIER-WEILL, A. - Inconsciente freudiano e transmissão da psicanálise (1983), Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, Editor 1988.
133
Ibidem.
fala não por ele, “fulano de tal”, mas por esse outro, desconhecido por ele mesmo, que ele
pode autorizar-se.
Ainda de acordo com Didier-Weill, a nomeação nas instituições psicanalíticas pode
ser comparada à instituição familiar, a qual tem um nome próprio que delimita quem está
dentro e quem está fora do grupo 134. Tal como um filho recebe o nome do pai, alguém que
está na Escola Freudiana, por exemplo, recebe o nome de “membro da Escola Freudiana”.
Por outro lado, se o nome na instituição familiar passa automaticamente, de pai para filho,
na transmissão do nome da instituição entram em consideração as qualidades e defeitos do
candidato. Didier-Weill chama atenção para o fato de que o que está em jogo na atribuição
do nome é a mestria, onde um poder seletivo “julga” se o analista possui as qualidades do
ideal do eu posto em comum. Entra em cena o que podemos chamar de nomeação de
atribuição, ou seja, a nomeação que corresponde ao campo institucional. A nomeação de
atribuição segue o mesmo princípio do juízo de atribuição, o qual está na dependência do
princípio do prazer: o que é bom engole e o que é ruim, cospe, constituindo um “bom de
dentro” e um “mau de fora”.Tal mecanismo fortalece a coesão do grupo e a posição de
mestria, mantendo o ideal do eu e garantindo as nomeações. Assim, percebemos que o
passe possui vicissitudes que podem evidenciar a predominância, na instituição, do discurso
do mestre, e não do discurso do analista. A nomeação pode estar a favor de interesses que
não os da Psicanálise, pode estar cristalizada em torno do ideal do eu incorporado na figura
de um mestre, o qual dita as posturas e as identificações dentro da instituição, configurando
o que o líder representa dentro de um grupo. Além, disso, a questão da nomeação dentro da
instituição pode ser encarada através de um duplo viés: por um lado, há a demanda dos
membros, que é a de serem nomeados, mas, por outro, há “a demanda latente da instituição,
que é demanda de que se lhe demande ser nomeado”135 pois, se ninguém demandar ser
nomeado por determinada instituição, à falta de transmitir seus nomes, deixará de ser
nomeável.
Retomando a análise do tripé da formação empreendida por Jorge, no que diz
respeito à teoria, a inovação de Lacan foi criar lugares especiais dedicados ao seu ensino na
instituição: o seminário e o cartel. Longe de tratar-se de uma formalidade, Jorge observa

134
Ibidem.
135
ibidem , p.58.
que a criação desses lugares destinava-se à emergência do dizer congruentes com a
experiência psicanalítica. O seminário foi descrito pelo próprio Lacan como o lugar em que
ele falava como analisando, o que de alguma forma faz com que o analista prossiga sua
análise na relação que mantém com a teoria analítica136. O cartel, por sua vez, é apresentado
por Lacan no Ato de fundação como um pequeno grupo que se compõe de três pessoas no
mínimo e cinco no máximo, sendo quatro o ideal, mais-um encarregado da seleção, da
discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um137. Segundo Jorge, trata-se de
“um lugar coletivo que visa a produção singular a partir do ponto de simbolização da teoria
ocupado por cada um”138. O autor observa ainda que a existência da função do mais-um
tem um papel fundamental pois dirige o cartel para o trabalho, barrando a intersubjetividade
imaginária que atrapalha a simbolização. É possível observar aí um cuidado da parte de
Lacan para diferenciar o cartel do grupo, segundo a concepção que vimos discutindo,
procurando deixar de fora do trabalho os fenômenos produzidos pela intersubjetividade,
inclusive a instalação de uma relação de mestria. A este respeito, Lacan é muito claro ao
dizer que o ensino da Psicanálise só pode ser transmitido de um sujeito a outro pelas vias de
uma transferência de trabalho139.
O questionamento da supervisão na formação do psicanalista, por sua vez, reside
particularmente na maneira como esta era tratada pela IPA, ou seja, como um modo de se
verificar se as análises estavam sendo conduzidas de acordo com os critérios determinados
pelo protocolo de formação da IPA. Lacan pretendeu devolver à supervisão seu estatuto de
imposição pela experiência e não pela instituição, tal como ela foi criada,
contingentemente, nos primórdios da Psicanálise. O episódio da criação da supervisão é
interessante, pois, ao contrário do que se pode pensar, ela não foi criada por Freud e sim por
um discípulo seu: Hans Sachs. Convidado a ir a Berlim para analisar um grupo de
psicanalistas que se conheciam e, portanto, não podiam se analisar entre si, Sachs viu-se
numa situação de dificuldade ao tomá-los em análise. Os analistas em questão levavam
como material à análise não só questões pessoais, mas também vicissitudes de sua clínica, o
que deixou Sachs confuso. Assim, ele achou por bem marcar dois horários diferentes para

136
JORGE, M.A.C. – Jacques Lacan e a estrutura da formação psicanalítica.
137
LACAN, J. - Ato de fundação, p.244.
138
ibidem., p.12.
139
ibidem
seus analisandos: um para a análise pessoal e outro para questões suscitadas pela clínica.
Freud, o criador da Psicanálise, transitava facilmente pelos domínios da análise pessoal, do
ensino da teoria e da clínica durante as sessões de seus pacientes psicanalistas e não
experimentava este tipo dificuldade. Assim, é compreensível que não tenha partido dele
esta idéia. O mais importante deste episódio é que ele denota um princípio que Lacan
elaboraria muitos anos mais tarde na Proposição, ou seja, o de instituir o novo somente no
funcionamento140.
Por outro lado, existem autores que consideram as inovações feitas na formação do
analista por Lacan uma verdadeira ruptura com o tripé clássico análise pessoal, ensino
teórico e supervisão. A invenção de uma outra lógica – Psicanálise em intensão e
Psicanálise em extensão – coloca a formação em um outro patamar em que não vigora uma
divisão entre três pólos distintos. Ao contrário, trata-se de uma relação moebiana141, ou
seja, uma continua na outra sem no entanto reduzir-se à outra. Elia observa que Lacan parte
da palavra extensão, e fazendo uso do tensão, produz um neologismo: intensão142. Assim, a
Psicanálise em intensão é o momento de adjunção entre as duas que faz tender o discurso
psicanalítico para dentro e a Psicanálise em extensão é o outro momento de adjunção que
faz o discurso analítico tender para fora. É importante ainda observar que não se trata de
uma oposição, ambas são regidas pela mesma lógica, pelas mesmas categorias conceituais
que regem o discurso analítico.
Na verdade, mesmo se considerando a análise pessoal, o estudo da teoria e a
supervisão, não existe aí uma distinção nítida. Cada um destes aspectos interfere e se
articula com os outros, denotando a continuidade proposta por Lacan ao cunhar o que ele
chamou de Psicanálise em intensão e Psicanálise em extensão. A formação do analista é o
que melhor articula esta continuidade, uma vez que há a análise pessoal ou didática na

140
LACAN, J.- Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.
141
Referência à Banda de Moebius, figura geométrica tridimensional, obtida com meia torção dada a uma tira
de papel, por exemplo, para depois se tomar as duas extremidades e juntá-las. Fazendo isso é possível
percorrer os dois lados da banda ininterruptamente. Ficou conhecida como Banda de Moebius em homenagem
ao matemático que criou a fórmula para representá-la e estudou suas propriedades singulares. Ficaria restrita
ao campo da Matemática se Lacan não a tivesse trazido para a Psicanálise, ganhando destaque como
representação de nossa psiquê.
142
ELIA,L.- A relação Analista-Escola como exigência de uma estrutura (2001), Trabalho do Laço Analítico
Escola de Psicanálise para as Jornadas Psicanalíticas de Convergência em Florianópolis, em maio de 2001,
organizada pela Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica, reunindo associações brasileiras de
psicanálise integrantes de Covergência- Movimento Lacaniano para a psicanálise freudiana.
esfera da Psicanálise em intensão e a proposta de comunicar o que foi esta análise à Escola
através do passe, na esfera da Psicanálise em extensão. Além disso, a formação do analista
articula o que Lacan formulou no Ato de fundação como Psicanálise pura e Psicanálise
aplicada. Isto quer dizer que ela articula a Psicanálise enquanto didática, ou seja, enquanto
forma de preparar novos operadores, com a Psicanálise enquanto clínica, pois o analisando
está aí na posição de candidato a analista sem deixar de ser paciente.
Na realidade, a relação entre os dois dualismos: Psicanálise em intensão /
Psicanálise em extensão e Psicanálise pura / Psicanálise aplicada é um pouco mais
complexa do que pode aparentar. As expressões Psicanálise pura e Psicanálise aplicada
dizem respeito às seções de trabalho definidas por Lacan no Ato de Fundação da Escola
Freudiana de Paris. A primeira refere-se à “práxis e doutrina da Psicanálise propriamente
dita (...) Psicanálise didática”143, e inclui, além da doutrina da Psicanálise pura, a crítica
interna de sua práxis como formação do analista e sua supervisão deste. Já a segunda –
Psicanálise aplicada – diz respeito à “terapêutica e clínica médica”144, englobando qualquer
contribuição à experiência psicanalítica, inclusive as relacionadas ao exame clínico, às
definições nosográficas e à formulação de projetos terapêuticos. Elia e cols. fazem algumas
considerações a este respeito e problematizam a relação entre as duas dualidades
apresentadas por Lacan. Segundo estes autores, a Psicanálise pura é ao mesmo tempo
teórica e clínica – fiel à vocação da Psicanálise em recusar este tipo de oposição, ressaltam
eles – uma vez que abrange a formação dos psicanalistas e sua doutrina. A Psicanálise
aplicada, por sua vez, consiste na aplicação da Psicanálise a outros campos como a clínica
médica, a clínica institucional, toxicomanias, entre outros. Neste sentido, seu objetivo não é
formar psicanalistas, mas utilizar a Psicanálise como instrumento em práticas terapêuticas
diversas145.
É importante ressaltar que ao formular a dualidade Psicanálise em intensão /
Psicanálise em extensão, três anos depois, Lacan não fez com que ela fosse equivalente
nem ultrapassasse a dualidade anterior em termos conceituais. É possível considerar a
Psicanálise em intensão como uma dimensão da Psicanálise pura, mas que não coincide

143
LACAN, J.- Ato de Fundação, p236..
144
Ibidem, p. 237.
145
ELIA, L,COSTA,R. & FIÃES PINTO,R.- Sobre a inserção da Psicanálise nas instituições de saúde
mental, in:Psicanálise, clínica e instituição, Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, 2006.
com ela, já que a mesma cobre também as questões relativas à doutrina psicanalítica.
Tampouco a Psicanálise em extensão, que presentifica a Psicanálise no mundo através da
Escola de Psicanálise, coincide totalmente com a Psicanálise aplicada, a qual pode integrar
tanto a Psicanálise em extensão, quanto a Psicanálise em intensão. Isto porque, de acordo
com Elia e cols., uma clínica psicanalítica stricto sensu, ou seja, entre psicanalisante e
analista, praticada no contexto institucional é inequivocamente da ordem da Psicanálise em
intensão, embora se situe no campo da Psicanálise aplicada às instituições e não vise a
formação do psicanalista146. Por outro lado, a Psicanálise aplicada, mesmo quando não-
clínica, não recobre completamente o campo da Psicanálise em extensão, pois esta última
inclui seu ensino, a Escola e sua transmissão, o que é do campo da Psicanálise pura e não
da Psicanálise aplicada. Tais considerações indicam que qualquer tentativa de superpor as
duas dualidades desenvolvidas por Lacan acaba por levar a um resultado forçado e pouco
rigoroso. Assim, o mais interessante é fazer combinações entre seus elementos constitutivos
e daí extrair as relações possíveis.
Alain Didier-Weill chama a atenção para uma relação entre intensão/extensão que
pode ser vista como uma ruptura nesta continuidade, o que pode ser traduzido também
como uma ruptura entre divã/Escola. Segundo ele, muitas vezes o analisando cessa de
mostrar a inventividade que possuía no divã ao falar no âmbito do espaço institucional147.
Nesse sentido, o passe viria como uma maneira de sanar esta falha, pois como já foi dito, a
formação do analista é o que melhor articula essa continuidade. O dispositivo do passe dá a
oportunidade ao analisante de testemunhar se sua autorização (feita por ele mesmo) passa
ou não passa e Lacan faz uma analogia entre a passagem de analisante a analista e a
estrutura do chiste148. O chiste só ocorre se aquele que ouviu ri, ou seja, é preciso haver
uma ratificação por parte do auditor, de modo a confirmar o efeito de chiste. De maneira
análoga, é preciso que o passador – aquele para quem o passante relata sua análise –
ratifique que aí houve passagem. Além disso, outro ponto em comum é o fato de que tanto
no chiste quanto no passe é preciso que apenas um ateste a passagem da mensagem, pois
não podemos esperar que todos compreendam e riam de uma mesma piada. Assim, o
principal ponto em comum entre o chiste e o passe é que ambos são transmissíveis. Didier-

146
Ibidem.
147
DIDIER-WEILL,A. - A questão da formação do psicanalista para Lacan.
148
ibidem.
Weill ressalta que o mais importante aqui é que além de transmitir o saber que veicula, ele
desperta o auditor para uma zona de não-saber nele mesmo que tem o poder de colocar seu
saber “sabido” entre parênteses, pois ali ele não vale de nada, uma vez que não é disso que
se trata. É nesse ponto que reside a produção, ou melhor, a convocação de um saber novo,
inédito, que diz respeito ao saber fazer com o real: o savoir-faire.

Tornar-se analista

Por mais que existam diferenças e discordâncias no que diz respeito à formação do
psicanalista, sobre um ponto há unanimidade: é somente a partir da própria análise que
alguém se torna analista. Tal colocação desperta o interesse porque à primeira vista poderia
se pensar que é na prática que se dá o essencial da formação do analista, enquanto a ênfase
é colocada justamente na posição de analisando. Nesse sentido é interessante evocar uma
história contada pelo próprio Freud em A questão da análise leiga acerca de uma pessoa
que ao candidatar-se a uma vaga de ama de crianças foi perguntada se sabia cuidar de
bebês, ao que ela respondeu: “Naturalmente, afinal de contas, eu própria já fui bebê”149. Tal
história poderia ser vista com graça por qualquer pessoa, mas aqui assume uma conotação
bastante séria, uma vez que ela tange uma condição indispensável ou mesmo a mais
importante da formação do analista: a análise pessoal. Freud é claro ao dizer que a
experiência da análise imprime ao analista uma agudeza em ouvir o que está inconsciente e
recalcado e proporciona a ele receber o material analítico sem preconceitos150. No mesmo
texto, em que defende a prática de analistas não-médicos, ele desloca a questão da
formação do plano acadêmico e ressalta a importância da análise na formação do
psicanalista dizendo que:

“é somente no curso dessa auto-análise(como é confusamente denominada) quando


eles realmente têm a experiência de que sua própria pessoa é afetada- ou, antes, sua
própria mente- pelos processos afirmados pela análise, que adquirem as convicções
pelas quais são ulteriormente orientados como analistas”.151

149
FREUD, S. A questão da análise leiga, p. 188.
150
ibidem, p.212
151
ibidem p. 194.
Anos antes, em sua coleção de artigos dedicados à técnica da Psicanálise, escritos
entre os anos de 1911 e 1915, Freud já dedica diversos textos à questão da transferência e
ainda em 1939, em um dos seus últimos escritos continua a problematizá-la ao mencionar
que “o que se aprende na transferência não se esquece”152. Daí depreendemos que ocorre
um aprendizado no próprio âmbito do dispositivo analítico – entendendo dispositivo
analítico como um lugar estrutural em que um analista estabelece um modo inteiramente
peculiar de conduzir o trabalho com o analisante. Nesse sentido, é importante observar que
tal “aprendizado” é da ordem da elaboração, que em nada tem a ver com uma reflexão
intelectual. Trata-se de um trabalho pulsional que opera uma mudança do ponto de vista
econômico no aparelho psíquico.
A psicanálise, talvez, seja a única prática em que é exigido do praticante que ele
tenha experimentado “o outro lado”. Na verdade, quando dizemos exigência, estamos nos
referindo a algo da ordem de uma imposição natural que se coloca para todo aquele que é
atravessado pela experiência do inconsciente e não uma exigência formal. Qualquer
exigência nesse sentido aponta para uma concepção de formação do analista baseada num
funcionamento burocrático, iniciacionista e tecnicista, onde o rigor é degradado em rigidez.
A própria prática impõe ao psicanalista que ele tenha estado no lugar de analisante.
Todavia, é importante ressaltar que não se trata de experimentar o lugar de
analisante no intuito de estabelecer uma empatia com seus futuros pacientes, ou seja, de
obter um status de “curador ferido”, em que a tônica do “eu sei o que você está passando”
elevaria a identificação a um nível exacerbado. Tampouco diz respeito a uma idéia
deformada e amplamente difundida pelo senso comum de que o psicanalista deve ter feito
análise para se “livrar” dos próprios problemas e só então estar apto a praticar a psicanálise
e “ajudar” nos problemas dos outros. Tal concepção ingênua concebe a psicanálise como
uma espécie de vacina e desconsidera totalmente a função do analista, uma vez que o
mantém no lugar de sujeito, impedindo que ele desempenhe a função de causar o desejo do

152
FREUD, S. - Escboço de Psicanálise (1939), in: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud, v.XXIII, Rio de Janeiro, Imago, 1996.
sujeito a partir de uma operação feita do lugar de objeto, função que lhe é própria. Tudo
isso está calcado numa idéia psicologizante da psicanálise, onde o que está em cena são as
idéias, os pensamentos e sentimentos conscientes do analista.
Aqui cabe uma digressão, pois a psicanálise tomada como referencial pretende
justamente ir mais além do nível consciente dos processos mentais e investigar as
motivações e desejos inconscientes que estão por trás do plano meramente comportamental
ou mesmo racional. A grande descoberta da psicanálise e também o maior choque
promovido por ela foi operar uma terceira ferida narcísica na humanidade153, segundo a
qual o homem não é regido pela razão, mas pelo inconsciente, que o determina sem que ele
saiba porquê. O inconsciente, embora tenha sido banalizado pelo senso comum como
aquilo que está nas “profundezas” da mente, foi desmistificado sobretudo a partir do ensino
de Lacan e sua ênfase na articulação do inconsciente com o significante. Na verdade, em
seu seminário XXII, no ano de 1974, quando trabalhou RSI154, Lacan diz que retirou da
obra de Freud os elementos para formular os três registros – real, simbólico e imaginário.
De acordo com Jorge, é possível dizer que os três registros estavam presentes na obra de
Freud, mas não estavam nomeados, cabendo a Lacan fazer isso. Assim, durante um período
de sua produção, Freud aborda enfaticamente a influência do inconsciente como
corriqueira, fazendo parte da vida das pessoas. Isso fica patente se considerarmos obras
como “A interpretação dos sonhos” (1900), “A psicopatologia da vida cotidiana” (1901),
“Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1905) e “A significação antitética das
palavras primitivas” (1910), todas do início do século XX, onde é possível reconhecer
claramente a tese de Lacan do “inconsciente estruturado como uma linguagem”. Se Freud
deixa isso indicado, Lacan é bastante eloqüente ao afirmar que o inconsciente não está nas
profundezas, mas sim na superfície, na linguagem.O inconsciente não está lá longe nem
escondido ou disfarçado. O inconsciente está esperando pelo trabalho de análise, pois é
somente por meio do acionamento pela palavra que um significante, articulado a outro, é
passível de produzir significação.

153
Freud fala das três feridas narcísicas da humanidade. A primeira ferida foi causada por Galileu Galilei, ao
formular sua teoria heliocentrista e deslocar o homem como centro do universo; a segunda ferida narcísica foi
causada por Charles Darwin com a teoria da Evolução, a qual defendia que o homem descendia do macaco e
não de Deus e a terceira ferida narcísica foi causada pelo próprio Freud e a formulação do inconsciente, o qual
rompe com a idéia de homem racional, senhor de seus atos.
154
Inédito no Brasil.
Toda esta digressão tem como objetivo enfatizar que a formação do analista, e mais
especificamente a análise com sua dimensão essencial, não fazem parte de algo que possa
ser ensinado, no sentido acadêmico do termo.Da mesma forma, a análise, como condição
sine qua non para se tornar analista, não deve ser entendida como uma mera obrigação
burocrática, mas como algo da ordem de uma exigência ética própria a tudo que diz
respeito ao desejo em psicanálise.
Se dizemos, com Lacan, que é somente na análise que se produz um analista, é
porque somente no âmbito da experiência analítica que o sujeito, o analisando, vai passar
pelas operações que darão a ele a condição de possibilidade de ocupar o lugar de analista e
sustentar-se nessa posição. Como e quando isso acontece é algo que cada um deve
descobrir por si, uma vez que cada percurso é único e cada análise também.
O fim da análise implica que o analisando tenha se deslocado do lugar de sujeito, a
partir do qual ele falava, para se prestar à função de objeto causa de desejo para o sujeito
que ele se dispõe então a ouvir. Tal posicionamento não diz respeito a algo da esfera do
querer, não faz parte do âmbito da escolha, o que novamente evocaria um referencial
consciente. Daí a importância de se fazer uma diferenciação precisa entre “desejo de ser
analista” e “desejo do analista”. O desejo de ser analista é como qualquer outro desejo
ligado ao fantasma. Isso quer dizer que ele entra como mais um na série de deslizamentos
que o sujeito opera, passando de objeto a objeto ao longo da vida. Nesse sentido, é possível
dizer que ele se apresenta através da demanda do sujeito: “quero ser analista”. O desejo do
analista, por sua vez, diz respeito a uma categoria operacional, ou seja, é aquilo que Lacan
definiu como o que sustenta o analista em seu lugar e do qual falaremos mais
detalhadamente adiante. É possível dizer que a passagem de analisando a analista não se
situa no domínio da escolha consciente porque ela consiste no resultado, numa
conseqüência de um processo de análise levado a termo, daí Lacan dizer que todo final de
análise produz um analista, quer ele venha ou não a ser praticante da psicanálise. Mas
paradoxalmente isso comporta uma dimensão de escolha no sentido do consentimento dado
pelo sujeito àquilo que o determina desde um ponto mais além de seu controle e poder de
deliberação conscientes.
Final de análise e destituição subjetiva

Embora não seja nossa intenção examinar as diversas concepções teóricas acerca do
final de análise, é importante abordarmos, além do que foi desenvolvido por Lacan,
também as idéias de Ferenczi, na medida em que as elaborações de Freud acerca do final de
análise constituem, de alguma maneira, uma resposta dada por ele às formulações do
mesmo. Segundo Ferenczi, uma análise só pode ser considerada terminada se as questões
essenciais da sexualidade forem vividas no nível emocional, na fantasia consciente. Assim,
todo homem deve chegar a um sentimento de igualdade de direitos em relação ao analista,
indicando assim que superou a angústia de castração, enquanto a mulher deve ter vencido
seu complexo de virilidade e ter se abandonado sem o menor ressentimento às
potencialidades do papel feminino155. No entanto, Freud faz críticas a Ferenczi quanto à sua
concepção de final de análise. Por um lado, a idéia de um sentimento de igualdade entre
analisante e analista faz com que a experiência analítica tenha um cunho de experiência
intersubjetiva, uma vez que, de acordo com Ferenczi, ao final da análise o analista deve
confessar o que sentiu pelo paciente durante o processo de análise. Além disso, de acordo
com Freud, o avanço de uma análise conduz a questões complexas relativas ao sexo - a luta
contra a passividade nos homens e a inveja do pênis nas mulheres – e invariavelmente tais
questões constituem um ponto de impasse não só para o sujeito em análise como também
para o analista. A partir daí, ficaria difícil fazer a análise avançar, o que levou Freud a
chamar estas questões que fazem obstáculo ao avanço da análise de “rochedo da castração”.
A idéia de rochedo da castração já foi objeto de algumas considerações em outro
trabalho156, mas acho válido retomá-las nesse contexto. À luz do próprio texto de Freud
“Análise terminável e interminável”, a questão do rochedo da castração pode ser pensada
por meio de um duplo viés. Por um lado, o rochedo da castração marcaria o final da análise
por constituir um ponto de basta, de esgotamento, a partir do qual não é mais possível
avançar e, por esse motivo, a análise seria dada como terminada. Por outro lado, é possível
pensarmos rochedo como algo que faz fronteira, sugerindo que há algo mais além dele, de

155
FERENCZI, S.- O problema do final da análise, in: Obras completas - Seminário IV, Rio de Janeiro,
Imago, s/d.
156
BRITO,L.C. - A questão da formação do analista.Monografia de conclusão da Especialização em
Psicanálise e Saúde Mental do Programa de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ em 2004.(É ASSIM QUE
CITA?)
forma que tais questões não constituiriam o final da análise, mas algo que dificulta chegar
ao final. A imagem inicialmente evocada pela palavra “rochedo” foi associada a uma praia
com rochas no final, atrás das quais existiria uma outra praia que está mais além. Assim,
achamos interessante recorrer ao termo em alemão utilizado por Freud, o qual poderia nos
dar uma idéia mais clara do que ele quis dizer. O exame do texto original de Freud mostrou
que o termo utilizado por ele - Felsen - não se refere propriamente a esse final de praia, e
sim à camada mais profunda do fundo do mar, rio ou lago, ou seja, ao solo propriamente
dito, àquilo que há de mais sólido e intransponível, segundo nos mostra a análise
etimológica realizada por Elia.157
As idéias de Lacan acerca do final de análise constituem um avanço na elaboração
freudiana, uma vez que, além de abordar as questões ligadas à sexualidade através do que
ele chamou de fórmulas da sexuação 158 , Lacan propõe uma perspectiva essencialmente
associada à formação do analista. Nesse sentido, de acordo com Quinet159, o rochedo da
castração corresponderia, na elaboração de Lacan, ao sujeito se experimentar como falta.
No entanto, tal afirmação requer muito cuidado, pois pode suscitar a idéia de que este é o
fim - no sentido de finalidade - da análise, constituindo assim um ideal a ser atingido, um
“nível” esperado a partir do qual o sujeito passa a ser experimentar como falta. Na verdade,
trata-se de um momento, algo pontual e extremamente angustiante. É possível dizer que aí
reside o ponto incurável da castração, pois como disse o próprio Freud, “o sujeito não se
cura de sua divisão”160, ou seja, esta é estrutural e ele sempre a experimentará como uma
falta.
Muito ao contrário, no final de análise o sujeito não se cura de sua divisão, mas
opera a partir dela enquanto dividido, enquanto castrado. Mais uma vez é importante

157
REF. ELIA???
158
As fórmulas da sexuação são desenvolvidas por Lacan em O Seminário livro XX, Mais ainda, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985. Tais fórmulas são sustentadas pelo axioma segundo o qual não há relação
sexual. Isso significa dizer que não há, de saída, uma regra que ligue, que possibilite a relação entre homens e
mulheres. Nas fórmulas Lacan apresenta as duas maneiras de fazer suplência à relação sexual que não há: a
sexuação masculina e a sexuação feminina, o que implica que a modalidade de laço sexual é diferente para
homens e mulheres. Assim, as fórmulas da sexuação indicam que todo homem está inscrito na função fálica -
ou seja, é castrado – mas existe um homem que (supõe-se) faz exceção à função fálica, – o que Lacan chama
“função do pai”. No que diz respeito à parte mulher dos seres falantes, Lacan indica que não toda mulher está
inscrita na função fálica e que não existe mulher não inscrita na função fálica.
159
QUINET, A.- op.cit.
160
FREUD, S.- A divisão do eu no processo de defesa [1940(1938)], in: Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, , v. XXIII, p.( 1995).
ressaltar que isso não constitui uma escolha, mas o resultado de dois processos que estão
intrinsecamente ligados: a destituição subjetiva e a travessia da fantasia.
No que diz respeito à destituição subjetiva, como o próprio nome já diz, tal
processo implica a destituição do sujeito, o que evidentemente pressupõe a constituição do
sujeito. A teoria da constituição do sujeito constitui um capítulo fundamental da
psicanálise, uma vez que deixa indicadas duas importantes noções: 1) que a noção central
da experiência psicanalítica é designada pela categoria de sujeito e não de indivíduo, e 2)
em se tratando de sujeito falamos de sua constituição e não de seu nascimento ou
desenvolvimento.
Embora a teoria sobre a constituição do sujeito seja uma ficção, uma vez que não é
passível de ser verificada fenomenologicamente, a partir do nascimento do bebê, o processo
suposto é efetivamente verificado na análise, o que nos autoriza dizer que existe uma
dimensão da constituição do sujeito que se dá no próprio âmbito da experiência analítica
por meio dos diversos e sucessivos ciclos de alienações e separações que são atualizadas na
transferência. Dessa maneira, embora não seja nossa intenção desenvolver aqui toda a
teoria da constituição do sujeito, é importante abordar alguns de seus aspectos que podem
enriquecer nosso trabalho.
Principalmente a partir da releitura que Lacan fez da obra de Freud, só podemos
conceber o sujeito a partir do campo da linguagem, ou melhor, como efeito do campo da
linguagem. Esta é a causa introduzida no sujeito, significante sem o qual não haveria sujeito
no Real. Interessante como Lacan se refere ao sujeito: “Com o sujeito, portanto, não se fala.
Isso fala dele”161. Isso que fala do sujeito deve ser tomado como equivalente do primeiro
significante que o causa, o representa para outro significante. Lacan segue dizendo que o
sujeito não era nada antes que este significante primeiro se endereçasse a ele e assim, ele
aparece por um instante, de maneira pontual e evanescente, até desaparecer sob o
significante segundo para o qual terá sido representado. O primeiro movimento é de
alienação, o qual promove este fading, afânise que constitui sua identificação ao
desaparecer sob o segundo significante. Já ao falar do segundo movimento do sujeito –
separação - Lacan introduz o desejo como aquilo que vem selar o efeito afanísico do

161
LACAN,J.- Posição do inconsciente [1966] in: Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, (1998),
p.849.
primeiro movimento.O desejo entra como um suborno “recusando ao sujeito do desejo que
ele se saiba efeito da fala, ou seja, que saiba o que ele é por não ser outra coisa senão o
desejo do Outro” 162 . Articulado à fantasia, o desejo faz com que o sujeito desconheça
radicalmente a que significante ele está assujeitado, subornando-o com a satisfação
garantida pelo fantasma. E como já foi dito, é no processo de análise, através das diversas
alienações e separações que são revividas na transferência que o sujeito poderá sair desta
posição enganosa. Pois, se por um lado, a transferência obtura a abertura do inconsciente
sob a forma de resistência, ela também é via para a entrada em análise e a interpretação,
única que pode desarmar o suborno feito pelo desejo atuado através da fantasia. Somente
assim, o sujeito poderia querer se saber efeito do significante ao qual ele está assujeitado
como sujeito do desejo e saber que o desejo que ele tem como seu é desejo do Outro. A
destituição subjetiva implica justamente em despojar-se dessa condição de sujeito quando
se entra em análise para servir de objeto causa
A destituição subjetiva implica justamente em despojar-se dessa condição de sujeito
quando se entra em análise para servir de objeto causa de desejo para o analisando. Em
última instância, trata-se de deixar fora do setting analítico sua subjetividade com tudo o
que ela comporta: seus anseios, seus desejos, crenças, enfim, tudo aquilo que pode revelar
algo de si. Nesse ponto é interessante fazer uma observação no sentido de desmistificar
outra opinião do senso comum acerca da psicanálise e mais propriamente dos psicanalistas.
Diz-se de uma maneira geral, que os psicanalistas (como se existisse esta categoria!)
ostentam um excesso de neutralidade, de frieza, de esnobismo ou outros nomes que
ouvimos por aí. De fato, a prática psicanalítica implica que o analista se exima de emitir
opiniões, dar conselhos, enfim, de atender qualquer demanda dirigida a ele. No entanto, não
se trata de algo infundado, mas que tem como objetivo evitar que, ao se colocar enquanto
sujeito, o analista promova uma identificação do analisando com ele, justamente pelo fato
da análise ser sustentada do lado do analisando pela transferência, que em última instância
é amor dirigido ao analista. A identificação é bastante facilitada, ainda que não seja
propositalmente incentivada. A identificação como base da experiência psicanalítica possui
efeitos nefastos no tratamento, como já foi discutido anteriormente.

162
Ibidem, p.850.
Assim, o que comumente é chamado de neutralidade por parte do analista encontra
seu fundamento em um dos pontos desenvolvidos por Lacan em “A direção do tratamento
e os princípios do seu poder” 163, onde ele trata da demanda na análise. Como já vimos,
desde que nos constituímos como sujeitos só fazemos demandar e, como já foi visto, toda
demanda é demanda de amor. Na análise a demanda se manifesta de uma maneira
implícita: “ser curado, ser revelado a si mesmo, ser habilitado como analista”164 . Durante o
processo de análise, o analista tem que lidar com todas as articulações da demanda do
sujeito. Mas é importante ressaltar que só se deve responder aí a partir da posição da
transferência. Isso implica não satisfazer a demanda, não atender ao pedido do analisante,
seja qual for o objeto demandado: palavras, informações, opiniões, avaliações, conselhos,
etc. É comum dizer que o analista não deve atender a demanda na análise, pois assim ele
estaria impedindo o desejo de aparecer. Tal colocação assume uma conotação
extremamente ingênua se for baseada no fato de que o atendimento das demandas do
sujeito seria capaz de obturar sua falta estrutural. Na verdade, esta falta diz respeito a algo
muito mais radical, que nenhuma resposta da demanda poderia calar e que vai sempre
insistir como algo que nos traz um sentimento de incompletude, que nos reatualiza sempre
os efeitos da castração. A justificativa reside num outro ponto, como nos adverte Elia.
Segundo ele, não se trata do analista produzir frustração, mas evidenciar que a demanda
não é para ser satisfeita e que sua satisfação aparente nada mais é do que uma tentativa de
enganar o sujeito e a ele mesmo165. Por outro lado, não se trata de recusar o atendimento da
demanda para acabar com ela, mas justamente para sustentá-la, de modo que o sujeito
continue demandando. Sustentando a demanda do sujeito de objeto em objeto, o analista
leva o sujeito a delinear, ele próprio, suas frustrações e fixações através de suas associações
e da transferência. Mas, em última instância, o sujeito tem que se haver com o fato de que o
que ele demanda está sempre para além dos objetos demandados, pois nada pode obturar a
falta estrutural que o fundou enquanto sujeito desejante.

A travessia da fantasia

163
LACAN,J.- A direção do tratamento e os princípios do seu poder [1958] in: Escritos, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, (1998).
164
ibidem
165
ELIA, L.- O conceito de sujeito.
O final da análise implica também aquilo que Lacan chamou de travessia ou
atravessamento da fantasia, processo este que está intrinsecamente ligado à destituição
subjetiva.. Assim, faz-se necessário falar um pouco do lugar que o conceito de fantasia
ocupa no ensino de Lacan. A grosso modo, é possível dizer que a fantasia se constitui como
um par de óculos através do qual enxergamos o mundo. A fantasia, cuja fórmula é ($ ◊ a),
é o que sustenta a instituição subjetiva, ou seja, é aquilo que define nossa relação com o
objeto a, causa de desejo, condensador de gozo, com o qual estamos sempre em conjunção
ou disjunção. Tal objeto se coloca como uma promessa de satisfação plena, impossível de
ser alcançada, mas que o sujeito neuroticamente persegue. Inicialmente, Lacan propôs
chamar tal objeto de objeto negativo, mas suspeitando que este termo pudesse suscitar
dúvidas, sendo confundido com a teoria kleiniana do bom e do mau objeto, resolveu indicá-
lo pela primeira letra do alfabeto 166 . A fantasia é a idéia inconsciente sobre a qual
fundamentamos nosso eu, ou seja, é o que norteia nossas ações, é o nosso modo singular de
responder ao desejo do Outro. É nesse sentido que a análise do sintoma revela sempre uma
fantasia, uma vez que esta não é diretamente passível de interpretação.
O atravessamento ou travessia da fantasia não diz respeito a dissolvê-la ou acabar
com ela, pois como bem lembra Maurano, trata-se de uma referência da qual absolutamente
podemos prescindir167. Promove uma nova maneira do sujeito se relacionar com o objeto a
partir da qual o sujeito renuncia à ilusão de que sua fantasia lhe fornecia o complemento de
seu ser. A travessia da fantasia permite ao analisando experimentar-se nos dois pólos que
ela sustenta: o do sujeito e o do objeto ($◊ a). Experimentar-se como sujeito é o que o
analisante faz durante todo seu percurso de análise enquanto ser falante. Na medida em que
é a fantasia que sustenta a instituição subjetiva, ou seja, assegura as relações do sujeito com
o objeto através de suas identificações, “atravessá-la” implica toda uma reestruturação do
modo do sujeito lidar com a realidade. A partir dessa experiência o sujeito poderá esvaziar
esse objeto do gozo do Outro. O objeto revela-se então como não apresentando consistência
alguma e a partir desse esvaziamento do gozo o sujeito se vê como rebotalho e pode lidar
com seu ser de objeto, para dele poder se separar. Enfim, o final de análise deve levar o

166
ROUDINESCO,E.- Jacques Lacan esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento.
167
MAURANO, D. – Para que serve a psicanálise?, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, (2006).
sujeito a renunciar à ilusão de que sua fantasia lhe fornecia o complemento de seu ser.
Como é sabido, não se trata de não mais gozar, mas de, ao final da análise, o sujeito poder
gozar de modo “apto ao desejo”, ou seja, levando em conta a falta, sabendo efetivamente
que nada vai obturá-la. O sujeito deixa de se esconder atrás do seu eu e assume sua
castração. Ou nas palavras de Lacan em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no
inconsciente freudiano” : “a castração significa que o gozo deve ser recusado para ser
atingido na escala invertida da lei do desejo”168.

Teoria, prática e transmissão

A psicanálise pode ser pensada a partir de um duplo viés. Por um lado, existe uma
vertente pragmática, mais comumente difundida, que concebe a psicanálise como um
tratamento para o sofrimento psíquico. Além disso, Maurano aponta para um outro viés, o
qual “inserindo a psicanálise no universo dos dispositivos inventados pela cultura, busca
pensar sua utilidade nesse plano mais amplo”169. Isso implica uma análise da própria ética
que a psicanálise propõe ao abordar a condição humana.
É possível considerarmos O mal-estar na civilização, de 1929 como a obra de
Freud que mais referências éticas nos traz. Segundo ele, o propósito da vida dos seres
humanos é a busca da felicidade.Um dos temas desenvolvidos por Freud no texto diz
respeito ao eterno conflito em que o homem se encontra, uma vez que ele tem que conciliar
as exigências pulsionais – que visam obter satisfação – com as exigências do mundo
externo, as quais estão todo o tempo colocando barreiras para a satisfação das pulsões.
Além disso, Freud menciona as diversas fontes de sofrimento com as quais nos deparamos
ao longo de nossa existência, como a fragilidade e finitude de nosso corpo e o convívio
com os outros. Ressalta ainda as várias maneiras como o homem lida com o sofrimento,
seja pela via de uma fuga da realidade através das drogas ou da fantasia ou ainda pelo
confronto com as vicissitudes da vida.

168
LACAN, J.- Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, in: Escritos, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, (1998).
169
MAURANO, D. – Para que serve a psicanálise, p.7
O grande preceito ético da psicanálise vai justamente ao contrário da ética
aristotélica, a qual preconiza um Bem supremo e universal.170 De acordo com Freud, cada
um “deve encontrar sua própria maneira de se salvar”171, ou seja, não existe receita de
felicidade, cada um deve descobrir aquilo que o realiza, sem esquecer que não existe um
Ideal passível de realização. Nesse sentido, esta proposta se articula à psicanálise enquanto
tratamento para o sofrimento psíquico. Entre outros aspectos, a proposta ética da
psicanálise faz com que ela se diferencie das diversas formas de psicoterapias, uma vez que
se exime de dar conselhos ou opiniões e faz com que o próprio sujeito possa se haver com
suas questões. Maurano ressalta que a psicanálise se distingue dos outros recursos
oferecidos pela cultura justamente pelo que ela visa em seu modo particular de intervir, ou
ainda pelo modo como ela considera o sujeito que a procura, ou seja como sujeito
desejante.172
Neste sentido, a formação do psicanalista, e de uma maneira mais abrangente, a
própria psicanálise, subvertem o conceito de formação enquanto aquilo que dá forma,
delineia uma maneira de operar. Trata-se então de uma prática que vai ser moldada a partir
da experiência do sujeito em sua análise, tendo como base o saber inconsciente e não se dá
a partir de instruções, informações ou técnicas. Por isso é importante não perder de vista o
fato de que o maior aprendizado se dá sob transferência, no âmbito da psicanálise em
intensão. Isso não significa que não existe um ensino teórico que integre a formação do
analista, todavia, tal ensino possui algumas peculiaridades justamente por se tratar de
psicanálise.
A formação do analista pode ser concebida a partir de uma tensão constante entre o
que pode ser ensinado, ou seja, o saber, e o que não pode ser ensinado e só se transmite a
partir da experiência.
A recomendação de Freud para que se esqueça tudo o que se sabe ao iniciar um
novo caso explicita essa tensão e acentua que essa relação existe e é necessária parra a
realização da experiência psicanalítica. Assim, existe uma dimensão de ensino na formação
do analista, caso contrário, não haveria porque praticar o ensino da teoria psicanalítica nos
institutos e escolas de psicanálise. Outra indicação de que existe um saber na formação é

170
ARISTÓTELES - Ética a Nicômaco, in: Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1985.
171
FREUD,S.- O mal-estar na civilização.
172
MAURANO, D. – Para que serve a psicanálise?
dada pela expressão “douta ignorância”, de Nicolau de Cusa, utilizada por Lacan em mais
de um momento de seu ensino173. Tal expressão indica que a ignorância que o analista
demonstra na direção de uma análise não é da ordem de uma falta de saber, mas diz
respeito a uma suspensão do saber acumulado por ele em sua formação, em prol da
emergência do saber inconsciente, que é o saber privilegiado na análise.Nesse sentido,
presumir que a formação do analista prescinde da dimensão teórica é reduzi-la a um
conjunto de técnicas sem embasamento teórico e a ação do analista a uma prática
meramente intuitiva.
No entanto, se existe um saber consciente, na formação, Lacan chama a atenção
para o fato de que o psicanalista deve saber, acima de tudo, “ignorar o que ele sabe”174. Em
outras palavras, o essencial da formação reside em colocar o sujeito em relação com o que
não se ensina. Miller acentua que não se trata de ensinar o que não se ensina, mas de
colocar o sujeito em contato com o que, da experiência, transborda a teoria175.
A primazia da experiência sobre o saber é uma constante nas colocações de Lacan
acerca da formação do analista. Isso implica dizer que para Lacan, o saber ao qual se refere
a experiência psicanalítica não é um saber transformável em conhecimento, que daria
matéria a uma pedagogia. O saber referido por Lacan possui outro status e, segundo Miller,
merece ser designado como saber-verdade. O saber-verdade, ou melhor, o saber no lugar da
verdade, faz referência à teoria lacaniana dos quatro discursos. Como já foi visto, cada
discurso constitui uma estrutura composta por quatro lugares – agente, outro, produção e
verdade – os quais são fixos, e por quatro elementos – $, sujeito barrado, S1, significante
mestre, S2, saber do Outro, e, finalmente, a, objeto causa de desejo. É importante ressaltar
que em se tratando de estrutura, o lugar é sempre prevalente sobre o elemento que o ocupa.
Assim, o saber no lugar da verdade é o que aparece no discurso do psicanalista, uma nova
modalidade criada por Freud para fazer face à demanda de suas pacientes histéricas. Ao
contrário dos médicos de sua época, que respondiam às pacientes do lugar do mestre, ou
seja, como aquele que sabe tudo sobre o sintoma do qual ela se queixa, Freud passou a
atuar da posição de não-saber. Isto implica que o psicanalista funcione como objeto causa

173
A expressão “douta ignorância” aparece no Seminário 1, sobre os escritos técnicos de Freud e também no
escrito Variantes do tratamento padrão, de 1955.
174
LACAN, J.- Variantes do tratamento padrão (1955), in: Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor,(1998) p.351.
175
MILLER, J.A. – A “formação” do psicanalista, in: Opção Lacaniana, nº 37, setembro de 2003
de desejo para o sujeito dizer aquilo que sabe, sem, no entanto, saber que sabe, por isso o
saber enquanto verdade está recalcado sob a barra. Uma característica fundamental do saber
no lugar da verdade é que ele recebe deste lugar a marca de ser não-todo, assim como é a
verdade, tocada que é pelo real.
O saber no lugar da verdade, tal como ele comparece no discurso do psicanalista é o
que Lacan define no Seminário 17 como a interpretação 176 , ou seja, é a articulação
significante que é feita ali e colhida em seu estado nascente. O mais importante da
interpretação na análise é fazer comparecer o vazio para que venha uma associação. Assim,
a interpretação produz um efeito de corte.É preciso que algo mais opere além de uma
simples injeção de sentido.
Lacan diz que “a interpretação é algo que acrescenta e que abre as portas para uma
nova era de compreensão”177, ou seja, não se trata de compreender mais, mas de ter uma
outra visada de forma que o objeto passe para uma nova esfera de compreensão. É nesse
sentido que o saber no lugar da verdade é algo que produz um efeito de surpresa e faz com
que o sujeito se depare com algo novo, inédito, exigindo dele uma mudança de posição.
Miller chama a atenção para o fato de que dizermos “ensino de Lacan” e não “teoria
de Lacan” já indica que a experiência psicanalítica excede qualquer teoria que dela se
pretende fixar178. Freud pretendeu que sua teoria se estabelecesse enquanto ortodoxia, e seu
status de criador da psicanálise o colocava numa posição privilegiada no que diz respeito a
esta pretensão. No entanto, sua atitude de querer assegurar seu legado e proteger sua teoria
de deformações através da criação da IPA acabou resultando em erro. Ainda segundo
Miller, o erro de Freud foi pensar que era possível transferir seu saber a um corpo
instituído, ou seja, a uma instância coletiva. Mas toda a história do movimento psicanalítico
depois de Freud demonstrou que a experiência psicanalítica sempre foi regida por uma
dinâmica que não permitiu que nenhuma teoria se estabelecesse duradouramente enquanto
ortodoxia. O resultado disso foi uma sucessão de teorias que se mantiveram em alta por um
tempo no seio da IPA.
Por isso, é possível dizer que a aposta de Lacan foi no sentido contrário ao do
estabelecimento de uma ortodoxia. A dimensão de ensino ressaltada por Lacan diz respeito

176
LACAN, J.- O seminário livro 17: o avesso da psicanálise.
177
LACAN, J. -A direção do tratamento e os princípios do seu poder.
178
MILLER,J.A.- A “formação” do psicanalista..
sobretudo a uma convocação aos analistas para que continuem fazendo a psicanálise
avançar, ou seja, explicita seu caráter aberto, flexível frente às mudanças impostas pela
experiência. A lição de Lacan foi a “substituição do sistema pela série, da fixação pelo
franqueamento, da verificação do saber adquirido pelo passo adiante”179.
É interessante pensarmos como a formação do analista possui peculiaridades, uma
vez que não existe primeiro a formação e depois a prática, ou seja, as duas coisas ocorrem
ao mesmo tempo. Acredito residir aí a dificuldade de saber como se é analista, quando se é,
a partir de que momento o analisante se torna analista. Muito provavelmente são perguntas
sem respostas precisas, o que me leva a pensar num momento impossível de localizar no
tempo e no espaço e que só nos damos conta depois de que algo se deu ali. O conceito de a
posteriori introduzido por Freud aparece assim com grande força quando consideramos a
formação, ou como preferimos chamar, o tornar-se analista. Optei pelo “tornar-se”
justamente por causa dessa impossibilidade de precisar um momento, e mais, pela
impossibilidade de precisar um final da formação, de forma que acredito que o analista está
se tornando analista todos os dias, a cada momento em que ouve um analisando, desde
quando se autorizou, ou melhor, desde quando, no só depois, percebeu que havia se
autorizado.
A prática de Lacan, a qual rompia com os padrões em que a clínica psicanalítica era
praticada, segundo da IPA gerou um incômodo por trazer a marca da novidade. Ao operar
mudanças em relação às sessões, Lacan tornou-se um heteropraxa. De heteropraxa, Lacan
foi também acusado de herege, heterodoxo, questionador da tradição freudiana.
Embora a ruptura de Lacan tenha sido com a IPA e não com Freud, como já foi dito,
é inegável que seu ato de criação da Escola como experiência inaugural comporta um
sentido de questionamento da centralidade do Édipo e do Nome-do-pai como referência
simbólica primordial e prevalente sobre os demais registros – real e imaginário – da
experiência do sujeito, abrindo a possibilidade para uma dimensão “além do Édipo”. Lacan
substitui o Um totalizador pelo um da série. Isto fica patente, sobretudo, em sua concepção
de formação do analista, onde cada analista, em sua análise, constrói um percurso,
apropriando-se da teoria, reinventando-a. Miller observa que a ruptura de Lacan com o
Nome do Pai foi tão radical que ele não quis ser pai nem de seu próprio ensino, daí insistir

179
ibidem.
em dizer que era freudiano quando seus alunos se diziam lacanianos. Tal passagem
possibilita uma outra leitura, a qual salienta a natureza ambivalente dos laços de Lacan com
Freud. Sabe-se que os dois nunca se encontraram pessoalmente, mas que Lacan, ainda
muito jovem, enviou um trabalho seu a Freud, e não obteve nenhuma resposta, ficando
bastante ressentido.
Uma das vertentes principais do ensino de Lacan está em sua ruptura radical com a
experiência psicanalítica calcada em uma relação intersubjetiva. Isso implica
fundamentalmente na dessubjetivação do analista, o qual passa a ocupar o lugar de objeto
causa de desejo para o sujeito em análise. Miller se refere a isto de uma maneira bastante
interessante. Segundo ele, “o que conta no analista é um estado de vacuidade, um estado de
disponibilidade ao inesperado e o espírito de oportunidade” 180 . Assim, de acordo com
Miller, em última instância a formação do analista tem como finalidade obter no analista a
presença de espírito, ou seja, “aptidão para aproveitar as ocasiões para falar ou para
agir”181. Tal colocação acaba por desmistificar a idéia de que o analista nada fala e nada
faz.
No processo de análise o analista se alterna em duas posições: uma é o lugar de
objeto e a outra abrange a dimensão da interpretação. A posição de objeto é sem dúvida a
mais importante ocupada pelo analista, trata-se da posição que silencia para fazer o outro
falar. Mas o analista não silencia totalmente, ele silencia sua subjetividade para que o
analisante possa advir enquanto sujeito. Assim, quando fala, o analista faz isso para que o
analisante continue a falar, ele deve acossar o analisante a querer saber mais sobre aquilo
que ele fala e, assim, falar mais. Nesse sentido, é importante ressaltar que ao fazer
perguntas ao sujeito, ao levá-lo a falar tudo sobre si, o analista não procede assim por
curiosidade. A curiosidade é um reflexo da subjetividade e por esse motivo não faz parte da
posição de objeto ocupada pelo analista. Trata-se de fazer o sujeito falar para ouvir e
apontar seus pontos de inibição, de gozo e de angústia.
A dimensão da interpretação, por sua vez, produz um efeito de corte, mas é
importante ressaltar que nem todo corte marca o final da sessão de análise. O corte produz
um efeito de abertura e deve ser feito quando a fala do analisante começa a se fechar,

180
ibidem.
181
VAUVENARGUES, apud MILLER, ibidem.
levando à compreensão. É importante o analista ficar atento quando achar que está
compreendendo o que o analisante diz, pois isto implica em trazer a fala do analisante para
o seu campo de significação. Nesta situação há algo de narcísico em jogo, há uma tendência
natural a compreender, e por esse motivo o analista deve ficar sensível a isto e evitar cair
nesse engodo.
Lacan diz que a interpretação tem como objetivo indicar uma região, sem, no
entanto circunscrever algo com precisão, de forma que é possível dizer que existe uma
virtude alusiva na interpretação. Existem duas formas de interpretação: citação e enigma. A
citação traz o saber para o primeiro plano, ou seja, o analista cita ou sublinha algo da fala
do analisante que ele disse sem saber que dizia. Já o enigma traz a verdade para o primeiro
plano e faz o saber recuar. O analista faz uma nova pontuação naquilo que foi dito pelo
analisante de modo a apontar para o não senso ou mesmo fazer advir um novo sentido em
sua fala. Uma das críticas aos analistas lacanianos é de que falam pouco ou quase nada. Na
verdade, ao falar e sobretudo ao fazer uma interpretação, o analista deve ser bastante
criterioso e utilizar os significantes do analisante e não os seus próprios. É nesse sentido
que se diz que a interpretação já vem pronta e o analista entra com sua escuta parta colher o
que o analisante diz.

Transmissão da psicanálise

A peculiaridade da Psicanálise é que sua transmissão envolve a dimensão do saber


inconsciente e, nesse sentido, “sua transmissão é sempre da ordem da aposta, e jamais da
garantia prévia” 182 , ou seja, é algo que se “constata” a posteriori, diferente do saber
acumulado, aprendido. Talvez este seja um dos motivos que levaram Lacan a insistir tantas
vezes em seus seminários, que seu ensino visava produzir efeitos de formação. Jorge diz
que ao falar em efeitos de formação Lacan buscava acentuar uma característica particular
da formação do analista: a de ser pontual e inacabada.183.
Nesse sentido, faz-se importante uma diferenciação sobre o que Lacan chama de
“efeitos de formação” e o que são chamados “efeitos de verdade”. O percurso de um sujeito
182
ELIA, L. - A transmissão da Psicanálise, trabalho apresentado no Encontro Latino-americano dos Estados
Gerais da Psicanálise, realizado em São Paulo, nos dias 12 e 13 de outubro de 2001.
183
JORGE, M.A.C. - Jacques Lacan e a estrutura da formação psicanalítica.
em análise é pontuado por uma série de efeitos de verdade que, no entanto, não
necessariamente produzem efeitos de formação. Os efeitos de verdade estão associados aos
momentos em que o sujeito emerge no processo psicanalítico, pois uma das características
do sujeito é ser evanescente, ou seja, aparece e desaparece pontualmente, não
comparecendo o tempo todo. Um efeito de verdade existe ao ser reconhecido pelo sujeito, o
que implica intrinsecamente uma escolha do sujeito sobre o que ele decide como verdade.
Como conseqüência há uma mudança de posição no campo do saber, pois uma escolha
desta ordem acaba operando uma reestruturação daquilo que o sujeito tinha enquanto
saber184. Já um efeito de formação diz respeito mais propriamente a uma orientação ou
mesmo uma vetorização, ou seja, o sujeito será afetado por tais efeitos se estiver habitado
pelo desejo do analista. E é justamente o desejo do analista que atua como condição para
que os efeitos de verdade se desdobrem e produzam estes efeitos secundário que são os
efeitos de formação. Um efeito de formação implica um tempo para compreender185, requer
um trabalho do inconsciente. Este tempo para compreender pode, para o sujeito habitado
pelo desejo, se reduzir ao instante de franqueamento/ultrapassamento que opera o efeito de
verdade, quando cai o “eu não quero saber nada sobre isso”. Assim, o efeito de formação
promove um corte epistemológico, uma modificação da posição do sujeito em sua relação
com o saber que o leva a se reinterrogar A reestruturar aquilo que para ele era saber186.
Na realidade, é possível dizer que existem dois saberes antinômicos que habitam o
sujeito - saber universitário e saber inconsciente- os quais resultam de sua divisão, sendo
que ambos estão presentes na formação e na prática do analista. Isso já fica claro na
recomendação ética dada por Freud: “Esqueçam, a cada novo caso, tudo o que sabem”,
onde a segunda parte da sentença –“aquilo que sabem”- evidencia que existe um saber
sabido em jogo, que é justamente o saber universitário.Mas a instrução de Freud diz que é
preciso deixar esse saber em reserva, e poderíamos completar: para que emerja um outro
tipo de saber, o saber inconsciente. Da mesma forma, Jorge chama a atenção para a
existência desses dois tipos de saberes ao evocar uma passagem de A direção do tratamento

184
SKRIABINE,P.- Effets de verité, effets -de-formation, savoir du psychanalyste – Treize apercus sur la
question, in: Revue de La Cause freudienne/ nº 52
185
Referência ao segundo dos três momentos de evidência que compõem o tempo lógico, desenvolvido por
Lacan em O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada [1945] in: Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor,1998.
186
SKRIABINE,P. op.cit.
e os princípios de seu poder, na qual Lacan questiona “Como ensinar aquilo que a
psicanálise nos ensina?” 187. Aqui mais uma vez fica evidente o desdobramento do ensino
da Psicanálise em duas dimensões: por um lado, afirma-se que existe um ensino que se
passa no âmbito da própria experiência analítica, e por outro lado questiona-se como isso
poderia ser transmitido. De acordo com Jorge, essa questão toca em dois pontos essenciais
no que diz respeito à formação do analista. Em primeiro lugar ela acaba com a falsa
diferença entre análise terapêutica e análise didática, acentuando o que já chamamos
atenção aqui, ou seja, o fato de que toda análise é didática, sendo que isso só se revela a
posteriori. Além disso, a questão de Lacan vem corroborar a importante formulação de
Freud já citada anteriormente, segundo a qual: “ninguém jamais esquece aquilo que
aprendeu na transferência” 188 . Jorge observa que a experiência analítica possui uma
dimensão de aprendizado do sujeito em relação àquilo que, do inconsciente, se atualiza na
transferência, como diz Lacan no Seminário 11189. Desta maneira, teríamos de um lado o
saber universitário, que não cessa de ser transmitido, e do outro o saber que ainda vai advir,
o saber inédito, referente à parte implícita do preceito de Freud.
Na verdade, embora se apresente como uma recomendação, a máxima freudiana
citada acima aponta para o inexorável que existe na experiência analítica, o que faz com
que se trate de uma constatação em relação ao fato de que por mais que haja saber, nada
dessa ordem será suficiente para dar conta do encontro com o real que nos é imposto.
O real ocupa um lugar preciso no que diz respeito à formação do analista e à
transmissão da psicanálise e isso fica patente na afirmação de Lacan de que “existe um real
em jogo na formação”190. Por um lado, tal afirmação soa como um ponto de basta, no
sentido de que por mais que se tente simbolizar a experiência de tornar-se analista, tal
passagem comporta um impossível, ou seja, há algo que faz obstáculo ao deslizamento
infinito da cadeia e provoca uma falha, um impossível de ser simbolizado. A possibilidade
de tornar transmissível a passagem de analisando a analista também constituía uma questão

187
LACAN, J. – A direção do tratamento e os princípios de seu poder.
188
FREUD,S.-Esboço de Psicanálise, [1938] Edição Standard Brasileira das Obras completas de Sigmund
Freud, Rio de Janeiro, Imago, vol. XII. (1996), p. 191.
189
“A transferência é a atualização da realidade do inconsciente”, in: LACAN,J. O Seminário livro 11: os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise apud JORGE, M.A.C.- Jacques Lacan e a estrutura da
formação do psicanalista.
190
LACAN,J .- Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, [1967], in: Outros
Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, (2003), p.249.
para Lacan, o que ele testemunhou ao criar o dispositivo do passe. Se mais tarde o passe se
tornou algo da ordem de uma nomeação e fracassou em seu propósito, trata-se de outra
questão sobre a qual as instituições devem ser chamadas a refletir.
Assim, é preciso reconhecer esse real em jogo na formação. No entanto, reconhecer
o real não o torna mais acessível nem significa que sabemos como lidar com ele. Graciela
Brodsky chama a atenção para a importância da colocação de Lacan e trabalha as
conseqüências advindas daí. Em primeiro lugar, tal afirmação aponta para a
impossibilidade de uma formação homogênea, onde é possível realizar o real da
experiência, o qual define o estilo de cada um e que tem como conseqüência não haver dois
analistas, nem duas análises iguais191. Em relação ao real, Brodsky sublinha ainda que para
o movimento psicanalítico - o qual extrapola os lacanianos - a questão sempre foi “a de
saber o que fazer com esse real que se instala na formação”192 e, nesse sentido, ela aponta
três possíveis tratamentos para este real.
Uma das saídas seria reduzir esse real a um fenômeno imaginário e tratá-lo com a
ajuda do Ideal. Assim, o que se tem é a proposta dos pós-freudianos, onde o final de análise
significa a identificação com o eu do analista, o qual personifica o Ideal acima mencionado.
É importante ressaltar que, um dos problemas em relação a este posicionamento é a
exacerbação da dimensão imaginária em detrimento das outras duas instâncias: simbólico e
real. A questão vai muito além disso, assumindo inclusive um tom político, mas que não
cabe no momento abordar. Na realidade, como esta passagem está submetida ao RSI193, a
solução imaginária encontra-se presente em algum nível, o que fica evidente no espírito
associativo e nos processos de identificação e reconhecimento próprios de uma instituição.
Outro modo de tratamento desse real encontra no simbólico sua solução. Tal via é
identificada na proposta da IPA, formalizada em 1915, cujo modelo baseia-se na formação
pela estandartização. Nesse caso, o que determina a nomeação do analista é um enquadre
definido de número de horas de análise e de supervisão, bem como a indicação do nome do
analista e do supervisor. Além disso, é exigida a freqüência a um programa que Lacan

191
BRODSKY, G. - Efeito-de-formação dos analistas, in: Opção Lacaniana, nº 33, (2002)
192
ibidem, p.23.
193
Imaginário, Simbólico e Real (RSI) são as três dimensões de uma tripartição estrutural, mencionada por
Lacan pela primeira vez em julho de 1953. Inicialmente sua ênfase recai no Imaginário, ao trabalhar o Estádio
do Espelho; depois, a partir do Simbólico formula toda sua teoria do significante e mais no final do seu ensino
prioriza o Real, ao trabalhar o que ele denomina de Campo do Gozo.
chamou de “matérias de ficção”194, justamente por não passar de um ensino médico que
nada teria a acrescentar aos psicanalistas. Na verdade, se fizermos uma análise crítica,
também esse posicionamento incluiria uma solução imaginária, pois trata-se de normas e
leis imaginarizadas que não deixam de levar em conta uma nomeação por atribuição.
Finalmente a terceira solução propõe o tratamento do real pelo real, o que
preferimos chamar de acolhimento do real, onde a formação do analista reconhece o
impossível para fazer dele a própria solução. Nesse sentido, é interessante a colocação de
Graciela Brodsky de que “todos os traumatismos não produzem um analista, mas (...) não
há analista sem o traumatismo que certos encontros produzem: na prática, nas leituras, na
análise, durante a supervisão”195. É importante que a falha no saber provocada por esse
encontro com o real não seja fechada rapidamente com os recursos simbólicos e
imaginários dos quais dispõe o analista. Tal encontro tem o poder de produzir no sujeito um
efeito de divisão subjetiva, ponto que faz muitos recuarem de maneira a procurar suturar
essa falta no Outro.
A problemática da passagem de analisante a analista situa-se na hiância entre causa
e efeito na formação do analista, apontada por Jacques-Alain Miller196. Tal hiância é a
mesma que existe entre uma interpretação e seu efeito, entre o final de análise e a decisão
de querer ocupar o lugar de analista, entre o testemunho e a decisão do cartel do passe,
quando só-depois o sujeito pode responder àquilo que se impõe.
Por outro lado, existe uma outra vertente da afirmação de Lacan relativa ao real
existente na formação, a qual articula-se ao desejo do analista e ao caráter permanente da
formação.
A impossibilidade de se habituar com o real suscita uma questão interessante no que
diz respeito ao posicionamento do analista. Algumas referências dizem que o analista deve
manter a capacidade de se surpreender na clínica, como se houvesse uma tendência a se
habituar, e ele devesse, através da sustentação do desejo do analista, “lutar” para conservar
essa capacidade de se espantar. Nesse sentido, a impressão é de que depende do analista
sustentar essa posição. Por outro lado, existem também diversas referências ao fato de que

55LACAN, J. - Situação da psicanálise e formação do analista em 1956, [1956]in: Escritos, Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, (1998), p.485
195
BRODSKY, G. - op.cit., p.25.
196
MILLER, J.A. apud, BRODSKY, op. cit.
ao real da experiência analítica não é possível se habituar, como se fosse algo inexorável e,
mesmo que o analista quisesse, ele não poderia nunca deixar de se espantar. Chegamos
então a um ponto de impasse que requer mais um pouco de desenvolvimento para tentar ser
respondido.
O motivo pelo qual não é possível se habituar ao saber inconsciente é que ele é
habitado pelo real e o saber constituído não é suficiente para aplacar o espanto causado pelo
real. Segundo Didier-Weill, “o espanto, implicando o esquecimento do saber constituído,
permite não esquecer o real, na medida em que o real é aquilo que é esquecido pelo saber
inconsciente”.197 Se por um lado o saber constituído não dá conta do encontro com o real, é
justamente a partir desse encontro que nasce a possibilidade de simbolizar aquilo que ainda
não foi simbolizado, o que Lacan chamou de “possibilidade de renovação do ensino”198. Ou
seja, ao se deparar com o que é da ordem do não-senso, o sujeito recorre primeiramente
àquilo que tem acumulado enquanto saber, o que de certa forma evidencia sua tendência a
não querer mudar. Identificamos aí um outro tipo de saber consciente, que Lacan chamou
de “vontade de não mudar”199 . Ao recorrer ao que já sabe, o sujeito continua onde está, não
avança, pois pretende justamente deixar tudo como está. O saber inconsciente, habitado
pelo real, exige do sujeito um trabalho de elaboração, faz com que ele se desloque para dar
conta daquilo que causou espanto. Como o que ele tem enquanto saber constituído não é
suficiente para tanto, o sujeito precisa trabalhar para fazer emergir daí um saber novo, o que
acaba renovando o saber. O real é sempre mais poderoso que o simbólico porque aquilo que
não se submete aos nossos recursos de apreensão e domínio guarda sempre um poder e uma
ascendência sobre nós, porquanto nos ameace em tomar-nos como seus objetos.
A mensagem de Freud foi passada duas vezes: uma vez no início do século XX,
pelo próprio Freud, e uma segunda vez nos anos 50, através do ensino de Lacan. Alain
Didier-Weill levanta a possibilidade de que essa mensagem seja passada uma terceira vez.
Para tanto, é preciso que se consiga transmitir, sem recalque, aquilo que foi dito por Freud,

197
DIDIER-WEILL, A. - Preliminares a todas as tentativas de definir um novo elo social possível entre
analistas, in:Inconsciente freudiano e transmissão da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, (1994),
p.124.
198
LACAN, apud ibidem, p.124.
199
LACAN, apud ibidem, p.125.
transmutando esse dizer em algo inédito200. O autor chama atenção ainda para o fato de que
o verdadeiro perigo que ameaça a Psicanálise não é que lhe possam dizer não, mas que lhe
digam um sim que tenha um caráter benigno e com isso seja suprimida a virulência que lhe
é peculiar. Este é o risco que a transmissão da Psicanálise corre numa instituição em que a
presença simbólica de Freud e Lacan fica em segundo plano em relação a um
funcionamento próprio que a instituição adquire.
É importante ressaltar que por virulência da Psicanálise entendemos o que Freud
quis dizer quando - diante da euforia da América em relação à Psicanálise - comentou que
eles não sabiam que ele trazia a peste201. Na verdade, não se trata de um julgamento de
valor, de que a Psicanálise seja boa ou ruim, mas que ela comporta uma certa virulência na
medida em que sua presença exige mudanças, impõe um questionamento em relação a tudo
que já está instituído e, portanto, mexe com os cânones da sociedade. Assim, dotar a
Psicanálise de docilidade significa abster-se de problemas, mas acaba por aproximá-la de
uma teoria adaptacionista que suprime o que ela tem de mais original: sua causticidade.E é
justamente esta causticidade, esta virulência que permite que a Psicanálise possa ser
transformada em algo inédito, que não seja a mera reprodução universitária.
A transmissão da psicanálise constitui um ponto fundamental no que diz respeito à
formação do analista, pois além de perpassar todo o percurso que leva a passagem de
analisando a analista, ela evidencia a continuidade entre a psicanálise em intensão e a
psicanálise em extensão.
No Seminário 17 Lacan diz que “aquilo que (do analista) se transmite é um
estilo”202. Tal afirmação requer algumas considerações. Inicialmente é importante ressaltar
que de modo algum se trata de transmissão no sentido de um legado, uma herança, pois isso
favoreceria uma forte identificação com o analista. A postura segundo a qual é possível ao
analista transmitir seu modo de trabalhar, servindo de modelo para o analisando,
caracterizaria a forma de condução do tratamento essencialmente baseada no imaginário.

200
DIDIER-WEILL, A. -Terceira passagem de Freud? [1982], in: Inconsciente freudiano e transmissão da
psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, (1994).
201
Numa entrevista que deu a Lacan, Jung - o qual acompanhou Freud aos EUA - atribuiu esta frase a Freud,
apud ROUDINESCO,E.- História da Psicanálise na França A batalha dos cem anos vol. 2: 1925-1985
202
LACAN, J - O Seminário livro17: o avesso da psicanálise.
Na verdade, tomando a análise feita por Jorge203 no que diz respeito ao percurso de
Lacan em relação à direção do tratamento, é possível dizer que foi justamente esta a
situação com a qual ele se defrontou quando iniciou seu questionamento das práticas em
vigor que eram chamadas de psicanálise. Na década de 50, ou seja, no início de seu
seminário, Lacan encontrou uma prática que se denominava “análise das resistências”, a
qual era centrada na dimensão imaginária. O que operava era uma objetificação do
analisando e paradoxalmente quem aparecia como sujeito era o analista. A clínica de
baseava nas noções de eu autônomo, de identificação com o eu do analista de aliança
terapêutica entre analisando e analista, a qual parte do princípio de que o eu do analisando
possui uma parte sadia e uma parte doente de modo que a cura seria atingida através de
uma aliança do eu sadio com o eu do analista. Os elementos considerados sadios eram
aqueles que estavam apoiados na realidade, ou seja, aqueles congruentes com os objetivos
do analista, donde concluímos que o que estava no centro da questão era o eu do analista.
Tal prática colocava a resistência como ponto central do tratamento, uma vez que ela é a
parte mais palpável do recalque e tem origem na mesma instância que este último: no eu.204
Lacan propõe substituir a oposição análise das resistências X análise do material por
análise do eu X análise do discurso e desenvolve esta idéia até dar origem ao seu famoso
esquema L, mostrado abaixo na figura 2, no qual opõe Imaginário, representado pelo eixo
a→a’, isto é relação imaginária a Simbólico, representado por S→A, ou seja, relação
inconsciente.

(Fig.2)

203
JORGE, M.A.C.- O percurso em Lacan da direção do tratamento, inédito
204
FREUD, S. - Além do princípio do prazer
Com esta oposição Lacan propõe uma outra direção ao tratamento, colocando em
cena o discurso do analisando com tudo o que ele comporta: suas pausas, interrupções,
entonação, etc.
Retomando a citação de Lacan acerca da transmissão de um estilo, é importante
ressaltar que ao falarmos que de estilo não estamos nos referindo ao estilo do
homem/mulher analista, o que partiria de uma referência egóica e impossibilitaria ali a
emergência do Outro e caracterizaria uma relação dual, intersubjetiva. Mas tampouco se
trata de um estilo do analista no sentido de um estilo universal da Psicanálise, o que já
dissemos ser impossível, pois o modo de cada um lidar com o real faz com que cada
experiência seja única. A questão do estilo se situa mais além e caracteriza um modo de
lidar com o real.A análise produz um estilo no sentido de que não havia estilo antes. As
inscrições estavam ali latentes, e o que ocorre é a apropriação de um estilo.
Além disso, para que o sujeito possa imprimir sua marca e transformar esse saber
em algo inédito, o saber transmitido deve chegar até ele como um enigma, ou seja,
enquanto um semi-dizer. É somente a partir desta dimensão de enigma que o sujeito vai
poder se apropriar do saber e transformá-lo em algo seu a ser transmitido daí para frente.A
originalidade em relação à transmissibilidade é decorrente da forma de explicitar a leitura
que se faz de Freud.
O preço para que isso se realize encontra sua resposta no desejo do analista. Para
falar do desejo do analista é importante considerar os dois momentos cruciais da análise -
ou como Lacan se refere, aos dois pontos da junção entre psicanálise em intensão e
psicanálise em extensão – isto é, o início e o fim da análise.
No início da análise o que há é o sujeito suposto saber, que por ser sujeito do desejo,
faz o sujeito entrar em jogo. Lacan aponta que o sujeito suposto saber é o pivô no qual se
articula tudo que se relaciona com a transferência. No Seminário 11 Lacan fala da
transferência como algo diferente daquilo que Freud apontava no início, ou seja, não é a
sombra de algo vivido. Sobre a transferência, Lacan diz: “muito ao contrário, o sujeito
enquanto assujeitado ao desejo do analista, deseja enganá-lo dessa sujeição, fazendo-se
amar por ele, propondo por si mesmo essa falsidade essencial que é esse efeito de
tapeação no que ele se repete presentemente aqui e agora”205. Serge Cottet aponta que
assim Lacan elucida o laço que se escondia entre o desejo do analista e desejo do paciente:
esse laço representa a afirmação do que está por trás do amor dito de transferência. A partir
disso, continua ele, não há que se distinguirem dois desejos relativos a dois indivíduos. O
único sujeito em questão no discurso analítico é o sujeito suposto saber206. O que o sujeito é
suposto saber é a significação, o sentido do sintoma, do sofrimento que faz com que alguém
busque a análise. É essa significação que falta ao sujeito que implica o analista na
transferência, na medida em que ele pode dá-la ou recusá-la, colocando em cena a
onipotência do desejo do Outro.
De acordo com Lacan, só há entrada em análise se houver ignorância. O sujeito se
apega à ignorância como a uma paixão, sob a forma de um não querer saber sistemático. A
ignorância douta do analista vai aos poucos deslocando a ignorância paixão do analisante,
de forma que ele queira saber sobre aquilo que o faz sofrer.No Seminário 20 Lacan define a
transferência como amor dirigido ao saber207. O analista precisa colher a suposição que lhe
é atribuída sem, no entanto respondê-la. Dessa maneira, a ignorância vai sendo deslocada e
dá lugar ao saber inconsciente.
A crítica de Lacan sobre a contratransferência levou-o a formular uma operação
que visa manter distância entre o ideal e o objeto causa de desejo, ou seja, entre I e a. É
dessa posição de ideal que o analisando atribui ao analista num primeiro momento que este
deve se esquivar. Segundo Lacan, é através do desejo do analista que se coloca a maior
distância possível entre I e a. É apenas fazendo cair esse ideal que o analista vai poder ser
suporte do a separador. Assim, “é na medida em que o desejo do analista que resta um x,
tende para um sentido oposto à identificação, que a travessia do plano da identificação é
possível, pelo intermédio da separação do sujeito na experiência”208 .
O desejo do analista impõe um alto tributo a ser pago: despojar-se de todo seu
sistema de crenças, valores, ideais, e ocupar o lugar de objeto para que o analisando emerja
enquanto sujeito, sujeito do inconsciente.Como já foi dito, o princípio norteador que Lacan
promoveu era a de que qualquer identificação com o eu do analista era prejudicial à análise.

205
LACAN, J.- O Seminário livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise[1964], Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor (1998),p.240
206
COTTET,S. - Freud e o desejo do psicanalista, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1989.
207
LACAN,J. - O Seminário livro 20: Mais ainda, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
208
LACAN,J. - O Seminário livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Daí a importância do analista ocupar uma posição precisa na análise. Num primeiro
momento, o sujeito tem uma relação com seu analista que o coloca no nível do ideal do eu,
ou seja, numa posição onde ele se sentirá tão satisfatório quanto amado209. O desejo do
analista implica na recusa desse poder imaginário que lhe é imputado por seu analisando.
Rejeita o gozo que pode obter a partir desse lugar, uma vez que qualquer sinal de seu eu
tem que estar ausente ali. Quanto mais o desejo pessoal do analista estiver suspenso, mais a
função do desejo do analista vai estar operando, abrindo espaço para a confissão do desejo
do paciente. Suportar esse lugar, com toda a amputação que ele implica só é comparável,
nas palavras de Lacan, “àquilo que no passado se chamou: ser um santo”210.
O outro ponto de junção, o fim da análise, supõe a queda do sujeito suposto saber. É
importante esclarecer que justamente por dizer que a transferência se resolve
exclusivamente, Lacan deixa claro que não se trata de liquidação da transferência. Isso
implica que “quando o desejo, estando resolvido quem sustentou o psicanalisante em sua
operação, já não tem finalmente vontade de levantar sua opção, quer dizer, o resto,
determinando sua divisão, o faz cair de seu fantasma e o destitui como sujeito”.211 É por se
articular como sustentáculo do tornar-se analista de cada dia na prática, que o desejo do
analista assume um caráter fundamental. O desejo do analista refere-se, segundo Alain
Didier-Weill, a uma posição ética do analista. Trata-se de um desejo que conjuga o fato de
ser sempre o mesmo com o poder de ser, ao mesmo tempo, inédito. 212 No entanto, a
passagem de analisante a analista não é suficiente, ou melhor, não garante que se possa
ocupar o lugar de analista daí para frente. É possível dizer que neste momento abre-se esta
possibilidade, mas o desejo do analista deverá ser sustentado e renovado a cada vez, a partir
da recomendação de Freud de abordar cada novo caso como se fosse o primeiro, o que se
articula com a própria estrutura do desejo do analista, que é de ser sempre novo, ainda que
seja o mesmo. É interessante e importante a característica de “ser sempre o mesmo”, pois
paradoxalmente isso já implica que ele seja novo, ou seja, de que seja o mesmo de quando
era novo, tão inédito quanto o foi da primeira vez. O desejo do analista é um desejo de
exceção, uma vez que não é desejo do Outro. Trata-se de um desejo vazio de conteúdo em

209
ibidem.
210
COTTET, S. op.cit, p.184
211
LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.
212
DIDIER-WEILL, A.- Terceira passagem de Freud?
termos do objeto da fantasia, mas desejo que liga um desejo (do sujeito) ao desejo do
Outro213.
A possibilidade de ser inédita confere à descoberta analítica a possibilidade de ser
transmitida e justamente por comportar essa dimensão de descoberta que o “já dito” por
Freud assume um caráter novo para cada um que o toma. É nesse ponto que reside o
esforço em relação ao desejo do analista: sustentar a capacidade de se surpreender, de ser
tomado pelo novo em cada caso. Ou nas palavras de Didier-Weill: “Se para um analista um
caso pode, então, nunca ser o mesmo, mas ser sempre inédito, é porque existe a mais
estrita relação entre a estrutura do desejo do psicanalista, que é de ser sempre novo, e a
aptidão para encontrar o real da experiência analítica enquanto presença que desafia
radicalmente toda apreensão do hábito” (op.cit., p.110).
É esse caráter inédito - mantido pelo desejo do analista - que permite a transmissão
da psicanálise diferentemente do mero ensino de técnicas e manejos. A transmissão implica
que cada analista sustente com seu desejo aquilo que lhe é transmitido, imprimindo sua
marca, seu estilo e fazendo do legado de Freud uma eterna descoberta, o que abre caminho
para pensarmos a formação do psicanalista como infinita.

Conclusão

Assim, é possível situarmos o início do percurso de formação do psicanalista no


início de sua análise pessoal, mas não é possível situar exatamente e muito menos prever,
onde e quando este percurso termina. Ao fim deste processo o ato analítico coloca o sujeito
em xeque em relação à sua própria escolha, onde o saber opera um retorno sobre o sujeito.
O resto real, inanalisável, que constitui seu ser, pode se tornar por ele reconhecido e
assumido, sua relação com o gozo se revela e ao mesmo tempo se modifica: efeitos de
verdade, escolha do sujeito, queda do sujeito suposto saber... Tudo isto se constitui, se
verifica no só-depois se para o sujeito ocorre o encontro com o desejo do analista e os
efeitos de formação o tocam. Relançada por cada caso clínico, ao mesmo tempo em que é

213
LACAN,J. - O Seminário livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
indissociável de seu percurso, a formação do psicanalista se verifica e é posta à prova a
cada dia de sua prática.
A maior complexidade da formação do psicanalista reside no fato de que ela
interroga a concepção clássica de formação, a qual propõe um percurso com início e final.
A noção de uma formação sem final introduz o paradoxo de um percurso sem um
acabamento que o realizasse plenamente, sobre o qual Jacques-Alain Miller faz uma
observação interessante 214 . Segundo ele, em psicanálise a formação segue no sentido
inverso, pois ela começa onde habitualmente termina uma formação no seu sentido
clássico, ou seja, precisamente em um ponto de completude. A partir disso, é possível
apontar dois pontos essenciais no que diz respeito à distinção entre a psicanálise e as
abordagens ditas terapêuticas. Inicialmente, uma terapêutica tem por objetivo a restituição
de um estado anterior215. A psicanálise tem em sua proposta operar um novo arranjo no
sujeito, seja do ponto de vista do investimento libidinal, seja em relação aos seus pontos de
angústia e de gozo. Há assim uma modificação no sujeito que não pode ser comparada a
qualquer estado anterior à experiência psicanalítica. Além disso, a psicoterapia propõe um
processo de síntese, enquanto a psicanálise, como o próprio nome já diz, propõe uma
desconstrução através do processo de análise.
Dessa maneira, a formação, tomando como início a própria experiência analítica,
visa a travessia da fantasia no sentido de uma separação daquilo que nos dá ilusão de uma
possibilidade – enganosa e nunca satisfatória – de completude. A fantasia permite que o
sujeito possa ocupar, pelo giro que lhe é próprio, a posição de objeto a como lugar de gozo.
A travessia consiste no deslocamento do objeto a da posição que ocupa na fantasia. Fora
desta posição ele se distingue, segundo Lacan, de –φ, permitindo ao sujeito ocupar, pela
primeira vez a posição de objeto a, não mais como objeto de gozo, mas como causa de
desejo. Um processo desta natureza, ao contrário de comportar uma identificação que
sustenta o gozo, como faz a fantasia, se desenrola de maneira inversa, promovendo uma
desidentificação. Ou, nas palavras de Mazzotti: “ela parte com efeito da identificação com a
forma constituinte (quer dizer, lá onde a Bildung se realiza, se conclui) para chegar à
dessubjetivá-la”216. Nesta perspectiva, a formação do psicanalista segue o mesmo viés que

214
MILLER, J.A. apud MAZZOTTI, M.- Une formation infinite?, in: Revue de La Cause freudienne/nº 52
215
LACAN ,J. - Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.
216
MAZZOTTI, M. op.cit
o processo de análise no que diz respeito às formações constituídas da fantasia. E é
justamente esta estrutura ao contrário que condiciona sua infinitude.
É importante ressaltar que a escolha do termo “infinita” ao invés de “incabada” não
foi sem propósito. Na verdade, acredito haver uma grande diferença, especialmente em um
campo onde se dá o devido valor às palavras. Dizer que uma formação é incabada suscita a
idéia de que haveria algo “sem acabar”, ao seja, algo que ficou por terminar para se chegar
a um determinado ponto específico. Ao qualificar a formação do psicanalista como infinita,
queremos dizer que tal formação é, por si só, sem fim. Não se trata de um percurso
incompleto, mas de um percurso que estruturalmente não comporta a idéia de fechamento,
por acolher o impossível que o habita. E é por privilegiar esta dimensão de abertura, de
acolhimento ao novo e ao real da experiência analítica que a formação do psicanalista é
permanente.

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