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Os princípios das relações

internacionais e os 25 anos da
Constituição Federal

Alexandre Pereira da Silva

Sumário

Introdução. 1. Independência nacional. 2. Prevalência dos direitos


humanos. 3. Autodeterminação dos povos. 4. Não intervenção. 5.
Igualdade entre os Estados. 6. Defesa da paz. 7. Solução pacífica dos
conflitos. 8. Repúdio ao terrorismo e ao racismo. 9. Cooperação entre os
povos para o progresso da humanidade. 10. Concessão de asilo político.
11. Integração econômica, política, social e cultural dos povos da América
Latina. Conclusão.

Introdução

O artigo 4o da Constituição Federal de 1988 trouxe uma inovação


importante em relação às constituições brasileiras anteriores: o elenco
sistematizado dos princípios que regem a República Federativa do Brasil
em suas relações internacionais. Os dez incisos e seu parágrafo único expli-
citam os valores e a tradição brasileira nas suas relações com outros Estados.
Vinte e cinco anos depois, esses princípios das relações internacionais
têm crescente importância, não somente no plano internacional, mas tam-
bém internamente. No âmbito internacional, os princípios servem como
Alexandre Pereira da um importante guia para os poderes do Estado em suas relações com seus
Silva é pós-doutor em
congêneres, ao passo que internamente auxiliam os tribunais na solução
Direito pela Dalhousie
University, Halifax, de casos concretos e também no papel político internacional exercido
Canadá. Professor- pelo Congresso Nacional. É importante também destacar que, em razão
adjunto de Direito
Internacional da do processo de internacionalização do Brasil, é cada vez mais frequente
Faculdade de Direito do a presença de um elemento “internacional” em questões essencialmente
Recife, da Universidade
internas. Essa característica assinala a atualidade e a importância exercida
Federal de Pernambuco
(FDR/UFPE). pelo artigo 4o neste último quarto de século.

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Este estudo, portanto, examinará na sequência os dez incisos cons-
tantes e o parágrafo único do artigo 4o, para no final elaborar um balanço
conjunto desse dispositivo constitucional. A análise dos princípios das
relações internacionais será realizada tanto pelo ângulo do direito cons-
titucional como do direito internacional, de maneira a realçar o caráter
intercambiável neste contexto desses dois ramos do direito público. Além
disso, o estudo também destacará a atuação dos três poderes na imple-
mentação dos princípios, em especial a atuação do Ministério das Relações
Exteriores, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e o trabalho da
Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal.

1. Independência nacional

De acordo com o caput do artigo 4o da Constituição Federal, “a Repú-


blica Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos
seguintes princípios”. O primeiro desses princípios é o da independência
nacional. A primazia é bastante justificável, visto que a Constituição abre
seu artigo 1o, inciso I, consagrando o fundamento de que a “República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania”. Assim, princípio
basilar do Estado brasileiro é a sua soberania e, portanto, é muito coerente
que, em suas relações com os demais Estados partícipes da sociedade
internacional, o Brasil repute essencial sua própria independência.
Essa relação entre soberania e a independência nacional foi destacada
pelo ministro Luiz Fux na Reclamação no 11.243:

“O artigo 1o da Constituição assenta como um dos fundamentos do Es-


tado brasileiro a sua soberania – que significa o poder político supremo
dentro do território, e, no plano internacional, no tocante às relações
da República Federativa do Brasil com outros Estados soberanos, nos
termos do art. 4o, I, da Carta Magna. A soberania nacional no plano
transnacional funda-se no princípio da independência nacional, efeti-
vada pelo presidente da República, consoante suas atribuições previstas
no artigo 84, VII e VIII, da Lei Maior” (Rcl. no 11.243, Relator para o
acórdão Min. Luiz Fux, julgamento em 8 de junho de 2011, Plenário, DJE
de 5 de outubro de 2011).

Esse princípio também deve ser considerado de maneira especial com


outros também elencados no artigo 4o: autodeterminação dos povos, não
intervenção e igualdade entre Estados. O Brasil como uma ex-colônia,
ainda com menos de 200 anos de independência política, sempre con-
siderou fundamental em suas relações internacionais não só o respeito
a sua independência nacional, mas também a dos demais Estados, seja

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reconhecendo de maneira explicita a igualdade entre eles, seja reconhe-
cendo como princípio basilar a não intervenção nos assuntos internos dos
demais Estados. Além disso, o Estado brasileiro também apoia o direito
de outros povos a sua autodeterminação política.
Em termos de jurisprudência internacional, também essa relação entre
soberania e independência nacional foi marcada na célebre arbitragem
do Caso da Ilha de Palmas (Países Baixos vs. Estados Unidos), de 1928.
Para o árbitro Max Huber:

“Sovereignty in the relation between States signifies Independence. Indepen-


dence in regard to a portion of the globe is the right to exercise therein, to
the exclusion of any other State, the functions of a State. The development
of the national organization of States during the last few centuries and, as a
corollary, the development of international law, have established this prin-
ciple of the exclusive competence of the State in regard to its own territory
in such way as to make it the point of departure in settling most questions
that concern international relations” (UNITED NATIONS, 2006, p. 838).

Essa independência nacional, manifestada entre outros aspectos pela


soberania territorial, inclui o direito exclusivo de conduzir as atividades
dentro dos limites do Estado. Esse direito tem como seu corolário um
dever: a obrigação de proteger dentro do seu território os direitos dos
demais Estados, especialmente os direitos de integridade e inviolabili-
dade, durante a paz ou durante a guerra, bem como o direito que têm os
Estados de proteger seus nacionais em território estrangeiro (KINDRED;
SAUNDERS, 2006, p. 34). Ou seja, o primeiro dever está consignado no
princípio da não intervenção e o segundo, no princípio da igualdade dos
Estados, examinados a seguir.

2. Prevalência dos direitos humanos

Depois dos horrores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o tema


dos direitos humanos ganhou uma especial dimensão para a sociedade
internacional. Marco desse processo foi a aprovação da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, em 10 de dezembro de 1948, pela
Assembleia Geral das Nações Unidas. Ainda que a Declaração Universal
não tenha força jurídica cogente sobre os Estados, o fato é que ela – aliada
à própria Carta da ONU, que também consagra a relevância dos direitos
humanos – serviu de base para um sólido arcabouço jurídico, com a
aprovação de diversos tratados sobre o tema. Entre outros, mencionem-se
os pactos internacionais assinados em 1966: o Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econô-
micos, Sociais e Culturais. Há diversos tratados mais recentes no sistema

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global de proteção do indivíduo, como a Convenção contra a Tortura e
Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984)
e a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989).
A consagração do caráter fundamental da prevalência dos direitos
humanos refletiu-se também em âmbito regional com a criação de uma
série de tratados sobre o tema: Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, 1969), Convenção Interameri-
cana para Prevenir e Punir a Tortura (1985) e Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), para
citar apenas alguns.
O Brasil é parte nesses e em diversos outros tratados de direitos
humanos. Vale destacar que muitos destes tratados foram ratificados
durante esse último quarto de século. Foram os casos, por exemplo, dos
Pactos de 1966, que o Brasil ratificou somente em 1992, obrigando-se
dessa forma a promover e garantir os direitos promovidos por eles, bem
como pelo Pacto de São José, também ratificado em 1992. Ainda no plano
regional de proteção dos direitos humanos, vale frisar que posteriormente
o Brasil também se tornou parte da Convenção de Reconhecimento da
Competência Obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos
em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação do Pacto de São
José, de acordo com o artigo 62 desse tratado, sob a reserva de recipro-
cidade e para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998.
Internamente, na sequência do processo de redemocratização expe-
rimentado pela sociedade brasileira, nada mais lógico que a Assembleia
Constituinte também reconhecesse o papel fundamental que os direitos
humanos têm nas relações entre os Estados e dentro do Brasil. Além disso,
mais do que elencá-los entre os princípios que regem as relações inter-
nacionais do Brasil, o constituinte ainda deu uma prova cabal do papel
fundamental que têm os direitos humanos, ao estabelecer no parágrafo
2o do artigo 5o que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constitui-
ção não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa
do Brasil seja parte”.
Ao longo desses vinte e cinco anos, a prevalência dos direitos humanos
tem demonstrado um processo contínuo de fortalecimento. Exemplo
disso se deu em dezembro de 2004, por meio da aprovação da Emenda
Constitucional no 45 (EC no 45/2004), que adicionou os parágrafos 3o e
4o ao já robusto artigo 5o que dispõe os direitos e garantias fundamentais.
O primeiro desses parágrafos ratificou o papel supralegal que têm os tra-
tados de direitos humanos do qual o Brasil faz parte, ao dispor que: “Os
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por

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três quintos dos votos dos respectivos membros, Internacional (TPI) para o Brasil ao considerar
serão equivalentes às emendas constitucionais”. que: “O Brasil se submete à jurisdição de Tri-
O debate em torno da aplicação e interpre- bunal Penal Internacional a cuja criação tenha
tação do parágrafo 2o do artigo 5o tem acessos manifestado adesão”.
debates na doutrina jurídica pátria. Essencial- Criado em 2002, pelo Tratado de Roma, o
mente, com a EC no 45/2004 os direitos humanos TPI é uma das mais enérgicas medidas tomadas
passaram de materialmente constitucionais (ar- pela sociedade internacional para dar resposta
tigo 5o, § 2o), para material e formalmente cons- aos crimes de maior gravidade e que por isso
titucionais (artigo 5o, § 3o), ou como está bem mesmo não devem ficar impunes. Como bem
resumido no voto do Ministro Celso de Mello: coloca William Schabas (2000, p. 157-158):
“apesar de sua vocação para o direito penal,
“Em decorrência dessa reforma constitucio- a Corte é fundamentalmente uma resposta a
nal, e ressalvadas as hipóteses a ela anteriores sérias violações de direitos humanos, particu-
(considerado, quanto a estas, o disposto no
larmente aquelas envolvendo a perseguição de
§ 2o do art. 5o da Constituição), tornou-se
possível, agora, atribuir, formal e material- minorias étnicas”.
mente, às convenções internacionais sobre Também é importante destacar que o Bra-
direitos humanos, hierarquia jurídico–cons- sil, além de assinar e ratificar os tratados de
titucional, desde que observado, quanto ao direitos humanos, tem participado de cortes
processo de incorporação de tais convenções,
o “iter” procedimental concernente ao rito de internacionais e outros mecanismos de proteção
apreciação e de aprovação das propostas de dos direitos humanos. Foi o caso da indicação
emenda à Constituição, consoante prescreve de Sylvia Steiner para ser juíza na primeira
o § 3o do art. 5o da Constituição. [...] É preciso composição do TPI, entre 2003 e 2012; e a
ressalvar, no entanto, como precedentemente
de Antônio Augusto Cançado Trindade, para
já enfatizado, as convenções internacionais
de direitos humanos celebradas antes do membro da Corte Interamericana de Direitos
advento da EC no 45/2004, pois, quanto a Humanos (1994-2008), ocupação que deixou
elas, incide o § 2o do art. 5o da Constituição, para tornar-se juiz da Corte Internacional de
que lhes confere natureza materialmente
Justiça, no período inicial de 2009-2018. E,
constitucional, promovendo sua integração
e fazendo com que se subsumam à noção mais recentemente, a escolha de Paulo Vannuchi
mesma de bloco de constitucionalidade” (HC para compor a Comissão Interamericana de
no 87.858, Rel. Min. Marco Aurélio, julga- Direitos Humanos (CIDH), no período 2014-
mento em 3 de dezembro de 2008, Plenário,
2017. Além de Vannuchi, foram comissários
DJE de 26 de junho de 2009, voto-vista do
Min. Celso de Mello, 12 de março de 2008). da CIDH os brasileiros Paulo Sérgio Pinheiro
(2004-2011), Hélio Bicudo (1998-2001) e Carlos
Vale destacar que o Congresso Nacional Dunshee de Abranches (1964-1983).
aprovou a Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência e seu 3. Autodeterminação dos povos
Protocolo Facultativo, assinados em março de
2007, pelo iter procedimental do parágrafo 3o do O princípio da autodeterminação dos povos
artigo 5o, conforme promulgado pelo Decreto é um dos pilares da Organização das Nações
no 6.949, de 25 de agosto de 2009. Unidas, inscrito na Carta da ONU no artigo
O parágrafo 4o, também nessa linha, reco- 1o, número 2, além dos artigos 55, 73, letra “b”
nhece a importância que tem o Tribunal Penal e 76, letra “b”. O desenvolvimento do direito

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de autodeterminação dos povos surgiu como ção dos povos sempre esteve presente entre
consequência natural do processo de desco- os paradigmas tradicionais da política externa
lonização, que ganhou impulso nos primeiros brasileira (DALLARI, 1994, p.163). Também
anos posteriores à Segunda Guerra Mundial e porque o Brasil, como uma antiga colônia, en-
teve seu ápice com o processo de descoloni- tende que todos os povos devem guiar-se por
zação afro-asiático no início dos anos 1960. seus próprios meios, sem necessidade de tutela
No entanto, esse direito de autodeterminação estrangeira (SILVA, 2005, p. 34).
não se limita à descolonização. Mais que isso, é Um dos exemplos mais recentes da ma-
contemplado também no artigo 1o, número 1, nifestação brasileira à autodeterminação dos
do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis povos deu-se quando o governo brasileiro, por
e Políticos (1966), ao consagrar que: “todos meio de carta enviada pelo presidente Lula ao
os povos têm direito à autodeterminação. Em presidente da Autoridade Nacional Palestina,
virtude desse direito, determinam livremente Mahmoud Abbas, reconheceu o Estado pales-
seu estatuto político e asseguram livremente seu tino nas fronteiras existentes em 1967. Segundo
desenvolvimento econômico, social e cultural” a Nota no 707, de 3 de dezembro de 2010, do
(HERDEGEN, 2005, p. 270). Ministério das Relações Exteriores:
Em outubro de 1970, por meio da Re-
solução n o 2.625 da Assembleia Geral, os “O Brasil reafirma sua tradicional posição de
Estados-membros da organização tiveram favorecer um Estado palestino democrático,
geograficamente coeso e economicamente
oportunidade de uma vez mais ratificar esse e
viável, que viva em paz com o Estado de Is-
outros princípios considerados essenciais nas rael. Apenas uma Palestina democrática, livre
relações dos Estados entre si1. A Resolução no e soberana poderá atender aos legítimos an-
2.625 menciona de maneira especial uma série seios israelenses por paz com seus vizinhos,
segurança em suas fronteiras e estabilidade
de princípios: a proibição do uso da força, a
política em seu entorno regional.”
solução pacífica das controvérsias, a proibição
da intervenção, o mandato de cooperação entre Outro marco importante na aplicação do
os Estados, a igualdade de direitos e o princípio princípio da autodeterminação dos povos nestes
da autodeterminação dos povos, a igualdade últimos vinte e cinco anos foi o apoio brasileiro
soberana dos Estados, bem como o dever dos à independência e autodeterminação do Timor
Estados de cumprir com boa-fé as obrigações Leste, antiga colônia de Portugal, sob jugo da
assumidas em concordância com a Carta das Indonésia durante os anos de 1975 a 1999. A
Nações Unidas. questão do Timor Leste voltou às páginas do
Ainda que inexista nas Constituições ante- noticiário internacional em outubro de 1996,
riores menção explícita a ele, o compromisso quando foi atribuído o Prêmio Nobel da Paz
do Brasil com o princípio da autodetermina- a dois líderes do processo de independência
nacional, o bispo Carlos Ximenes Belo e José
Ramos Horta.
1
Resolução no 2.625 (XXV), de 24 de outubro de
1970, da Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Com o objetivo de realizar um referendo
sobre os Princípios de Direito Internacional Referentes às para determinar se a população timorense
Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados em
Conformidade com a Carta das Nações Unidas (Declara- apoiava a criação de uma região autônoma espe-
tion on Principles of International Law Concerning Friendly cial ou a independência em relação à Indonésia,
Relations and Cooperation Among States in Accordance with
the Charter of the United Nations). o Conselho de Segurança da ONU estabeleceu a

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Missão das Nações Unidas sobre o Timor Leste contra a Nicarágua” (Nicarágua vs. Estados
(United Nations Mission in East Timor – Una- Unidos), em decisão de 1986, destacou nesse
met). Após o massivo apoio dado à soberania sentido que:
timorense no referendo, seguiu-se um período
de tensão e violência na região até a criação da “The principle of non-intervention involves
Força Internacional para o Timor Leste (Inter- the right of every sovereign State to conduct
its affairs without outside interference. [...]
national Force for East Timor – Interfet), em
the Court defines the constitutive elements
resposta ao declínio da situação humanitária e which appear relevant in this case: a prohibited
de segurança durante a transição timorense para intervention must be one bearing on matters
a independência. Posteriormente, foi criada a in which each State is permitted, by the prin-
Administração Transitória das Nações Unidas ciple of State sovereignty, to decide freely (for
example the choice of a political, economic,
em Timor Leste (United Nations Transitional social and cultural system, and formulation of
Administration in East Timor – Untaet), liderada foreign policy). Intervention is wrongful when
pelo brasileiro Sérgio Vieira de Mello, como it uses, in regard to such choices, methods of
representante especial do Secretário-Geral da coercion, particularly force, either in the direct
form of military action or in the indirect form
ONU até a independência do Timor Leste em
of support for subversive activities in another
20 de maio de 2002. O Brasil participou dessas State” (INTERNATIONAL COURT OF
missões e de outras duas criadas posteriormente JUSTICE, 1986).
pelas Nações Unidas no Timor Leste (BRACEY,
2011, p. 320-322). No âmbito do direito internacional, o prin-
cípio da não-intervenção nos assuntos internos
4. Não intervenção dos Estados está consagrado, por exemplo, na
Carta das Nações Unidas, em seu artigo 2o,
Na conceituação de Celso Bastos e Ives Gan- número 7, que afirma: “nenhum dispositivo
dra Martins (2001, p. 502), o princípio da não da presente Carta autorizará as Nações Unidas
intervenção é aquele que proíbe a um Estado a intervirem em assuntos que dependam es-
de imiscuir-se no funcionamento de Poderes sencialmente da jurisdição de qualquer Estado
Públicos estrangeiros. Em decorrência disso, ou obrigará os Membros a submeterem tais
existiria um respeito às competências nacionais assuntos a uma solução, nos termos da presente
exclusivas, não admitindo qualquer espécie de Carta”.
interferência nos assuntos internos de outros Como anota Breno Hermann (2011, p.
Estados. Ainda que não encontrado de forma 22), dos princípios das relações internacionais
explícita nas Constituições anteriores à de 1988, elencados nesse artigo 4 o da Constituição,
esse princípio tem tradicionalmente servido de certamente um dos mais antigos em termos
baliza na atuação da política externa brasileira de atuação da política externa brasileira é o da
(DALLARI, 1994, p. 165). não intervenção. Se em um primeiro momento,
Em linhas gerais, a proibição da não-inter- sua função era a de garantir a recém-adquirida
venção protege principalmente a autonomia independência em face de eventuais investidas
dos Estados no que tange a aspectos políticos, da ex-metrópole, em um segundo momento,
econômicos, sociais e culturais. A Corte Inter- passou a servir de base para o rechaço às tenta-
nacional de Justiça, no célebre “Caso Relativo tivas de potências estrangeiras de se imiscuirem
às Atividades Militares e Paramilitares na e em questões nacionais.

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Para o ex-chanceler e atual ministro da 5. Igualdade entre os Estados
Defesa, Celso Amorim:
O princípio da igualdade entre os Estados
“O princípio da não-intervenção nos as- é uma das peças centrais do sistema interna-
suntos internos dos outros Estados sempre cional westfaliano. Expressão destacada desse
orientou a política exterior do Brasil. Mas
princípio encontra-se atualmente no artigo 2o,
este princípio deve ser matizado pela ‘não-
-indiferença’; isto é, a disposição de colabo- número 1, da Carta das Nações Unidas: “A Or-
rar, por meio de canais legítimos, com outros ganização é baseada no princípio da igualdade
países que se encontram em situações parti- de todos os seus Membros”.
cularmente difíceis” (BRASIL, 2010, p. 20).
Como observa Matthias Herdegen (2005, p.
243-244), essa igualdade soberana entre os Es-
Essa “não-indiferença”, sem violar o prin- tados deve se compreendida no sentido de uma
cípio da não intervenção, pode ser ilustrada igualdade formal entre os membros da sociedade
no posicionamento do governo brasileiro em internacional. E essa concepção formal da igual-
face da presente situação na Síria. Em recente dade entre os Estados reflete-se na composição
intervenção, o representante brasileiro no Con- e atuação de várias organizações internacionais,
selho de Direitos Humanos das Nações Unidas como a aplicação da regra “um Estado, um voto”.
declarou que: No entanto, a própria ONU – e outras orga-
nizações e conferências internacionais – rompe
“O Brasil acredita que o Conselho de Direi- essa regra ao privilegiar determinados Estados-
tos Humanos deve acompanhar de perto a -membros, como no caso da composição e
escalada da violência e tragédia humana na
votação no âmbito do Conselho de Segurança,
Síria. Este Conselho não pode permanecer
em silêncio enquanto os civis estão sujeitos em que os cinco Estados (China, Estados Uni-
a graves violações do direito internacional dos, Federação Russa, França e Grã-Bretanha),
dos direitos humanos e do direito interna- possuem assentos permanentes e, além disso,
cional humanitário. A ação imparcial e eficaz contam com o poder de vetar resoluções dentro
visando à melhoria da condição local deve
ser o objetivo principal do nosso trabalho” do órgão (artigos 23, número 1, e 27, número 3
(BRASIL, 2013). da Carta da ONU). Contra esse “diretório das
grandes potências” insurge-se o Brasil, pleite-
Esse posicionamento brasileiro de prestigiar ando de longa data, mas especialmente nestes
órgãos internacionais e soluções negociadas últimos vinte e cinco anos, uma alteração na
nem sempre é bem compreendido por setores composição do Conselho de Segurança, seja
internos, que vez por outra desejariam um pro- por meio de sua adesão e outros membros na
nunciamento mais contundente do Itamaraty. condição de membros permanentes, seja pela
Mas a busca de soluções pacíficas dos conflitos, mudança na regra do poder de veto dos atuais
também um dos princípios do artigo 4o, faz cinco membros permanentes.
parte da tradição da política externa brasileira. Essa distorção na composição de órgãos
A crescente atuação do Brasil no plano interna- executivos de organizações internacionais não
cional permite que o país, além de incentivar a é exclusividade do Conselho de Segurança.
busca por criação de plataformas de consenso Também em organizações internacionais de
entre os envolvidos nesse tipo de situação, caráter econômico é patente esse lugar privi-
dispõe-se a contribuir nesse processo. legiado destinado a certos membros, como no

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caso da Diretoria-Executiva do Fundo Monetário Internacional (FMI),
em que alguns Estados-membros têm uma posição permanente. Ainda
que a carta constitutiva do FMI não explicite a hipótese de vetar decisões,
o sistema de votação tanto na Diretoria-Executiva quanto no Conselho
de Governadores, nas palavras de Andreas Lowenfeld é (2008, p. 606):

“[…] designed to reflect member states’ economic importance as shown in


quotas in the Fund, adjusted to give each member state a minimum voting
power. Under the original Articles of Agreement, each member state had
250 basic votes plus on additional vote for each 100,000 US dollars of its
quota. In 1945, basic votes accounted for 11.3 per cent of total votes. As of
2007, as a result of numerous increases in total quotas, basic votes accounted
for only 2.1 per cent of total votes, the United States’ voting power stood at
17.1 per cent, and the European Union, if it voted as a bloc, held 33.9 per
cent of the voting power. Developing countries held just under 39 per cent
of voting power, as against 61 per cent for developed countries.”

Por causa desse sistema, os Estados Unidos consolidam-se dentro


da instituição como a maior potência mundial (senão a única), detendo,
no presente momento, mais de 17% das cotas da organização. Outros
países considerados potências econômicas, como o Japão, a Alemanha,
o Reino Unido e a França não possuem mais de 6% cada um do poder
de voto na instituição.2
Também no FMI, o Brasil tem buscado aumentar sua participação no
processo decisório da organização. Em novembro de 2010, a Diretoria-
-Executiva do Fundo aprovou uma série de propostas que proporciona-
riam uma importante reorganização das cotas e estruturas de governo
do FMI. Esse acordo, que pode ser considerado a reforma mais profunda
da estrutura de governo nos últimos 65 anos de história do FMI, é fruto
da pressão de países emergentes e em desenvolvimento, como o Brasil,
em decorrência da maior influência desses países na economia mundial.

6. Defesa da paz

Um dos maiores testemunhos da tradição pacifista do Brasil é o fato


de o país ter fronteiras com dez países e não ter problemas de limites com
nenhum deles. É um processo centenário de consolidação da paz com os
vizinhos e uma das heranças do Barão do Rio Branco.
Nestes últimos vinte e cinco anos, uma das modificações mais impor-
tantes no plano interno deu-se com a criação do Ministério da Defesa,

2
O poder de voto atribuído aos Estados Unidos (e mesmo às demais potências oci-
dentais), na prática, representa um verdadeiro poder de veto, tendo em vista que diversas
decisões do Fundo exigem para sua aprovação maiorias qualificadas de 85%.

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em 10 de junho de 1999, que colocou as Forças manutenção da paz fora do âmbito da ONU. Na
Armadas sob liderança civil. Além disso, a primeira fase, foi o caso da Força Interamerica-
pasta tem atuado na modernização das Forças na de Paz da República Dominicana (1965-66),
Armadas e no fortalecimento de canais de inte- aprovada pela Organização dos Estados Ameri-
ração entre a Defesa e a sociedade. Para o atual canos (OEA). No segundo período, destaque-
ministro da pasta, Celso Amorim (2012, p. 331): -se a participação na Missão de Observadores
Militares (Momep), na Cordilheira do Condor,
“[A] liderança civil das Forças Armadas é região de litígio entre Equador e Peru (1995-99).
hoje uma realidade não contestada. A ela cor- A criação da Momep também representou um
responde, com igual naturalidade, a valoriza-
importante êxito diplomático brasileiro, já que
ção e o respeito do profissionalismo militar.
A altíssima credibilidade de que gozam nos- o país liderou as negociações que culminaram
sos marinheiros, soldados e aviadores junto à na assinatura de um acordo global e definitivo
população brasileira – inclusive consignada de paz entre o Equador e o Peru, em Brasília,
em estudo do IPEA – dá testemunho disso. em outubro de 1998.
O crescente interesse público por assuntos
militares não se confunde com militarismo Especialmente nestes últimos dez anos,
de qualquer natureza. O envolvimento do houve um significativo incremento na par-
conjunto da população no debate sobre as ticipação brasileira nessas missões, como na
questões da paz e da guerra é da essência da Missão de Estabilização das Nações Unidas no
democracia.”
Haiti (Mission des Nations Unies pour la Stabi-
Recentemente, o Executivo submeteu à lisation en Haiti – Minustah). Envolvido desde
apreciação do Congresso Nacional três impor- sua criação em 2004, a participação do país na
tantes documentos na área de defesa: Política Minustah reveste-se de características únicas
Nacional de Defesa, Estratégia Nacional de em relação a todas as experiências anteriores,
Defesa e o Livro Branco de Defesa Nacional. pelos seguintes fatores: i) o Brasil é o principal
Por meio deles, a sociedade brasileira está apta contribuinte da missão de paz, com cerca de
a conhecer, de forma ampla, as capacidades mi- mil e duzentos militares; ii) o comando mili-
litares do país e os objetivos e desafios da Defesa tar de uma operação dessa natureza foi, pela
Nacional (AMORIM, 2012, p. 332). primeira vez, entregue ao Brasil (HERMANN,
Um dos principais elementos que ressaltam 2011, p. 23).
esse princípio da defesa da paz manifesta-se Além da destacada participação no Haiti,
na atuação destacada do Brasil em missões de a atuação brasileira dá-se também no Líbano,
paz das Nações Unidas. O Brasil participou de como parte do contingente marítimo da Força
mais de vinte operações de manutenção da paz Interina das Nações Unidas no Líbano (United
no âmbito das Nações Unidas desde 1957. Para Nations Interim Force in Lebanon – Unifil),
Paulo Roberto Fontoura (1999, p. 214-219) a criada pela Resolução no 425, de 19 de março
participação brasileira nessas missões da ONU de 1978. O Brasil participa da Unifil desde 2011
pode ser dividida em dois grandes momentos: com a cessão de um navio. Em fevereiro de 2011,
o período de 1957 a 1967, caracterizado pela o Brasil, por meio do contra-almirante Luiz
presença em seis operações; e o período de 1989 Henrique Caroli, assumiu o comando da Força-
até hoje, com uma participação mais variada e -Tarefa Marítima da Unifil – e pela primeira vez
atuante. Em cada um desses dois grandes perío- o Comando da Força-Tarefa ficou a cargo de um
dos, o Brasil também participou de operações de país não membro da OTAN.

24 Revista de Informação Legislativa


Por fim, ainda sobre o papel desempenhado pelo Brasil nas operações
de manutenção da paz das Nações Unidas, é importante destacar que
no final do mês de maio de 2013, o país era, o único Estado a liderar, ao
mesmo tempo, duas das quinze missões de paz da ONU. Além da missão
no Haiti (MINUSTAH), o Brasil passou a liderar a missão na República
Democrática do Congo (Mission de l’organisation des Nations Unies en
République Démocratique du Congo – Monusco), com um efetivo de mais
de dezenove mil militares de 57 países, mas sem efetivos brasileiros no
contingente (FOLHA DE S.PAULO, 2013).

7. Solução pacífica dos conflitos

Além da presença entre os incisos do artigo 4o, o princípio da solução


pacífica dos conflitos é mencionado no Preâmbulo da Constituição de
1988: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado
a assegurar [...] uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e in-
ternacional, com a solução pacífica das controvérsias [...]”. A menção
no Preâmbulo da Constituição é um indicativo da importância dada
pela sociedade brasileira à solução pacífica das controvérsias na ordem
internacional.
Alguns meios de solução pacífica das disputas estão elencados no
artigo 33, número 1, da Carta das Nações Unidas: “As partes, em uma
controvérsia que possa vir a constituir uma ameaça à paz e à segurança
internacionais, procurarão, antes de tudo, chegar a uma solução por
negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitragem, solução judi-
cial, recurso a entidades ou acordos regionais ou a qualquer outro meio
pacífico à sua escolha”.
A solução pacífica das controvérsias é uma das linhas-mestras da
política externa brasileira. Exemplos históricos e presentes são inúmeros.
Em termos históricos, pode-se recordar a resolução das controvérsias de
limites com seus vizinhos em princípios do século XX, privilegiando a
arbitragem internacional. Sob a liderança do Barão do Rio Branco, os
sucessos nas questões com a Argentina (Questão de Palmas), Guiana
Francesa e a questão do Acre, agregaram e pacificaram quase um milhão
de quilômetros quadrados. Mesmo o insucesso envolvendo a questão de
limites com a Guiana Inglesa (questão de Pirara), com o laudo arbitral do
rei da Itália Vitor Emanuel em 1904, não abalou a confiança do Estado
brasileiro na solução pacífica das disputas.
Para os conflitos atuais, o Brasil também defende a solução pacífica,
esteja o país diretamente envolvido ou não na controvérsia. Entre os casos

Ano 50 Número 200 out./dez. 2013 25


de maior repercussão internacional nos últimos anos está o do programa
nuclear iraniano, em que o Brasil juntamente com a Turquia buscou uma
solução negociada para a disputa. Os governos do Brasil e da Turquia
encaminharam uma carta – com uma cópia em anexo da “Declaração
Conjunta de Irã, Turquia e Brasil”, assinada em Teerã, em 17 de maio de
2010 – aos membros do Conselho de Segurança da ONU. Nela, os dois
países expressaram que “estão convencidos de que é hora de dar uma
chance às negociações e evitar medidas prejudiciais à solução pacífica da
questão”. O esforço brasileiro e turco, infelizmente, não evitou a adoção
de novas sanções contra o Irã; mas, por outro lado, demonstrou o em-
penho brasileiro em participar mais ativamente na solução de conflitos
de dimensão global.
Em termos econômicos, também o Brasil acredita e investe no forta-
lecimento de mecanismos de solução de controvérsias, como no caso do
Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio
(OMC). Nos primeiros doze anos de funcionamento do órgão, ou seja,
entre 1995 e 2006, o Brasil iniciou 31 processos contenciosos e participou
como terceiro interessado em outros 34. Alguns desses casos submetidos
à apreciação do Órgão de Solução de Controvérsias tiveram ampla reper-
cussão internacional e interna, como o da disputa comercial entre Brasil
e Canadá relacionada a aeronaves comerciais (VARELLA, 2009, p. 13).
O Brasil tem também participado ativamente de diversos tribunais
internacionais por meio da atuação de seus nacionais, como nos casos
mencionados acima, dos juízes Cançado Trindade e Sylvia Steiner – além
do professor Vicente Marotta Rangel, juiz do Tribunal Internacional do
Direito do Mar, membro desde 1996, sendo reeleito em outras duas opor-
tunidades. Isso demonstra o reconhecimento internacional da tradição
jurídica brasileira e o apoio do Brasil no fortalecimento de instituições
judiciais na esfera internacional.

8. Repúdio ao terrorismo e ao racismo

O documento Política Nacional de Defesa (PND), enviado pela pre-


sidenta Dilma Rousseff ao Congresso Nacional, em julho de 2012, con-
sidera que “o terrorismo internacional constitui risco à paz e à segurança
mundiais”; além disso afirma que o Brasil “condena enfaticamente suas
ações e implementa as resoluções da Organização das Nações Unidas,
reconhecendo a necessidade de que as nações trabalhem em conjunto
no sentido de prevenir e combater as ameaças terroristas”. Em reação aos
acontecimentos de 11 de setembro de 2001, o Brasil apoiou as decisões
da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança da ONU contra o
terrorismo e propôs a convocação do órgão de consulta do Tratado In-

26 Revista de Informação Legislativa


teramericano de Assistência Recíproca (TIAR) o Racismo, a Discriminação Racial e Formas
(CUNHA, 2009, p. 49). Correlatas de Intolerância e a Convenção Contra
Para o Ministro Celso de Mello, do STF, o Toda Forma de Discriminação e Intolerância.
repúdio ao terrorismo é: Segundo o Itamaraty, os textos foram resultado
de longa negociação, iniciada em 2005, quando a
“[...] um compromisso ético-jurídico assumi- Missão Permanente do Brasil junto à OEA apre-
do pelo Brasil, quer em face de sua própria sentou à Assembleia Geral projeto de resolução
Constituição, quer perante a comunidade
que criou o Grupo de Trabalho encarregado de
internacional. Os atos delituosos de natureza
terrorista, considerados os parâmetros con- criar uma Convenção contra o racismo e todas
sagrados pela vigente CF, não se subsumem as formas de discriminação, em resposta aos
à noção de criminalidade política, pois a Lei compromissos assumidos pelos Estados da re-
Fundamental proclamou o repúdio ao ter- gião no processo preparatório da III Conferência
rorismo como um dos princípios essenciais
que devem reger o Estado brasileiro em suas Mundial Contra o Racismo, a Discriminação
relações internacionais (CF, art. 4o, VIII), Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas,
além de haver qualificado o terrorismo, para realizada em Durban, na África do Sul, em 2011.
efeito de repressão interna, como crime equi-
parável aos delitos hediondos, o que o expõe,
sob tal perspectiva, a tratamento jurídico
9. Cooperação entre os povos para o
impregnado de máximo rigor, tornando- progresso da humanidade
-o inafiançável e insuscetível da clemência
soberana do Estado e reduzindo-o, ainda, à No âmbito da cooperação entre os povos
dimensão ordinária dos crimes meramente
para o progresso da humanidade, o país con-
comuns (CF, art. 5o, XLIII)” (Ext. no 855,
Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em ta com a Agência Brasileira de Cooperação
26/8/2004, Plenário, DJ de 1o/7/2005). (ABC), que integra a estrutura do Ministério
das Relações Exteriores, e tem como atribuição
A prática do racismo também foi repudiada negociar, coordenar, implementar e acompa-
pelos membros da Assembleia Constituinte. nhar os programas e projetos brasileiros de
Nos termos da Convenção Internacional sobre cooperação técnicas, executados com base nos
Eliminação de Todas as Formas de Discrimina- acordos firmados pelo Brasil com outros países
ção Racial (1966), discriminação racial significa e organismos internacionais.
“qualquer distinção, exclusão, restrição ou pre- Em termos de cooperação técnica, nos úl-
ferência baseada em raça, cor, descendência ou timos anos o Brasil tem dado muita atenção a
origem nacional ou étnica que tem por objetivo cooperação Sul-Sul, com expressivo crescimen-
ou efeito anular ou restringir o reconhecimen- to dos programas de cooperação horizontal do
to, gozo ou exercício num mesmo plano, (em Brasil que se ampliaram em termos de países
igualdade de condição), de direitos humanos e parceiros atendidos, projetos implementados
liberdades fundamentais no domínio político e em recursos efetivamente desembolsados.
econômico, social, cultural ou em qualquer Atualmente, a cooperação Sul-Sul do Brasil está
outro domínio de sua vida”. O Brasil é parte presente em todos os continentes, seja por meio
desta Convenção desde 1969. de programas e projetos bilaterais, seja mediante
Em termos regionais, em junho de 2013, a parcerias triangulares com governos estrangei-
Organização dos Estados Americanos (OEA) ros e organismos internacionais (AGÊNCIA
aprovou a Convenção Interamericana Contra BRASILEIRA DE COOPERAÇÃO, 2013).

Ano 50 Número 200 out./dez. 2013 27


Para Breno Hermann (2011, p. 204), a atu- de 2013, entre outras importantes decisões
ação brasileira no Haiti, por meio de projetos tomadas pela comissão permanente do Senado
da ABC, também é prioritária para o Itamaraty; Federal em termos de política externa.
dessa maneira, “a concepção de que a política
externa brasileira não se move exclusivamente 10. Concessão de asilo político
em função de interesses entendidos, como a
busca de ganhos imediatos, mas se põe em Historicamente, o asilo tem sido entendido
movimento para levar a cabo ações de solida- como o local de refúgio, onde o procurado se
riedade, está na base da compreensão, do ponto encontra fora do alcance do perseguidor. No
de vista do pensamento diplomático”. início eram locais sagrados que propiciavam
Em termos econômicos, esse princípio da o refúgio, por isso muitos estudiosos veem a
cooperação entre os povos para o progresso prática do asilo tão antiga como a própria huma-
da humanidade pode ser bem exemplificado nidade (BOED, 1994, p. 2). Ainda nos primeiros
pelo perdão das dívidas de países estrangeiros, tempos, o asilo beneficiava qualquer pessoa que
especialmente africanos, para com o Estado fosse perseguida, ou seja, criminosos comuns ou
brasileiro. No primeiro ano de mandato do ex- ativistas políticos. Atualmente, o direito de asilo
-presidente Lula, foram perdoadas as dívidas de está previsto na Declaração Universal dos Direi-
Moçambique (US$ 331 milhões), Nigéria (US$ to do Homem (1948). Na América Latina, tanto
84 milhões), Gabão (US$ 36 milhões) e Cabo o direito positivo como a doutrina estabelecem
Verde (US$ 2,7 milhões) (Cf. HERMANN, uma distinção entre duas formas ou categorias
2011, p. 23). Em 2013, por ocasião das celebra- de asilo: o territorial – por vezes chamado de
ções dos cinquenta anos de fundação da União refúgio – e o asilo político ou diplomático. O
Africana, a presidente Dilma Rousseff anunciou asilo territorial realiza-se quando um Estado
o perdão ou renegociação da dívida que doze admite a presença de estrangeiro perseguido em
países africanos têm com o Brasil. O total da razão de motivos políticos – mas também por
dívida perdoada alcança US$ 900 milhões (IS- motivos étnicos, religiosos e outras situações de
TOÉ DINHEIRO, 2013). violações aos direitos humanos – dentro de suas
Na área de cooperação internacional tam- fronteiras, com objetivo de resguardar a integri-
bém vale ressaltar o papel do Congresso Na- dade física, liberdade e segurança do indivíduo.
cional, especialmente da Comissão de Relações O asilo diplomático, por seu turno, é a
Exteriores e Defesa Nacional (CRE) do Senado proteção concedida pelo Estado a perseguido
Federal. Somente no primeiro semestre de 2013, pelos mesmos motivos do asilo territorial, mas
a CRE aprovou uma série de acordos internacio- que se realiza, inicialmente e de modo precário,
nais nesta área, por exemplo: o Acordo Básico na missão diplomática do Estado em outro país.
de Cooperação Técnica entre o Governo da Diz-se, de modo inicial e precário, porque o
República Federativa do Brasil e o Governo de asilo diplomático deve se estender pelo tempo
Santa Lúcia, celebrado em Brasília, em 26 de estritamente indispensável para que o asilado
abril de 2010; o Acordo de Cooperação Técnica deixe a representação diplomática – com as
entre o Governo da República Federativa do garantias de segurança concedidas pelo governo
Brasil e o Governo do Reino do Lesoto, cele- do Estado territorial – e se dirija a outro Estado
brado em Brasília, em 8 de setembro de 2010. para ser acolhido na forma do asilo territo-
Ambos foram aprovados pela CRE em março rial. Durante esses vinte e cinco anos foram

28 Revista de Informação Legislativa


inúmeros os casos de aplicação desse princípio. A título de ilustração,
vale mencionar dois casos de concessão de asilo político: um territorial
(refúgio) e outro diplomático.
O primeiro é o caso Cesare Battisti (Extradição no 1.085 – República
Italiana). Trata-se de um caso sem precedentes na história do Supremo
Tribunal Federal. Sem precedentes pelo debate político acalorado, e tam-
bém juridicamente pelo inusitado de uma série de questões que nunca
haviam sido enfrentadas nesse tipo de processo, por exemplo: i) se o ato
do Ministro da Justiça de concessão de asilo é um ato administrativo
vinculado ou discricionário; ii) se a decisão de concessão de extradição
é obrigatória ou não para o Presidente da República.
Quanto ao primeiro ponto, o pleno do STF anulou a decisão do Mi-
nistro da Justiça que concedeu o refúgio político a Battisti, a despeito do
que dispõe o artigo 33 da Lei no 9.474/97, que prevê: “o reconhecimento
da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de
extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio”.
No entanto, quanto ao outro tópico, o Tribunal reconheceu que a decisão
de deferimento da extradição não vincula o Presidente da República, mas
que nos termos do voto do então ministro Eros Grau, não deve ferir o
tratado de extradição Brasil-Itália, dessa forma, continua o ministro:

“Tem-se bem claro, aí, que o Supremo Tribunal Federal autoriza, ou não,
a extradição, observadas as regras do tratado e as leis. Mas quem defere
ou recusa a extradição é o Presidente da República, a quem incumbe
manter relações com Estados estrangeiros (art. 84, VII da Constituição)”
(Supremo Tribunal Federal, Ext. no 1.085 – República Italiana. Relator
Min. Cezar Peluso, 16 de dezembro de 2009).

O segundo caso, exemplo de asilo diplomático, é o que se desenrola


há mais de um ano na representação diplomática brasileira em La Paz.
Trata-se do asilo político concedido ao senador boliviano Roger Pinto
Molina, abrigado na embaixada brasileira, mas impossibilitado de deixar
o prédio em razão da não concessão de salvo conduto pelas autoridades
bolivianas. Segundo o noticiado pela imprensa, o senador, descontente
com o comportamento do Itamaraty, ingressou inclusive com um habeas
corpus “extraterritorial”, solicitando que o STF determine que a Presidên-
cia da República tome medidas para solucionar o caso (SOUZA, 2013).

11. Integração econômica, política, social e cultural dos


povos da América Latina

Frente a um processo crescente de globalização e de crise do Estado-


-nação, mormente nas últimas décadas, observa-se uma importante

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mudança nas relações internacionais: o proces- Estados-membros. Primeiramente, a participa-
so de integração entre Estados, conhecido por ção dava-se por meio da Comissão Parlamentar
regionalismo. O fenômeno do regionalismo é Conjunta, posteriormente o Conselho do Mer-
associado a dois períodos históricos, conheci- cado Comum aprovou a criação do Parlamento
dos como primeira e segunda onda de regio- do Mercosul (Parlasul), uma das tentativas de
nalismo. A primeira onda iniciou-se no pós- relançar o bloco de integração sul-americano
-guerra; e, embora seu vigor tenha sido maior e, de certa forma, também suprir um “déficit
até a década de 1970, engloba também acordos institucional” do bloco.
e organizações criados até o início da década de Mais recentemente, outro passo foi dado
1980. Com o fim da Guerra Fria, a recuperação para o fortalecimento da integração econômica,
econômica global e a aceleração do processo política, social e cultural na América Latina: a
de globalização, é que a integração regional foi criação da União das Nações Sul-Americanas
retomada, dando origem a uma “nova onda de (UNASUL), em 2008, voltada para a integra-
regionalismo”. Nesse período, foram criadas ção regional em matéria de energia, educação,
novas organizações e acordos de integração e saúde, meio ambiente, infraestrutura, segurança
outras já existentes foram revigoradas. e democracia. São membros da UNASUL os
Visto particularmente no contexto eco- doze Estados independentes da América do
nômico internacional, o regionalismo na Sul, sendo membros observadores o Panamá e o
atualidade é percebido por muitos como um México. As nações que compõem a organização
instrumento com o qual o Estado busca influir internacional buscam estimular a construção
no processo de globalização econômica. O de uma identidade regional, apoiada em uma
fenômeno do regionalismo, assim, indicaria o história comum e sob os princípios do mul-
interesse na retomada do papel do Estado na tilateralismo, respeito às regras jurídicas nas
configuração da ordem econômica internacio- relações internacionais, direitos humanos e a
nal (PRAZERES, 2008, p. 105). democracia.
Nestes vinte e cinco anos, e dentro dessa
“nova onde de regionalismo”, certamente o ato Conclusão
mais importante que exemplifica esse parágrafo
único do artigo 4o foi a participação decisiva do Será positivo qualquer balanço relacionado
Brasil na criação e fortalecimento do Mercosul à contribuição da Constituição Federal vinte
(Mercado Comum do Sul), criado pelo Tratado e cinco anos depois de sua promulgação. Em
de Assunção, assinado em 26 de março de 1991. termos analíticos sobre os princípios das rela-
O Mercosul não é simplesmente um bloco ções internacionais consagrados no artigo 4o
de integração regional: é um projeto mais amplo isso também pode ser afirmado. Nem todos
de integração, bem na linha do apregoado pela os princípios foram aplicados com a mesma
Constituição Federal. Exemplo disso é o fato intensidade e frequência ao longo desse período.
de que sua importância transcende muito aos Mas, todos cumpriram sua missão de servir
Ministérios da Fazenda e Comércio Exterior, de guia para o Estado brasileiro, por meio da
diversos outros ministérios também voltam seus atuação dos seus três poderes, no papel externo
interesses para o âmbito regional. Além disso, desenvolvido pelo país.
o Mercosul tem nos últimos anos procurado Alguns princípios das relações internacio-
incentivar a participação dos legislativos dos nais tiveram ampla repercussão interna, como

30 Revista de Informação Legislativa


o da concessão do asilo politico, no caso Battisti. Outros, ao contrário,
tiveram impacto mais externo do que interno – por exemplo, a posição
brasileira de apoiar e implementar medidas que buscavam a solução
pacifica do conflito entre o Peru e o Equador. Outros princípios tiveram
grande repercussão interna e externa, caso da prevalência dos direitos
humanos: por um lado, o debate no Supremo Tribunal Federal envolvendo
os parágrafos 2o e 3o do artigo 5o da Constituição Federal, por outro lado,
a assinatura e ratificação de tratados de direitos humanos, que credencia
o país com um dos que mais apoiam o fortalecimento do sistema global
e regional dos direitos humanos.
Por isso, a atualidade e a relevância dos princípios das relações inter-
nacionais, comprovam o acerto da Assembleia Constituinte ao fixar um
rol desses princípios, em lugar privilegiado da Carta, entre os princípios
fundamentais.

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