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MARTINY: NEO-HIPOCRATISMO, EUGENIA E BIOTIPOLOGIA

LUCIANA COSTA LIMA THOMAZ

Introdução

A medicina ocidental firmou-se, tradicionalmente, na classificação da heterogeneidade


humana, agrupando os seres humanos de acordo com ‘compleições’, ‘temperamentos’ ou
‘constituições’, entre outros, pelo menos até a primeira modernidade e o surgimento do que se
conhece como ‘ciência moderna’, cujo foco de interesse eram os fenômenos físicos e
químicos que ocorrem na matéria viva (KLIBANSKY, PANOFKSY & SAXL, 1964: 5-6;
BARNES, 1964: 242 et seq.).

Hodiernamente, é consenso que a medicina depende do diagnóstico de entidades nosológicas


classificadas segundo agentes etiopatogênicos (mecanismos inflamatórios, degenerativos,
neoplásicos, congênitos, etc.) que, por sua vez, dependem de mecanismos biomoleculares.
Assim, também a terapêutica é baseada nestes últimos. Como consequência, o estudo das
constituições e temperamentos deixou de constar nos currículos das faculdades de medicina
ocidentais.

Entretanto, diante deste panorama, no início do século XX ocorre um fenômeno dissonante, a


saber, uma explosão de classificações tipológicas, num vasto leque de áreas do saber,
incluindo, entre outros, a antropologia, a criminologia, a psicologia, a pedagogia e também a
medicina (Quadro 1).


Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência, PUC-SP. Mestre e doutoranda em História da
Ciência, bolsista CAPES.
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Quadro 1. Alguns autores de concepções tipológicas na virada do século XIX (MARTINY,


1948: 24)
França Rostan; Sigaud; Mac Auliffe; Chaillon; Lambert; Maninvrier; Allendy; Viard;
Bourdel; Gorman; Lavater; Stahl; R. Baron; Houssay; Girard; Bessonet-Favre;
Brétéché; Laignel-Lavastine.
Itália di Giovanni; Viola; Pende
Alemanha Kretschmer; Beneke; Kraus; Bauer; Tandler; Martius; Rauthman; Grote;
Roessic; Jaensch; Stiller; Brandt; Borkardt; Brungsch; Naegeli; Boven;
Suíça Jung
Espanha Marañón
Inglaterra Cawadias
Romênia Marinesco; Bottu
Rússia Bounak; Charkow; Krylov; Saltikow; Nicolaiev; Ignalov; Nedrigaylov;
Techistiakov; Nokolski; Bretnmann; Tchoutchouklao; Tschernorutsky;
Vienius; Makabov; Watagino; Tchelzowa
Estados Mills; Bean; Bryant; Draper; Pearl; Stokhardt; Sheldon
Unidos
Brasil De Rocha Vaz; Berardinelli
Argentina Rossi; Boccia

O objetivo do presente artigo é analisar os motivos que levaram a esse surgimento,


aparentemente paradoxal, da biotipologia nas primeiras décadas do século XX. Para tanto,
foca-se a obra Éssai de biotypologie humaine, publicada em 1948 pelo médico francês Marcel
Martiny (1897-1982), um dos principais representantes do chamado ‘neo-hipocratismo’ e
ativo difusor da biotipologia moderna.

Nossa pesquisa permitiu identificar a complexa rede de conexões na qual Martiny estava
inserido e que, de modo inesperado, trouxe à tona elementos de eugenia, que até então não
haviam sido identificados pelos estudiosos.
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Martiny: entre o neo-hipocratismo e a biotipologia

Marcel Martiny nasceu em Nice em 1897 e faleceu em Paris em 1982. Iniciou seus estudos
médicos em Paris, onde exerceria sua profissão no Hôpital Foch, no Institut Prophylactique e,
posteriormente, assumiria o cargo de médico chefe do Hôpital Léopold Bellan e nos
ambulatórios da Chambre de Commerce de Paris.1

Durante a Primeira Guerra Mundial atuou junto à missão enviada pelo Rockefeller Institute, o
que lhe valeu uma Croix de Guerre e o reconhecimento como oficial da Legião de Honra.

Como médico homeopata e acupunturista, atuou junto ao principal expoente e introdutor desta
especialidade na França, George Soulié de Mourant (1878- 1955). Martiny, juntamente com
sua esposa Thérèse, realizaram a atualização da obra de Soulié de Mourant, Précis
d’acupunture. Devido a sua contribuição nesta área, Martiny foi eleito presidente de honra da
Associação Científica dos Médicos Acupunturistas da França.

Como homeopata, teve seu nome ligado à Liga Homeopática Internacional, além de sua
classificação de biótipos ser até hoje citada como referência para o estudo de constituições e
temperamentos em homeopatia.

Seu trabalho junto ao movimento neo-hipocrático, no entanto, talvez seja a área de sua maior
participação. Publicou inúmeros escritos a este respeito, incluindo um livro inteiramente
dedicado a este assunto, Hippocrate et la médecine. Em 1972 foi nomeado presidente da
Sociedade Internacional de Medicina Neo-Hipocrática.

Obteve também o cargo de professor na École d’Anthropologie, que teve Paul Broca como
um dos seus principais criadores. Atuou como conselheiro na Associação dos Antropólogos
de Língua Francesa e, através do cargo de médico-chefe da Câmara de Comércio de Paris,
realizou exames antropométricos em adolescentes que lá estudavam para embasar seus
próprios estudos sobre os tipos constitucionais.

1 Os dados sobre a biografia de Martiny foram extraídos de FEREMBACH, 1983.


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Em 1948, Marcel Martiny publicou a obra-síntese de seus estudos em biotipologia, Éssai de


biotypologie humaine, baseado nos trabalhos realizados com o endocrinologista italiano
Nicola Pende (1880-1970) e nas observações de outros autores que também compuseram, no
mesmo período, teorias sobre biótipos e constituições. Dado o crédito explícito que Martiny
atribui a Pende na fundação da biotipolologia moderna, abordamos na seguinte secção os
trabalhos do pesquisador italiano.

Pende: biotipologia e eugenia

Pende foi um representante da chamada “escola constitucionalista italiana”, cuja origem pode
ser identificada nos trabalhos de Achille di Giovanni (1838-1916), professor na universidade
de Pádua, que abordou o problema da doença sob a ótica da teoria da evolução. Assim,
compreendia as variações individuais como o resultado de modalidades da evolução
ontogenética dos sujeitos. Enxergando na morfologia individual o que chamava de “erros
evolutivos” (por excesso ou por defeito), realizou uma tipologia genética e clínica, baseada na
noção de terreno mórbido. Essa tipologia é, essencialmente, anatômica, baseada na
desproporção (por excesso ou por defeito) das diferentes partes do corpo e, para tanto, utiliza
a antropometria. Desse modo, definiu três “combinações morfológicas”, por comparação a
uma combinação “ideal abstrata” (SAGRADO, 1991: 14).

De acordo com Maria V. Sagrado, é esse uso da antropometria o que distingue,


fundamentalmente, a escola constitucionalista italiana da francesa e claramente, também o
que despertou o interesse de Martiny por essa via de pesquisa. De fato, o principal
representante da primeira, Giacinto Viola (1870-1943), discípulo de di Giovanni e ambos,
mestres de Pende, aplicou a tese dos erros e a antropometria ao estudo das constituições
individuais. Enuncia, então, que há duas modalidades básicas de variação da forma humana,
no sentido longilíneo e no sentido brevilíneo e, através de métodos estatísticos, procura
determinar o tipo médio (normolíneo).

Pende acrescentou à abordagem morfológica de di Giovanni e Viola o estudo individual da


endocrinologia, do desenvolvimento físico e psíquico, da bioquímica humoral, da neurologia
vegetativa e da psicologia diferencial. Nomeia ‘biotipologia humana’ à ciência que se
encarrega do estudo das manifestações anatômicas, humorais, funcionais e psicológicas
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próprias a cada indivíduo. De acordo com Pende, o que se trata é de conhecer “o conjunto
dos caracteres particulares que diferenciam um indivíduo de outro e o afastam do tipo humano
abstrato ou genérico e convencional do homem-espécie descrito pelos anatomistas, os
fisiologistas, os psicólogos e os estatísticos” (apud TURINESE, 2009: 114).

Em 1939, Nicola Pende escrevia:


Eu dei o nome de Biotipologia Humana à ciência que se ocupa não
somente da biologia humana [...] mas que se ocupa de todo o
complexo particular da manifestação vital, de ordem anatômica,
humoral, funcional, psicológica, de cuja síntese diagnóstica podemos
reconhecer o tipo estrutural-dinâmico especial de cada indivíduo, que
estabelece os caracteres particulares que o diferenciam de outro e o
afastam do tipo humano abstrato [...] A biotipologia é, em outros
termos, a ciência da arquitetura e da engenharia do corpo humano
individual. O biótipo individual, sendo a resultante vital unitária de
todos os fatores somático-psíquicos hereditários e ambientais, não
pode ser conhecido na sua complexidade estrutural-dinâmica e no seu
valor, senão após realizada a síntese lógica de todos os seus
elementos morfológicos, teciduais, humorais, funcionais e
psicológicos (apud TURINESE, 2009: 114).

O pivô desse projeto era representado pelo sistema endócrino, em sua inter-relação com os
caracteres somáticos e psíquicos presentes no indivíduo (PENDE, 1912: II, 1102). Vale dizer,
os fatores endocrinopáticos refletir-se-iam na constituição morfológica e nas funções
hormonais, de modo que poderiam ser utilizados, principalmente para a identificação de
criminosos - que na época eram definidos como doentes - já que esta era uma das
preocupações mais importantes de Pende (GALERA, 2003).

O viés eugênico do projeto biotipológico de Pende, rebatizado como “ortogênese”, é explícito


na definição que propõe para esta “ciência [...] que se ocupa da proteção higiênica e médica
do crescimento físico e psíquico, com o propósito de construir o homem normal, corrigido dos
erros e dos desvios aos que está exposta a fábrica humana durante seu período formativo”
(PENDE, 1939: II, 607).
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Pende esquematizou seu método através de uma “pirâmide biotipológica”, cuja base
representa a herança genética do indivíduo e cujas faces correspondem, respectivamente, a
seus aspectos morfológico, fisiológico, ético e intelectual. Para cada tipo constitucional há
uma variante estênica e outra astênica. Posteriormente em uma escrita em conjunto com
Marcel Martiny, Pende descreveu quatro biótipos humanos fundamentais (TURINESE, 2009:
115):
• Brevilíneo-astênico: estatura médio-baixa, com tendência à obesidade ginecóide,
flácida pela retenção hídrica, com aspecto infantil do corpo e da face, discrepância
entre membros e tronco a favor deste último. Face pálida. Musculatura fraca.
Movimentos lentos. Hiperplasia do tecido linfático, com sistema venoso atônico e
aparecimento precoce de varizes. Baixa pressão arterial.
• Brevilíneo-estênico: morfologia à primeira vista semelhante à anterior, porém com
menor tendência à obesidade, que é de tipo tônico e não flácido. Musculatura robusta,
com tórax largo e curto. A pressão arterial é maior que a média. Hipercolesterolemia.
Reações de defesa violentas, por exemplo, com alergia. É um lutador, um trabalhador
incansável com forte tendência ao nomadismo psicológico.
• Longilíneo-estênico: estatura maior que a média, enquanto o peso é normalmente
menor que o da média. Estrutura robusta e harmoniosa, tônica. Equilíbrio nas linhas da
face. Há abundante secreção biliar, lembrando nestes indivíduos o temperamento
biliar. Reações psicológicas rápidas. Pende falava a favor de uma tendência à
esquizofrenia e Martiny, sobre uma tendência paranoica.
• Longilíneo-astênico: não são necessariamente altos, mas há predomínio dos membros
em relação ao tronco. São longilíneos de baixa estatura. Tem um tipo gracioso,
delicado com pouco desenvolvimento muscular, recordando a fisionomia de um
adolescente. Segundo Pende, há predomínio da função sentimento ou da função
intuição, com inclinação à arte e à metafísica. Pende sugeria também uma tendência à
esquizotimia (o antigo temperamento atrabiliar ou melancólico também é lembrado)
(TURINESE, 2009: 114).
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A biotipologia de Marcel Martiny

Não se pode insistir o bastante, devido às circunstâncias contextuais, no fato de que foi Pende
o grande inspirador do trabalho de Marcel Martiny. Assim, nas primeiras linhas do primeiro
capítulo do Éssai, utiliza um tom extremamente elogioso ao lhe atribuir a criação de termo e
do conceito de ‘biotipologia’, ciência que “trata das correlações entre a forma humana, sua
fisiologia e seu psiquismo e que visa estudar o homem no seu conjunto unitário”. Martiny
qualifica a biotipologia, do ponto de vista epistemológico, como uma “ciência nova”, baseada
exclusivamente “na observação experimental e na estatística” (MARTINY, 1948: 13).

De modo consistente com o viés adotado pela linha médica neo-hipocrática, Martiny utiliza o
recurso histórico na fundamentação da legitimidade epistemológico-antropológica da
biotipologia (WEISZ, 1998: 83). Sendo assim, suas reflexões iniciam pela teoria tradicional
das complexões, baseada nos quatro elementos, procurando sintetizá-la pela identificação de
temas similares em outras culturas, desde a Antiguidade até os tempos modernos.

Martiny reconhecia o grande avanço que as ciências contemporâneas haviam feito com base
na abordagem ‘analítica’, que decompunha o ser humano em seus elementos constitutivos. No
entanto, questionava a aplicação desses conhecimentos pelo médico clínico, sob o célebre
lema ‘não existem doenças, mas somente doentes’. Essa postura coincidia completamente
com a preocupação da época com os reducionismos extremos (WEISZ, 1998: 85). Nesse
sentido, Martiny advogava explicitamente a favor da abordagem ‘sintética’ e era,
precisamente, a biotipologia a disciplina capaz de realizá-la: “É a esta síntese, a ser realizada
com as disciplinas científicas rigorosas, que se liga a biotipologia” (MARTINY, 1948: 80).

Não obstante Martiny vai mais longe ainda e, seguindo as pegadas de Pende, enxerga um
escopo muito mais amplo para as possíveis contribuições da biotipologia, incluindo a
patologia, a psiquiatria, a terapêutica, a orientação e seleção ocupacional e a educação física.
Virtualmente, a mesma concepção que a explicitamente eugênica de Pende.

O viés eugênico, nunca admitido abertamente por Martiny, também se evidencia em alguns
aspectos da institucionalização do projeto biotipológico. De acordo com nosso autor, em 1932
foi fundada na França a Société de Biotypologie pelo cientista Emile Charles Achard (1860-
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1944) e os psicólogos Henri Piéron e Henri Laugier. Este último - que também participou da
fundação do Centre Nationale de la Recherche Scientifique, em 1939, foi um dos pupilos
mais célebres de Charles Richet (1850-1935), ganhador do Prêmio Nobel de Fisiologia em
1913 pela descrição da reação anafilática e fundador da Société Française d’Eugénique, que
presidiu entre 1920 e 1926. A fundação da Sociedade Francesa de Biotipologia também
contou com a participação de Edouard Toulouse (1865-1947), médico e jornalista ativista da
causa eugenista na França, relacionando-a aos distúrbios psiquiátricos (KOUPERNIK, 2001)

Desta maneira, a cadeia de fatos e personagens que ligam Marcel Martiny ao movimento
eugenista é bastante rica e cada nova descoberta de sua biografia ilustra o cenário ao qual
pertencia.

Observa-se ainda, que Martiny definiu suas quatro constituições biotipológicas fundamentais,
com base em indivíduos brancos, do sexo masculino, entre 16 a 32 anos de idade (o grifo é
nosso). As razões destas limitações eram, segundo ele, que esses “indivíduos são por um lado,
constitucionalmente realizados e por outro lado ainda não são deformados pelo acúmulo de
influências exógenas” (MARTINY, 1948: 91).

O Éssai de biotypologie humaine trata dos seguintes tópicos ‘Biometria e seus princípios’, ‘A
gênese dos biótipos (biotipogênese)’, ‘A descrição dos biótipos (constituições)’, ‘Os fatores
estáticos e dinâmicos que modificam as constituições biotiopológicas’, ‘Os biótipos globais,
resultantes da constituição de base e as modificações estáticas e dinâmicas’ e , por fim ‘As
diversas aplicações da biotipologia’. No entanto, Martiny caracteriza a biotipologia como uma
‘ciência do futuro’, pois afirma não estar em condições de apontar nem uma única aplicação
concreta do conceito biotipológico a qualquer área específica naquele determinado momento.
No entanto, sistematicamente promete que tudo seria comprovado futuramente.

Outra forte característica no texto é o uso profícuo que Martiny faz da literatura disponível na
época, como suposta fundamentação da legitimidade científica da biotipologia. Em particular,
manifesta predileção pelos temas mais discutidos na época, como o estudo do metabolismo, a
endocrinologia, a neurologia e a bioquímica.

Essa colagem desordenada de dados obtidos da literatura científica, utilizada para


fundamentar possíveis analogias “ainda elementares, muito incompletas” a serem confirmadas
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“no futuro” (MARTINY, 1948: 91), constitui o conteúdo das quase 500 páginas do Éssai. É
importante, desta maneira salientar que o objetivo explícito de Martiny foi realizar uma
síntese dos dados díspares fornecidos pelas diversas ciências e que, a ferramenta lógica de que
se valeu fundamentalmente, se não exclusivamente, foi a analogia.

Embora esse tipo de raciocínio não fosse alheio ao desenvolvimento da ciência, já desde a
primeira modernidade, um pressuposto essencial era a necessidade de se ligar o fenômeno
visível ao invisível subjacente. Assim, enquanto a pesquisa apontava para o estudo da matéria
e das partículas até se chegar ao que, já na época de Martiny, tornar-se-ia propriamente a
bioquímica, este se esquivou ao esforço e, ao invés de propor um programa sólido de
pesquisa, limitou-se a enunciar possíveis analogias. Assim, pode-se concluir que Martiny
infringiu os próprios pressupostos da ciência enquanto ciência.

Virtualmente, cabe ressaltar, todo projeto biotipológico assumia a existência de um tipo


‘normal’, a respeito do qual todos os outros representam desvios, no sentido do excesso ou do
defeito (‘hiperevoluídos’ ou ‘hipoevoluídos’). Consequentemente, Martiny não teve ressalvas,
mas, ao contrário, considera como um “método de trabalho excessivamente interessante” a
técnica de superposição fotográfica desenvolvida por Francis Galton (1822-1911) e Karl
Pearson (1857-1936) para a determinação do tipo médio (MARTINY, 1948: 63). Lembrando
que Galton e Pearson foram os fundadores da eugenia (KEVLES, 1985: 4), as conotações
eugênicas não poderiam ser mais claras. Assim, Martiny pode observar, por exemplo, que “a
biometria da base hereditária individual, capítulo mal discutido nesta obra, constitui o
fundamento futuro de uma eugenia racional” (MARTINY, 1948: 37).

Dentre os diversos tópicos abordados por Martiny no Éssai, nos interessa discutir suas ideias
embriológicas e as supostas correlações que traçou entre elas e as biotipológicas.

Martiny afirma que suas conclusões eram o resultado de “observações conduzidas ao longo de
20 anos”. Essas observações referiam-se a “milhares de biótipos euplásicos de ambos os
sexos” quanto a sua forma corporal e não ao estudo de milhares de embriões, como seria
esperável, já que sua afirmação era taxativa: “as formas corporais constitucionais derivam
automaticamente seja da predominância de um dos três tecidos primordiais embrionários, seja
de seu justo equilíbrio”. Essa afirmação é reforçada pela seguinte: “Não se trata aqui de
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hipóteses impossíveis de controlar, nem de teorias metafísicas. Mas os cálculos estatísticos


facilmente estabelecerão as intersecções” (MARTINY, 1948: 62).
A priori e sem qualquer recurso ao estudo comparativo de embriões e biotipologias corporais,
assume que (porém, afirmando como ‘fato’), dado que o embrião tem três folhetos – o
endoderme (chamado por ele de entoblasto), o mesoderme (mesoblasto) e o ectoderme
(ectoblasto) e dado que há formas corporais diferentes, estas se deviam ao excesso e defeito
relativo em cada biótipo de algum dos “tecidos primordiais” (MARTINY, 1948: 93), aos
quais deve ser acrescentado um quarto tipo, o normal.

Martiny inicia afirmando fortemente um ‘fato’ que jamais foi comprovado, no caso, “A
biotipogênese, ao se apoiar na embriologia, permite, portanto, considerar 4 biótipos genéticos,
verdadeiras constituições de base”. Essas constituições eram “o fruto da observação imparcial
de numerosos autores ao longo do tempo”, enquanto que “a classificação embriológica que
nós adotamos hoje nunca havia sido aprofundada antes de nós” (MARTINY, 1948: 91).

O autor não apresenta qualquer evidência experimental sustentando a possibilidade de


excesso, deficiência ou ‘regressão’ com ‘carência evolutiva’ de qualquer folheto embrionário.
Trata-se de meras suposições baseadas na descrição de quatro biótipos e três folhetos
embrionários somados ao tipo ‘normal’:
A prova que nos foi possível realizar pela simples (experiência)
clínica, foi trazida pela importância absoluta e relativa dos principais
órgãos e suas funções. Segundo uma correlação positiva
multidimensional, que por ela mesma não pode ser acidental,
descobriu-se que em seu domínio ou deficiência, órgãos humanos são
agrupados de acordo com três fontes de tecido primordial
(MARTINY, 1948: 106).

A descrição dos tipos de Martiny é feita de acordo com os critérios que elege arbitrariamente
e, esquematicamente, foram divididos em setores para facilitar as caracterizações: altura,
peso, aspecto geral, massa/tônus muscular, crânio, face, sistema endócrino e psiquismo.

A constituição entoblástica, por exemplo caracterizava-se pela sobrecarga do sistema


linfático, devida à impossibilidade de reabsorver as proteínas na circulação distal que, desse
modo, passavam a circular pelos vasos linfáticos que as retornam à circulação sanguínea.
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Devido à insuficiência concomitante do mesoblasto, que originava os vasos linfáticos, a


circulação nesse sistema é muito lenta, agravando o estado de “hidrofilia celular
constitucional”. A isso associaram-se hiperinsulinismo, hipopituitarismo global e
hipotireoidismo constitucional (MARTINY, 1948: 102). Mais uma vez, deve-se ressaltar o
fato de que essas afirmações não foram acompanhadas de estudos populacionais estatísticos
de medições hemodinâmicas e hormonais, nem de estudos histológicos.

Conclusões
A associação feita por Martiny entre biótipos e folhetos embrionários é puramente analógica,
sem qualquer embasamento em trabalho experimental de laboratório ou mensurações
objetivas referidas a aspectos endocrinológicos, metabólicos ou bioquímicos. Os únicos dados
apresentados por Martiny são antropométricos que, per se, não permitem levar a quaisquer
conclusões fisiológicas, patológicas, psicológicas, sociais, ambientais ou pedagógicas
referidas a algum dos supostos campos de aplicação da biotipologia. Ao contrário, os
trabalhos antropométricos caracterizam marcadamente as abordagens eugenistas de Galton e
Pearson ao nazismo, apenas para citar as instâncias mais evidentes.

Nesse aspecto, Martiny infringiu todos os pressupostos mínimos do que se entende como
ciência moderna, ou seja, a tentativa de fundamentar os fenômenos perceptíveis naquilo que é
invisível. O grau de sofisticação da pesquisa embriológica, já em 1880, permitia análises mais
profundas, na época de seu trabalho, a fim de embasar de maneira mais palpável a sua
pesquisa (WAISSE & ALFONSO-GOLDFARB, 2009).

Diante dos elementos eugênicos e as bases epistemológicas notavelmente deficitárias do


trabalho de Martiny, investigamos as possíveis vinculações deste com movimentos eugenistas
e/ou explicitamente racistas. No entanto, os poucos estudos referidos à eugenia e ao
movimento holista na França da primeira metade do século XX tendem a subestimar, senão a
negar, essa rede de conexões. Nossa análise da documentação indica as origens claramente
eugenistas, com indícios de finalidade racista, da construção da biotipologia de Martiny.

Após o final da Segunda Guerra Mundial, o discurso eugênico das biotipologias desapareceu,
na tentativa de ‘limpar’ o nome de autores como Pende, cuja relação com o fascismo italiano
ainda gera polêmica. Em 1973, o próprio Martiny, fez uma autocrítica explícita em uma
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reavaliação de sua obra no artigo “Quelques réflexions critiques sur l’existence des
morphotypes humains”. Neste artigo, questiona se Pende, assim como ele próprio, não teriam
realizado os estudos em antropometria baseando-se nos padrões ditados pela tradição
galênica, chegando até a comentar que, “em 1973, a validade da base dos biótipos é
censurável”, com interpretação difícil da predominância dos biótipos (MARTINY, 1973:
267).

Apesar da tentativa de depuração da teoria da biotipologia deste período, ainda hoje ela
continua a ser apresentada como ‘ciência provada’ em diversos contextos, como os das
medicinas ditas alternativas, o que precisa de maior análise e discussão.

Referências Bibliográficas

FEREMBACH, D. Le Docteur Marcel Martiny. Bulletins et Mémoires de la Société


d’Anthropologie de Paris, Paris, v. 10, p. 9-11, 1983.
GALERA, A. Construindo la fisiología del delito: el modelo biotipológico de Nicola Pende.
Disponível em: <http://www.triplov.org/hist_fil_ciencia/galera/pende/biotipo.htm> Acesso
em 1 de ago. 2011.
KEVLES, D. J. In the Name of Eugenics. Berkeley: University of California Press, 1985.
KLIBANSKY, R.: PANOFKY, E.; SAXL, F. Saturn and melancholy: studies in the history of
natural philosophy, religion and art. New York: Basic Books, 1964. 429 p.
KOUPERNIK, C. Eugenisme et psychiatrie. Ann. Méd. Psychol., Issy Les Moulineaux, v.
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__________. Scienza dell’ortogenesi. Bergamo: Instituto italiano d'arti grafiche, 1939. 238 p.
SAGRADO, M. V. Manual de técnicas somatotipológicas. México: Editora UNAM, 1991.
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TURINESE, L. Modelli psicosomatici: un approcio categoriale alla clinica. Milano: Elsevier,
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WAISSE-PRIVEN, S.; ALFONSO-GOLDFARB, A. M. Mathematics ab ovo: Driesch and
Entwicklungsmechanik. History and Philosophy of the Life Sciences, Napoli, v. 31, p. 35-54,
2009.
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WEISZ, G. Moment of synthesis: medical holism in France between the Wars. In:
LAWRENCE, C.; WEISZ, G. (Org.) Greater than the parts: holism in biomedicine, 1920-
1950. New York: Oxford University Press, 1998, 68-94.

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