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ABSTRACT: The present paper approaches the strategies for the use of both written and
vocalized language in the work of the poet and songster Arnaldo Antunes, taking the
philosopher ludwig wittgenstein's notion of the language games' and some theoretical
Antunes renders problematic the representative capacity of the language foccusing the
I - Algumas Palavras
atentar para que longe da página impressa — seu ambiente, para meus olhos, habitual
— a palavra poética não é a mesmai: este nosso velho conhecido, o texto poético,
distintos. A palavra falada, cantada, não apenas se transforma em outra palavra, mas
coisa é mais exata do que nunca, quando se trata da obra do poeta, cantor e compositor
Arnaldo Antunes.
O que surgia, a princípio, apenas como uma vaga sensação ganhou respaldo nas
primeiras leituras da obra de Arnaldo Antunes. Logo na orelha de seu primeiro livro
comercial, Psia, de 1986, alguns versos desprendiam uma ars poetica estimulante:
(...)
Eu berro as palavras
no microfone
da mesma maneira com que
as desenho, com cuidado,
na página.
Para transformá-las em coisas,
em vez de substituírem
as coisas.
Calos na língua; de calar.
Alguma coisa entre a piscina e a pia.
Um hiato a menos. (ANTUNES, 1998[b], orelha da capa.)
Das várias questões implicadas nestes versos, chamo atenção para a palavra
elemento da língua, não mais como um signo, mera presença substituindo uma ausência:
a palavra podia ser um objeto em si mesmo, como um hiato a menos, como uma
Ensaio sobre as origens das línguas e ao caráter não representativo dos sons musicaisii.
compreender esse mecanismo, utilizei de maneira não exaustiva, mas de acordo com a
corpos no mesmo espaço). Deixei de fora o vídeo-livro Nome, que exigiria estratégias
II – Jogos de Palavras
essência a idéia tradicional de pensadores como Frege, Russell e dele próprio em obras
ostensiva das coisas: eu aponto um objeto e digo “bola”, criando assim um vínculo
própria essência de sua função (“aqui”; “lá”; “isto”; “aquilo”). Porém, em outras
situações de linguagem, como no caso das cores, apontar um objeto de cor azul e dizer
“azul” não esclarece qual o significado de “azul”. A palavra “azul” não representa
nenhum objeto específico, não há nada do mundo que possamos chamar de “o azul”.
Em casos como estes, o significado da palavra se define não por seu valor em si, mas
palavra nunca é o objeto a que se refere, mas sim o seu valor de uso num determinado
jogo de linguagem.
Antunes, que elege o nome como pedra angular de sua poética. Quando falo em
“nome”, tenho em mente não uma classe gramatical de palavras, mas nomina (Ibid.,
“ensino ostensivo da língua” (WITTGENSTEIN, Op. Cit., p.11.) aponta-se algo e dá-se
— mundo, terra, globo, azul, hemisfério, velocidade, coisa etc. — que produzem ao
invés de uma maior definição, uma relativização do sentido disso. O mundo para um
árabe pode ser a Arábia Saudita; para um australiano, a Austrália; posso entender o
mundo como minha aldeia, ou como um objeto suspenso no espaço; posso referir-me a
ele em língua inglesa ou espanhola, mas não há como se assegurar um sentido: o nome
nomeia mas não explica, afinal, o que é isso. “O nome disso é representação”, parece
brincar Arnaldo com a possibilidade de a linguagem conferir mais de vinte nomes a algo
sem que se fixe um único significado. Isso terá um nome adequado para cada jogo de
Se tomo a palavra “homem”, repetida cinco vezes no poema, vejo que ela nomeia
troço”, é “o nome do outro”. Quanto mais são feitas assertivas sobre “homem”, mais a
exercício tautológico pleno, que nos conduz ao susto de perceber como uma poética tão
nome, pode ser tão evasiva, pode ser tão pouco “mimética”.
Outro bom exemplo de como Arnaldo utiliza as palavras de forma a quebrar seus
Há muitas e muito poucas palavras. (...) Mesa e cadeira são duas palavras.
Móveis é uma palavra só — Coisas que se movem. Mas não há palavra para dizer
dois corpos encostados, ou uma mão segurando um punhado de terra ou duas mãos
dadas com um tanto de terra entre elas (...); como há, por exemplo, a palavra jardim
para designar o conjunto de terra e plantas; ou a palavra planta para expressar a
soma da parte dessa parte do jardim que fica acima e da parte que fica abaixo da
terra. Com raiz bulbo folha talo ramo galho tronco fruto flor pistilo pólen dentro.
Mas se não quisermos dizer planta podemos dizer pé. E a sola do pé chamaremos de
planta. Sobre o solo. Assim como dizemos planta para o pé diremos palma. Para a
mão. Folha da palmeira. E se não quisermos dizer planeta podemos dizer terra. Ou
isso. Mas se ele não estiver por perto não podemos chamá-lo de isso.(ANTUNES,
1998[a], p.57.)
Leio o livro As coisas, de onde retirei esse poema, como a construção do que seria
uma tentativa de descrever o mundo a partir de uma visão ingênua/infantil que creditaria
Mesmo no jogo ostensivo da linguagem, em que toda palavra significa uma coisa,
disso” que é impossível se conhecer um objeto apenas nomeando-o. Nomear não é o ato
simples de ler a “etiqueta colada à coisa”. Nomear é escolher um nome entre tantos
outros possíveis. Não é um ato ingênuo, tem repercussões que definem a própria poética
de Arnaldo, como procurei investigar no decorrer deste estudo. Antes disso porém,
Marginaliv.
Em especial do Concretismo, Arnaldo adota preceitos estéticos fundamentais à
é dotada de uma propriedade não comum a outros objetos: possui, de algum modo, um
sistema da língua. Por outro lado, ela não é mais simplesmente um elemento da língua.
necessária para que se liberte a palavra das convenções sintáticas e lógicas da gramática,
música serial e dodecafônica possíveis novos modos expressivos, como por exemplo a
klangfarbenmelodie (CAMPOS, Op. Cit., p.15) de Anton von Webern, uma melodia
semelhante, o poeta poderia tornar os elementos da língua (frase, palavra, sílaba, letra)
Para os objetivos deste trabalho, interessa-me saber se, do mesmo modo que
inverso, teria absorvido influxos destas conquistas no campo da palavra feita coisa, feita
som. Nada melhor então do que um cancionista e poeta com declarada influência do
Concretismo...
No poema abaixo
Só os sons são
som são
nome não
Os nomes dos bichos não são os bichos.
Os bichos são:
plástico pedra pelúcia madeira cristal porcelana papel.
Seguindo ainda as reflexões do tópico dois, vejo que o poeta aponta outra
para “coisas”, apenas para “nomes”. Na tentativa de dizer que os nomes das coisas e das
cores não são as próprias coisas e cores, Arnaldo só pode utilizar nomes para se referir
às coisas. Por fim, é como se para se dizer que “só os bichos [coisas] são bichos
[coisas]” não se conseguisse livrar-se de estar dizendo também “os bichos [nomes] não
Uma solução para esse impasse parece ser sugerida por Arnaldo, se
paralelismo das estrofes, seria de se esperar que fossem nomeados os sons, como foram
nomeados os bichos e as cores. Mas, de algum modo, o som não se prestaria tão
facilmente a tais jogos de linguagem metalingüísticos. Numa possível leitura dos versos
11, 12 e 13 teríamos: “os sons só são som, não são nome”, dando conta de que os sons
nada seriam além do que são — essencialmente “som” — ao contrário, por exemplo, de
outros elementos do mundo fenomênico (os bichos, as cores) que seriam, de maneira
concomitante, também um “nome”. Poderia se concluir então que não se tem razoável
melhor desempenho à margem dos limites da língua, exatamente por não possuir uma
carga representativa tão poderosa — já que pode se fazer valer apenas como som. Sendo
linguagem parece contribuir muito mais para enfraquecer do que para reforçar os
possíveis vínculos entre nome e coisa. Sobre o nome, disse anteriormente que se trata
de sua “utilidade” — através das quais conhecemos as coisas, revela-nos como essas
coisas são recobertas por camadas de sentidos. Falar delas implica ordená-las e
classificá-las de acordo com essas categorias fornecidas pela linguagem, até o ponto em
tarefas da linguagem, e com certeza não a menos importante, é promover este arranjo
infinito e o indizível: “Todas as coisas do mundo não cabem numa idéia. Mas tudo cabe
numa palavra, nesta palavra tudo.” (Ibid., p.25.) O pensamento humano não é capaz de
apreender todo o mundo. Mas a linguagem sim, através de uma simples palavra. Resta
saber o que de fato é dito sobre o incognoscível “tudo” quanto utilizo a palavra tudo. A
traidora da linguagem?, pergunta retórica número um. Por ora, fiquemos com o poema
“o amor”:
Pego em seu pé
— é só um pé.
Pego em sua mão
— é sua mão.
Pego em seus cabelos
— são só cabelos.
Aqui tudo é
— aquilo que é.
Onde mora
O amor? (ANTUNES,1997[a],p. 42)
concreta das coisas sem a legenda categorizante da linguagem. Mas, quando procura no
corpo da amada onde está o amor, oferece-nos a dúvida. Onde está, fora da linguagem,
de elementos e/ou fatores e/ou forças desconhecidas que apenas poderíamos vislumbrar
software.
elementos constitutivos da linguagem não mais agentes desta aproximação, e sim novos
posso estar construindo o fundamento de uma nova relação do sujeito com a linguagem,
palavra não mais poderá ser um perverso agente da função ideológica da linguagem,
pois estará desnuda de suas simulações de verdades. Sua única verdade é a sua
Arnaldo Antunes.
V – A palavra cantada
Encerro este estudo com algumas breves notas sobre três canções. Não são
língua:
A letra é composta por cinco estrofes de nove versos cada. Os oito primeiros
versos de cada estrofe têm quatro palavras, o último apenas dois. São um total, portanto,
de cento e setenta palavras. O que chama atenção é que os primeiros trinta e seis versos
são compostos exclusivamente por apenas sete palavras: dois pronomes possessivos
(meu e minha) e quatro substantivos (pé, mão, pai, mãe, pau). A quinta estrofe
apresenta uma alternância entre as consoantes dos substantivos, criando tanto palavras
do léxico (pão, mau) quanto palavras não vernaculizadas (pãe, mé, mai).
A alternância aparentemente aleatória das consoantes nesta estrofe dá
também alterada. Pensando numa progressão dos desvios da norma a cada estrofe
notando que as três intermediárias apresentam uma maior conjunção de emissão vocal.
A primeira estrofe, sintaticamente perfeita, seria aquela em que os sentidos são mais
rítmica e harmônica básica da canção, que será repetida em quatro estrofes. A primeira
caos lingüístico que, progredindo desde a segunda, atingirá então o seu ponto máximo.
linguagem. São cinco estrofes de dezesseis versos e um refrão. Transcrevo abaixo uma
estrofe e o refrão:
um modelo de proposição alternativa: pode ser isto ou pode ser aquilo, sendo que um
nomes utilizados — cento e sessenta! — contribuem para o sentido único revelado pelo
reiterativa da canção.
“estranheza” da construção.
A letra é basicamente declamada por Arnaldo, que dispõe, num fluxo quase
chegar ao inatingível “fundo”, que acaba por se revelar no último verso, ser o próprio
mundo.
caminhos para “nenhum lugar”. Seguir as “indicações” das palavras nos conduz à
linguagem, o mundo nos é inacessível, e o que nos resta apenas é a perversa face da
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NOTAS
i
Este trabalho foi originariamente escrito como monografia de conclusão ao curso “Poéticas da Palavras
Cantada”, ministrado pela Profa. Dra. Claudia Neiva de Matos na Pós-graduação da UFF. A escolha do
autor deveu-se à diversidade de usos da palavra em sua obra — a palavra escrita; a palavra recitada; a
palavra cantada; a palavra multimídia —, que oferecia um material adequado para um levantamento de
usos específicos da palavra poética nas canções.
ii
Para Rousseau, apenas a melodia faz da música uma arte de imitação (ROUSSEAU, 1991, p.189.).
iii
Nas apresentações ao vivo, o cantor costuma ter em mãos um globo que “encarna” o isso dos versos.
iv
A dissertação de mestrado de Nielson Ribeiro Modro analisa a influência das vanguardas poéticas do
século XX na obra de Arnaldo.
v
Ser o elemento principal da poética concretista não significa que a palavra não possa ser “quebrada”.
Cummings, um poeta que faz da letra o elemento fundamental de sua poesia e que exerceu forte
influência sobre os poetas concretos, é um bom exemplo.
vi
Entendemos a conjunção ou a disjunção de emissão vocal como a maior ou a menor quantidade de
sílabas cantadas num determinado número de tempos musicais. Por exemplo, se no trecho “A” de uma
canção são vocalizadas dez sílabas durante um compasso musical e no trecho “B” quinze sílabas são
vocalizadas durante um compasso equivalente, dizemos que o trecho “A” apresenta maior disjunção de
emissão vocal em relação ao trecho “B”, e que, inversamente, este apresentaria maior conjunção de
emissão vocal em relação àquele.