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BRICOLINGUAGEM

para ler o poema

daniel perico graciano


BRICOLINGUAGEM
Editores
Mônica Baltazar Diniz Signori
Eld Johonny

Texto
Daniel Perico Graciano

Revisão
Daniel Perico Graciano
Lívia Beatriz Damasceno

Capa e Diagramação
para ler o poema
1ª edição
Eld Johonny

daniel perico graciano


GRACIANO, Daniel Perico
Bricolinguagem - Para ler o Poema / Daniel Perico Graciano.
São Carlos - PNAIC UFSCar, 2016.
ISBN 978-85-921588-2-8

1. Alfabetização 3. Educação 4. Literatura Infanto Juvenil


P A R A LER O P O EM A
Daniel Perico Graciano

Falo ao leitor(a) em primeira pessoa, não por assumir sozinho a autoria do


poema, afinal, várias vozes ecoaram junto à minha no processo de composição,
almejo falar de um ‘eu’ para tentar passar ao leitor a experiência subjetiva que
tive, ao escrevê-lo. Mas, quando começo a escrever este pequeno ensaio me
pergunto: por onde começar? Que tal começar pela descrição da escolha das
figuras de linguagem para irmos acompanhado um processo de abstração que
nos possibilitará compreender melhor essa composição que nem mesmo o
próprio poeta conhece muito bem?

Algumas metáforas
Busquei evocar metáforas que estimulassem certas reflexões, quando o poema
pergunta: “a palavra, menina, tem cara de papel?”, a menina em questão pode ter
diferentes respostas para essa pergunta:

i. Sim, a palavra tem cara de papel, quando escrita, pois a cara, ou seja, a
aparência da palavra escrita remete mais à sua forma que ao seu conteúdo.
ii. Não, a palavra não tem cara de papel quando falada, cantada ou
imaginada.

Será a palavra falada (ou cantada) diferente da palavra escrita? Será uma
mais importante que a outra? Será uma representação da outra? Serão as duas
representações de algo que tenha ou não alguma ligação direta com o próprio
conceito de palavra? Por outro lado, se pensarmos em representação e realidade,
em presença e ausência ou em qualquer outra oposição desse tipo, não estaríamos

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ensinando nossa crianças a estabelecer cadeias hierárquicas, privilegiando um que isso é verdadeiro somente em alguns casos? Será que mesmo que minha frase
polo em detrimento de outro? Talvez, não é preciso (nos dois sentidos do termo) tem uma palavra só não relacionamos essa palavra à outras “dentro” de nossas
comparar uma e outra forma de expressar a palavra, pode ser mais proveitoso cabeças? E quanto aos anagramas? Quantas palavras podem ser ditas de trás pra
nos perguntar qual a função de cada uma dessas formas, talvez não. Talvez, frente e se transformarem em uma palavra que usamos frequentemente (a esse
pensar a linguagem seja o próprio pensamento, talvez não. Tanto pode ser que as tipo de anagrama chamamos “palíndromos”)? Quantas são as sílabas de que nossa
mãos de tinta da palavra que pintam os passarinhos no céu, quanto pode ser que língua dispõe para formar as palavras?
os passarinhos no céu é que levam as mãos de tinta da palavra o pintar sua cara
de papel, mas também pode ser o pensamento, a voz, o instrumento...
A pomba e a bomba
Há um trecho do poema que diz: “menina, a palavra é estranha, a pomba é aquela
Ana(grama) que voa e a bomba é aquela que explode”. O que me inspirou a escrever esses
Um fragmento que merece atenção no poema é o uso do anagrama: versos meio malucos foi uma situação real: certo dia uma criança me comunicou
Ana + grama = anagrama, o substantivo próprio “Ana” é um grama, mas não a indignada: “tá tudo errado! A pomba devia ser o que explode e a bomba devia ser
grama do parque ou o grama do parmesão, “grama”, nesse sentido, é uma unidade o bicho!”, na verdade, essa criança teve contato com um problema que perturba
mínima de significação que, segundo uma das vertentes da filosofia francesa, a metafísica ocidental à pelo menos vinte e quatro séculos! Vamos pensar sobre
substitui o nome próprio, o grama é o que estrutura as diferenças entre um nome isso com calma: o fonema /p/ é classificado pelos linguistas como “plosivo
e outro e é somente por meio dessa diferença que conseguimos apreender o bilabial”, assim como /b/, a diferença é que /p/ é desvozeado e /b/ é vozeado,
sentido das palavras, ou seja, uma palavra só tem significado a partir de sua relação mas os poetas exploram os efeitos de sentidos dessas consoantes de maneira que
com as palavras que a cerca e é o grama a própria diferença (DERRIDA, 1967, o uso de /p/ explore uma sensação de algo mais “barulhento”, mais “agressivo”
p. 195). Se a junção dessas palavras cria um anagrama representado pela própria (justamente por ser desvozeado), como é o caso de uma explosão (repare na
palavra “anagrama”, por mais me detenha à pesquisa de diferentes pontos de vista, sílaba “plo” bem no meio da palavra “explosão”), enquanto /b/ remete a algo
afinal, em se tratando de linguística, o ponto de vista cria o objeto, não consigo mais “suave” (como “bom”, “beijo”, “belo”), é uma questão de sinestesia.
achar o nome desse tipo de recurso, nem outros usos, mas vamos chamá-lo de Mas, nos afundando ainda mais no problema, refaço a pergunta: o som das
meta-anagrama, por falta de nome melhor. Por outro lado, esse “grama” também palavras tem alguma semelhança com seu significado? Se não, como explicar
pode ser o grama de presunto ou a grama do jardim, pode ser o grama que bem as onomatopeias? Se sim, como explicar que os mesmos significados têm sons
entendermos, o importante é que ele nos leva a outras questões: será mesmo que, tão diferentes em outros idiomas? Mas, serão mesmo os mesmos significados?
em todos os casos, a palavra só significa se estiver em relação com as outras? Será Será que em cada cultura o significado da palavra “bomba”, por exemplo, é

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assimilado de maneira diferente? Uma cultura em situação de guerra entende o estranhamento? Manuel Bandeira nos disse: “a vida não chegava pelos jornais
conceito veiculado pela palavra “bomba” de maneira diferente de uma cultura nem pelos livros/ vinha na boca do povo”.
em situação de paz?
Essas mesmas reflexões me levaram a escrever outros trechos do poema,
como: “a palavra boca é sem dente”; “a palavra grande é curtinha”; “a palavra
A palavra valente
dor nada sente”, dentre outras. Minha “parte preferida” no poema é aquela que diz: “Menina, a palavra é valente:/
traz na sua história o trabalho/ e as lutas do povo da gente,/ cada letrinha é um
retalho/ de um ideal consciente.”, sabe por quê? Porque a palavra é isso mesmo! No
Semos, fumos e menas século passado, tinha um grande pensador russo que nos ensinou que a palavra é a
O uso de algumas variantes do português falado aparece no poema, como: concretização das nossas ideologias e ao mesmo tempo reflete e refrata a realidade
“semos”, “fumos” e “menas”, para nos mostrar que “menina, a palavra varia social (BAKHTIN, 2006), afinal, não existe ideologia se ela não puder ser expressa.
(...) pra fazer a prosa e a poesia”. Tal uso nos leva a uma reflexão muito séria A palavra traz um pouco da história de cada um que a usou, ela traz a história
acerca da língua, trata-se de um problema polêmico: o preconceito linguístico! do nosso povo e vai levar nossa história ao futuro também. A palavra promove
Se você acha que esse tipo de preconceito não existe, a gente vamos questionar mudanças ao mesmo tempo que nos indica revoluções. Como transmitimos
mais um pouquinho, como já temos feito ao longo desse curto ensaio: será nossos comunicados, nossa história, nossos sentimentos, etc... Se não for por
que “certo” e “errado” não são julgamentos extremamente relativos? Será que meio da palavra? Claro que há outros meio de nos expressar, mas como passar
julgamos somente a fala de determinados grupos sociais? O que, afinal, me leva adiante uma mensagem clara, sem riscos de mal-entendidos? Ainda que apareça
a crer que a fala de alguém está “certa” ou “errada”? Como a língua evolui? Se incessantemente um bilhão de novos aparelhos tecnológicos que facilitam nossa
a língua não evolui porque eu não falo latim, ou até mesmo algo mais arcaico comunicação, sempre usaremos a palavra, nada pode substituí-la.
que isso? A língua é um objeto histórico? Será que eu falo com o meu vizinho
em versos decassílabos, rimados e cheio de palavras do século dezesseis? O
meu amigo da Bahia fala exatamente igual ao meu amigo do Paraná? Será que
O esqueleto
eu acho que o modo como o empresário fala é muito melhor do que o modo A estrutura do poema foi pensada de forma que também poderá ser útil: há
como o trabalhador rural fala? O cara que fala inglês ou francês é melhor que um “esqueleto” do poema: os versos soam seis sílabas, de modo que a terceira
eu? O gramático da televisão é o novo messias e veio salvar a terra da danação é sexta sílabas são as sílabas tônicas (aquelas mais fortes), tentei usar esse tipo
eterna na ignorância? Se você ama alguém, você diz “te amo” ou “amo-te”? de estrutura, me basear no ritmo o mais parecido possível das línguas faladas
Se você conhece alguém que diria “amo-te” a pessoa não te causaria um baita na maior parte das regiões do Brasil. Além disso, esse ritmo é o que mais uso

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em minhas composições poéticas e musicais (confesso que tenho uma mania
estranha de marcar o ritmo dos meus passos enquanto caminho e meu ritmo é
Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 2006.
esse). As rimas são bastante variáveis, mas sempre aparecem. A métrica de um
poema pode ajudar a dar à luz a mais reflexões: se um verso ternário ascendente DERRIDA, J. De la grammatologie. Paris: Minuit, 1967.

(duas sílabas fracas seguidas de uma forte) com seis sílabas traz as tônicas na PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Ediouro, 1971.
terceira e na sexta sílaba, um verso do mesmo ritmo com nove sílabas precisaria
de mais uma sílaba tônica? Imaginemos um verso de oito sílabas com um
ritmo binário ascendente (uma sílaba fraca seguida de uma sílaba forte) quais
sílabas dentro de cada verso necessariamente precisam ser tônicas? Como posso
construir um ritmo regular em um verso de sete sílabas? E em um verso de doze
silabas? São questões que facilitam o ensino de matemática básica ao mesmo
tempo que estimulam a criatividade. Afinal, quem não quer compor sua própria
canção? Por que não fazer paródias das músicas preferidas da turma e depois
tentar estudar a matemática por traz das estruturas dos versos. Por que não
compor um poema e depois tentar encaixar uma melodia nesses versos, mesmo
que essa melodia já exista?
Outro importante elemento que compõe o “esqueleto”, a parte mais “abstrata”
do poema é o fato de que ele é uma obra aberta, ou seja, ele não necessita de uma
ordem exata das estrofes para que se estabeleça uma coesão. Podemos começar
a ler da estrofe que quisermos, podemos embaralhar as estrofes, isso nos remete
a uma nova reflexão: vamos questionar a ordem das coisas! As prototipicidades,
os arquétipos, vamos ler a vida de trás pra frente, de cabeça para baixo, vamos
derrubar e deturpar, vamos questionar as práticas corriqueiras. Questionar é a
palavra que poderia resumir todo esse ensaio!

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