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WARBURTON, Nigel. Elementos Básicos de Filosofia
WARBURTON, Nigel. Elementos Básicos de Filosofia
TRADUÇÃO
DESIDÉRIO MURCHO
SOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA
REVISÃO CIENTÍFICA
ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE
FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
gradiva
Título original: Philosophy: The Basics (Routledge, Londres, 1995)
© 1992, 1995, Nigel Warburton
Tradução: Desidério Murcho
Revisão científica: António Franco Alexandre
Revisão do texto: Manuel Joaquim Vieira
Capa: Armando Lopes
Fotocomposição: Gradiva
Impressão e acabamento: Tipografia Guerra/Viseu
Direitos reservados a: Gradiva — Publicações, L.da
Rua de Almeida e Sousa, 21, r / c , esq. — Telefs. 397 40 6 7 / 8
1350 Lisboa
1." edição: Janeiro de 1998
Depósito legal n.° 118 9 6 1 / 9 7
Ética: teorias cristãs, kantianas, consequencialistas, utilitaristas e a ética das virtudes; ética aplicada
(o problema da eutanásia); metaética
Filosofia da arte: a definição da arte; parecença familiar e forma significante; idealismo e teoria
institucional; a crítica de arte No final de cada capítulo, uma bibliografia comentada orienta o leitor
através das obras mais relevantes sobre cada um dos tópicos discutidos.
Sumário
1.1 A FILOSOFIA E A SUA HISTÓRIA ..............................................................................................10
1.2 PORQUÊ ESTUDAR FILOSOFIA? ...............................................................................................11
1.2.1 A vida examinada ...........................................................................................................11
1.2.2 Aprender a pensar ...........................................................................................................12
1.2.3 Prazer .............................................................................................................................12
1.3 A FILOSOFIA É DIFÍCIL? ..........................................................................................................12
1.4 OS LIMITES DO QUE A FILOSOFIA PODE FAZER .......................................................................13
1.5 COMO USAR ESTE LIVRO ........................................................................................................13
1.6 LEITURA COMPLEMENTAR ......................................................................................................14
1 DEUS ..............................................................................................................................................15
1.1 O ARGUMENTO DO DESÍGNIO .................................................................................................15
1.2 CRÍTICAS AO ARGUMENTO DO DESÍGNIO ................................................................................16
1.2.1 Fraca analogia ................................................................................................................16
1.2.2 Evolução .........................................................................................................................16
1.2.3 Limites da conclusão ......................................................................................................17
1.3 O ARGUMENTO DA CAUSA PRIMEIRA .....................................................................................17
1.4 CRÍTICAS AO ARGUMENTO DA CAUSA PRIMEIRA ....................................................................18
1.4.1 Autocontradição .............................................................................................................18
1.4.2 Não é uma demonstração ...............................................................................................18
1.4.3 Limites da conclusão ......................................................................................................18
1.5 O ARGUMENTO ONTOLÓGICO .................................................................................................19
1.6 CRÍTICAS AO ARGUMENTO ONTOLÓGICO ...............................................................................19
1.6.1 Consequências absurdas .................................................................................................19
1.6.2 A existência não é uma propriedade ...............................................................................20
1.6.3 O mal ..............................................................................................................................20
1.7 CONHECIMENTO, DEMONSTRAÇÃO E EXISTÊNCIA DE DEUS ...................................................20
1.8 O PROBLEMA DO MAL ............................................................................................................21
1.9 TENTATIVAS DE SOLUÇÃO DO PROBLEMA DO MAL .................................................................21
1.9.1 Santidade ........................................................................................................................21
1.9.2 Analogia artística ............................................................................................................22
1.10 A DEFESA DO LIVRE ARBÍTRIO...............................................................................................22
1.11 CRÍTICAS À DEFESA DO LIVRE ARBÍTRIO ..............................................................................23
1.11.1 Admite dois pressupostos básicos ................................................................................23
1.11.2 Livre arbítrio sem mal ..................................................................................................23
1.11.3 Deus poderia intervir ....................................................................................................23
1.11.4 Não explica o mal natural .............................................................................................23
1.11.5 Leis benéficas da natureza ............................................................................................24
1.12 O ARGUMENTO DOS MILAGRES ............................................................................................24
1.13 HUME E OS MILAGRES ..........................................................................................................25
1.13.1 Os milagres são sempre improváveis ...........................................................................25
1.13.2 Factores psicológicos ...................................................................................................25
1.13.3 As religiões neutralizam-se mutuamente .....................................................................26
1.13.4 O argumento do apostador: a aposta de Pascal ............................................................26
1.14 CRÍTICAS AO ARGUMENTO DO APOSTADOR ..........................................................................27
1.14.1 Não podemos decidir acreditar .....................................................................................27
1.14.2 Argumento inapropriado ..............................................................................................28
1.15 NÃO REALISMO ACERCA DE DEUS .......................................................................................28
1.16 CRÍTICAS AO NÃO REALISMO ACERCA DE DEUS ..................................................................28
1.16.1 Ateísmo disfarçado........................................................................................................28
1.16.2 Implicações para a doutrina religiosa ...........................................................................28
1.17 FÉ .........................................................................................................................................29
1.17.1 Os perigos da fé.............................................................................................................29
1.17.2 Conclusão......................................................................................................................30
1.18 LEITURA COMPLEMENTAR.....................................................................................................30
2 BEM E MAL ....................................................................................................................................31
2.1 TEORIAS BASEADAS NO DEVER ..............................................................................................31
2.2 A ÉTICA CRISTÃ ......................................................................................................................31
2.3 CRÍTICAS À ÉTICA CRISTÃ ......................................................................................................32
2.3.1 Qual é a vontade de Deus? .............................................................................................32
2.3.2 O dilema de Êutifron ......................................................................................................32
2.3.3 Pressupõe a existência de Deus ......................................................................................33
2.4 A ÉTICA KANTIANA..................................................................................................................33
2.4.1 Motivação .......................................................................................................................33
2.4.2 Máximas .........................................................................................................................34
2.4.3 O imperativo categórico .................................................................................................34
2.4.4 Universalizabilidade........................................................................................................34
2.4.5 Meios e fins.....................................................................................................................35
2.5 CRÍTICAS À ÉTICA KANTIANA..................................................................................................35
2.5.1 É vazia ............................................................................................................................35
2.5.2 Actos imorais universalizáveis........................................................................................36
2.5.3 Aspectos implausíveis ....................................................................................................36
2.6 CONSEQUENCIALISMO ............................................................................................................36
2.7 UTILITARISMO.........................................................................................................................36
2.8 CRÍTICAS AO UTILITARISMO ...................................................................................................37
2.8.1 Dificuldades de cálculo ..................................................................................................37
2.8.2 Casos problemáticos ......................................................................................................38
2.9 UTILITARISMO NEGATIVO .......................................................................................................39
2.10 CRÍTICA AO UTILITARISMO NEGATIVO ..................................................................................39
2.10.1 Destruição de toda a vida..............................................................................................39
2.11 UTILITARISMO DAS REGRAS .................................................................................................39
2.12 TEORIA DA VIRTUDE .............................................................................................................40
2.12.1 Prosperar.......................................................................................................................40
2.12.2 As virtudes ....................................................................................................................40
2.13 CRÍTICAS À TEORIA DA VIRTUDE...........................................................................................41
2.13.1 Que virtudes devemos adoptar?...................................................................................41
2.13.2 Natureza humana ..........................................................................................................41
2.14 ÉTICA APLICADA...................................................................................................................42
2.15 EUTANÁSIA............................................................................................................................42
2.16 ÉTICA E METAÉTICA .............................................................................................................43
2.17 NATURALISMO ......................................................................................................................43
2.18 CRÍTICAS AO NATURALISMO .................................................................................................44
2.18.1 Distinção facto/valor ....................................................................................................44
2.18.2 O argumento da questão em aberto ..............................................................................44
2.18.3 Não existe natureza humana.........................................................................................44
2.19 RELATIVISMO ........................................................................................................................45
2.20 CRÍTICAS AO RELATIVISMO MORAL ......................................................................................45
2.20.1 Serão os relativistas inconsistentes? .............................................................................45
2.20.2 O que conta como sociedade?......................................................................................46
2.21 EMOTIVISMO.........................................................................................................................46
2.22 CRÍTICAS AO EMOTIVISMO ...................................................................................................46
2.22.1 A discussão moral é impossível..................................................................................46
2.23 CONCLUSÃO .........................................................................................................................47
2.24 LEITURA COMPLEMENTAR.....................................................................................................47
3 POLÍTICA........................................................................................................................................49
3.1 IGUALDADE ............................................................................................................................49
3.2 DISTRIBUIÇÃO IGUALITÁRIA DO DINHEIRO.............................................................................50
3.3 CRÍTICAS À DISTRIBUIÇÃO IGUALITÁRIA DO DINHEIRO...........................................................50
3.3.1 Impraticável e de curta duração .....................................................................................50
3.3.2 Pessoas diferentes merecem quantitativos diferentes ....................................................50
3.3.3 Pessoas diferentes têm diferentes carências....................................................................51
3.3.4 Ninguém tem o direito de redistribuir ............................................................................51
3.4 IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NO EMPREGO .....................................................................51
3.5 DISCRIMINAÇÃO POSITIVA ......................................................................................................52
3.6 CRÍTICAS À DISCRIMINAÇÃO POSITIVA ...................................................................................52
3.6.1 Anti-igualitária ...............................................................................................................52
3.6.2 Pode conduzir ao ressentimento......................................................................................53
3.7 IGUALDADE POLÍTICA: DEMOCRACIA......................................................................................53
3.8 DEMOCRACIA DIRETA..............................................................................................................53
3.9 DEMOCRACIA REPRESENTATIVA..............................................................................................54
3.10 CRÍTICAS À DEMOCRACIA.....................................................................................................54
3.10.1 Uma ilusão ...................................................................................................................54
3.10.2 Os eleitores não são especialistas..................................................................................54
3.10.3 O paradoxo da democracia............................................................................................55
3.11 LIBERDADE............................................................................................................................55
3.12 LIBERDADE NEGATIVA...........................................................................................................55
3.13 CRÍTICAS À LIBERDADE NEGATIVA .......................................................................................56
3.13.1 O que conta como prejuízo?..........................................................................................56
3.14 LIBERDADE POSITIVA.............................................................................................................56
3.15 SUBTRAIR A LIBERDADE: O CASTIGO ...................................................................................57
3.16 O CASTIGO COMO RETRIBUIÇÃO............................................................................................57
3.17 CRÍTICAS AO RETRIBUTIVISMO..............................................................................................57
3.17.1 Faz apelo a sentimentos baixos ....................................................................................57
3.17.2 Ignora os efeitos ...........................................................................................................58
3.18 DISSUASÃO ...........................................................................................................................58
3.19 CRÍTICAS À DISSUASÃO.........................................................................................................58
3.19.1 O castigo dos inocentes.................................................................................................58
3.19.2 Não funciona ...............................................................................................................58
3.20 PROTECÇÃO DA SOCIEDADE .................................................................................................59
3.21 CRÍTICAS À PROTEÇÃO DA SOCIEDADE ...............................................................................59
3.21.1 Só é relevante para alguns crimes ................................................................................59
3.21.2 Não funciona.................................................................................................................59
3.22 REABILITAÇÃO.......................................................................................................................59
3.23 CRÍTICAS À REABILITAÇÃO....................................................................................................60
3.23.1 Só e relevante para alguns criminosos..........................................................................60
3.24 DESOBEDIÊNCIA CIVIL...........................................................................................................60
3.25 CONCLUSÃO..........................................................................................................................62
3.26 LEITURA COMPLEMENTAR ....................................................................................................62
4 4 O MUNDO EXTERIOR..................................................................................................................63
4.1 REALISMO DE SENSO COMUM .................................................................................................63
4.2 CEPTICISMO ACERCA DOS DADOS DOS SENTIDOS ...................................................................64
4.3 O ARGUMENTO DA ILUSÃO .....................................................................................................64
4.4 CRÍTICAS AO ARGUMENTO DA ILUSÃO ...................................................................................64
4.4.1 Graus de certeza .............................................................................................................64
4.5 PODEREI ESTAR A SONHAR? ...................................................................................................65
4.5.1 Não posso estar sempre a sonhar ...................................................................................65
4.5.2 Os sonhos são diferentes ................................................................................................65
4.6 ALUCINAÇÃO ..........................................................................................................................66
4.7 CÉREBRO NUMA CUBA? ..........................................................................................................66
4.8 MEMÓRIA E LÓGICA ...............................................................................................................67
4.9 PENSO, LOGO EXISTO...............................................................................................................67
4.10 CRÍTICA AO COGITO..............................................................................................................67
4.11 REALISMO REPRESENTATIVO.................................................................................................68
4.11.1 Qualidades primárias e secundárias.............................................................................68
4.12 CRÍTICAS AO REALISMO REPRESENTATIVO............................................................................69
4.12.1 Observador na cabeça ..................................................................................................69
4.13 IDEALISMO ............................................................................................................................69
4.14 CRÍTICAS AO IDEALISMO ......................................................................................................70
4.14.1 Alucinações e sonhos ...................................................................................................70
4.14.2 Conduz ao solipsismo ..................................................................................................71
4.14.3 A explicação mais simples ...........................................................................................71
4.15 FENOMENISMO......................................................................................................................72
4.16 CRÍTICAS AO FENOMENISMO.................................................................................................72
4.16.1 Dificuldade em descrever objectos ..............................................................................72
4.16.2 O solipsismo e o argumento da linguagem privada......................................................73
4.17 REALISMO CAUSAL................................................................................................................73
4.18 CRÍTICAS AO REALISMO CAUSAL ..........................................................................................74
4.18.1 A experiência da visão..................................................................................................74
4.18.2 Pressupõe o mundo real ...............................................................................................74
4.19 CONCLUSÃO..........................................................................................................................74
4.20 LEITURA COMPLEMENTAR.....................................................................................................74
5 CIÊNCIA .........................................................................................................................................75
5.1 CRÍTICAS À PERSPECTIVA SIMPLES ........................................................................................76
5.1.1 Observação .....................................................................................................................76
5.1.2 Selecção .........................................................................................................................77
5.2 O PROBLEMA DA INDUÇÃO......................................................................................................77
5.3 TENTATIVAS DE SOLUÇÃO DO PROBLEMA DA INDUÇÃO .........................................................79
5.3.1 Parece funcionar..............................................................................................................79
5.4 FALSIFICACIONISMO: CONJECTURA E REFUTAÇÃO..................................................................80
5.5 CRÍTICAS AO FALSIFICACIONISMO...........................................................................................81
5.5.1 O papel da confirmação..................................................................................................81
5.5.2 Erro humano....................................................................................................................82
5.5.3 Conclusão........................................................................................................................82
5.6 LEITURA COMPLEMENTAR.......................................................................................................83
6 MENTE............................................................................................................................................83
6.1 FILOSOFIA DA MENTE E PSICOLOGIA.......................................................................................83
6.2 O PROBLEMA DA MENTE /CORPO.............................................................................................84
6.3 DUALISMO...............................................................................................................................84
6.4 CRÍTICAS AO DUALISMO..........................................................................................................85
6.4.1 Não pode ser cientificamente investigado ......................................................................85
6.4.2 Interacção........................................................................................................................85
6.4.3 Contradiz um princípio científico básico .......................................................................86
6.5 DUALISMO SEM INTERACÇÃO..................................................................................................86
6.5.1 Paralelismo mente/corpo ................................................................................................86
6.5.2 Ocasionalismo ................................................................................................................86
6.5.3 Epifenomenismo ............................................................................................................86
6.6 FISICALISMO............................................................................................................................87
6.7 TEORIA DA IDENTIDADE-TIPO..................................................................................................87
6.8 CRÍTICAS À TEORIA DA IDENTIDADE-TIPO ..............................................................................88
6.8.1 Não há conhecimento dos processos cerebrais ..............................................................88
6.8.2 Qualia..............................................................................................................................89
6.8.3 Diferenças individuais ....................................................................................................89
6.9 TEORIA DA IDENTIDADE-ESPÉCIME ........................................................................................90
6.10 CRÍTICAS À TEORIA DA IDENTIDADE-ESPÉCIME ...................................................................90
6.10.1 Alguns estados do cérebro podem ser pensamentos diferentes ....................................90
6.11 BEHAVIOURISMO....................................................................................................................90
6.12 CRÍTICAS AO BEHAVIOURISMO..............................................................................................91
6.12.1 Fingimento ...................................................................................................................91
6.12.2 Qualia ...........................................................................................................................91
6.12.3 Como adquiro conhecimento das minhas próprias crenças? ........................................92
6.12.4 A dor dos paralíticos......................................................................................................92
6.12.5 As crenças podem causar o comportamento ..............................................................92
6.12.6 Funcionalismo ..............................................................................................................93
6.13 CRÍTICAS AO FUNCIONALISMO..............................................................................................93
6.13.1 Qualia: computadores e pessoas ...................................................................................93
6.14 MENTES ALHEIAS..................................................................................................................94
6.14.1 Não é um problema para o behaviourismo...................................................................94
6.15 O ARGUMENTO POR ANALOGIA.............................................................................................94
6.16 CRÍTICAS AO ARGUMENTO POR ANALOGIA...........................................................................95
6.16.1 Não é uma demonstração..............................................................................................95
6.16.2 Inverificável..................................................................................................................95
6.17 CONCLUSÃO..........................................................................................................................96
6.17.1 Leitura complementar...................................................................................................96
7 ARTE...............................................................................................................................................96
7.1 PODE A ARTE SER DEFINIDA?..................................................................................................97
7.1.1 O conceito de parecença familiar....................................................................................97
7.2 CRÍTICAS À PERSPECTIVA DA PARECENÇA FAMILIAR...............................................................97
7.3 A TEORIA DA FORMA SIGNIFICANTE........................................................................................97
7.4 CRÍTICAS À TEORIA DA FORMA SIGNIFICANTE .......................................................................98
7.4.1 Circularidade ..................................................................................................................98
7.4.2 Irrefutabilidade................................................................................................................98
7.5 A TEORIA IDEALISTA................................................................................................................99
7.6 CRÍTICAS À TEORIA IDEALISTA DA ARTE ................................................................................99
7.6.1 Estranheza ......................................................................................................................99
7.6.2 Excessivamente restritiva .............................................................................................100
7.7 A TEORIA INSTITUCIONAL......................................................................................................100
7.8 CRÍTICAS À TEORIA INSTITUCIONAL......................................................................................100
7.8.1 Não distingue a boa da má arte ....................................................................................100
7.8.2 Circularidade ................................................................................................................101
7.8.3 Que critérios usa o mundo da arte?...............................................................................101
7.9 CRÍTICA DE ARTE...................................................................................................................102
7.10 ANTI-INTENCIONALISMO.....................................................................................................102
7.11 CRÍTICAS AO ANTI-INTENCIONALISMO ...............................................................................102
7.11.1 Uma ideia errada da intenção .....................................................................................102
7.11.2 Ironia ..........................................................................................................................103
7.11.3 Uma perspectiva muito restritiva da crítica de arte.....................................................103
7.11.4 Apresentação, interpretação, autenticidade ................................................................103
7.12 AUTENTICIDADE HISTÓRICA NA INTERPRETAÇÃO MUSICAL................................................103
7.13 CRÍTICAS À AUTENTICIDADE HISTÓRICA NA INTERPRETAÇÃO ...........................................104
7.13.1 Viagem fantasiosa no tempo ......................................................................................104
7.13.2 Visão simplista da interpretação musical ...................................................................104
7.13.3 As interpretações históricas podem falsear o espírito ................................................104
7.14 IMITAÇÕES E VALOR ARTÍSTICO...........................................................................................105
7.14.1 Preço, snobismo, relíquias .........................................................................................105
7.14.2 Imitações perfeitas .....................................................................................................106
7.14.3 Obras de arte versus artistas .......................................................................................106
7.14.4 O argumento moral.....................................................................................................107
7.15 CONCLUSÃO........................................................................................................................107
7.16 LEITURA COMPLEMENTAR...................................................................................................107
8 GLOSSÁRIO INGLÊS-PORTUGUÊS ...............................................................................................108
Prefácio
Acrescentei pequenas secções em vários capítulos desta segunda edição e corrigi todos os
erros óbvios que surgiram na primeira. A adição mais digna de nota é o novo capítulo sobre política.
Actualizei também as listas de leituras aconselhadas.
Gostaria de agradecer a todas as pessoas que fizeram comentários aos rascunhos dos vários
capítulos. Estou particularmente grato a Alexandra Alexandri, Gunnar Arnason, Inga Burrows, Eric
Butcher, Michael Camille, Simon Christmas, Lesley Cohen, Emma Cotter, Tim Crane, Sue Derry-
Penz, Adrian Driscoll, Jonathan Hourigan, Rosalind Hursthouse, Paul Jefferis, John Kimbell, Robin
Le Poivedin, Georgia Mason, Hugh Mellor, Alex Miller, Anna Motz, Penny Nettle, Alex Orenstein,
Andrew Pile, Abigail Reed, Anita Roy, Ron Santoni, Helen Simms, Jennifer Trusted, Phillip Vasili,
Stephanie Warburton, Tessa Watt, Jonathan Wolff, Kira Zurawska e aos consultores anónimos da
casa editora.
NIGEL WARBURTON
Oxford, 1994
Introdução
O que é a filosofia? Esta é uma questão notoriamente difícil. Uma das formas mais fáceis de
responder é dizer que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem, indicando de seguida os textos de
Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Russell, Wittgenstein, Sartre e de outros filósofos
famosos. Contudo, é improvável que esta resposta possa ser realmente útil se o leitor está a começar
agora o seu estudo da filosofia, uma vez que, nesse caso, não terá provavelmente lido nada desses
autores. Mas, mesmo que já tenha lido alguma coisa, pode, ainda assim, ser difícil dizer o que têm
em comum, se é que existe realmente uma característica relevante partilhada por todos. Outra forma
de abordar a questão é indicar que a palavra «filosofia» deriva da palavra grega que significa «amor
da sabedoria». Contudo, isto é muito vago e ainda nos ajuda menos do que dizer apenas que a
filosofia é aquilo que os filósofos fazem. Precisamos por isso de alguns comentários gerais sobre o
que é a filosofia.
A filosofia é uma actividade: é uma forma de pensar acerca de certas questões. A sua
característica mais marcante é o uso de argumentos lógicos. A actividade dos filósofos é,
tipicamente, argumentativa: ou inventam argumentos, ou criticam os argumentos de outras pessoas
ou fazem as duas coisas. Os filósofos também analisam e clarificam conceitos. A palavra «filosofia»
é muitas vezes usada num sentido muito mais lato do que este, para referir uma perspectiva geral da
vida ou algumas formas de misticismo. Não irei usar a palavra neste sentido lato: o meu objectivo é
lançar alguma luz sobre algumas das áreas centrais de discussão da tradição que começou com os
Gregos antigos e tem prosperado no século xx, sobretudo na Europa e na América.
Que tipo de coisas discutem os filósofos desta tradição? Muitas vezes examinam crenças que
quase toda a gente aceita acriticamente a maior parte do tempo. Ocupam-se de questões
relacionadas com o que podemos chamar vagamente «o sentido da vida»: questões acerca da
religião, do bem e do mal, da política, da natureza do mundo exterior, da mente, da ciência, da arte e
de muitos outros assuntos. Por exemplo, muitas pessoas vivem as suas vidas sem questionarem as
suas crenças fundamentais, tais como a crença de que não se deve matar. Mas por que razão não se
deve matar? Que justificação existe para dizer que não se deve matar? Não se deve matar em
nenhuma circunstância? E, afinal, que quer dizer a palavra «dever»? Estas são questões filosóficas.
Ao examinarmos as nossas crenças, muitas delas revelam fundamentos firmes; mas algumas não. O
estudo da filosofia não só nos ajuda a pensar claramente sobre os nossos preconceitos, como ajuda
a clarificar de forma precisa aquilo em que acreditamos. Ao longo desse processo desenvolve-se
uma capacidade para argumentar de forma coerente sobre um vasto leque de temas — uma
capacidade muito útil que pode ser aplicada em muitas áreas.
Desde o tempo de Sócrates que surgiram muitos filósofos importantes. Já referi alguns no
primeiro parágrafo. Um livro de introdução à filosofia poderia abordar o tema historicamente,
analisando as contribuições desses grandes filósofos por ordem cronológica. Mas não é isso que
farei neste livro. Ao invés, abordarei o tema por tópicos: uma abordagem centrada em torno de
questões filosóficas particulares, e não na história. A história da filosofia é, em si mesma, um
assunto fascinante e importante; muitos dos textos filosóficos clássicos são também grandes obras
de literatura: os diálogos socráticos de Platão, as Meditações, de Descartes, a Investigação sobre o
Entendimento Humano, de David Hume, e Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, para citar só
alguns exemplos, são todas magníficos exemplos de boa prosa, sejam quais forem os padrões que
usemos. Apesar de o estudo da história da filosofia ser muito importante, o meu objectivo neste
livro é oferecer ao leitor instrumentos para pensar por si próprio sobre temas filosóficos, em vez de
ser apenas capaz de explicar o que algumas grandes figuras do passado pensaram acerca desses
temas. Esses temas não interessam apenas aos filósofos: emergem naturalmente das circunstâncias
humanas; muitas pessoas que nunca abriram um livro de filosofia pensam espontaneamente nesses
temas.
Qualquer estudo sério da filosofia terá de envolver uma mistura de estudos históricos e
temáticos, uma vez que, se não conhecermos os argumentos e os erros dos filósofos anteriores, não
podemos ter a esperança de contribuir substancialmente para o avanço da filosofia. Sem algum
conhecimento da história, os filósofos nunca progrediriam: continuariam a fazer os mesmos erros,
sem saber que já tinham sido feitos. E muitos filósofos desenvolvem as suas próprias teorias ao
verem o que está errado no trabalho dos filósofos anteriores. Contudo, num pequeno livro como
este, é impossível fazer justiça às complexidades da obra de filósofos individuais. As leituras
complementares, sugeridas no fim de cada capítulo, ajudam a colocar num contexto histórico mais
vasto os assuntos aqui discutidos.
Defende-se por vezes que não vale a pena estudar filosofia uma vez que tudo o que os
filósofos fazem é discutir sofisticamente o significado das palavras; nunca parecem atingir
conclusões de qualquer importância e a sua contribuição para a sociedade é virtualmente nula.
Continuam a discutir acerca dos mesmos problemas que cativaram a atenção dos Gregos. Parece
que a filosofia não muda nada; a filosofia deixa tudo tal e qual.
Começar a questionar as bases fundamentais da nossa vida pode até ser perigoso: podemos acabar
por nos sentir incapazes de fazer o que quer que seja, paralisados por pormos demasiadas perguntas.
Na verdade, a caricatura do filósofo é geralmente a de alguém que é brilhante a lidar com
pensamentos altamente abstractos no conforto de um sofá, numa sala de Oxford ou Cambridge, mas
incapaz de lidar com as coisas práticas da vida: alguém que consegue explicar as mais complicadas
passagens da filosofia de Hegel, mas que não consegue cozer um ovo.
Uma razão importante para estudar filosofia é o facto de esta lidar com questões
fundamentais acerca do sentido da nossa existência. A maior parte das pessoas, num ou noutro
momento da sua vida, já se interrogou a respeito de questões filosóficas. Por que razão estamos
aqui? Há alguma demonstração da existência de Deus? As nossas vidas têm algum propósito? O que
faz que certas acções sejam moralmente boas ou más? Poderemos alguma vez ter justificação para
violar a lei? Poderá a nossa vida ser apenas um sonho? E a mente diferente do corpo, ou seremos
apenas seres físicos? Como progride a ciência? O que é a arte? E assim por diante.
A maior parte das pessoas que estuda filosofia acha importante que cada um de nós examine
estas questões. Algumas até defendem que não vale a pena viver a vida sem a examinar. Persistir
numa existência rotineira sem jamais examinar os princípios na qual esta se baseia pode ser como
conduzir um automóvel que nunca foi à revisão. Podemos justificadamente confiar nos travões, na
direcção e no motor, uma vez que sempre funcionaram suficientemente bem até agora; mas esta
confiança pode ser completamente injustificada: os travões podem ter uma deficiência e falharem
precisamente quando mais precisarmos deles. Analogamente, os princípios nos quais a nossa vida se
baseia podem ser inteiramente sólidos; mas, até os termos examinado, não podemos ter a certeza
disso.
Contudo, mesmo que não duvidemos seriamente da solidez dos princípios em que baseamos
a nossa vida, podemos estar a empobrecê-la ao recusarmo-nos a usar a nossa capacidade de pensar.
Muitas pessoas acham que dá demasiado trabalho ou que é excessivamente inquietante colocar este
tipo de questões fundamentais: podem sentir-se satisfeitas e confortáveis com os seus preconceitos.
Mas há outras pessoas que têm um forte desejo de encontrar respostas a questões filosóficas que
representem um desafio.
Outra razão para estudar filosofia é o facto de isso nos proporcionar uma boa maneira de
aprender a pensar mais claramente sobre um vasto leque de assuntos. Os métodos do pensamento
filosófico podem ser úteis em variadíssimas situações, uma vez que, ao analisar os argumentos a
favor e contra qualquer posição, adquirimos aptidões que podem ser aplicadas noutras áreas da vida.
Muitas pessoas que estudam filosofia aplicam depois as suas aptidões em profissões tão diferentes
quanto o direito, a informática, a consultoria de gestão, o funcionalismo público e o jornalismo —
áreas onde a clareza de pensamento é um grande trunfo 1. Os filósofos usam também a perspicácia
que adquirem acerca da natureza da existência humana quando se voltam para as artes: alguns
filósofos foram também romancistas, críticos, poetas, realizadores de cinema e dramaturgos de
sucesso.
1.2.3 Prazer
Outra justificação ainda para o estudo da filosofia é o facto de, para muitas pessoas, esta ser
uma actividade que dá imenso prazer. Mas é preciso dizer qualquer coisa acerca desta defesa da
filosofia. O seu perigo é ser tomada como uma redução da actividade filosófica a qualquer coisa
equivalente à resolução de palavras cruzadas. Por vezes, a atitude que os filósofos têm em relação à
filosofia pode parecer-se muito com isso: alguns filósofos profissionais ficam obcecados com a
resolução de enigmas lógicos obscuros como um fim em si, publicando os seus resultados em
revistas esotéricas. No outro extremo, alguns filósofos que trabalham nas universidades encaram-se
como parte de um «negócio», publicando o que muitas vezes são estudos medíocres unicamente
porque isso lhes permitirá prosperar e ser promovidos (uma vez que a quantidade de publicações é
um factor que determina a promoção)2. Dá-lhes prazer ver o seu nome impresso, ganhar mais e
usufruir o prestígio associado à promoção. Felizmente, contudo, muita da
filosofia se eleva acima deste nível.
A filosofia é muitas vezes descrita como uma disciplina difícil. Há vários tipos de
dificuldades associadas à filosofia, algumas delas evitáveis.
Em primeiro lugar, é verdade que muitos dos problemas com os quais os filósofos profissionais
lidam exigem efectivamente um nível bastante elevado de pensamento abstracto. Contudo, o mesmo
se aplica a praticamente todas as actividades intelectuais: a esse respeito, a filosofia não é diferente
da física, da teoria literária, da informática, da geologia, da matemática ou da história. Tal como
acontece com estas e outras áreas de estudo, a dificuldade em dar um contributo substancialmente
original na área respectiva não deve ser usada como desculpa para negar às pessoas comuns o
conhecimento dos avanços dessas áreas, nem para as impedir de aprender os seus métodos básicos.
1 O autor refere-se, claro, à situação britânica, e não à portuguesa. (N. do T.)
2 Este é um problema inexistente em Portugal: ao contrário do resto do mundo civilizado, a publicação em revistas
internacionais é irrelevante em termos de carreira académica ou liceal. (N. do T.)
Contudo, há um segundo tipo de dificuldade associada à filosofia que pode ser evitada. Os
filósofos nem sempre são bons prosadores. Muitos têm fracas capacidades para comunicar
claramente as suas próprias ideias.
Por vezes, isto acontece porque só estão interessados em atingir uma pequeníssima audiência de
leitores especializados; outras vezes, porque usam uma gíria desnecessariamente complicada que se
limita a confundir os que com ela não estão familiarizados. Os termos especializados podem ser
úteis para evitar explicar certos conceitos sempre que são usados. Contudo, há entre os filósofos
profissionais uma tendência infeliz para usar termos especializados como um fim em si; muitos
usam expressões latinas apesar de existirem equivalentes portugueses perfeitamente aceitáveis 3 .
Um parágrafo cheio de palavras desconhecidas e de palavras conhecidas usadas de forma
desconhecida pode intimidar. Alguns filósofos parecem falar e escrever numa linguagem inventada
por eles. Isto pode fazer que a filosofia pareça muito mais difícil do que na verdade é.
Neste livro tentei evitar a gíria desnecessária e explicar os termos desconhecidos a par e
passo. Esta abordagem deve ser suficiente para proporcionar ao leitor um vocabulário filosófico
básico, necessário para compreender alguns dos textos mais difíceis que são recomendados no final
de cada capítulo.
Alguns estudantes têm expectativas excessivamente altas em relação à filosofia. Esperam que a
filosofia lhes forneça uma imagem acabada e detalhada dos dilemas humanos. Pensam que a
filosofia lhes irá revelar o sentido da vida e explicar todas as facetas das nossas complexas
existências. Ora, apesar de o estudo da filosofia poder iluminar algumas questões fundamentais
relacionadas com a nossa existência, não oferece nada que se pareça com uma imagem acabada, se
é que de facto pode existir tal coisa. Estudar filosofia não é uma alternativa ao estudo da arte, da
história, da psicologia, da antropologia, da sociologia, da política e da ciência.
Já sublinhei o facto de a filosofia ser uma actividade. Por isso, este livro não deve ser lido
passivamente. Podemos limitar-nos a aprender de cor os argumentos usados aqui, mas isso, só por
si, não seria ainda aprender a filosofar, apesar de proporcionar um conhecimento sólido de muitos
dos argumentos básicos usados pelos filósofos. O leitor ideal deste livro será aqueleque o ler
criticamente, questionando constantemente os argumentos usados e concebendo contra-argumentos.
Este livro pretende estimular o pensamento, e não ser uma alternativa ao pensamento. Se o ler
criticamente, o leitor encontrará sem dúvida muitas coisas de que discorda, o que concorrerá para
clarificar as suas próprias convicções.
Apesar de ter tentado que todos os capítulos fossem acessíveis a alguém que nunca tenha
estudado filosofia, alguns são mais difíceis do que outros. A maior parte das pessoas já pensou na
3 Em Portugal acontece sobretudo o uso desnecessário de neologismos e de expressões alemãs, gregas e inglesas. (N.
do T.)
questão de saber se Deus existe ou não e já pensou nos argumentos a favor de ambos os lados —
logo, o capítulo sobre Deus deve ser relativamente fácil de seguir. Por outro lado, poucas pessoas, à
excepção dos filósofos, terão pensado detalhadamente sobre os assuntos abordados nos capítulos
sobre o mundo exterior e a mente, assim como nos assuntos tratados nas secções mais abstractas do
capí-
tulo sobre o bem e o mal. Estes capítulos, especialmente o capítulo sobre a mente, podem ser de
leitura mais demorada. Recomendo que comece por fazer uma primeira leitura rápida de todos os
capítulos, relendo depois aquelas secções que ache mais interessantes, em vez de ler
demoradamente secção a secção, arriscando se assim a atolar-se nos detalhes sem ter percebido
como os diferentes argumentos se relacionam entre si.
Há um tópico óbvio que este livro podia ter incluído, mas não o fez: a lógica. Deixei-o de
fora porque é uma área excessivamente técnica para poder ser tratada satisfatoriamente num livro
desta dimensão e com este estilo4.
Este livro deverá ser útil para os estudantes consolidarem o que aprendem nas aulas e
proporcionará uma ajuda na redacção de ensaios: o sumário que ofereço das principais abordagens
filosóficas de cada tema, juntamente com várias críticas a essas abordagens, pode facilmente ser
usado quando se procuram ideias para ensaios.
A Dictionary of Philosophy, organizado por Anthony Flew (Londres, Pan, 1979) é útil como
referência, tal como A Dictionary of Philosophy, de A. R. Lacey (Londres, Routledge, 1976).
Os interessados nos métodos de argumentação usados pelos filósofos têm vários livros
relevantes, incluindo o meu Thinking from A to Z (Londres, Routledge, 1996), A Arte de
Argumentar, de Anthony Weston (Lisboa, Gradiva, 1996) e The Logic of Real Arguments
(Cambridge, Cambridge University Press, 1988), de Alec Fisher. Há mais dois livros nesta área que
estão esgotados, mas que existem nas bibliotecas: Thinking about Thinking, de Anthony Flew
(Londres, Fontana, 1975), e Straight and Crooked Thinking, de H. Thouless (Londres, Pan, 1974).
4 A Gradiva publicará brevemente, nesta colecção, a obra Curso Introdutório de Lógica, de W. H. Newton-Smith. (N.
do E.)
1 DEUS
Será que Deus existe? Esta é uma questão fundamental, uma questão que a maior parte das
pessoas já enfrentou num ou noutro período da vida. A resposta dada por cada um de nós não afecta
apenas a forma como agimos, mas também a forma como compreendemos e interpretamos o mundo
e o que esperamos do futuro. Se Deus existe, a existência humana pode ter sentido e podemos
mesmo ter esperança na vida eterna. Se não, temos de criar nós mesmos o sentido das nossas vidas:
nenhum sentido será dado a partir do exterior e a morte será provavelmente definitiva.
Quando os filósofos voltam a sua atenção para a religião, costumam examinar os vários
argumentos que têm sido oferecidos a favor e contra a existência de Deus. Ponderam as provas e
examinam atentamente a estrutura e as implicações dos argumentos. Examinam também conceitos
tais como a fé e a crença, para ver se a maneira como as pessoas falam acerca de Deus faz sentido.
O ponto de partida da maior parte da filosofia da religião é uma doutrina muito geral acerca
da natureza de Deus, conhecida como teís)iio. Esta doutrina defende a existência de um deus único,
a sua omnipotência (capacidade para fazer tudo), omnisciência (capacidade de saber tudo) e
suprema benevolência (sumamente bom). Esta perspectiva é partilhada pela maior parte dos
cristãos, judeus e muçulmanos. Nestas páginas irei deter-me na ideia cristã de Deus, apesar de a
maior parte dos argumentos se aplicarem igualmente a outras religiões teístas e de alguns deles
serem relevantes para
qualquer religião.
Mas será que o Deus descrito pelos teístas existe de facto? Poderemos demonstrar que esse
Deus existe? Há muitos argumentos que têm por objectivo demonstrar a existência de Deus. Neste
capítulo irei apresentar os mais importantes.
Um dos argumentos a favor da existência de Deus usado com mais frequência é o argumento
do desígnio, por vezes também conhecido como argumento teleológico (da palavra grega telos, que
significa finalidade). Este argumento afirma que, se observarmos a natureza, não podemos deixar
de notar como tudo é apropriado à função que desempenha: tudo mostra sinais de ter sido
concebido. Isto demonstraria a existência de um Criador. Se, por exemplo, examinarmos o olho
humano, verificaremos que todas as suas ínfimas partes se adaptam entre si e que cada parte está
judiciosamente adaptada àquilo para que aparentemente foi feita: ver.
Este é um argumento que parte de um efeito e infere a sua causa: observamos o efeito (o
relógio ou o olho) e tentamos descobrir o que o causou (um relojoeiro ou um Relojoeiro Divino) a
partir do exame que fizemos. O argumento apoia-se na ideia de que um objecto que tenha sido
concebido, como acontece com um relógio, é em certos aspectos muito semelhante a um objecto
natural, como um olho. Este tipo de argumento, baseado na semelhança entre duas coisas, é
conhecido como argumento por analogia. Os argumentos por analogia baseiam-se no princípio de
que, se duas coisas são análogas em alguns aspectos, serão também, muito possivelmente, análogas
noutros.
Aqueles que aceitam o argumento do desígnio afirmam que, para onde quer que olhemos,
sobretudo tratando-se da natureza — quer olhemos para árvores,
falésias, animais, estrelas, quer seja para o que for —, encontramos cada vez mais indícios que
confirmam a existência de Deus. Porque estas coisas são concebidas de formas muito mais
engenhosas do que um relógio, o Relojoeiro Divino deve, concomitantemente, ter sido mais
inteligente do que o relojoeiro humano. De facto, o Relojoeiro Divino deve ter sido tão poderoso e
tão inteligente que faz sentido presumir que terá sido o Deus tradicional dos teístas.
Contudo, há fortes argumentos contra o argumento do desígnio, a maior parte dos quais
foram levantados pelo filósofo David Hume (1711-1776) nos seus póstumos Diálogos sobre a
Religião Natural, assim como na secção xi da sua Investigação sobre o Entendimento Humano.
Uma objecção ao argumento apresentado defende que este se baseia numa analogia fraca:
presume sem discussão a existência de uma semelhança significativa entre os objectos naturais e os
que sabemos terem sido concebidos. Mas não é óbvio que, para usar mais uma vez os mesmos
exemplos, o olho humano seja realmente como um relógio em todos os aspectos importantes. Os
argumentos por analogia baseiam-se no facto de existir uma forte semelhança entre as duas coisas
comparadas. Se a semelhança for fraca, as conclusões que podem ser retiradas com base na
comparação serão igualmente fracas. Assim, por exemplo, um relógio de pulso e um relógio de
bolso são suficientemente semelhantes para que possamos presumir terem ambos sido concebidos
por relojoeiros. Mas, apesar de existir alguma semelhança entre um relógio e um olho — ambos são
intrincados e cumprem as suas funções
específicas —, essa semelhança é apenas vaga e quaisquer conclusões baseadas nessa analogia
resultarão igualmente vagas.
1.2.2 Evolução
Mesmo que, apesar das objecções mencionadas até agora, o leitor ache convincente o
argumento do desígnio, deve reparar que este argumento não demonstra a existência de um deus
único, todo-poderoso, omnisciente e sumamente bom. Um exame mais minucioso do argumento
mostra que este tem várias limitações.
Em primeiro lugar, o argumento não consegue, de forma alguma, sustentar o monoteísmo —
a ideia de que só existe um deus. Mesmo que o leitor aceite que o mundo e tudo o que ele contém
mostra claramente sinais de ter sido concebido, não há razão para acreditar que foi tudo concebido
por um só deus. Porque não poderia ter sido tudo concebido por uma equipe de deuses menores
trabalhando em conjunto? Afinal de contas, a maioria das grandes e complexas construções
humanas, como os arranha-céus, as pirâmides, os foguetões espaciais, etc., foram construídos por
equipas de indivíduos; por isso, se levarmos a analogia a sério, a sua conclusão lógica irá conduzir-
nos à convicção de que o mundo foi concebido por um grupo de deuses trabalhando em equipe.
Em segundo lugar, o argumento não apoia necessariamente a perspectiva de que aquele ou
aqueles que projectaram o mundo são todo-poderosos. É plausível argumentar que o universo tem
vários «defeitos de concepção»: por exemplo, o olho humano tem uma tendência para a miopia e
para criar cataratas com a idade — o que dificilmente pode ser considerado a obra de um criador
todo-poderoso que desejasse criar o melhor mundo possível. Tais verificações poderiam levar
algumas pessoas a pensar que o Arquitecto do universo, longe de ser todo-poderoso, será antes um
deus ou deuses comparativamente fracos ou talvez um deus ainda novo a experimentar os seus
poderes. Talvez o Arquitecto tivesse morrido pouco tempo depois de ter criado o universo,
deixando-o assim a degradar-se sozinho. O argumento do desígnio oferece, pelo menos, tantas
razões para estas conclusões como para
a existência do deus descrito pelos teístas. Por isso, o argumento do desígnio, por si só, não pode
demonstrar que é o deus dos teístas que existe, e não qualquer outro tipo de deus ou deuses.
Por último, sobre o carácter omnisciente e bom do Arquitecto, muitas pessoas acham que o
mal existente no mundo contraria esta conclusão. O mal vai desde a crueldade humana, o assassínio
e a tortura, ao sofrimento causado pelos desastres naturais e pela doença.
Se, como o argumento do desígnio sugere, devemos olhar à nossa volta para ver os sinais da
obra de Deus, muitas pessoas acham difícil aceitar que o que vêem seja o resultado de um criador
benevolente. Um deus omnisciente saberia que o mal existe; um deus todo-poderoso poderia
impedi-lo de existir; e um Deus sumamente bom não quereria que o mal existisse. Mas o mal
continua a existir. Este sério desafio à crença no Deus dos teístas tem sido muito discutido pelos
filósofos. E conhecido como o problema do mal. Numa próxima secção examinaremos, algo
detalhadamente, este problema e as várias tentativas de o resolver. Mas, para já, este problema deve
pelo menos fazer-nos ponderar se é verdadeira a ideia de o argumento do desígnio oferecer razões
conclusivas a favor da existência de um Deus sumamente bom.
Como podemos ver nesta discussão, o argumento do desígnio só pode oferecer-nos, na
melhor das hipóteses, uma conclusão muito limitada: a de que o mundo e tudo o que nele existe foi
concebido por algo ou alguém. Ir para além desta conclusão seria ultrapassar o que logicamente
pode concluir-se do argumento.
1.4.1 Autocontradição
O argumento da causa primeira começa por admitir que todas as coisas foram causadas por
qualquer outra coisa, mas depois acaba por contradizer esta ideia, afirmando que Deus foi a
primeira causa de todas. Defende simultaneamente que não pode haver uma causa não causada e
que há uma causa não causada: Deus.
Convida-nos a perguntar: «E o que causou Deus?»
Uma pessoa que se deixe convencer pelo argumento da causa primeira pode objectar que o
argumento não quer dizer que tudo tem uma causa, mas apenas que tudo, excepto Deus, tem uma
causa. Mas isto também não serve. Se a série de causas e efeitos vai parar em algum lugar, por que
razão tem de parar em Deus? Por que razão não pode parar antes, no aparecimento do próprio
universo?
O argumento da causa primeira pressupõe que os efeitos e as causas não poderiam retroceder
para sempre numa espécie de regressão infinita: uma série sem fim a retroceder no tempo. O
argumento pressupõe a existência de uma causa primeira que deu origem a todas as outras coisas.
Mas será que as coisas terão mesmo de ter sido assim?
Se usássemos um argumento análogo sobre o futuro, teríamos de supor que existiria um
efeito final, um efeito que não seria a causa de nada para além dele. Mas, apesar de ser de facto
difícil de imaginar, parece plausível pensar que as causas e efeitos se prolongam infinitamente no
futuro, tal como não existe um número que seja o maior de todos, uma vez que a qualquer número
que, por hipótese, seja o maior podemos sempre adicionar mais um. Se é realmente possível ter uma
série infinita, por que razão não podem os efeitos e as causas prolongar-se retrospectivamente no
passado, infinitamente?
Mesmo que se possa responder a ambas as críticas ao argumento, este não demonstra que a
causa primeira é o deus descrito pelos teístas. Tal como acontece com o argumento do desígnio, há
limites sérios ao que pode ser concluído a partir do argumento da primeira causa.
Em primeiro lugar, é verdade que a primeira causa foi, provavelmente, extremamente
poderosa, de forma a poder criar e pôr em movimento a série de causas e efeitos que tiveram como
resultado todo o universo tal como o conhecemos. Pode, por isso, haver alguma justificação para
defender que o argumento mostra que existe um deus muito poderoso, apesar de não ser, talvez,
todo-poderoso.
Mas o argumento não apresenta absolutamente nenhuma razão para aceitar que existe um
deus omnisciente nem sumamente bom. Uma primeira causa não
teria de ter nenhum destes atributos. E, tal como com o argumento do desígnio, um defensor do
argumento da causa primeira ficaria ainda com o problema de saber como poderia um deus todo-
poderoso, omnisciente e sumamente bom tolerar o mal existente no mundo.
Uma crítica comum ao argumento ontológico defende que ele permitiria que, através de
definições de todo o género de coisas, pudéssemos demonstrar a sua existência. Por exemplo,
podemos muito facilmente imaginar uma ilha perfeita, com uma praia perfeita, vida selvagem
perfeita, etc., mas é óbvio que daqui não se segue que essa ilha existe algures. Logo, porque o
argumento ontológico parece justificar uma conclusão tão absurda como esta, pode facilmente ver-
se que se trata de um mau argumento. Ou a estrutura do argumento não é sólida, ou, pelo menos, um
dos seus pressupostos tem de ser falso; de outra maneira, não poderia dar lugar a consequências tão
obviamente absurdas.
Um defensor do argumento ontológico pode responder a esta objecção dizendo que, apesar
de ser claramente absurdo pensar que podemos demonstrar a
existência de uma ilha através da sua definição, não é absurdo pensar que da definição de Deus se
segue que Deus existe necessariamente. Isto é assim porque as ilhas perfeitas, tal como carros
perfeitos, dias perfeitos, ou seja lá o que for, são apenas exemplos perfeitos de categorias
particulares de coisas. Mas Deus é um caso especial: Deus não é apenas um exemplo perfeito de
uma categoria, mas a mais perfeita de todas as coisas.
Contudo, mesmo que aceitemos este argumento implausível, há mais uma crítica ao
argumento ontológico que qualquer seu defensor terá de enfrentar. Esta crítica foi originalmente
feita por Immanuel Kant (1724-1804).
Um celibatário pode ser definido como um homem solteiro. Ser solteiro é a propriedade
essencial definidora de um celibatário. Ora, se eu dissesse «os celibatários existem», não estaria a
descrever mais uma propriedade dos celibatários. A existência não é o mesmo tipo de coisa que a
propriedade de ser solteiro: para que uma pessoa possa ser solteira tem primeiro de existir, apesar de
o conceito de celibatário ser o mesmo, quer existam celibatários quer não.
Se aplicarmos o mesmo raciocínio ao argumento ontológico, veremos que o erro que comete
é tratar a existência de Deus como se não passasse de outra propriedade, como a omnisciência ou a
omnipotência. Mas Deus não poderia ser omnisciente nem omnipotente sem existir; logo, mesmo
numa simples definição de Deus já estamos a pressupor que Deus existe. Acrescentar a existência
como mais uma propriedade essencial de um ser perfeito é cometer o erro de tratar a existência
como uma propriedade, em vez de a tratarcomo a condição de possibilidade para que qualquer coisa
possa realmente ter uma propriedade qualquer.
Mas que dizer, então, dos seres ficcionais, como os unicórnios? Claro que podemos falar
acerca das propriedades de um unicórnio, tal como ter um corno e quatro patas, sem que os
unicórnios tenham de existir realmente. A resposta é esta: uma frase como «Os unicórnios têm um
corno» quer realmente dizer que «Se os unicórnios existissem, teriam de ter um corno». Por outras
palavras, a frase «Os unicórnios têm um corno» é de facto
uma afirmação hipotética. Logo, a inexistência de unicórnios não é um problema para a perspectiva
que defende que a existência não é uma propriedade.
1.6.3 O mal
Mesmo que o argumento ontológico seja aceite, há ainda muitos sinais de que pelo menos
um aspecto da sua conclusão é falso. A presença do mal no mundo parece opor-se à ideia de que
Deus é sumamente bom.
Os argumentos a favor da existência de Deus que considerámos até agora foram todos
apresentados, por vezes, como demonstrações, argumentos que produziriam conhecimento da
existência de Deus.
Neste contexto, o conhecimento pode ser definido como uma espécie de crença justificada
verdadeira. Se pudéssemos saber que Deus existe, teria de ser verdade que Deus existe realmente.
Mas a nossa crença de que Deus existe teria também de ser justificada: teria de ser baseada no tipo
certo de dados. E possível ter crenças que são verdadeiras, mas injustificadas: por exemplo, posso
acreditar que é terça-feira porque vi o que estava escrito no que eu acredito ser o jornal de hoje.
Mas, na realidade, estava a ver um jornal velho que, por acaso, tinha sido publicado numa terça-
feira. Apesar de acreditar que é terça-feira (tal como de facto é), não adquiri esta crença de forma
fidedigna, uma vez que podia perfeitamente ter pegado num jornal velho que me convencesse que
hoje era quinta-feira. Por isso, eu não tinha realmente conhecimento, apesar de poder erradamente
ter pensado que tinha.
Todos os argumentos a favor da existência de Deus que examinámos até agora estão sujeitos
a várias objecções. Se estas objecções são sólidas ou não, compete ao leitor decidir. As objecções
devem, é claro, levantar dúvidas sobre a questão de saber se estes argumentos podem ou não ser
considerados demonstrações da existência de Deus. Mas poderemos nós saber — esse tipo de
crença justificada verdadeira — que Deus não existe? Por outras palavras, existirão argumentos que
possam conclusivamente demonstrar que o deus descrito pelos teístas não existe?
Há, de facto, pelo menos um argumento muito forte contra a existência de um deus
benevolente, um argumento que já usei como crítica ao argumento do desígnio, ao argumento da
primeira causa e ao argumento ontológico. Trata-se do chamado problema do mal.
Há mal no mundo: isto não pode ser seriamente negado. Basta pensar no Holocausto, nos
massacres de Pol Pot no Camboja ou na prática generalizada da tortura. Todos eles são exemplos de
mal moral e crueldade: seres humanos que provocam sofrimento a outros seres humanos por uma
razão qualquer. A crueldade tem também muitas vezes como objecto os animais. Há também outro
tipo de mal, conhecido como mal natural ou metafísico: terramotos, doença e fome são exemplos
deste tipo de mal.
O mal natural tem causas naturais, apesar de se poder tornar ainda pior em função da
incompetência humana ou falta de cuidado. A palavra «mal» talvez não seja a melhor para designar
estes fenómenos naturais, que dão origem ao sofrimento humano, uma vez que é habitualmente
usada para referir a crueldade deliberada. Contudo, quer lhe chamemos «mal natural», quer lhe
chamemos qualquer outra coisa, a existência de coisas como a doença e as calamidades naturais
tem, sem dúvida, de ser tomada em conta se queremos manter a crença num deus benevolente.
Visto existir tanto mal, como pode alguém acreditar seriamente na existência de um deus
sumamente bom? Um deus omnisciente saberia que o mal existe; um deus todo-poderoso poderia
evitar que o mal ocorresse; e um Deus sumamente bom não quereria que o mal existisse. Mas o mal
continua a existir. Este é o problema do mal: o problema de explicar como os alegados atributos de
Deus podem ser compatíveis com o facto inegável de o mal existir. Este é o mais sério desafio à
crença no deus dos teístas. O problema do mal levou muitas pessoas a rejeitar completamente a
crença em Deus, ou, pelo menos, a rever a sua opinião acerca da suposta benevolência,
omnipotência ou omnisciência de Deus.
Os teístas têm sugerido várias soluções para o problema do mal, três das quais serão aqui
consideradas.
1.9.1 Santidade
Algumas pessoas argumentaram que a presença de mal no mundo se justifica, apesar de não
ser claramente uma coisa boa, porque conduz a uma maior virtude moral. Sem a pobreza e a
doença, por exemplo, não seria possível a virtude moral que a Madre Teresa demonstrava ao ajudar
os necessitados. Sem guerra, tortura e crueldade, os santos e os heróis não poderiam existir. O mal
permite a existência do bem, supostamente maior, que este tipo de triunfo sobre o sofrimento
humano representa. Contudo, esta solução está sujeita a pelo menos duas objecções. Em primeiro
lugar, o grau e a dimensão do sofrimento são muito maiores do que seria necessário para permitir
que santos e heróis desempenhassem os seus actos de bem moral. É extremamente difícil justificar
com este argumento as mortes horríveis de vários milhões de pessoas nos campos de concentração
nazis. Além disso, grande parte deste sofrimento passa despercebido e não é registado, de forma que
não pode ser explicado desta maneira: em alguns casos, o indivíduo que sofre é a única pessoa
capaz de aperfeiçoamento moral em tal situação, mas é altamente improvável que este
aperfeiçoamento possa ocorrer em casos de dor extrema.
Em segundo lugar, não é óbvio que um mundo no qual exista muito mal seja preferível a um
mundo no qual existisse menos mal e, consequentemente, menos santos e heróis. De facto, há
qualquer coisa de ofensivo na tentativa de justificar a agonia de uma criança que morre de uma
doença incurável, por exemplo, argumentando que isto permite que os que a presenciam se tornem
melhores pessoas do ponto de vista moral. Iria realmente um deus sumamente bom usar tais
métodos para nos ajudar a aperfeiçoar-nos moralmente?
Algumas pessoas defenderam a existência de uma analogia entre o mundo e uma obra de
arte. A harmonia geral de uma peça de música inclui geralmente
dissonâncias que são subsequentemente convertidas num acorde; uma pintura tem, tipicamente,
grandes áreas de pigmento mais escuro e mais claro. De forma análoga, defende este argumento, o
mal contribui para a harmonia ou beleza geral do mundo. Esta perspectiva está também sujeita a
pelo menos duas objecções.
Em primeiro lugar, é pura e simplesmente difícil de aceitar. Por exemplo, é difícil de
perceber como se pode dizer que alguém a morrer em grande sofrimento na cerca de arame farpado
da terra-de-ninguém na Batalha de Somme esteve a contribuir para a harmonia geral do mundo. Se
a analogia com a obra de arte for realmente a explicação da razão pela qual Deus permite tanto mal,
isto é quase uma admissão de que o mal não pode ser satisfatoriamente explicado, uma vez que
coloca a compreensão do mal para além da compreensão meramente humana. A harmonia só pode
ser observada e
apreciada do ponto de vista de Deus. Se é isto que os teístas querem dizer quando afirmam que
Deus é sumamente bom, trata-se de um uso muito diferente da palavra «bom», relativamente ao uso
habitual.
Em segundo lugar, um deus que permite tal sofrimento por motivos meramente estéticos —
de forma a poder apreciá-lo da mesma maneira que se aprecia uma obra de a r t e — parece mais
um sádico do que o deus sumamente bom de que falam os teístas. Se o papel do sofrimento é este,
Deus está desconfortavelmente próximo do psicopata que põe uma bomba no meio da multidão de
forma a poder observar os belos padrões criados pela explosão e pelo sangue. Para muitas pessoas,
esta analogia entre uma obra de arte e o mundo teria mais sucesso como um argumento contra a
benevolência de Deus do que a seu favor.
De facto, se fôssemos programados desta forma, não poderíamos sequer dizer que as nossas acções
seriam moralmente boas, uma vez que o bem moral depende de poder escolher o que fazemos. Uma
vez mais, há várias objecções a esta proposta de solução.
1.11 CRÍTICAS À DEFESA DO LIVRE ARBÍTRIO
Há outras explicações, mais plausíveis, do mal natural, uma das quais afirma que a
regularidade das leis da natureza oferece, em geral, um maior benefício, que ultrapassa as
calamidades ocasionais a que dá origem.
Sem regularidade na natureza, o nosso mundo seria um mero caos e não teríamos forma de
prever os resultados de nenhuma das nossas acções. Se, por exemplo, as bolas de futebol só às vezes
deixassem os nossos pés quando as chutamos, limitando-se outras vezes a ficar coladas aos pés,
teríamos muita dificuldade em prever o que iria acontecer numa qualquer ocasião específica em que
fôssemos chutar uma bola. A falta de regularidade noutros aspectos do mundo poderia fazer que a
própria vida fosse impossível. A ciência, tal como a vida quotidiana, apoia-se na existência de
muitas regularidades na natureza, na qual causas análogas têm a tendência para produzir efeitos
análogos.
Argumenta-se por vezes que, porque esta regularidade é habitualmente benéfica para nós, o
mal natural se justifica, uma vez que é um efeito colateral da operação regular e contínua das leis da
natureza. Os efeitos benéficos gerais desta regularidade ultrapassariam os prejudiciais. Mas este
argumento é vulnerável de duas maneiras, pelo menos.
Primeiro, não explica por que razão não poderia um Deus omnipotente ter criado leis da
natureza que nunca pudessem de facto conduzir ao mal natural. Uma resposta possível a isto é
afirmar que mesmo Deus está submetido às leis da natureza; mas isto sugere que Deus não é
realmente omnipotente.
Segundo, continua a não explicar por que razão Deus não intervém para executar milagres
mais vezes. Se argumentarmos que Deus nunca intervém, eliminamos um aspecto central da crença
em Deus da maioria dos teístas.
Antes de mais, Hume analisou os indícios que temos para sustentar que qualquer lei
específica da natureza é verdadeira. Para que algo seja aceite como uma lei da natureza — por
exemplo, que ninguém pode ressuscitar — tem de existir o máximo possível de indícios que a
confirmem.
Uma pessoa sensata baseia sempre aquilo em que acredita nos indícios disponíveis. Mas no
caso dos relatos de milagres haverá sempre mais indícios que sugerem que o milagre não ocorreu do
que o contrário.
Isto é apenas uma consequência do facto de os milagres envolverem a violação de leis da natureza
bem estabelecidas. Assim, com este argumento, uma pessoa sensata deverá encarar sempre com
extrema relutância uma crença num relato que afirma a ocorrência de um milagre. E sempre
logicamente possível que alguém possa ressuscitar, mas há muitíssimos indícios que sustentam a
ideia de que isso nunca aconteceu. Logo, apesar de não podermos afastar absolutamente a
possibilidade de a ressurreição ter ocorrido, devemos, defende Hume, encarar com extrema
relutância a crença de que ocorreu realmente.
Hume apresentou vários argumentos para tornar a sua conclusão mais convincente.
Os milagres têm sido defendidos por todas as grandes religiões. Os indícios invocados por
cada uma dessas religiões para defender que os milagres aconteceram de facto têm força análoga e
são do mesmo tipo. Em consequência, o argumento dos milagres, se fosse de confiança,
demonstraria a existência dos diferentes deuses que cada religião defende. Mas é claro que todos
estes diferentes deuses não podem existir simultaneamente: não pode ser verdade que exista
simultaneamente o deus cristão uno e os vários deuses hindus.
Logo, os milagres defendidos pelas diferentes religiões neutralizam-se mutuamente enquanto
demonstrações da existência de um deus ou deuses particulares.
A combinação destes factores deve fazer que as pessoas racionais tenham relutância em
acreditar nos relatos de milagres. A adequação de uma explicação natural, ainda que em si seja
improvável, é sempre mais plausível do que uma explicação milagrosa. Está claro que um relato de
um milagre nunca pode ser equivalente a uma demonstração da existência de Deus.
Estes argumentos não se restringem aos relatos alheios de milagres. A maior parte destes
argumentos aplica-se igualmente se nós mesmos estivermos perante a extraordinária situação de
pensar que testemunhámos um milagre. Todos nós já sonhámos, já recordámos mal certas coisas ou
já pensámos ter visto coisas que, na realidade, não estavam realmente lá. Em todos os casos em que
pensamos termos testemunhado um milagre é muito mais provável que os nossos sentidos nos
tenham enganado do que um milagre tenha realmente ocorrido. Ou podemos ter apenas assistido a
algo extraordinário e, por causa dos factores psicológicos mencionados acima, pensámos tratar-se
de um milagre.
Claro que qualquer pessoa que pensasse ter testemunhado um milagre levaria esta
experiência muito a sério, e com razão. Mas, por ser tão fácil estar enganado acerca destas coisas,
essa experiência nunca deve contar como uma demonstração conclusiva da existência de Deus.
Todos os argumentos a favor e contra a existência de Deus que examinámos até agora
pretendem demonstrar que Deus existe ou que Deus não existe. Todos eles pretendem dar-nos
conhecimento da sua existência ou não existência. O argumento do apostador, derivado da obra do
filósofo e matemático Blaise Pascal (1623-1662), habitualmente conhecido como aposta de Pascal,
é muito diferente dos outros. O seu objectivo não é proporcionar uma
demonstração, mas antes mostrar que um apostador sensato deveria «apostar» na existência de
Deus.
O argumento parte da posição de um agnóstico, isto é, alguém que acredita que não existem
dados suficientes para decidir se Deus existe ou não. Um agnóstico acredita que é genuinamente
possível que Deus exista, mas que não há dados suficientes para decidir a questão com toda a
certeza. Um ateu, pelo contrário, acredita geralmente que existem dados conclusivos a favor da
inexistência de Deus.
O argumento do jogador é o seguinte. Uma vez que não sabemos se Deus existe ou não,
estamos numa posição muito semelhante à de um apostador antes de uma corrida de cavalos se ter
realizado ou antes de uma carta ter sido voltada. Precisamos por isso de calcular as hipóteses que
temos. Mas ao agnóstico pode parecer que tanto a existência como a inexistência de Deus são
igualmente prováveis. A atitude do agnóstico consiste em ficar indeciso, sem tomar nenhuma
decisão em nenhuma das direcções. O argumento do apostador, contudo, afirma que a coisa mais
racional a fazer é procurar que a hipótese de ganhar seja tão grande quanto possível, ao mesmo
tempo que a possibilidade de perder seja tão pequena quanto possível: por outras
palavras, devemos maximizar os ganhos possíveis e minimizar as perdas possíveis. De acordo com
o argumento do apostador, a melhor forma de alcançar este objectivo é acreditar em Deus.
Há quatro resultados possíveis. Se apostarmos na existência de Deus e ganharmos (i. e., se
Deus existir), ganhamos a vida eterna — um excelente prémio. O que perdemos se apostarmos
nesta opção e verificarmos que Deus não existe não é muito, se compararmos com a possibilidade
da vida eterna: podemos perder alguns prazeres mundanos, perder muitas horas a rezar e viver as
nossas vidas debaixo de uma ilusão. Contudo, se escolhermos apostar na opção da inexistência de
Deus e ganharmos (i. e., se Deus não existir), viveremos uma vida sem ilusão (pelo menos neste
aspecto) e teremos a liberdade de gozar os prazeres desta vida sem medo do castigo divino. Mas, se
apostarmos nesta opção e perdermos (i. e., se Deus existir), perdemos pelo menos a possibilidade da
vida eterna e podemos mesmo correr o risco da condenação eterna.
Pascal defendeu que, enquanto apostadores perante estas opções, o curso de acção mais
racional será acreditar que Deus existe. Assim, se tivermos razão, estaremos em posição de obter a
vida eterna. Se apostarmos na existência de Deus e não tivermos razão, não estaremos em posição
de perder tanto quanto estaríamos se escolhêssemos acreditar na inexistência de Deus e não
tivéssemos razão. Logo, se queremos maximizar os nossos ganhos possíveis e minimizar as nossas
perdas possíveis, devemos acreditar na existência de Deus.
Mesmo que aceitemos o argumento do apostador, ficamos ainda com o problema de não nos
ser possível acreditar em seja o que for que queiramos. Não podemos, pura e simplesmente, decidir
acreditar em algo. Não posso decidir acreditar amanhã que os porcos voam, que Londres é a capital
do Egipto, ou que existe um deus todo-poderoso, omnisciente e sumamente bom. Preciso de estar
convencido de que estas coisas são de facto assim antes de poder acreditar nelas. Mas o argumento
do apostador não oferece quaisquer dados para me convencer que Deus existe: diz-me apenas que,
como apostador, será uma boa ideia passar a acreditar que isso é verdade. Mas agora sou obrigado a
enfrentar o problema seguinte: para poder acreditar em algo, tenho de acreditar que isso é verdade.
Pascal tinha uma solução para o problema de como fazer para acreditar que Deus existe
quando isso vai contra os nossos sentimentos: sugeriu que a forma de o fazer era agir como se já
acreditássemos que Deus existe — frequentar a igreja, pronunciar as palavras das orações
apropriadas, etc. Pascal argumentou que, se dermos sinais exteriores de crer em Deus, acabaremos
muito rapidamente por desenvolver a crença propriamente dita. Por outras palavras, há formas
indirectas através das quais podemos gerar crenças deliberadamente.
1.14.2 Argumento inapropriado
Apostar na existência de Deus por ganharmos com isso a hipótese da vida eterna, fingindo
seguidamente crer realmente na sua existência por causa do prémio que ganharemos se tivermos
razão, parece uma atitude inapropriada para tomarmos em relação à existência de Deus. O filósofo e
psicólogo William James (1842-1910) foi ao ponto de afirmar que, se estivesse na posição de Deus,
teria grande prazer em impedir a entrada no Céu às pessoas que acreditassem nele com base neste
processo. O processo parece, todo ele, ser insincero e inteiramente motivado pelo interesse-próprio.
A principal crítica ao não realismo acerca de Deus defende tratar-se esta posição de uma
forma de ateísmo mal disfarçado. Dizer que Deus é apenas a soma dos valores humanos é a mesma
coisa que dizer que o Deus tal como é tradicionalmente concebido não existe; a linguagem religiosa
proporciona apenas uma forma útil de falar de valores num mundo sem Deus. Isto pode parecer
hipócrita, uma vez que os não realistas rejeitam a ideia de que Deus tenha uma existência objectiva,
ao mesmo tempo que, no entanto, querem apegar-se à linguagem e ao ritual religiosos. Parece mais
honesto ser consistente com as consequências de acreditar que Deus não existe de facto e tornar-se
ateu.
Uma segunda crítica à abordagem não realista à questão da existência de Deus defende que
esta tem implicações muito sérias para a doutrina religiosa. Por exemplo, a maior parte do teístas
acredita na existência do Céu; mas, se Deus não existe realmente, é de presumir que o Céu também
não (nem o Inferno, a propósito). Analogamente, se Deus não existe em sentido realista, é difícil ver
como se pode oferecer uma explicação plausível dos milagres. No entanto, a crença na possibilidade
dos milagres é central para muitos teístas. Adoptar uma posição não realista quanto à questão da
existência de Deus implicaria uma revisão radical de muitas crenças religiosas básicas. Esta
consequência não enfraquece, necessariamente e por si mesma, a abordagem não realista: se alguém
estiver preparado para aceitar essas revisões radicais, pode fazê-lo de forma consistente. O que está
em jogo é o facto de a perspectiva não realista implicar uma revisão substancial da doutrina
religiosa básica, revisão que muitas pessoas não estariam preparadas para fazer.
1.17 FÉ
Todos os argumentos a favor da existência de Deus que examinámos até agora estão sujeitos
a críticas. Estas críticas não são necessariamente conclusivas. O leitor pode ser capaz de encontrar
respostas às críticas apresentadas. Mas, se o leitor não encontrar respostas às críticas, quererá isso
dizer que deverá rejeitar completamente a crença em Deus? Os ateus diriam que sim. Os agnósticos
produziriam o veredicto «por demonstrar». Os crentes, contudo, poderiam argumentar que a
abordagem filosófica, que pondera vários argumentos, é inapropriada. A crença em Deus, poderiam
eles dizer, não é uma questão apropriada para a especulação intelectual abstracta, mas antes para o
comprometimento pessoal. E uma questão de fé, e não de uso inteligente da razão.
A fé implica a confiança. Se estou a escalar uma montanha e confio no cabo de segurança,
isto significa que confio que o cabo irá aguentar o meu peso se eu escorregar e cair, apesar de não
poder ter a certeza absoluta de que o cabo irá de facto aguentar comigo antes de o experimentar.
Para algumas pessoas, a fé em Deus é como a confiança no cabo: não há nenhuma demonstração
reconhecida de que Deus existe e se interessa por todas as pessoas, mas o crente tem confiança na
ideia de que Deus existe de facto e vive a sua vida em harmonia com essa confiança.
A atitude de fé religiosa é apelativa para muitas pessoas e faz que o tipo de argumentos que
considerámos até agora seja irrelevante. No entanto, nos casos mais extremos, a fé religiosa pode
fazer que as pessoas sejam completamente cegas aos dados contra as suas ideias: pode parecer-se
mais com teimosia do que com uma atitude racional.
Quais são os perigos de adoptar uma atitude destas em relação à existência de Deus, se
tivermos tendência para isso?
1.17.1 Os perigos da fé
A fé, tal como a descrevi, baseia-se em dados insuficientes. Se existissem dados suficientes
para declarar que Deus existe, existiria menos necessidade de fé: saberíamos nesse caso que Deus
existe. Porque há dados insuficientes para poder ter a certeza de que Deus existe, há sempre a
possibilidade de os crentes estarem errados na sua fé. E, tal como acontece com a crença na
ocorrência de milagres, há vários factores psicológicos que podem conduzir as pessoas a acreditar
em Deus.
Por exemplo, a segurança que advém de acreditar que um ser todo-poderoso toma conta de
nós é irrecusavelmente apelativa. A crença na vida depois da morte é um bom antídoto para o medo
da morte. Estes factores podem ser incentivos para que algumas pessoas se entreguem à fé em Deus.
E claro que isto não faz, necessariamente, que a sua fé seja deslocada; mostra apenas que as causas
da sua fé podem ser uma combinação de insegurança e raciocínio caprichoso.
Além disso, como Hume defendeu, os sentimentos de assombro e deslumbramento,
associados à crença em ocorrências paranormais, dão muito prazer aos seres humanos. No caso da
fé em Deus é importante distinguir a fé genuína do prazer derivado do facto de alimentar a crença
na existência de Deus.
Estes factores psicológicos devem fazer-nos ter cuidado antes de nos entregarmos à fé em
Deus: é muito fácil, para cada um de nós, estar enganado quanto às suas próprias motivações nesta
área. No fim de contas, cada crente deve ajuizar se a sua fé é ou não genuína e apropriada.
1.17.2 Conclusão
Neste capítulo, considerámos a maior parte dos argumentos a favor e contra a existência de
Deus. Vimos que os teístas têm de enfrentar sérias críticas se quiserem manter a crença num Deus
omnipotente,omnisciente e sumamente benevolente. Uma forma de responder a muitas destas
críticas seria rever as qualidades habitualmente atribuídas a Deus: talvez Deus não seja inteiramente
benevolente, ou talvez existam limites ao seu poder ou ao seu conhecimento. Fazer isto seria rejeitar
a noção tradicional de Deus. Mas, para muitas pessoas, isto seria uma solução mais aceitável do que
rejeitar completamente a crença em Deus.
O que faz que uma acção seja boa ou má? Q u e queremos dizer quando afirmamos que
alguém devia ou não fazer qualquer coisa? Como devemos viver? C o m o devemos tratar as outras
pessoas? Estas são questões fundamentais que os filósofos têm discutido desde há milhares de anos.
Se não pudermos dizer por que razão coisas como a tortura, o assassínio, a crueldade, a escravatura,
a violação e o roubo são eticamente erradas, que justificação podemos ter para as impedir? É a
moral unicamente uma questão de preconceito, ou poderemos dar boas razões a favor das nossas
crenças morais? A área da filosofia que trata destas questões é usualmente conhecida quer como
ética quer como filosofia moral — usarei ambos os termos indiferentemente.
Sou céptico quanto à capacidade da filosofia para mudar os preconceitos fundamentais das
pessoas acerca do bem e do mal. Como Friedrich Nietzsche (18441900) fez notar em Para além do
Bem e do Mal, a maior parte dos filósofos morais acaba por justificar «um desejo íntimo, filtrado e
tornado abstracto». Por outras palavras, estes filósofos oferecem análises complicadas que parecem
envolver um pensamento lógico e impessoal, mas que acaba sempre por demonstrar a correcção dos
seus preconceitos prévios. No entanto, a filosofia moral pode oferecer perspectivas esclarecedoras
ao lidar com questões morais genuínas: pode clarificar as implicações de certas crenças muito gerais
acerca da moral e mostrar como estas crenças podem ser consistentemente postas em prática. Nestas
páginas irei examinar três tipos de teorias morais: as baseadas no dever, as consequencialistas e as
baseadas na virtude. Estas teorias são enquadramentos rivais muito gerais para a compreensão das
questões morais. Em primeiro lugar esboçarei as características principais destes três tipos de teoria
e mostrarei como poderão ser aplicados a um caso real. Prosseguirei seguidamente em direcção às
questões filosóficas mais abstractas acerca do significado da linguagem moral, uma área conhecida
por metaética.
As teorias éticas baseadas no dever sublinham que cada um de nós tem certos deveres —
acções que devemos executar ou não — e que agir moralmente é equivalente a cumprir o nosso
dever, sejam quais forem as consequências que daqui se seguirem. É esta ideia — a de que algumas
acções são absolutamente boas ou más independentemente dos resultados a que derem orig e m —
que distingue as teorias éticas baseadas nos deveres (também conhecidas por deontológicas) das
teorias éticas consequencialistas. Nestas páginas examinaremos duas teorias baseadas no dever: a
ética cristã e a ética kantiana.
O ensino moral cristão tem dominado a compreensão ocidental da moral: toda a nossa
concepção da moral tem sido moldada pela doutrina religiosa e até as teorias éticas ateias lhe são
imensamente devedoras. Os Dez Mandamentos apresentam uma lista de vários deveres e
actividades proibidas. Estes deveres devem ser cumpridos independentemente das suas
consequências: são deveres absolutos. Alguém que acredita que a Bíblia é a palavra de Deus não
terá dúvidas acerca do significado de «moralmente certo» e «moralmente errado»: «moralmente
certo» quer dizer o que estiver de acordo com a vontade de Deus e «moralmente errado» tudo o que
for contrário à vontade de Deus. Para um tal crente, a moral é uma questão de seguir mandamentos
absolutos dados por uma autoridade externa — Deus. Logo, por exemplo, matar é sempre
moralmente errado porque está explicitamente referido na lista dos Dez Mandamentos. Isto é assim
mesmo quando matar um certo indivíduo — Hitler, por exemplo — pode salvar a vida de outras
pessoas. Isto é uma simplificação: na verdade, os teólogos discutem acerca da existência de
circunstâncias excepcionais nas quais matar poderá ser moralmente permissível, como, por
exemplo, numa guerra justa.
Na prática, a moral cristã é muito mais complicada do que obedecer apenas aos Dez
Mandamentos: inclui a aplicação dos ensinamentos de Cristo e, especificamente, do mandamento
do Novo Testamento: «Ama o teu próximo». A essência desta moral é, contudo, um sistema de
obrigações e proibições. O mesmo se passa com a maior parte das outras teorias morais baseadas
numa religião. Muitas pessoas pensam que, se Deus não existir, a moral é algo que não poderá
existir: como Dostoievsky, o romancista russo, formulou a questão, «se Deus não existir, tudo será
permitido». No entanto, há pelo menos três objecções principais a qualquer teoria ética baseada
unicamente na vontade de Deus.
Considere a primeira opção. Se Deus aprovou os mandamentos porque são bons, a moral é,
num certo sentido, independente de Deus. Deus limita-se a responder a valores morais já existentes
no universo: descobre-os, em vez de os criar. Nesta perspectiva, seria possível descrever
completamente a moral sem qualquer menção a Deus, apesar de se poder pensar que Deus nos
proporciona uma informação mais fidedigna acerca da moral do que seria possível recolher
directamente do mundo com os nossos limitados intelectos. No entanto, nesta perspectiva, Deus
não é a fonte da moral.
Contudo, uma objecção muito mais séria a esta perspectiva da ética é o facto de pressupor
que Deus realmente existe e é benevolente. Se Deus não fosse benevolente, por que razão seriam as
acções conforme à sua vontade consideradas moralmente boas? Como vimos no capítulo 1, nem a
existência de Deus nem a sua benevolência podem ser dadas como garantidas.
Nem todas as teorias morais baseadas nos deveres se apoiam na existência de Deus. A mais
importante teoria moral baseada no dever, a de Kant, apesar de fortemente influenciada pela
tradição cristã protestante e do facto de o próprio Kant ter sido um cristão devoto, descreve a moral
de uma forma que, nos seus contornos mais gerais, muitos ateus acham apelativa.
2.4.1 Motivação
Immanuel Kant estava interessado na questão de saber o que é uma acção moral. A resposta
que deu tem sido muito importante para a filosofia. Nesta secção, esboçarei as suas características
principais.
Para Kant era óbvio que uma acção moral teria de ser executada por sentido do dever, e não
apenas como resultado de uma inclinação, de um sentimento ou da possibilidade de qualquer tipo de
benefício para o seu autor. Assim, por exemplo, se eu doar dinheiro para acções de caridade por ter
profundos sentimentos de compaixão pelos mais necessitados, a minha acção não será
necessariamente moral, segundo Kant: se eu agir apenas em função dos meus sentimentos de
compaixão, e não em função de um sentido do dever, não terei agido moralmente. Se eu doar
dinheiro para acções de caridade por pensar que isso irá aumentar a minha popularidade entre os
meus amigos, não estarei, uma vez mais, a agir moralmente, mas em função do benefício em termos
de estatuto social. Assim, para Kant, a motivação de uma acção era muito mais importante do
que a própria acção e as suas consequências. Ele pensava que, para saber se alguém está a agir
moralmente ou não, temos de saber a intenção dessa pessoa. Não é suficiente saber apenas se o
Bom Samaritano ajudou o homem que precisava de assistência. O Samaritano poderia ter agido em
função do seu interesse-próprio, com a expectativa de receber uma recompensa pelo seu incómodo.
Ou então poderá tê-lo feito só porque sentiu uma ponta de compaixão: neste caso, a sua acção teria
uma motivação emocional, e não uma motivação baseada num sentido do dever.
A maior parte dos filósofos morais concordaria com a ideia de Kant de que o interesse-
próprio não é uma motivação própria para a acção moral. Mas muitos discordariam da sua ideia de
o facto de alguém sentir ou não uma emoção como a compaixão ser irrelevante para a nossa
avaliação das suas acções. Contudo, para Kant, a única motivação aceitável para a acção moral era
o sentido do dever.
Uma razão pela qual Kant se concentrou tanto nas motivações das acções, em vez de nas
suas consequências, foi o facto de acreditar que todas as pessoas podiam ser morais. Uma vez que
só é razoável ser moralmente responsável por coisas sobre as quais se exerce algum controlo — ou,
na formulação de Kant, uma vez que «o dever implica o poder» — e porque as consequências das
acções estão muitas vezes fora do nosso controlo, estas consequências não podem ser cruciais para a
moral. Por exemplo, se, ao agir em função do meu sentido do dever, eu tentar salvar uma criança
que está a afogar-se, mas acabar por, acidentalmente, a afogar, pode ainda considerar-se que agi
moralmente, uma vez que os meus motivos eram do tipo apropriado: as consequências da minha
acção teriam sido, neste caso, trágicas, mas irrelevantes no que respeita ao valor moral do que fiz.
Analogamente, como não temos necessariamente um controlo completo sobre as nossas
reacções emocionais, estas também não podem ser essenciais para a moral. Se queremos uma moral
acessível a todos os seres humanos conscientes, então, pensava Kant, a moral terá de apoiar-se na
vontade e, sobretudo, no nosso sentido do dever.
2.4.2 Máximas
Kant descreveu a intenção que subjaz a qualquer acto humano como a máxima. A máxima é
o princípio geral subjacente à acção. Por exemplo, o Bom Samaritano poderia ter agido segundo a
máxima «Ajuda sempre os que precisam se esperas ser recompensado pelo teu incómodo», ou então
segundo a máxima «Ajuda sempre os que precisam quando tens um sentimento de compaixão».
Contudo, se o Bom Samaritano agisse moralmente, tê-lo-ia feito provavelmente segundo a máxima
«Ajuda sempre os que precisam porque é esse o teu dever».
Kant acreditava que, como seres humanos racionais, temos certos deveres. Estes deveres são
categóricos: por outras palavras, são absolutos e incondicionais — deveres como «Deves sempre
dizer a verdade» ou «Nunca deves matar ninguém». Estes deveres são válidos sejam quais forem as
consequências que possam advir de se lhes obedecer. Kant pensava que a moral era um sistema de
imperativos categóricos: mandamentos para agir de determinadas maneiras. Este é um dos aspectos
mais distintivos da sua ética. Ele contrastou os deveres categóricos com os hipotéticos. Um dever
hipotético é um dever como «Se queres ser respeitado, deves dizer a verdade», ou «Se não queres ir
para a prisão, não deves matar ninguém». Os deveres hipotéticos dizem-nos o que devemos ou não
fazer se quisermos alcançar ou evitar um dado objectivo. Kant pensava que só existia um
imperativo categórico básico: «Age apenas segundo as máximas que possas ao mesmo tempo
querer como leis universais.» Por outras palavras, age apenas segundo uma máxima que quererias
aplicar a toda a gente. Este princípio é conhecido como princípio da universalizabilidade.
Apesar de Kant ter dado várias versões diferentes do imperativo categórico, esta formulação
é a mais importante e tem sido extraordinariamente influente. Iremos examiná-la mais
detalhadamente.
2.4.4 Universalizabilidade
Kant pensava que, para que uma acção fosse moral, a máxima subjacente teria de ser
universalizável. Teria de ser uma máxima que se aplicaria a todas as outras pessoas em
circunstâncias análogas. Não devemos erigir-nos numa excepção, mas antes ser imparciais. Assim,
por exemplo, se o leitor roubar um livro, agindo segundo a máxima «Rouba sempre que fores
demasiado pobre para comprar o que queres», e para que este seja um acto moral, esta máxima teria
de aplicar-se a qualquer outra pessoa que estivesse na sua situação. Claro que isto não
significa que qualquer máxima que possa ser universalizável seja, por essa razão, uma máxima
moral. É óbvio que muitas máximas triviais, tais como «Deita sempre a língua de fora a pessoas
mais altas do que tu», podem facilmente ser universalizáveis, apesar de terem pouco ou nada a ver
com a moral. Outras máximas universalizáveis, como a máxima sobre o roubo que usei no
parágrafo anterior, podem, mesmo assim, ser consideradas imorais.
Por outro lado, podemos facilmente universalizar a máxima «Nunca tortures bebés». E
certamente possível e desejável que todos obedeçam a esta ordem, apesar de poderem não o fazer.
Aqueles que não lhe obedecerem e torturarem bebés estarão a agir imoralmente. Com máximas
como esta, a noção de universalizabilidade de Kant dá claramente uma resposta consonante com as
intuições incontestadas da maior parte das pessoas acerca da rectidão.
Outra das versões de Kant do imperativo categórico era «Trata as outras pessoas como fins
em si, nunca como meios». Esta é outra forma de dizer que não devemos usar as outras pessoas e
que devemos, ao invés, reconhecer a sua humanidade: o facto de serem pessoas com arbítrio e
desejos próprios. Se alguém for simpático consigo só porque sabe que o leitor pode dar-lhe um
emprego, estará a tratá-lo como um meio de obter esse emprego, e não como uma pessoa, um fim
em si. E claro que, se alguém for simpático consigo porque acontece gostar de si, isso nada terá a
ver com a moral.
2.5.1 É vazia
A teoria ética de Kant, e sobretudo a sua noção de universalizabilidade dos juízos morais, é
por vezes criticada por ser vazia. Isto significa que a sua teoria só nos oferece um enquadramento
que revela a estrutura dos juízos morais sem ajudar em nada os que estão perante tomadas de
decisão morais efectivas. Dá pouca ajuda às pessoas que tentam decidir o que devem fazer.
Esta crítica negligencia a versão do imperativo categórico que nos ensina a tratar as pessoas
como fins, e nunca como meios. Nesta última formulação, Kant dá, sem dúvida, algum conteúdo à
sua teoria moral. Mas, mesmo combinando a tese da universalizabilidade com a formulação dos
meios e dos fins, a teoria de Kant não oferece soluções satisfatórias para muitas questões morais.
Por exemplo, a teoria de Kant não consegue dar facilmente conta dos conflitos entre
deveres. Se, por exemplo, eu tenho o dever de dizer sempre a verdade e também o de proteger os
meus amigos, a teoria de Kant não me poderá mostrar o que deverei fazer quando estes deveres
entram em conflito. Se um louco com um machado me perguntasse onde está o meu amigo, a minha
primeira reacção seria mentir-lhe. Dizer a verdade seria fugir ao meu dever de proteger o meu
amigo. Mas, por outro lado, segundo Kant, dizer uma mentira, mesmo numa situação-limite como
esta, seria uma acção imoral: tenho o dever absoluto de nunca mentir.
2.5.2 Actos imorais universalizáveis
Outro ponto fraco, relacionado com o anterior, que algumas pessoas detectam na teoria de
Kant é o facto de, aparentemente, permitir algumas acções obviamente imorais. Por exemplo,
aparentemente, uma máxima como «Mata qualquer pessoa que te estorve» poderia ser
consistentemente universalizada. E, no entanto, esta máxima é claramente imoral. Mas este
tipo de crítica não consegue ser uma crítica a Kant: ignora a versão do imperativo categórico em
termos de meios e fins, uma vez que a contradiz claramente. Matar alguém que nos estorva
dificilmente é tratar essa pessoa como um fim em si: não mostra consideração pelos seus interesses.
Apesar de grande parte da teoria de Kant ser plausível — especialmente a ideia de respeitar
os interesses das outras pessoas — , tem alguns aspectos implausíveis. E m primeiro lugar, parece
justificar algumas acções absurdas, tal como dizer a um louco com um machado onde o nosso
amigo se encontra, em vez de o afastar, mentindo-lhe.
Em segundo lugar, o papel que a teoria dá a emoções tais como a compaixão, a simpatia e a
piedade parece inadequado. Kant afasta tais emoções c o m o irrelevantes para a moral: a única
motivação apropriada para a acção moral é o sentido do dever. Sentir compaixão pelos mais
necessitados — apesar de, de certos pontos de vista, poder ser digno de louvor — não tem, para
Kant, nada a ver com a moral. Pelo contrário, muitas pessoas pensam que há emoções distintamente
morais — tais como a compaixão, a simpatia e o remorso — e separá-las da moral, como Kant
tentou fazer, será ignorar um aspecto central do comportamento moral.
E m terceiro lugar, a teoria não dá atenção às consequências da acção. Isto significa que
idiotas bem intencionados que, involuntariamente, causem várias mortes em consequência da sua
incompetência, podem ser moralmente inocentes à luz da teoria de Kant, uma vez que seriam
primariamente julgados pelas suas intenções. Mas, em alguns casos, as consequências das acções
parecem relevantes para uma apreciação do seu valor moral: pense como se sentiria em relação a
uma babysitter que tentasse secar o seu gato no microondas. Contudo, para ser justo com Kant a
este respeito, é verdade que ele considera condenáveis alguns tipos de incompetência.
Os que acham convincente este último tipo de críticas às teorias deontológicas verão muito
provavelmente o que há de apelativo no tipo de teoria ética conhecido como consequencialismo.
2.6 CONSEQUENCIALISMO
O termo «consequencialismo» é usado para descrever teorias éticas que ajuízam da rectidão ou não
de uma acção, não através das intenções do autor da acção, mas antes das consequências da acção.
Enquanto Kant afirmaria que dizer uma mentira será sempre errado, sejam quais forem os possíveis
benefícios que daí possam resultar, um consequencialista julgaria o acto de mentir através dos seus
resultados efectivos ou previstos.
2.7 UTILITARISMO
O utilitarismo é o tipo mais bem conhecido de teoria ética consequencialista. O seu mais famoso
defensor foi John Stuart Mill (1806-1873). O utilitarismo baseia-se no pressuposto de que o
objectivo último de toda a actividade humana é (num certo sentido) a felicidade. Esta perspectiva é
conhecida como hedonismo.
Um utilitarista define o «bem» como «seja o que for que trouxer a maior felicidade global».
Isto é, por vezes, conhecido como o princípio da maior felicidade ou princípio da utilidade. Para um
utilitarista, a boa acção pode ser calculada, em quaisquer circunstâncias, examinando as
consequências prováveis dos vários cursos possíveis de acção. A boa acção é a que tiver mais
probabilidades de trazer a maior felicidade nas circunstâncias em causa (ou, pelo menos, mais
felicidade do que infelicidade), seja ela qual for.
Jeremy Bentham (1748-1832), um dos primeiros utilitaristas, pensava que, em princípio, tais
comparações poderiam ser feitas. Para ele, a origem da felicidade era irrelevante. A felicidade era
apenas um estado de espírito bem-aventurado: prazer e ausência de dor. Apesar de ocorrer com
diferentes intensidades, era sempre do mesmo tipo e, portanto, devia ter peso nos cálculos
utilitaristas, independentemente da forma como era obtido. No que chamou o seu «cálculo da
felicidade» estabeleceu directrizes para fazer comparações entre prazeres, tendo em conta
características como a sua intensidade, duração, tendência para dar origem a novos prazeres e assim
por diante.
Contudo, John Stuart Mill achou que a abordagem de Bentham era grosseira: em seu lugar
sugeriu uma distinção entre os chamados prazeres elevados e prazeres baixos. Mill argumentou que
qualquer pessoa que tenha conhecido os prazeres elevados (que eram, na sua perspectiva, sobretudo
intelectuais), iria automaticamente preferi-los aos chamados prazeres baixos (que eram sobretudo
físicos). No esquema de Mill, os prazeres elevados contavam muito mais no cálculo da felicidade
do que os baixos: por outras palavras, ele avaliava os prazeres de acordo não só com a sua
qualidade, como também com a sua quantidade. Mill argumentou que seria certamente preferível
ser um Sócrates triste, mas sábio, a um ignorante feliz, mas tolo, uma vez que os prazeres de
Sócrates seriam de um género mais elevado do que os do tolo.
Mas isto soa a elitismo. E uma justificação intelectual para as suas próprias preferências
particulares e os interesses e valores da sua classe social. O facto é que continua a ser extremamente
difícil calcular quantidades relativas de felicidade. E, na verdade, este problema não estaria
completamente resolvido mesmo que aceitássemos a divisão de Mill entre os prazeres elevados e os
baixos.
Uma dificuldade de cálculo mais básica ocorre quanto à decisão do que irá contar como os
efeitos de uma acção particular. Se alguém bate numa criança porque ela se portou mal, a questão
de saber se esta foi uma acção moral ou não depende inteiramente das consequências da acção. Mas
devemos nós contar unicamente os efeitos imediatos de bater na criança, ou ter em conta os efeitos
a longo prazo? Se optarmos por esta última alternativa, podemos acabar por tentar contrabalançar
coisas como o desenvolvimento emocional da criança (e até mesmo, talvez, os efeitos sobre os seus
futuros filhos) com a felicidade resultante para a criança de se evitarem situações potencialmente
perigosas em resultado do castigo. Os efeitos de qualquer acção podem prolongar-se
extraordinariamente no futuro e só raramente há uma fronteira óbvia.
Outra objecção ao utilitarismo defende que este pode justificar muitas acções que
habitualmente são consideradas imorais. Por exemplo, se pudesse mostrar-se que enforcar
publicamente um inocente teria o efeito benéfico directo de reduzir os crimes violentos, por actuar
como um factor de dissuasão, causando assim, no cômputo geral, mais prazer do que dor, um
utilitarista seria obrigado a dizer que enforcar o inocente era a coisa moralmente correcta a fazer.
Mas tal conclusão repugna ao nosso sentido de justiça. Claro que um sentimento de repugnância em
relação a algumas das suas conclusões não demonstra que existe algo de errado com a teoria
utilitarista. E de supor que um utilitarista inflexível aceitaria a conclusão facilmente e sem se
queixar. Contudo, estas consequências desagradáveis devem fazer-nos ser cautelosos quanto à
aceitação do utilitarismo como teoria moral completamente satisfatória.
Considere outro caso difícil para o utilitarista. Ao passo que Kant afirma que devemos
manter as nossas promessas sejam quais forem as consequências de o fazer, os utilitaristas
calculariam a felicidade provável que resultaria, em cada caso, de manter ou faltar às promessas,
agindo depois em conformidade com o resultado do cálculo. Os utilitaristas poderiam muito bem
concluir que, nos casos em que soubessem que os seus credores se haviam esquecido de uma dívida
e que não seria provável que alguma vez se lembrassem dela, seria moralmente correcto não pagar a
dívida. A maior felicidade de quem fica a dever, em função do seu aumento de riqueza, pode muito
bem ultrapassar qualquer infelicidade que sentisse em relação a enganar os outros. E o credor não
sentiria, presumivelmente, nenhuma ou quase nenhuma infelicidade, uma vez que se teria esquecido
da dívida.
O utilitarismo tem como pressuposto a ideia de que a acção moralmente boa é, em qualquer
circunstância, a que produz a maior felicidade global. Mas talvez isto coloque excessiva ênfase na
felicidade. Evitar a dor e o sofrimento é um objectivo muito mais importante do que alcançar mais
felicidade do que infelicidade. Certamente que um mundo no qual ninguém fosse particularmente
feliz, mas no qual ninguém sofresse dor extrema, seria mais apelativo do que um mundo no qual
algumas pessoas sofressem uma infelicidade extrema, compensada pelo facto de muitas outras
pessoas beneficiarem de grande contentamento e felicidade.
Mas este utilitarismo negativo está, contudo, sujeito a muitas das dificuldades de cálculo que
se levantam ao utilitarismo normal. E está também sujeito a críticas próprias.
A melhor maneira de eliminar todo o sofrimento no mundo seria eliminar toda a vida
sensível. Se não existissem coisas vivas capazes de sentir dor, não existiria dor. Se fosse possível
conseguir este resultado de forma indolor, talvez através de uma enorme explosão atómica, então,
pelo princípio do utilitarismo negativo, esta seria uma acção moralmente correcta. Mesmo que o
processo envolvesse alguma dor, esta seria provavelmente ultrapassada pelos benefícios a longo
prazo no que respeita à eliminação da dor. No entanto, esta conclusão dificilmente é aceitável. No
mínimo, o utilitarismo negativo precisa de ser reformulado de forma a poder evitar tal conclusão.
Alguns filósofos sugeriram outra versão modificada da teoria, conhecida como utilitarismo das
regras, como uma forma de contornar a objecção que afirma que o utilitarismo normal (também
conhecido como utilitarismo dos actos) tem muitas consequências desagradáveis. Esta teoria
procura combinar os melhores aspectos do utilitarismo dos actos com os melhores aspectos das
éticas deontológicas.
O utilitarismo das regras tem a grande vantagem prática de tornar desnecessário fazer
complicados cálculos de cada vez que estamos confrontados com uma decisão moral. Contudo,
numa situação na qual sabemos que quebrar uma promessa terá como resultado mais felicidade do
que se a honrássemos, e se as nossas simpatias morais básicas tiverem contornos utilitaristas, parece
despropositado mantermo-nos fiéis a uma regra em vez de tratar esse caso específico unicamente
segundo os seus méritos.
A teoria da virtude baseia-se em grande parte na Ética a Nicómaco, de Aristóteles, sendo por
isso por ve zes conhecida como neo-aristotelismo («neo» quer dizer «novo»). Ao contrário dos
kantianos e dos utilitaristas, que se concentram tipicamente na rectidão ou não de acções
particulares, os teóricos da virtude concentram-se no carácter e estão interessados na vida da pessoa
como um todo. A questão central para os teóricos da virtude é «Como devo viver?». A resposta por
eles dada a esta questão é: cultive as virtudes. Só cultivando as virtudes poderemos prosperar como
seres humanos.
2.12.1 Prosperar
De acordo com Aristóteles, toda a gente quer prosperar. A palavra grega usada para
«prosperar» era eudaimonia, por vezes traduzida por «felicidade». Mas esta tradução pode gerar
confusões, uma vez que Aristóteles acreditava que podíamos ter muito prazer físico, por exemplo,
sem alcançar a eudaimonia. A eudaimonia aplica-se a toda uma vida, e não apenas a estados
particulares em que nos podemos encontrar em certos momentos. Talvez «verdadeira felicidade»
seja uma tradução melhor, mas dá a ideia errada de que a eudaimonia é um estado de espírito de
bem-aventurança que se alcança, em vez de ser uma forma de viver a vida com sucesso. Aristóteles
acreditava que certas formas de vida promoviam a prosperidade, tal como certas formas de cuidar
de uma cerejeira farão que cresça, floresça e dê frutos.
2.12.2 As virtudes
Aristóteles defendia que a maneira de prosperar como ser humano é cultivar as virtudes.
Mas o que é uma virtude? E um padrão de comportamento e sentimento: uma tendência para agir
de certa maneira e desejar e sentir certas coisas em certas situações. Ao contrário de Kant,
Aristóteles pensava que ter as emoções apropriadas era essencial para a arte de viver bem. Uma
virtude não é um hábito irreflectido; ao invés, implica um juízo inteligente sobre a resposta
apropriada à situação em que nos encontramos.
Uma pessoa que tenha a virtude de ser generosa sentir-se-ia generosa e agiria generosamente
nas situações apropriadas. Isto envolveria ajuizar a situação e a sua resposta como apropriadas. Uma
pessoa virtuosa, colocada na situação do Bom Samaritano, sentiria compaixão pelo homem
abandonado no caminho, ao mesmo tempo que agiria caridosamente em relação a ele. Um
samaritano que se limitasse a ajudar a vítima por ter previsto um benefício futuro para si mesmo
não estaria a agir virtuosamente, uma vez que a generosidade implica dar sem pensar no benefício
próprio.
Outra crítica à teoria da virtude é o facto de pressupor a existência de uma coisa a que chama
a natureza humana, existindo por isso padrões gerais de comportamento e sentimento apropriados
para todos os seres humanos. Contudo, esta ideia tem sido posta em causa por muitos filósofos que
acreditam ser um erro grave presumir a existência de uma natureza humana. Regressarei a este
tema mais à frente, na secção sobre o naturalismo.
2.14 ÉTICA APLICADA
Até agora, neste capítulo, esbocei três tópicos básicos de teoria ética. E óbvio que estes não são os
únicos tipos de teoria ética, mas são os mais importantes. Vejamos agora como os filósofos aplicam
realmente as suas teorias a decisões morais reais, e não apenas imaginadas. Para ilustrar os
géneros de considerações relevantes em ética aplicada, iremos concentrar-nos num tema ético,
nomeadamente o tema da eutanásia ou morte misericordiosa.
2.15 EUTANÁSIA
Analogamente, alguém que adopta a teoria ética de Kant pode sentir-se no dever de nunca
matar. Matar alguém parece contradizer a perspectiva de Kant segundo a qual devemos tratar as
outras pessoas como fins em si e nunca como meios para atingir fins — devemos respeitar a sua
humanidade. Mas esta mesma versão do imperativo categórico poderia, no caso da eutanásia
voluntária, proporcionar uma justificação moral a favor de acabar com a vida de alguém, se isso for
o que o paciente quiser e, no entanto, não o puder fazer sem ajuda.
Os três tipos de teoria ética que examinámos até agora (a baseada nos direitos, a
consequencialista e a da virtude) são exemplos de teorias de primeira ordem. Isto é, são teorias
acerca de como devemos agir. Os filósofos morais interessam-se também por questões de segunda
ordem: questões acerca não do que devemos fazer, mas do estatuto das teorias éticas. Esta
teorização acerca das teorias éticas é habitualmente conhecida como metaética. Uma teoria
metaética típica pergunta: «Que quer dizer 'bem' no contexto moral?» Considerarei de seguida três
exemplos de metateorias: naturalismo ético, relativismo e emotivismo.
2.17 NATURALISMO
A questão metaética de saber se as chamadas teorias éticas naturalistas são aceitáveis tem
sido uma das mais discutidas no século XX. Uma teoria ética naturalista é uma teoria baseada no
pressuposto de que os juízos éticos emergem directamente de factos que podem ser descobertos
pelas ciências — muitas vezes, factos acerca da natureza humana.
A ética utilitarista passa de uma descrição da natureza humana para uma perspectiva acerca
de como devemos agir. Idealmente, o utilitarismo usaria méto dos científicos para medir a
qualidade e a quantidade de felicidade de cada pessoa, de forma a poder mostrar o que é
moralmente bom e o que é moralmente mau. Ao invés, a ética kantiana não está tão intimamente
presa à psicologia humana: os nossos deveres categóricos seguem-se supostamente de
considerações lógicas, e não psicológicas.
2.18 CRÍTICAS AO NATURALISMO
Muitos filósofos acreditam que todas as teorias éticas naturalistas se baseiam num erro: a
incapacidade de reconhecer que factos e valores são coisas fundamentalmente diferentes. Os que se
opõem ao naturalismo — os antinaturalistas — defendem que nenhuma descrição factual alguma
vez conduz automaticamente a qualquer juízo de valor: são sempre necessários argumentos
adicionais. Isto é por vezes conhecido como a lei de Hume, em homenagem a David Hume, um dos
primeiros a fazer notar que os filósofos morais passam muitas vezes, sem argumentos adicionais, de
discussões sobre «o que é» para discussões sobre «o que deve ser».
Este argumento, usado pela primeira vez por G. E. Moore, é na verdade apenas uma maneira
de tornar mais claras as crenças que as pessoas efectivamente têm em relação à ética. E uma forma
de mostrar que, pela maneira como pensamos acerca de termos como «bem» e «rectidão», quase
todos nós já rejeitámos a abordagem naturalista.
2.19 RELATIVISMO
E uma verdade incontroversa que pessoas de diferentes sociedades têm costumes diferentes
e diferentes ideias acerca do bem e do mal morais. Não há consenso mundial sobre a questão de
saber que acções são moralmente boas e moralmente más, apesar de existir uma convergência
considerável sobre estas matérias. Se tivermos em consideração o quanto as ideias morais mudaram,
quer de lugar para lugar, quer ao longo do tempo, pode ser tentador pensar que não existem factos
morais absolutos e que, pelo contrário, a moral é sempre relativa à sociedade na qual fomos
educados. Segundo esta perspectiva, uma vez que a escravatura era moralmente aceitável para a
maior parte dos Gregos antigos, apesar de o não ser para a maior parte dos Europeus de hoje em dia,
a escravatura seria moralmente boa para os Gregos antigos, apesar de ser moralmente má para os
Europeus contemporâneos. Esta perspectiva, conhecida como relativismo moral, faz que a moral
seja apenas a descrição dos valores adoptados por uma sociedade em particular, num certo momento
do tempo. Trata-se de uma perspectiva metaética acerca da natureza dos juízos morais. Os juízos
morais só podem ser avaliados como verdadeiros ou falsos relativamente a uma sociedade
particular. Não há juízos morais absolutos: são todos relativos. O relativismo moral contrasta
fortemente com a perspectiva de que algumas acções são absolutamente boas ou más — uma
perspectiva defendida, por exemplo, por muitas pessoas que acreditam que a moralidade é
constituída pelos mandamentos prescritos por Deus à humanidade. Os relativistas juntam
muitas vezes esta perspectiva da moralidade à crença de que, porque a moralidade é relativa, nunca
devemos interferir com os hábitos de outras sociedades, uma vez que não existe uma perspectiva
neutra a partir da qual possamos ajuizar. Esta pers pectiva tem sido especialmente popular junto dos
antropólogos, talvez em parte porque tiveram muitas vezes contacto directo com a destruição
causada noutras sociedades pela importação selvagem de valores ocidentais. Quando se acrescenta
ao relativismo moral este componente, indicando como nos devemos comportar em relação a outras
sociedades, obtém-se o que é habitualmente conhecido como relativismo normativo.
Os relativistas morais são por vezes acusados de inconsistência, uma vez que defendem que
todos os juízos morais são relativos, ao mesmo tempo que querem que acreditemos que a própria
teoria do relativismo moral é absolutamente verdadeira. Isto só é um problema sério para um
relativista moral que seja também um relativista acerca da verdade, isto é, alguém que acha que a
verdade absoluta é coisa que não existe: só existem verdades relativas a sociedades particulares.
Este tipo de relativismo não pode defender nenhuma teoria como absolutamente verdadeira.
Os relativistas morais são geralmente vagos acerca do que pode ou não contar como
sociedade. Por exemplo, no Reino Unido contemporâneo há sem dúvida membros de subculturas
que acreditam ser moralmente aceitável usar, com fins recreativos, drogas proibidas. A que ponto
estará o relativista preparado para dizer que os membros destas subculturas formam uma sociedade
separada, podendo portanto dizer-se que têm a sua própria moral, imune à crítica de outras culturas?
Não há uma resposta óbvia a esta questão. Não há crítica moral dos valores de uma sociedade
Ainda que se possa responder à crítica anterior, levanta-se outra dificuldade com o
relativismo moral. Não parece dar a possibilidade de crítica moral aos valores centrais de uma
sociedade. Se os juízos morais se definem em termos dos valores centrais dessa mesma sociedade,
nenhum crítico destes valores centrais pode usar argumentos morais contra ela. Numa sociedade na
qual a perspectiva dominante seja a de que as mulheres não devem poder votar, qualquer pessoa que
sugerisse o direito de voto para as mulheres estaria a sugerir algo imoral relativamente aos valores
dessa sociedade.
2.21 EMOTIVISMO
Outra teoria metaética importante é conhecida como emotivismo ou não cognitivismo. Os
emotivistas, como A. J. Ayer (1910-1988) no capítulo 6 de Linguagem, Ver dade e Lógica,
defendem que as afirmações éticas não significam nada. Não exprimem quaisquer factos; o que
exprimem é a emoção do locutor. Os juízos morais não têm nenhum significado literal: são apenas
expressões de emoção, como resmungos, bocejos ou gargalhadas. Logo, quando alguém diz «A
tortura está errada» ou «Devemos dizer a verdade», está a fazer pouco mais do que mostrar o que
sente em relação à tortura e à honestidade. O que dizem não é verdadeiro nem falso: é mais ou
menos o mesmo que gritar «Abaixo!» perante a tortura e «Viva!» perante a honestidade. Na
verdade, tem-se chamado por vezes ao emotivismo a teoria do abaixo/viva. Tal como quando uma
pessoa grita «Abaixo!» ou «Viva!» não está geralmente apenas a mostrar como se sente, mas
também a tentar encorajar as outras pessoas a partilhar o seu sentimento, também, com as
afirmações morais, o locutor está frequentemente a tentar persuadir alguém a pensar da mesma
maneira acerca do tema em causa.
Contudo, um emotivista não veria esta crítica como uma ameaça à teoria. Usam-se muitos
tipos diferentes de argumentos nos chamados debates morais. Por exemplo, ao discutir a questão
ética prática de saber se o aborto voluntário é ou não moralmente aceitável, o que está em questão
pode ser em parte uma questão factual. O que está a ser discutido pode ser a questão de saber com
quantas semanas um feto seria capaz de sobreviver fora do útero. Esta seria uma questão científica e
não ética. Ou então, algumas pessoas, aparentemente empenhadas num debate ético, podem estar
preocupadas com a definição de termos éticos como «bem moral», «mal moral»,
«responsabilidade», etc.: o emotivista admitiria que tal debate poderia ter significado. Só os
verdadeiros juízos morais, como «E errado matar pessoas», são meramente expressões da emoção.
Assim, um emotivista concordaria que existe de facto algum debate com significado acerca
de questões morais: a discussão só se torna uma expressão sem significado da emoção quando os
intervenientes proferem verdadeiros juízos morais. Consequênciasperigosas
Uma segunda crítica ao emotivismo é que, mesmo que seja verdadeiro, terá provavelmente
consequências perigosas. Se toda a gente acabasse por acreditar que uma frase como «O assassínio
é mau» era equivalente a afirmar «Assassínio — puh!», então, defende esta crítica, a sociedade
entraria em colapso.
Uma perspectiva, como a kantiana, de que os juízos morais se aplicam a toda a gente — de
que são impessoais — oferece boas razões para que as pessoas obedeçam a um código moral aceite
de maneira geral. Mas, se tudo o que estamos a fazer quando proferimos u m juízo moral é exprimir
as nossas emoções, não parece ser muito importante quais os juízos morais que escolhemos :
poderíamos igualmente dizer «Torturar crianças é moralmente bom», se isso correspondesse ao
nosso sentimento; e ninguém pode empreender uma discussão moral significativa connosco acerca
deste juízo: o melhor que alguém pode fazer é exprimir os seus próprios sentimentos morais no que
respeita à questão.
Contudo, isto não é verdadeiramente um argumento contra o emotivismo, uma vez que não
põe a teoria em causa directamente: indica apenas os perigos para a sociedade que a aceitação
generalizada do emotivismo acarretaria, o que é outra questão.
2.23 CONCLUSÃO
Como pode ver-se desta breve discussão, a filosofia moral é uma vasta e complicada área da
filosofia. Os filósofos americanos e britânicos do pós-guerra concentraram-se sobretudo em
questões metaéticas. Contudo, têm recentemente voltado progressivamente as suas atenções para
problemas éticos práticos, como a moralidade da eutanásia, do aborto, da investigação com
embriões, das experiências com animais e de muitos outros temas. Apesar de a filosofia não
oferecer respostas fáceis a estas ou quaisquer outras questões morais, fornece um vocabulário e um
enquadramento no qual essas questões podem ser discutidas racionalmente.
The Moral Philosophers, de Richard Norman (Oxford, Clarendon Press, 1983), é uma
excelente introdução à história da ética: inclui sugestões detalhadas de leitura.
A melhor introdução ao utilitarismo é Utilitarianism and Its Critics, organizado por Jonathan
Glover (Nova Iorque, Macmillan, 1990). Inclui excertos dos textos mais importantes de Bentham e
Mill, assim como textos mais recentes sobre o utilitarismo e as suas variantes. Parte do material é
bastante avançado, mas as introduções de Glover a cada secção são muito úteis.
Sobre o tema da ética aplicada, Causing Death and Saving Lives, de Jonathan Glover
(Londres, Penguin, 1977) e Practical Ethics, de Peter Singer (Cambridge, Cambridge University
Press, 2.a ed., 1993), são ambos interessantes e acessíveis. Applied Ethics ( O x f o r d , Oxford
University Press, 1986), organizado por Peter Singer, é uma excelente selecção de ensaios.
O que é a igualdade? O que é a liberdade? Serão estes objectivos que valham a pena? Como
podem atingir-se? Que justificação pode dar-se para as restrições impostas pelo estado aos que
violam a lei? Existem algumas circunstâncias nas quais d e v a m o s violar a lei? Estas são questões
importantes para todas as pessoas. Os filósofos políticos têm tentado clarificá-las e responder-lhes.
A filosofia política é um tema vasto, cruzando-se com a ética, a economia, a ciência política e a
história das ideias. Os filósofos políticos escrevem geralmente em resposta às situações políticas nas
quais se encontram. Nesta área, mais do que na maior parte das outras, o conhecimento do contexto
histórico é importante para compreender os argumentos de um filósofo. Neste pequeno livro não há
espaço, obviamente, para dar u m a imagem histórica. Para os que se interessarem pela história das
ideias, a lista de leituras complementares, no final do capítulo, deverá ser útil.
Neste capítulo concentrar-me-ei nos conceitos políticos centrais de igualdade, democracia,
liberdade, castigo e desobediência civil; e examinarei as questões filosóficas a que dão origem.
3.1 IGUALDADE
A igualdade é muitas vezes apresentada como um objectivo político, um ideal que vale a
pena tentar alcançar. Os que argumentam a favor de uma qualquer forma de igualdade são
conhecidos como igualitaristas. A motivação para alcançar esta igualdade é habitualmente moral:
pode basear-se na crença cristã de que somos todos iguais aos olhos de Deus, numa crença kantiana
na racionalidade da igualdade de respeito de todas as pessoas ou, talvez, numa crença utilitarista de
que tratar todas as pessoas como iguais é a melhor forma de maximizar a felicidade. Os
igualitaristas defendem que os governantes devem procurar passar do reconhecimento da igualdade
moral para a criação efectiva de algum tipo de igualdade nas vidas daqueles que governam.
Mas como devemos entender a «igualdade»? E claro que os seres humanos nunca poderiam
ser iguais em todos os aspectos. As pessoas diferem em inteligência, beleza, valor atlético, altura,
cor do cabelo, local de nascimento, sentido da moda e em muitos outros aspectos. Seria ridículo
defender que as pessoas devem ser absolutamente iguais em todos os aspectos. A completa
uniformidade é pouco apelativa. Os igualitaristas não propõem um mundo povoado por clones. No
entanto, apesar dos absurdos óbvios de interpretar a igualdade como completa uniformidade,
alguns adver sários do igualitarismo insistem em descrevê-lo desta forma. Este é um exemplo da
falácia do homem de palha: cria-se um alvo fácil apenas para o deitar abaixo. Eles pensam que
refutam o igualitarismo ao apontar aspectos importantes que diferenciam as pessoas ou fazendo
notar que, mesmo que uma quase uniformidade fosse alcançada, as pessoas recuariam muito
rapidamente para qualquer coisa semelhante à sua situação anterior. Contudo, tal ataque só tem
êxito contra uma caricatura da teoria, deixando incólume a maior parte das versões de igualitarismo.
Assim, a igualdade é sempre relativa a certos aspectos, e não a todos os aspectos. Assim,
quando alguém afirma ser um igualitarista, é importante descobrir em que sentido o é. Por outras
palavras, o termo «igualdade», no contexto político, não quer dizer praticamente nada a não ser que
exista uma explicação sobre o que devia ser partilhado de forma mais igualitária e por quem.
Algumas das coisas que os igualitaristas muitas vezes defendem que devem ser igualitariamente, ou
mais igualitariamente, distribuídas são o dinheiro, o acesso ao emprego e o poder político. Apesar
de os gostos das pessoas diferirem consideravelmente, todas estas coisas podem contribuir
significativamente para uma vida aprazível e que valha a pena. Distribuir estes bens de forma mais
igualitária é uma maneira de conceder igualdade de respeito a todos os seres humanos.
3.2 DISTRIBUIÇÃO IGUALITÁRIA DO DINHEIRO
Algumas pessoas precisam de mais dinheiro para viver do que outras. Alguém que só
consiga sobreviver se lhe for ministrado diariamente um tratamento médico dispendioso teria
poucas probabilidades de viver muito tempo numa sociedade em que cada pessoa tivesse apenas
uma parte igual da riqueza total dessa sociedade, a não ser, claro, que a sociedade fosse
particularmente rica. Um método de distribuição baseado na carência individual estaria mais
próximo do objectivo de respeitar a humanidade comum do que um método de distribuição
igualitária do dinheiro.
Estes filósofos ficam com o problema de dizer precisamente o que são estes direitos e qual a
sua origem. Por «direitos», eles não querem dizer direitos legais, apesar de tais direitos poderem
coincidir com os direitos legais numa sociedade justa: os direitos legais são determinados pelo
governo ou pela autoridade competente. Os direitos em questão são os direitos naturais, que
deveriam, idealmente, orientar a formação de leis. Alguns filósofos resistiram à ideia de que tais
direitos naturais poderiam existir: é famosa a atitude de Bentham, afastando a noção como um
«disparate emproado» («nonsense on stilts»). No mínimo, um partidário da ideia de que o estado
não tem o direito de redistribuir a riqueza terá de poder explicar a origem dos supostos direitos de
propriedade naturais, em vez de se limitar a afirmar a sua existência. É de assinalar que os
partidários dos direitos naturais não têm conseguido explicar a sua origem.
Muitos igualitaristas acreditam que todas as pessoas deviam ter as mesmas oportunidades,
apesar de não poder existir uma distribuição igualitária da riqueza. Uma área importante na qual há
grandes desigualdades de tratamento é a do emprego. A igualdade de oportunidades no emprego não
significa que todas as pessoas devem poder ter o emprego que querem, independentemente das suas
capacidades: a ideia de que qualquer pessoa que queira deve poder tornar-se dentista ou cirurgião,
por pior que seja a sua coordenação visual-motora, é claramente absurda. O que a igualdade de
oportunidades quer dizer é igualdade de oportunidades para todos os que possuam as capacidades e
competências relevantes para desempenhar a tarefa em questão. Isto pode ainda ser encarado como
uma forma de desigualdade de tratamento, uma vez que algumas pessoas tiveram a sorte de nascer
com mais potencial genético do que outras ou receberam melhor formação e por isso têm vantagens,
logo à partida, numa competição aparentemente igualitária no mercado de emprego. Contudo, a
igualdade de oportunidades no emprego é habitualmente defendida como um dos aspectos de um
movimento que visa uma maior igualdade de vários géneros, tais como a igualdade de acesso à
educação.
Alguns igualitaristas vão mesmo mais longe do que a simples exigência da existência de
igualdade de tratamento nos concursos para empregos: defendem que é importante eliminarmos
desequilíbrios existentes em certas profissões, como, por exemplo, a predominância de juízes em
detrimento de juízas. O método por eles proposto para compensar os desequilíbrios existentes é
conhecido por discriminação positiva.
Assim, por exemplo, existem no Reino Unido mais professores universitários de Filosofia
do sexo masculino do que do feminino, apesar de muitas mulheres estudarem Filosofia ao nível da
licenciatura. Um partidário da discriminação positiva argumentaria que, em vez de esperar que esta
situação mude gradualmente, devemos actuar categoricamente e discriminar favoravelmente as
candidatas a professoras nas universidades. Isto significa que, se uma mulher e um homem se
candidatassem ao mesmo lugar e tivessem mais ou menos a mesma habilitação, deveríamos
escolher a mulher. Mas a maior parte dos defensores da discriminação positiva iria mais longe do
que isto, defendendo que, mesmo que a mulher fosse um candidato pior do que o homem, desde que
fosse competente para executar as funções associadas ao lugar, deveríamos empregá-la a ela,
preterindo o homem. A discriminação positiva é apenas uma medida temporária, até que a
percentagem de membros do grupo tradicionalmente excluído reflicta mais ou menos a percentagem
de membros deste grupo na população em geral. Em alguns países é ilegal; noutros é obrigatória.
3.6.1 Anti-igualitária
O objectivo da discriminação positiva pode ser igualitário, mas algumas pessoas sentem que
a forma de a atingir é injusta. Para um igualitarista dedicado, um princípio de igualdade de
oportunidades no emprego significa que se deve evitar qualquer forma de discriminação baseada em
aspectos irrelevantes. O tratamento diferenciado de candidatos só pode basear-se nos atributos
relevantes que estes possuam. No entanto, a justificação da discriminação positiva baseia-se no
pressuposto de que, na maior parte dos empregos, coisas como o sexo, as preferências sexuais ou a
origem racial dos candidatos não são relevantes. Logo, por mais apelativo que o resultado final da
discriminação positiva possa ser, deveria ser inaceitável para alguém que esteja comprometido com
a igualdade de oportunidades como um princípio fundamental.
Apesar de o objectivo da discriminação positiva ser criar uma sociedade na qual o acesso a
certas profissões esteja distribuído de forma mais justa, na prática pode causar mais discriminação
contra grupos em situação de desvantagem. Os que não conseguem ser contratados para um
emprego determinado por não pertencerem a grupos em situação de desvantagem podem ficar
ressentidos com os que obtêm empregos em grande parte por causa da sua origem sexual ou racial.
Este é um problema sobretudo quando os empregadores admitem candidatos visivelmente incapazes
de desempenhar bem as suas funções. Isto não só confirma os piores preconceitos dos seus
empregadores e colegas, como acaba também por fazer deles maus modelos a seguir pelos outros
membros do seu grupo. A longo prazo, isto pode destruir todo o movimento a favor da igualdade de
acesso ao trabalho que a discriminação positiva procura atingir. Contudo, esta crítica pode ser
anulada se se garantir ser relativamente alto o nível mínimo de capacidades de um candidato
seleccionado em função da discriminação positiva.
Os primeiros estados democráticos eram democracias directas; isto é, os que podiam votar
discutiam e votavam cada assunto, em vez de elegerem representantes. As democracias directas só
são exequíveis com um pequeno número de participantes ou quando as decisões a tomar são
relativamente poucas. São imensas as dificuldades práticas de pôr um grande número de pessoas a
votar sobre variadíssimos assuntos, apesar de ser possível que a comunicação electrónica acabe por
permiti-lo. Mas, ainda que isto se conseguisse, para que nessa democracia se chegasse a decisões
razoáveis, os eleitores teriam de perceber bem os assuntos em votação, uma condição que exigiria
tempo e um programa de educação política. Pressupor que todos os cidadãos se mantêm a par dos
assuntos relevantes é talvez esperar demasiado. As democracias actuais são representativas.
Alguns teóricos, sobretudo os que foram influenciados por Karl Marx (1818-1883), têm
atacado as formas de democracia esboçadas acima por darem uma sensação meramente ilusória de
participação na decisão política. Defendem estes teóricos que os processos eleitorais não garantem o
governo do povo. Alguns eleitores podem não compreender quem defende melhor os seus interesses
ou ser intrujados, através de discursos hábeis. Além disso, a variedade de candidatos oferecida na
maior parte das eleições não dá aos eleitores uma escolha genuína. É difícil ver por que razão este
tipo de democracia é tão elogiada, quando, tipicamente, acaba por significar escolher entre dois ou
três candidatos com propostas políticas virtualmente impossíveis de distinguir. Isto, afirmam os
marxistas, é mera «democracia burguesa», limitando-se a reflectir relações de poder já existentes,
sendo estas, por sua vez, o resultado de relações econômicas. Enquanto estas relações de poder não
forem alteradas, dar à população a hipótese de votar em eleições é uma perda de tempo.
Outros críticos da democracia, dos quais se destaca Platão, fazem notar que as decisões
políticas sólidas exigem um elevado grau de conhecimentos especializados, conhecimentos estes
que os eleitores não têm. Assim, a democracia direta resultaria muito provavelmente num sistema
político muito pobre, uma vez que o estado estaria nas mãos de pessoas com fracos conhecimentos
e competências. Um argumento semelhante pode ser usado para atacar a democracia
representativa. Muitos eleitores não estão em posição de avaliar a aptidão de certos candidatos.
Uma vez que não estão em posição de avaliar as opções políticas, escolhem os seus representantes
com base em atributos irrelevantes, tais como o aspecto físico ou o sorriso. Ou, então, o seu voto é
determinado por preconceitos irrefletidos acerca de partidos políticos. Em resultado disso, muitos
excelentes representantes potenciais não são eleitos, escolhendo-se muitos que são inadequados
com base em qualidades inapropriadas que por acaso possuam.
Contudo, estes dados podem ser usados contra os detractores da democracia como um
argumento a favor da educação dos cidadãos para a participação democrática, em vez de ser um
argumento a favor do abandono da democracia. Mas, mesmo que isto não seja possível, pode ainda
assim ser verdade que a democracia representativa seja, de todas as alternativas à nossa disposição,
aquela que tem mais probabilidades de promover os interesses do povo.
Eu acredito que a pena capital é bárbara e que jamais deveria existir num estado civilizado.
Se num referendo sobre este tema eu votar contra a pena capital e, no entanto, a maioria decidir que
esta deve ser adotada, fico diante de um paradoxo. Enquanto partidário dos princípios democráticos,
acredito que a decisão da maioria deve ser seguida. Enquanto indivíduo com crenças fortes contra a
pena capital, acredito que a pena capital nunca deve ser permitida. Assim, parece que, neste caso,
acredito simultaneamente que a pena capital deve existir (em resultado da decisão da maioria) e que
não deve existir (por causa das minhas crenças pessoais). Mas estas duas crenças são incompatíveis.
E provável que qualquer pessoa partidária dos princípios democráticos fique perante um paradoxo
semelhante quando se encontra em minoria.
3.11 LIBERDADE
Tal como a «democracia», a «liberdade» é uma palavra que tem sido usada de formas muito
diferentes. Há dois sentidos principais da palavra «liberdade» no contexto político: o negativo e o
positivo. Estes dois sentidos foram identificados e analisados por Isaiah Berlin (1909-1997) num
artigo famoso, «Two Concepts of Liberty».
Uma definição de liberdade é «ausência de coerção». A coerção existe quando alguém nos
força a agir de certa maneira, ou quando nos impede de agir de certa maneira. Se ninguém exerce
coerção sobre nós, então somos livres — neste sentido negativo de liberdade.
Se alguém nos prendeu e nos mantém presos, não somos livres. Nem somos livres se
queremos deixar o país e o nosso passaporte for confiscado; nem se queremos viver abertamente
uma relação homossexual e formos processados judicialmente por fazê-lo. A liberdade negativa
consiste em não ter obstáculos nem imposições. Se ninguém nos impede activamente de fazer algo,
então, a esse respeito, somos livres.
A maioria dos governos restringe, de uma forma ou outra, a liberdade das pessoas. A
justificação apresentada é geralmente a necessidade de proteger todos os membros da sociedade. Se
todas as pessoas tivessem a liberdade de fazer tudo o que quisessem, os mais fortes e implacáveis
prosperariam provavelmente à custa dos fracos. Contudo, muitos filósofos políticos liberais
acreditam que deve existir uma área sacrossanta de liberdade individual de tal maneira que, desde
que não estejamos a prejudicar mais ninguém, o governo não possa intervir. No seu ensaio Da
Liberdade, por exemplo, John Stuart Mill defendeu energicamente que os indivíduos devem poder
conduzir as suas próprias «experiências de vida» sem interferência do estado, desde que ninguém
fique por isso prejudicado.
Na prática, pode ser difícil decidir o que conta como prejuízo para as outras pessoas.
Incluirá, por exemplo, ofender outras pessoas? Se inclui, temos de excluir vários tipos de
«experiências de vida», uma vez que ofendem um grande número de pessoas. Por exemplo, um
vizinho especialmente pudico pode sentir-se ofendido por saber que um casal naturista da casa ao
lado nunca usa roupas. Ou, já agora, o casal naturista pode sentir-se ofendido por saber que muitas
pessoas usam roupas. Quer os naturistas quer os seus vizinhos podem sentir-se prejudicados pelos
estilos de vida das outras pessoas. Mill não acreditava que ficar ofendido devesse contar como um
prejuízo sério, mas não é fácil traçar a linha entre ficar ofendido e ficar prejudicado; por exemplo,
muitas pessoas considerariam a blasfémia contra a sua religião muito mais prejudicial do que os
danos físicos. Com que fundamentos poderemos dizer que estas pessoas estão erradas?
Alguns filósofos têm atacado a ideia de a liberdade negativa ser o tipo de liberdade que
devemos procurar aumentar. Argumentam que a liberdade positiva é um objectivo político muito
mais importante. A liberdade positiva é a liberdade de controlar a nossa própria vida. Somos livres,
em sentido positivo, se controlarmos de facto as nossas vidas e não somos livres se não o fizermos,
ainda que não estejamos de facto submetidos a qualquer tipo de constrangimento. A maior parte dos
defensores do conceito positivo de liberdade acredita que a verdadeira liberdade consiste num tipo
qualquer de auto-realização que resulta de as pessoas poderem fazer as suas próprias escolhas de
vida.
Por exemplo, se um alcoólico for convencido, contra aquilo que lhe convém, a gastar todo o
seu dinheiro numa pândega, representa esta atitude o exercício da sua liberdade? Intuitivamente,
parece implausível, sobretudo se nos momentos em que está sóbrio o alcoólico se arrepende dessas
patuscadas. Pelo contrário, temos tendência para pensar que o alcoólico estava sob o efeito do
álcool: um escravo dos impulsos. Apesar de não existir constrangimento do ponto de vista da
liberdade positiva, o alcoólico não é genuinamente livre.
Mesmo um defensor da liberdade negativa poderá argumentar que se deve exercer alguma
coerção sobre os alcoólicos, tal como sobre as crianças, uma vez que nem as crianças nem os
alcoólicos são completamente responsáveis pelas suas acções. Mas se alguém toma
sistematicamente decisões disparatadas em relação à sua vida, desperdiçando todos os seus talentos,
etc., temos, de acordo com os princípios de Mill, o direito de discutir com eles, mas não o de
exercer a coerção para os conduzir a uma vida melhor. Tal coerção implicaria a limitação da sua
liberdade negativa. Os que defendem um qualquer princípio de liberdade positiva poderiam
argumentar que tal pessoa não é verdadeiramente livre até desenvolver o seu potencial e ultrapassar
as suas tendências caprichosas. O passo que separa esta posição da defesa da coerção como um
caminho para a liberdade genuína é muito pequeno.
Isaiah Berlin sustenta que a concepção positiva de liberdade pode ser usada para justificar
todos os tipos de coerção injusta: os agentes do estado podem justificar-se, sempre que nos forçam
a agir de certa forma, com o argumento de que estão a ajudar-nos a aumentar a nossa liberdade. De
facto, Berlin sublinha que, historicamente, o conceito positivo de liberdade tem sido frequentemente
usado de forma abusiva neste sentido. Não há nada de intrinsecamente errado com a concepção de
liberdade positiva; acontece apenas que a história mostrou tratar-se de uma arma perigosa quando é
mal usada.
O que pode justificar que se subtraia a liberdade a alguém como uma forma de castigo? Por
outras palavras, que razões podem dar-se para se exercer a coerção sobre pessoas, tirando-lhes a
liberdade no sentido negativo? Como vimos na secção anterior, a noção de liberdade positiva pode
ser usada para justificar certas formas de coerção: certas pessoas só podem atingir a verdadeira
liberdade quando as protegemos delas mesmas.
Os filósofos têm tentado justificar o castigo estatal de pessoas com base em quatro ideias
principais: retribuição, dissuasão, protecção da sociedade e reabilitação da pessoa que sofre o
castigo. A primeira é habitualmente defendida a partir de uma posição deontológica; as outras três
são tipicamente defendidas com argumentos consequencialistas.
Na sua forma mais simples, o retributivismo é a perspectiva segundo a qual aqueles que
violam a lei merecem o seu castigo, independentemente de existi rem ou não quaisquer
consequências benéficas para eles ou para a sociedade. Aqueles que violam intencionalmente a lei
merecem sofrer. Existem claramente muitas pessoas que não podem ser completamente
responsáveis pela sua própria violação da lei, pelo que merecem um castigo mais moderado ou até,
em casos extremos, tratamento, tal como acontece com os doentes mentais graves. Contudo, em
geral, de acordo com uma teoria retributivista, o castigo justifica-se como uma resposta adequada à
violação da lei. Além disso, a severidade do castigo deve reflectir a severidade do crime. Na sua
forma mais simples («olho por olho», por vezes conhecida como lex talionis), o retributivismo
exige uma resposta exactamente proporcional ao crime cometido. Em alguns crimes, como a
chantagem, é difícil ver o que seria uma resposta adequada: não se pode esperar que o juiz condene
o chantagista a seis meses de chantagem. Analogamente, é difícil de perceber como poderia punir-se
de forma exactamente proporcional um pobre que tivesse roubado um relógio de ouro. Isto só
constitui um problema para o princípio do olho por olho; com formas mais sofisticadas de
retributivismo, o castigo não tem de espelhar o crime.
A crítica principal ao retributivismo defende que este não dá atenção aos efeitos produzidos
pelo castigo no criminoso e na sociedade. Questões de dissuasão, reabilitação e protecção são
irrelevantes. De acordo com os retributivistas, os criminosos merecem ser castigados quer isso
tenha um efeito benéfico sobre eles quer não. Os consequencialistas objectam a esta ideia afirmando
que nenhuma acção pode ser moralmente boa, a menos que tenha consequências benéficas; perante
isto, os deontologistas poderão responder que, se uma acção se justifica moralmente, justificar-se-á
sempre, sejam quais forem as suas consequências.
3.18 DISSUASÃO
Uma justificação comum do castigo defende que este desencoraja a violação da lei, quer
pela pessoa que é castigada, quer pelas outras pessoas que sabem que o castigo existe e que lhes
será aplicado se violarem a lei. Se soubermos que poderemos acabar na prisão, defende este
argumento, será mais improvável que enveredemos por uma carreira de ladrão do que seria se
pensássemos que poderíamos não ser castigados. Isto justifica o castigo mesmo em relação aos que
não serão reabilitados por ele: ver o castigo como um resultado do crime é mais importante do que a
modificação do carácter da pessoa em causa. Este tipo de justificação centra-se exclusivamente nas
consequências do castigo. O sofrimento dos que perdem a sua liberdade tem menos peso do que os
benefícios sociais.
Uma crítica muito séria à teoria dissuasiva do castigo defende que, pelo menos na sua forma
mais simples, esta teoria poderia ser usada para justificar o castigo de pessoas completamente
inocentes, ou inocentes em relação ao crime pelo qual são castigadas. Em algumas situações,
castigar um bode expiatório, o qual muita gente acusa de ter cometido um certo crime, terá um
efeito dissuasor muito forte noutras pessoas que terão considerado a hipótese de perpetrar crimes
semelhantes, sobretudo se o público em geral continuar sem saber que a vítima do castigo está de
facto inocente. Em tais casos, parece que teríamos justificação para castigar um inocente — uma
consequência desagradável desta teoria. Qualquer teoria plausível da dissuasão terá de enfrentar
esta objecção.
Outra justificação do castigo, baseada nas suas alegadas consequências benéficas, sublinha a
necessidade de proteger a sociedade de pessoas que têm tendência para violar a lei. Se alguém
arrombou uma casa, é provável que arrombe outras. Assim, a justificação estatal para os prender é o
impedir a reincidência. Esta justificação é usada sobretudo no caso de crimes violentos, tais como a
violação ou o assassínio.
Alguns tipos de crimes, tais como a violação, podem ser cometidos repetidamente pela
mesma pessoa. Em tais casos, a restrição da liberdade do criminoso minimizará as hipóteses de o
crime voltar a ser come tido. Contudo, outros crimes são isolados. Por exemplo, uma mulher
ressentida durante toda a sua vida com o seu marido pode um dia reunir finalmente a coragem
suficiente para lhe envenenar o muesli. Esta mulher pode não representar nenhuma ameaça para
mais ninguém. Cometeu um crime muito sério, mas é um crime que provavelmente jamais voltará a
cometer. Em relação a tal mulher, a proteção da sociedade não ofereceria nenhuma justificação para
o seu castigo. Contudo, na prática não é fácil identificar os criminosos que não reincidirão.
Outra crítica a esta justificação do castigo defende que aprisionar os criminosos só protege a
sociedade a curto prazo e que a longo prazo tem de facto como resultado uma sociedade mais
perigosa, porque os presos ensinam uns aos outros como levar a melhor no mundo do crime. Assim,
a menos que todos os crimes graves sejam punidos com a prisão perpétua, é improvável que a
prisão possa proteger a sociedade.
Trata-se, uma vez mais, de um argumento empírico. Se aquilo que afirma for verdade,
existem boas razões para combinar a proteção da sociedade com algumas tentativas de reabilitar os
hábitos dos criminosos.
3.22 REABILITAÇÃO
Uma outra justificação para castigar quem viola a lei é a tendência que o castigo tem para
reabilitar os prevaricadores. Isto é, o castigo serve para mudar os seus caracteres de forma a não
voltarem a cometer crimes depois de libertados. Nesta perspectiva, subtrair a liberdade pode servir
como uma forma de tratamento.
3.23 CRÍTICAS À REABILITAÇÃO
Alguns criminosos não precisam de ser reabilitados. As pessoas que cometem crimes
isolados não devem ser castigados de acordo com esta justificação, uma vez que é improvável que
violem outra vez a lei. Além disso, alguns criminosos estão claramente para lá da reabilitação, pelo
que também não valeria a pena castigá-los, presumindo que poderiam ser identificados. Este
argumento não é em si uma crítica à teoria, mas um olhar mais detalhado sobre o que a teoria
implica. Contudo, muitas pessoas acham que estas implicações são inaceitáveis. Não funciona
Os castigos existentes raramente reabilitam os criminosos. Contudo, nem todos os tipos de
castigo estão condenados a falhar a este respeito. Este tipo de argumento empírico só seria fatal para
a ideia do castigo como reabilitação se pudesse mostrar-se que tais tentativas de reabilitação nunca
poderiam ser bem sucedidas. Contudo, existem pouquíssimas justificações que se centrem
exclusivamente nos aspectos reabilitadores do castigo. As justificações mais plausíveis fazem da
reabilitação um elemento da justificação, juntamente com a dissuasão e a protecção da sociedade.
Estas justificações híbridas baseiam-se habitualmente em princípios morais consequencialistas.
Estudamos, até agora, as justificações para punir quem viola a lei. As razões para punir eram
morais. Mas poderá alguma vez a violação da lei ser moralmente aceitável? Nesta secção deito um
olhar sobre um tipo particular de violação da lei que se justifica em termos morais: a desobediência
civil.
Algumas pessoas argumentam que a violação da lei nunca se pode justificar: se não estamos
satisfeitos com a lei, devemos tentar mudá-la através dos meios legais, como as campanhas, a
redacção de cartas, etc. Mas há muitos casos em que tais protestos legais são completamente inúteis.
Há uma tradição de violação da lei em tais circunstâncias conhecida por desobediência civil. A
ocasião para a desobediência civil emerge quando as pessoas descobrem que lhes é pedido que
obedeçam a leis ou a políticas governamentais que consideram injustas.
A desobediência civil corresponde a uma tradição de violação não violenta e pública da lei,
concebida para chamar a atenção para leis ou políticas injustas. Os que agem nesta tradição de
desobediência civil não violam a lei unicamente para seu benefício pessoal; fazem-no para chamar a
atenção para uma lei injusta ou uma política moralmente objectável e para publicitar ao máximo a
sua causa. Por isso é que estes protestos ocorrem habitualmente em lugares públicos, de preferência
na presença de jornalistas, fotógrafos e câmaras de televisão. Por exemplo, um americano chamado
para a guerra que deitasse fora a sua convocatória durante a Guerra do Vietname, escondendo-se de
seguida do exército só por ter medo de ir para a guerra e por não querer morrer, não estaria a
executar um acto de desobediência civil. Seria um acto de autopreservação. Se agisse da mesma
maneira, não por causa da sua segurança pessoal, mas por motivos morais, mas que no entanto o
fizesse em segredo, não tornando público este caso de nenhuma forma, continuaria a não poder
considerar-se um acto de desobediência civil. Pelo contrário, outro americano convocado para a
guerra que queimasse a sua convocatória em público perante câmaras da televisão, comunicando ao
mesmo tempo à imprensa as razões que o levavam a pensar que o envolvimento americano no
Vietname era imoral, estaria a cometer um acto de desobediência civil.
E importante darmo-nos conta, contra tal argumento, de que os actos de desobediência civil
têm por objectivo salientar decisões ou práticas moralmente inaceitáveis. Por exemplo, o
movimento a favor dos direitos cívicos, na América dos anos 60, através de manifestações muito
publicitadas contra as leis a favor da segregação racial deram publicidade mundial ao tratamento
injusto dos Americanos negros. Compreendida assim, a desobediência civil é uma técnica para que
a maioria ou os seus representantes reconsiderem a sua posição sobre um tema específico, e não
uma forma não democrática de mudar a lei ou a política. Derrapagem para a anarquia
Outra objecção à desobediência civil faz notar que ela encoraja a violação da lei, o que
poderia a longo prazo corroer o poder do governo e o estado de direito e que este risco ultrapassa
decisivamente quaisquer possíveis benefícios a que possa dar origem. Uma vez colocado em causa
o respeito pela lei, há o perigo de que resulte daí a anarquia. Este é um argumento da derrapagem,
um argumento que sugere que, se dermos um passo numa certa direcção, não seremos capazes de
parar um processo que terá um resultado obviamente desagradável. Tal como quando damos um
passo para descer um declive escorregadio é quase impossível parar antes de chegar ao fim, o
mesmo acontece, defendem algumas pessoas, se tornarmos aceitáveis alguns tipos menores de
violação da lei: não seremos capazes de parar e, no fim, já ninguém respeitará a lei. Contudo, este
tipo de argumento pode fazer que o resultado final pareça inevitável, quando na verdade o não é.
Não há razão para acreditar na afirmação de que os actos de desobediência civil arruinarão o
respeito pela lei, ou, para continuarmos com a metáfora do declive escorregadio, não há nenhuma
razão para acreditar que não podemos parar num certo ponto e dizer: «Não avanço mais.» Na
verdade, alguns defensores da desobediência civil argumentam que, longe de pôr em perigo o
estado de direito, o que eles fazem revela um profundo respeito pela lei. Se alguém está preparado
para ser castigado pelo estado por chamar a atenção para o que pensa ser uma lei injusta, isso revela
que está comprometido com a posição geral de que as leis devem ser justas e respeitadas. Isto é
muito diferente da violação da lei para benefício pessoal.
3.25 CONCLUSÃO
Neste capítulo discuti vários tópicos centrais de filosofia política. Subjacente a todos estes tópicos
está a questão da relação das pessoas com o estado, em particular a origem de qualquer autoridade
que o estado tenha sobre as pessoas, uma questão tratada directamente em muitas das leituras
complementares recomendadas a seguir.
Practical Ethics, de Peter Singer (2.a ed., Cambridge, Cambridge University Press, 1993),
um livro que recomendei como leitura complementar para o capítulo 2, contém uma discussão da
igualdade, incluindo a igualdade no emprego. O autor defende também a igualdade dos animais.
The Sceptical Feminist, de Janet Radcliffe Richards (2.a ed., Londres, Penguin, 1994), é um estudo
filosófico claro e incisivo de algumas questões morais e políticas acerca das mulheres, incluindo a
questão da discriminação positiva no emprego.
Para os que desejam estudar filosofia política mais detalhadamente e a um nível mais
avançado, Contemporary Political Philosophy: An Introduction (Oxford, Oxford University Press,
1990), de Will Kymlicka, oferece uma avaliação crítica das tendências principais na filosofia
política corrente. Algumas passagens são bastantes difíceis.
4 4 O MUNDO EXTERIOR
O nosso conhecimento básico do mundo exterior chega-nos através dos cinco sentidos: visão,
audição, tacto, olfacto e gosto. Para quase toda a gente, a visão desempenha o papel principal. Sei
como é o mundo exterior porque posso vê-lo. Se duvido da existência real do que vejo, posso, em
geral, estender o braço e tocar-lhe para ter a certeza. Sei que tenho uma mosca na sopa porque posso
vê-la e, se chegar a tanto, posso tocar-lhe e até prová-la. Mas qual é exactamente a relação entre o
que penso ver e o que está de facto à minha frente? Poderei alguma vez ter a certeza acerca do que
existe no mundo exterior? Poderei eu estar a sonhar? Os objectos continuam a existir quando
ninguém os está a observar? Terei alguma vez experiência directa do mundo exterior? Todas estas
questões são acerca de saber como adquirimos conhecimento das nossas imediações; pertencem ao
ramo da filosofia conhecido por teoria do conhecimento ou epistemologia.
O realismo de senso comum é a posição assumida pela maior parte das pessoas que não
estudaram filosofia. Admite a existência de objectos físicos — casas, árvores, carros, sardinhas,
colheres de chá, bolas de futebol, corpos humanos, livros de filosofia, etc. — acerca dos quais
podemos ter conhecimento directo através dos nossos cinco sentidos. Estes objectos físicos
continuam a existir quer os estejamos a percepcionar, quer não. Além disso, estes objectos são mais
ou menos como nos parecem ser: as sardinhas são de facto cinzentas e as bolas de futebol são de
facto esféricas. Isto é assim porque os nossos órgãos dos sentidos — os olhos, os ouvidos, a língua,
a pele e o nariz — são, em geral, fidedignos; dão-nos uma apreciação realista do que está realmente
lá fora.
Contudo, apesar de ser possível viver a vida toda sem nunca questionar as crenças do
realismo de senso comum acerca da percepção sensorial, esta perspectiva não é satisfatória. O
realismo de senso comum não resiste satisfatoriamente aos argumentos cépticos acerca da
fiabilidade dos sentidos. Nesta secção examinaremos vários argumentos cépticos que parecem
enfraquecer o realismo de senso comum, antes de examinarmos quatro teorias da percepção mais
sofisticadas: o realismo representativo, o idealismo, o fenomenismo e o realismo causal.
Apesar de podermos cometer erros no que respeita à visão de objectos à distância sob
condições extraordinárias, existem certamente observações das quais não podemos duvidar
seriamente. Por exemplo, não posso duvidar seriamente de que neste momento estou sentado à
minha secretária a escrever estas palavras, de que tenho uma caneta na minha mão e de que existe
um bloco de apontamentos à minha frente. Analogamente, não posso duvidar seriamente de que
estou em Inglaterra, e não, por exemplo, no Japão. Há casos incontestáveis de conhecimento através
dos quais aprendemos o conceito de conhecimento. Só podemos duvidar de outras crenças porque
temos este pano de fundo de casos de conhecimento: sem estes casos incontroversos não teríamos
nenhum conceito de conhecimento e não teríamos nada contra o qual pudéssemos contrastar crenças
mais duvidosas.
Contra esta perspectiva, um céptico faria notar que eu poderia muito bem estar enganado
quanto ao que parecem casos inquestionáveis de conhecimento: posso ter pensado, em sonhos, que
estava acordado a escrever, quando de facto estava a dormir na minha cama. Logo, como posso
afirmar que não estou a sonhar e que estou a escrever? Como posso afirmar que não estou deitado
algures em Tóquio, sonhando que estou acordado em Inglaterra? Certamente que já tive sonhos
mais estranhos do que isso. Existe alguma coisa na experiência do sonho que possa distingui-lo
conclusivamente da experiência da vigília?
Não faria sentido dizer que toda a minha vida é um sonho. Se eu estivesse sempre a sonhar,
não teria qualquer conceito de sonho: não teria nada com o qual contrastar o sonho, uma vez que
não teria nenhum conceito de estar acordado. Só podemos dar sentido à ideia de uma nota falsa
quando existem notas genuínas com as quais podemos compará-las; analogamente, a ideia de sonho
só faz sentido quando podemos compará-lo com a vigília.
Isto é verdade, mas não destrói a posição céptica. O céptico não afirma que podemos estar
sempre a sonhar, mas antes que em nenhum momento podemos ter a certeza se estamos ou não a
sonhar.
Outra objecção à ideia de que poderia estar a sonhar que estou a escrever estas palavras
defende que a experiência que temos quando sonhamos é muito diferente daquela que possuímos
durante a vigília e que, de facto, podemos saber se estamos a sonhar ou não através do exame da
qualidade da nossa experiência. Os sonhos implicam muitos acontecimentos que seriam impossíveis
na vigília; habitualmente, não são tão vívidos como a experiência da vigília; podem ser imprecisos,
desarticulados, impressivos, bizarros, etc. Além disso, todo o argumento céptico se baseia na
capacidade de distinguir os sonhos da vigília: de que outra forma poderia eu saber que por vezes
sonhei estar acordado quando, na realidade, estava a dormir? Esta recordação só faz sentido se eu
tiver uma forma de afirmar que numa das experiências estava realmente acordado e que na outra
estava a sonhar que estava acordado.A força desta resposta depende muito da experiência que cada
um tem dos sonhos. Os sonhos de algumas pessoas podem ser extraordinariamente diferentes da
vigília. Contudo, muitas pessoas têm pelo menos alguns sonhos indistinguíveis da experiência
quotidiana; e a experiência que algumas pessoas têm durante a vigília, sobretudo quando estão sob a
influência do álcool ou de outras drogas, pode ter uma índole fortemente onírica. Além disso, a
experiência de falsos despertares — quando o sonhador sonha que acordou, se levantou, se vestiu,
tomou o pequeno-almoço, etc. — é relativamente comum. Contudo, em tais casos, o sonhador não
se pergunta habitualmente se se trata da vigília ou não; geralmente, só quando ele acorda de facto é
que a questão «Estarei a sonhar agora?» se torna relevante. Não posso perguntar «Estarei a
sonhar?»
Pelo menos um filósofo contemporâneo, Norman Malcom (1911-), defendeu que o conceito
de sonho faz que seja logicamente impossível perguntar «estarei a sonhar?» quando estamos a
sonhar. Fazer uma pergunta implica que a pessoa que a faz está consciente. Mas, sustenta Malcom,
quando estou a sonhar, não estou, por definição, consciente, uma vez que estou a dormir. Se não
estou a dormir, não posso estar a sonhar. Se posso fazer a pergunta, não posso estar a dormir e,
portanto, não posso estar a sonhar. Só posso sonhar que estou a fazer a pergunta e isso não é o
mesmo que fazer, verdadeiramente, a pergunta.
Contudo, a investigação sobre o sonho mostrou que muitas pessoas experimentam diferentes
níveis de consciência enquanto dormem. Algumas têm o que é conhecido por sonhos lúcidos. Num
sonho lúcido, o sonhador torna-se consciente de que está a sonhar, continuando no entanto a sonhar.
A existência de tais sonhos refuta a ideia de que é impossível estar consciente ao mesmo tempo que
se está a dormir. O erro cometido por Malcom foi redefinir «sonho» de forma a já não significar o
que geralmente se entende por esse termo. Afirmar que o sonho é necessariamente um estado não
consciente é uma perspectiva excessivamente simples.
4.6 ALUCINAÇÃO
Mesmo que não esteja a dormir, posso estar a alucinar. Alguém pode ter deitado uma droga
no meu café que provoque alterações mentais de forma que me pareça ver coisas que na verdade
não existem. Talvez não tenha realmente uma caneta na mão; talvez não esteja de facto sentado
frente a uma janela num dia soalheiro. Se ninguém deitou LSD no meu café, talvez aconteça
apenas que atingi um tal estado de alcoolismo que comecei a alucinar. Contudo, apesar de esta ser
uma possibilidade, é altamente improvável que possa prosseguir tão facilmente a minha vida. Se a
cadeira onde estou sentado é apenas imaginária, como pode ela sustentar o meu peso? Uma resposta
a isto é que eu posso desde logo estar a alucinar que estou sentado: posso pensar que me vou sentar
numa confortável poltrona quando de facto estou deitado num chão de pedra e tomei um
alucinogénio, ou bebi uma garrafa inteira de Pernod.
A versão mais extrema deste cepticismo acerca do mundo exterior e da minha relação com
ele é imaginar que não tenho corpo. Tudo o que sou é um cérebro a flutuar numa cuba de produtos
químicos. Um cientista perverso ligou de tal forma fios ao meu cérebro que tenho a ilusão da
experiência sensorial. O cientista criou uma espécie de máquina de experiências. Do meu ponto de
vista, posso levantar-me e dirigir-me à loja para comprar um jornal. Contudo, quando faço isto, o
que está realmente a acontecer é que o cientista está a estimular certos nervos do meu cérebro de
maneira que eu tenha a ilusão de fazer isto. Toda a experiência que penso provir dos meus cinco
sentidos é na verdade o resultado de este cientista perverso estar a estimular o meu cérebro
desencarnado. Com esta máquina de experiências, o cientista pode fazer que eu tenha qualquer
experiência sensorial que poderia ter na vida real. Através de um estímulo complexo dos nervos do
meu cérebro, o cientista pode dar-me a ilusão de estar a ver televisão, a correr uma maratona, a
escrever um livro, a comer massa ou qualquer outra coisa que eu poderia fazer. A situação não é tão
rebuscada como pode parecer: os cientistas estão já a fazer experiências com simulações feitas em
computador conhecidas como máquinas de «realidade virtual». A história do cientista perverso é
um exemplo do que os filósofos chamam uma experiência mental. Trata-se de uma situação
imaginária descrita de forma a esclarecer certas características dos nossos conceitos e pressupostos
diários. Numa experiência mental, tal como numa experiência científica, através da eliminação de
detalhes que complicam as coisas e através do controlo do que acontece, o filósofo pode fazer
descobertas acerca dos conceitos sob investigação. Neste caso, a experiência mental é concebida
para mostrar alguns dos pressupostos que costumamos ter acerca das causas da nossa experiência.
Haverá alguma coisa acerca da minha experiência que possa mostrar que esta experiência mental
não dá uma boa imagem da realidade, que eu não sou apenas um cérebro numa cuba a um canto do
laboratório do cientista perverso?
4.8 MEMÓRIA E LÓGICA
Apesar de a ideia de que posso ser apenas um cérebro numa cuba parecer constituir uma
forma extrema de cepticismo, há ainda, de facto, outros pressupostos de que podemos duvidar.
Todos os argumentos que discutimos até agora pressupõem que a memória é mais ou menos digna
de confiança. Quando dizemos que nos recordamos de ocasiões passadas em que os nossos sentidos
não foram dignos de confiança, pressupomos que estas recordações são realmente recordações e que
não são apenas produtos da nossa imaginação ou de raciocínios caprichosos. E todos os argumentos
que usam palavras pressupõem que nos lembramos correctamente do significado das palavras
usadas. No entanto, a memória, tal como os dados dos nossos sentidos, não é digna de confiança. A
minha experiência é não só compatível com a perspectiva de que poderia ser um cérebro numa cuba
estimulado por um cientista perverso, mas também, como Bertrand Russell (1872-1970) fez notar,
com a ideia de que o mundo poderia ter aparecido há cinco minutos juntamente com todas as
pessoas que o habitam com «recordações» intactas, recordando-se todas de um passado
completamente irreal.
Sendo assim, existirá alguma coisa acerca da qual eu possa ter a certeza? A resposta mais
famosa e importante a esta questão céptica foi dada por Descartes. Ele argumentou que, mesmo que
toda a minha experiência fosse o produto de algo ou de alguém que me enganasse deliberadamente
— Descartes usou a ideia de um génio maligno em vez de um cientista perverso —, o próprio facto
de eu estar a ser iludido me mostraria algo de indubitável — me mostraria que existo, uma vez que,
se não existisse, não haveria ninguém para o enganador enganar. Este argumento é muitas vezes
conhecido como o cogito, do latim «Cogito ergo sum», que significa «Penso, logo existo».
Uma crítica ao realismo representativo defende que esta teoria parece limitar-se a fazer
recuar o problema da compreensão da percepção. Segundo o realismo representativo, quando
percepcionamos algo, fazemo-lo através de um tipo qualquer de representação mental. Assim, ver
alguém a dirigir-se na minha direcção é como ver um filme deste acontecimento. Mas se isto é
assim, o que estará então a interpretar a imagem no écran? E como se eu tivesse uma pessoa
pequenina sentada na minha cabeça a interpretar o que acontece. E é de presumir que esta pessoa
pequenina teria de ter outra pessoa ainda mais pequenina dentro da sua cabeça para interpretar a
interpretação: e assim por diante, infinitamente. Parece improvável que eu tenha um número infinito
de pequenos intérpretes na minha cabeça. O mundo real é incognoscível Uma objecção importante
ao realismo representativo afirma que esta teoria faz que o mundo real seja incognoscível. Ou então
só é indirectamente cognoscível. Tudo o que poderá alguma vez constituir as nossas experiências
são as nossas representações mentais do mundo — e não temos maneira de comparar as nossas
representações mentais do mundo com o próprio mundo. É como se cada um de nós estivesse
encurralado num cinema privado que nunca podemos abandonar. No écran vemos vários filmes e
presumimos que eles mostram o mundo real tal como é — pelo menos em termos das qualidades
primárias dos objectos que vemos representados. Mas, uma vez que não podemos sair do cinema
para verificar o nosso pressuposto, nunca podemos saber qual é o grau de semelhança entre o
mundo tal como aparece nos filmes e o mundo real.Este é um problema sobretudo para o realismo
representativo, porque esta teoria afirma que as nossas representações mentais das qualidades
primárias dos objectos são semelhantes às próprias qualidades dos objectos do mundo exterior. Mas,
se não temos maneira de verificar se isto é verdade, não temos razões para acreditar nisso. Se a
minha representação mental de uma moeda é circular, não tenho maneira de verificar se isto
corresponde à verdadeira forma da moeda. Estou limitado aos dados dos meus sentidos e, uma vez
que estes funcionam através de representações mentais, nunca poderei ter uma informação directa
acerca das verdadeiras propriedades da moeda.
4.13 IDEALISMO
O idealismo é uma teoria que evita algumas das dificuldades que se levantam ao realismo
representativo. Tal como esta última teoria, o idealismo faz dos dados sensoriais de entrada o
ingrediente básico na nossa experiência do mundo. Assim, também o idealismo se baseia na noção
de que toda a nossa experiência é constituída por representações mentais, e não pelo mundo.
Contudo, o idealismo vai mais longe do que o realismo representativo. Defende que não existe
justificação para afirmar que o mundo exterior existe realmente, uma vez que, como vimos nas
nossas críticas ao realismo representativo, o mundo exterior é incognoscível. Isto parece absurdo.
Como pode alguém defender seriamente que estamos enganados quando falamos do mundo
exterior? Sem dúvida que todos os indícios apontam na direcção oposta. Um idealista responderia
que os objectos físicos — a Catedral de S. Paulo, a minha secretária, as outras pessoas, etc. — só
existem enquanto estão a ser percepcionadas. Não precisamos de introduzir a ideia da existência de
um mundo real para lá da nossa experiência: tudo o que podemos de facto conhecer são as nossas
experiências. E mais conveniente dizer «Estou a ver ali a minha guitarra» do que «Estou a ter uma
experiência visual do tipo guitarra», mas um idealista argumentaria que a primeira é apenas uma
abreviatura da última. As palavras «minha guitarra» são uma forma conveniente de referir um
padrão recorrente de experiências sensoriais, e não um qualquer objecto físico que exista
independentemente das minhas percepções. Estamos todos fechados em cinemas individuais a ver
filmes, mas não há nenhum mundo fora dos cinemas. Não podemos abandonar o cinema porque não
há nada lá fora. Os filmes são a nossa única realidade. Quando ninguém está a olhar para o écran, o
projector desliga-se, mas o filme continua a passar. Sempre que olho para o écran, o projector
acende-se e o filme está precisamente no momento em que estaria se o projector tivesse estado
sempre ligado.
Uma consequência disto é que, para os idealistas, os objectos só existem enquanto são
percepcionados. Quando um objecto não está a ser percepcionado no meu cinema privado, não
existe. O bispo Berkeley (1685-1753), o mais famoso idealista, declarou que «esse est percipi»:
existir é ser percepcionado. Assim, quando deixo uma sala, esta deixa de existir, quando fecho os
olhos, o mundo desaparece, quando pestanejo, seja o que for que está à minha frente deixa de estar
— desde que, claro, mais ninguém esteja a percepcionar estas coisas na altura.
Á primeira vista, esta teoria da percepção pode ter dificuldades em lidar com as alucinações
e com os sonhos. Se tudo aquilo de que temos experiência são as nossas próprias ideias, como
conseguimos distinguir a realidade da imaginação?
Uma das principais críticas à teoria idealista da percepção defende que esta parece conduzir
ao solipsismo: a perspectiva segundo a qual a minha mente é tudo o que existe e que tudo o resto é
uma criação minha. Se as únicas coisas de que posso ter experiência são as minhas próprias ideias,
não somos conduzidos apenas à perspectiva segundo a qual não existem objectos físicos; somos
também conduzidos à perspectiva segundo a qual não existem outras pessoas (ver a secção «Mentes
alheias», pp. 212-213). Tenho tantos indícios favoráveis à existência de outras pessoas como a favor
da existência de outros objectos físicos, nomeadamente padrões repetidos de informação sensorial.
Mas então, uma vez que afastámos a ideia da existência de objectos físicos reais responsáveis pela
minha experiência, talvez nada exista excepto enquanto ideia na minha mente. Talvez todo o mundo
e tudo o que ele tem seja uma criação da minha mente. Talvez não exista mais ninguém. Para o
colocar em termos do meu exemplo do cinema: talvez o meu próprio cinema privado, com o seu
repertório específico de filmes, seja a única coisa que existe. Não há outros cinemas e não há nada
exterior ao meu cinema.
Por que razão constituirá uma crítica afirmar que uma teoria conduz ao solipsismo? Uma resposta
a isto é que o solipsismo se parece mais com uma doença mental, uma forma de megalomania, do
que com uma posição filosófica defensável. Talvez uma resposta mais persuasiva, usada por Jean-
Paul Sartre na sua obra O Ser e o Nada, seja a de que, em quase todas as acções, todos nós
mostramos acreditar que existem outras mentes para além da nossa. Por outras palavras, não é o tipo
de posição que qualquer de nós poderia facilmente adoptar à vontade: estamos tão acostumados a
presumir a existência de outras pessoas que agir de acordo com o solipsismo dificilmente seria
concebível. Tome-se o exemplo de emoções sociais como a vergonha e o embaraço. Se for
apanhado a fazer qualquer coisa que preferia não ser visto a fazer, tal como espreitar pelo buraco da
fechadura, terei muito provavelmente vergonha. No entanto, se eu fosse um solipsista, isto não faria
sentido. O próprio conceito de vergonha não teria sentido. Enquanto solipsista, eu acreditaria ser a
única mente existente: não existiria mais ninguém para me julgar. Analogamente, sentir embaraço
seria absurdo para um solipsista. Não existiria nenhuma pessoa perante a qual pudesse sentir-me
embaraçado, excepto eu mesmo. O grau com que estamos comprometidos com a crença na
existência de um mundo para além das nossas próprias experiências é tal, que mostrar que uma
posição filosófica conduz ao solipsismo é suficiente para enfraquecer a sua plausibilidade.
O idealismo pode também ser criticado por outros motivos. Mesmo que concordemos com a
ideia do idealista de que tudo a que temos acesso são as nossas próprias experiências sensoriais,
poderíamos, ainda assim, querer saber o que causa estas experiências e porque se conformam a tais
padrões regulares. Por que razão podem as experiências sensoriais ser organizadas tão facilmente
naquilo a que na linguagem quotidiana chamamos «objectos físicos»? Certamente que a resposta
mais directa a isto é afirmar que os objectos físicos existem realmente lá fora, no mundo exterior, e
que causam as experiências sensoriais que temos deles. Era isto, sem dúvida, que Samuel Johnson
(1709-1784) queria dizer quando, em resposta ao idealismo do bispo Berkeley, deu um forte
pontapé numa grande pedra, declarando: «Refuto-o assim.»
Berkeley sugeriu que é Deus, e não os objectos físicos, que causa a nossa experiência
sensorial. Deus deu-nos uma experiência sensorial ordenada. Deus percepciona todos os objectos
durante todo o tempo, de forma que o mundo continua a existir quando não é percepcionado pelos
seres humanos. Contudo, como vimos no capítulo 1, a existência de Deus não pode ser dada como
garantida. Para muitas pessoas, a existência de objectos físicos reais seria uma hipótese explicativa
muito mais aceitável das causas da nossa experiência.
O idealista acredita que, para que algo exista, tem de ser percepcionado. Uma razão para
esta crença é o facto de ser logicamente impossível que alguém possa verificar se o contrário é
verdade: ninguém poderia observar se a minha guitarra deixa de existir quando ninguém está a
percepcioná-la, uma vez que para fazer essa observação alguém teria de estar a percepcioná-la. No
entanto, mesmo que isto seja verdade, há vários indícios que apontam para o facto de a minha
guitarra continuar a existir quando não é percepcionada. A ex plicação mais simples para o facto de
ela continuar encostada à parede quando acordo de manhã é admitir que ninguém lhe mexeu, nem a
levou emprestada, nem a roubou e que continuou a existir impercepcionada pela noite fora. A teoria
do fenomenismo é um desenvolvimento do idealismo que leva em linha de conta esta hipótese
altamente plausível.
4.15 FENOMENISMO
Tal como o idealismo, o fenomenismo é uma teoria da percepção baseada na ideia de que só
temos acesso directo à experiência sensorial e não ao mundo exterior. Mas difere do idealismo na
sua explicação dos objectos físicos. Ao passo que os idealistas defendem que a nossa noção de um
objecto físico é uma abreviatura de um grupo de experiências sensoriais, fenomenistas como John
Stuart Mill pensam que os objectos físicos podem ser completamente descritos em termos de
padrões de experiências sensoriais efectivas ou possíveis. A possibilidade de ter experiência
sensorial da minha guitarra continua em aberto mesmo quando não estou efectivamente a olhar para
ela ou a tocar-lhe. Os fenomenistas acreditam que todas as descrições dos objectos físicos podem
ser traduzidas em termos de descrições de experiências sensoriais efectivas ou hipotéticas.
Um fenomenista é como alguém encurralado no seu próprio cinema privado, a ver filmes.
Mas, ao contrário do idealista, que acredita que as coisas representadas no écran deixam de existir
quando não estão a ser projectadas, o fenomenista acredita que estes objectos continuam a existir
enquanto experiências possíveis mesmo que não estejam a ser projectados no écran nesse momento.
Além disso, o fenomenista acredita que tudo o que aparece, ou poderia aparecer, no écran pode ser
descrito na linguagem da experiência sensorial sem qualquer referência a objectos físicos.
É extremamente complicado exprimir uma afirmação sobre objectos físicos como «a minha
guitarra está encostada à parede, no meu quarto, impercepcionada» somente em termos de
experiências sensoriais. Na verdade, todas as tentativas de descrever objectos físicos desta forma
falharam.
4.16.2 O solipsismo e o argumento da linguagem privada
O fenomenismo, tal como o idealismo, parece conduzir ao solipsismo: as outras pessoas são
apenas experiências perceptivas efectivas ou possíveis que eu poderia ter. Já examinámos várias
objecções ao solipsismo. O argumento da linguagem privada, originalmente usado por Ludwig
Wittgenstein (1889-1951) na sua obra Investigações Filosóficas, proporciona outra objecção a este
aspecto do fenomenismo.
O fenomenismo presume que cada pessoa pode identificar e nomear sensações particulares
somente com base na sua própria experiência directa. Esta identificação e reidentificação de
sensações apoia-se na experiência privada, e não na existência de objectos físicos públicos. O
argumento da linguagem privada mostra que esse acto privado de nomear e re-identificar as
sensações jamais poderia ocorrer, enfraquecendo assim o fenomenismo.
O realismo causal presume que as causas da nossa experiência sensorial são os objectos
físicos existentes no mundo exterior. O realismo causal parte da observação de que a função
biológica principal dos nossos sentidos é ajudar a orientarmo-nos no nosso meio ambiente. E
através dos nossos sentidos que adquirimos crenças acerca do nosso meio. Segundo o realismo
causal, quando vejo a minha guitarra, o que acontece realmente é o seguinte: os raios de luz
reflectidos na guitarra causam certos efeitos na minha retina e noutras áreas do meu cérebro. Isto
faz-me adquirir certas crenças acerca do que estou a ver. A experiência de adquirir tais crenças é a
experiência de ver a minha guitarra.
A maneira pela qual adquirimos crenças perceptivas é importante: nem todas as maneiras
servem. Para que eu possa ver realmente a minha guitarra é essencial que a mesma seja a causa das
crenças por mim adquiridas acerca dela. A ligação causal própria da visão é a que resulta de um
objecto que reflecte raios de luz para a minha retina e o processo subsequente de processar esta
informação no meu cérebro. Se, por exemplo, eu estava sob o efeito de barbitúricos e estava apenas
a sofrer uma alucinação, não estava a ver a minha guitarra. A causa das minhas crenças eram os
barbitúricos, e não a guitarra.
Outra grande vantagem do realismo causal sobre as teorias rivais da percepção é o facto de
poder facilmente explicar c o m o pode o nosso c o n h e c i m e n t o actual afectar a nossa
percepção. Ao adquirir informação, o nosso sistema de classificação e o nosso conhecimento
existente afectam directamente a forma como tratamos a nova informação e o que seleccionamos e
interp r e t a m o s c o m o relevante. Iremos regressar a este tema no próximo capítulo, na secção
«Observação» (ver pp. 168-171).
A principal crítica ao realismo causal defende que ele não dá conta, satisfatoriamente, do
que é realmente ver algo, não dá conta do aspecto qualitativo da visão. Reduz a experiência da
percepção a uma forma de recolha de informação. Contudo, o realismo causal é, até hoje, a teoria da
percepção mais satisfatória.
4.19 CONCLUSÃO
Neste capítulo explorámos algumas das teorias filosóficas mais importantes acerca do
mundo exterior e da nossa relação com ele. O próximo capítulo centra-se numa forma particular de
descobrir o mundo, nomeadamente a investigação científica.
The British Empiricists, de Stephen Priest (Londres, Penguin, 1990), outro livro já
recomendado na minha introdução, inclui discussões de vários tópicos deste capítulo.
Introduction to the Theory of Knowledge (Brighton, Harvester, 1982), de D. J. O'Connor
e Brian Carr, é uma introdução útil a esta área, tal como The Problem of Knowledge (Londres,
Penguin, 1956), de A. J. Ayer.
5 CIÊNCIA
Mas o que é o método científico? Será realmente tão digno de confiança quanto somos
habitualmente levados a acreditar? Como progride a ciência? Este é o tipo de questões que os
filósofos da ciência colocam. Nesta secção, consideraremos algumas questões gerais acerca da
natureza do método científico. A perspectiva simples do método científico
Assim, por exemplo, um cientista pode começar por aquecer água a 100°C sob condições
normais e observar a água a entrar em ebulição e a evaporar-se. O cientista pode então fazer várias
outras observações do comportamento da água sob diferentes temperaturas e pressões. Com base
nestas observações, o cientista irá sugerir uma teoria acerca do ponto de ebulição da água em
relação à temperatura e à pressão. Esta teoria irá explicar não apenas as observações particulares
feitas pelo cientista, mas também, se for uma boa teoria, explicar e prever todas as observações
futuras do comportamento da água sob diferentes temperaturas e pressões. Segundo esta
perspectiva, o método científico começa com observações, passa à teoria e produz assim uma
generalização (ou enunciado universal) capaz de gerar previsões. Se a generalização for boa, será
considerada uma lei da natureza. A ciência produz resultados objectivos que podem ser confirmados
por qualquer pessoa que queira repetir os testes originais.
5.1.1 Observação
Como vimos, a perspectiva simples do método científico afirma que os cientistas começam
por efectuar observações imparciais antes de formularem teorias para explicar essas observações.
Contudo, isto é uma má descrição do que a observação realmente é: a perspectiva simples pressupõe
que o nosso conhecimento e expectativas não afectam as nossas observações, que é possível fazer
observações de forma completamente isenta de preconceitos.
Tal como sugeri quando discuti a percepção no capítulo anterior, ver algo não é apenas ter
uma imagem na nossa retina. Ou, como defendeu o filósofo N. R. Hanson (1924-1967), «a visão
envolve mais coisas do que o globo ocular». O nosso conhecimento e as nossas expectativas do que
iremos provavelmente ver afectam o que vemos de facto. Por exemplo, quando eu olho para os fios
de uma central telefónica, vejo apenas um emaranhado caótico de fios coloridos; um engenheiro de
telecomunicações, ao olhar para a mesma coisa, veria padrões de conexões e outras coisas. O pano
de fundo das crenças do engenheiro de telecomunicações afecta o que ele efectivamente vê. O
engenheiro e eu não temos a mesma experiência visual que depois interpretamos de forma diferente:
a experiência visual, como a teoria realista causal da percepção sublinha, não pode separar-se das
nossas crenças acerca do que estamos a ver.
Como outro exemplo deste aspecto, pense o leitor na diferença entre o que um físico
experiente vê quando olha para um microscópio electrónico e o que uma pessoa de uma cultura pré-
científica veria ao olhar para o mesmo equipamento. O físico compreenderia a inter-relação entre
as diferentes partes do instrumento e avaliaria a forma de o usar e o que poderia fazer-se com ele.
Para a pessoa da cultura pré-científica, o instrumento constituiria provavelmente uma confusão de
estranhos bocados de metal e fios, unidos de forma misteriosa.
É claro que existem muitas coisas em comum que observadores diferentes da mesma coisa
irão ver; caso contrário, a comunicação seria impossível. Mas a perspectiva simples do método
científico tem tendência para menosprezar este facto importante acerca da observação: o que vemos
não pode ser pura e simplesmente reduzido às imagens nas nossas retinas. O que habitualmente
vemos depende daquilo a que se chama o «enquadramento mental»: o nosso conhecimento e
expectativas e também o meio cultural em que fomos educados. Contudo, vale a pena notar que
existem algumas observações que se recusam obstinadamente a ser afectadas pelas nossas crenças.
Apesar de saber que a Lua não é maior quando surge mais abaixo no horizonte do que quando está
no seu zénite, não consigo evitar vê-la maior. Neste caso, a minha experiência perceptiva da Lua
não é afectada pelas minhas crenças conscientes de fundo. E óbvio que digo que a Lua «parece
maior», e não que «é maior», e isto implica a presença de conhecimentos teóricos, mas parece ser
um caso em que a minha experiência perceptiva é imune à influência das minhas crenças. Isto
mostra que a relação entre o que sabemos e o que vemos não é tão simples como por vezes se
pensa: o conhecimento de fundo não faz sempre que vejamos de forma diferente. Isto não
enfraquece o argumento contra a perspectiva simples da ciência, uma vez que, na maioria dos casos,
o que vemos é significativamente afectado pelo nosso enquadramento mental. Enunciados
observacionais
5.1.2 Selecção
Estamos sempre a usar argumentos indutivos. E a indução que nos leva a esperar que o
futuro seja semelhante ao passado. Já bebi café muitas vezes, mas nunca me envenenou, por isso
presumo, com base num argumento indutivo, que o café não me vai envenenar daqui para a frente.
Sempre vi o dia seguir-se à noite, pelo que presumo que continuará a fazê-lo. Observei muitas vezes
que, se estiver à chuva, fico molhado, pelo que presumo que o futuro será como o passado e evito
sempre que possível estar à chuva. Todos estes exemplos são casos de indução. As nossas vidas são
todas baseadas no facto de a indução nos proporcionar previsões razoavelmente fidedignas acerca
do nosso meio e do resultado provável das nossas acções. Sem o princípio da indução, a nossa
interacção com o meio seria completamente caótica: não teríamos bases para presumir que o futuro
seria como o passado. Não saberíamos se a comida que nos preparamos para ingerir iria alimentar-
nos ou envenenar-nos; não saberíamos a cada passo se o chão iria sustentar-nos ou abrir-se um
abismo, etc. Toda a regularidade prevista do nosso meio estaria aberta à dúvida.
Apesar deste papel central desempenhado pela indução nas nossas vidas, é um facto
indesmentível que o princípio da indução não é inteiramente fidedigno. Como já vimos, pode dar-
nos uma conclusão falsa relativamente à questão de saber se é verdade que todos os animais com
pêlo são vivíparos. As suas conclusões não são tão fidedignas quanto as conclusões resultantes de
argumentos dedutivos com premissas verdadeiras. Para ilustrar este aspecto, Bertrand Russell, nos
Problemas da Filosofia, usou o exemplo de uma galinha que acorda todas as manhãs pensando que,
uma vez que foi alimentada no dia anterior, sê-lo-á mais uma vez naquele dia. Um dia acorda e o
camponês torce-lhe o pescoço. A galinha estava a usar um argumento indutivo baseado num grande
número de observações. Estaremos a ser tão tolos quanto esta galinha ao apoiar-nos tão fortemente
na indução? Como poderemos justificar a nossa fé na indução? Este é o chamado problema da
indução, um problema identificado por David Hume no seu Tratado acerca do Conhecimento
Humano. Como poderemos nós alguma vez justificar a nossa confiança num método de
argumentação tão pouco digno de confiança? Esta questão é particularmente relevante para a
filosofia da ciência porque, pelo menos na teoria simples delineada acima, a indução desempenha
um papel crucial no método científico. Outro aspecto do problema da indução
Até agora tratámos o problema da indução como uma questão acerca da justificação da
generalização sobre o futuro com base no passado. Há outro aspecto do problema da indução que
ainda não abordámos. Trata-se do facto de existirem numerosas generalizações muito diferentes
que poderíamos fazer com base no passado, todas elas consistentes com a informação disponível.
Contudo, estas diferentes generalizações podem resultar em previsões completamente diferentes
acerca do futuro. Isto é muito bem exemplificado no exemplo do «verdul», introduzido pelo filósofo
contemporâneo Nelson Goodman (1906-). Este exemplo pode parecer de alguma forma artificial,
mas ilustra um aspecto importante.
Goodman inventou o termo «verdul» para revelar este segundo aspecto do problema da
indução. «Verdul» é o nome de uma cor. Uma coisa é verdul se for observada antes do ano 2000 e
for verde ou se não for observada antes do ano 2000 e for azul. Temos uma vasta experiência que
sugere ser verdadeira a generalização «Todas as esmeraldas são verdes». Mas a informação
disponível é igualmente consistente com a ideia de que «todas as esmeraldas são verduis»
(presumindo que todas as observações foram feitas antes do ano 2000). No entanto, afirmar que
todas as esmeraldas são verdes ou que são verduis afecta as previsões que faremos acerca da
observação de esmeraldas depois do ano 2000. Se dissermos que todas as esmeraldas são verduis, a
nossa previsão será a de que algumas esmeraldas observadas depois do ano 2000 serão azuis: as que
foram observadas antes do ano 2000 serão verdes e as que não foram observadas antes do ano 2000
serão azuis. No entanto, se dissermos, como é mais natural, que todas as esmeraldas são verdes, a
nossa previsão será a de que todas elas serão verdes seja qual for a altura em que forem observadas.
Este exemplo mostra que as previsões que fazemos com base na indução não são as únicas
que poderíamos fazer com base na informação disponível. Assim, não só ficamos com a conclusão
de que as previsões que fazemos com base na indução não são cem por cento fidedignas, mas
também que nem sequer são as únicas previsões consistentes com a informação que acumulámos.
Uma resposta ao problema da indução é fazer notar que a confiança na indução não é apenas
generalizada, mas também razoavelmente frutuosa: a maior parte das vezes é uma forma
extremamente útil de descobrir regularidades na natureza e de descobrir o seu comportamento
futuro. Como já fizemos notar, a ciência permitiu-nos mandar pessoas à Lua: se a ciência se baseia
no princípio da indução temos muitíssimos indícios de que a nossa crença na indução, é justificada.
E claro que há sempre a possibilidade de o Sol não nascer amanhã ou de, como a galinha, nos
torcerem o pescoço mal acordemos amanhã, mas a indução é o melhor método que temos.
Nenhuma outra forma de argumentação nos ajudará a prever melhor o futuro do que o princípio da
indução. Uma objecção a esta defesa do princípio da indução afirma que a própria defesa se apoia
na indução. Por outras palavras, é um argumento viciosamente circular. O argumento acaba por não
ser mais do que afirmar que, porque a indução demonstrou no passado ser bem sucedida, sob vários
aspectos, continuará a sê-lo no futuro. Mas esta afirmação é, ela própria, uma generalização baseada
num número específico de casos felizes de indução, tratando-se por isso, também, de um argumento
indutivo. Um argumento indutivo não pode justificar satisfatoriamente a indução: isso seria uma
petição de princípio, pressupondo o que nos propomos demonstrar, nomeadamente que a indução é
justificada. Evolução
Proposições universais, isto é, enunciados que começam por «Todos ...», tais como «Todos
os cisnes são brancos», pressupõem semelhanças entre as coisas individuais que estão a ser
agrupadas. Neste caso tem de existir uma semelhança entre todos os cisnes individuais para que
faça sentido agrupá-los. Contudo, como vimos no caso do «verdul», não existe apenas uma maneira
de classificar as coisas que encontramos no mundo ou as propriedades que lhes atribuímos. E
possível que, se um dia alguns extraterrestres pousassem na Terra, viéssemos a descobrir que
usavam categorias muito diferentes das que nós usamos e que, com base nelas, faziam previsões
indutivas muito diferentes das que nós fazemos.
Contudo, uma objecção a esta ideia é que a própria probabilidade é algo que pode mudar. A
atribuição de probabilidades a um acontecimento futuro é baseada na frequência da sua ocorrência
no passado. Mas a única justificação para supor que a probabilidade se verificará no futuro é, ela
mesma, indutiva. Logo, trata-se de um argumento circular, uma vez que confia na indução para
justificar a nossa confiança na indução.
Outra saída para o problema da indução, pelo menos tal como ele afecta o tema do método
científico, é negar que a indução seja a base do método científico. O falsificacionismo, a filosofia da
ciência desenvolvida por Karl Popper (1902-1994), entre outros, ocasiona isto mesmo. Os
falsificacionistas defendem que a perspectiva simples da ciência está errada. Os cientistas não
começam por fazer observações, começam com uma teoria. As teorias científicas e as chamadas leis
da natureza não aspiram à verdade: ao invés, são tentativas especulativas de oferecer uma análise de
vários aspectos da natureza. São conjecturas: suposições bem informadas, concebidas para serem
melhores do que as teorias anteriores.
Estas conjecturas são então sujeitas a testes experimentais. Mas estes testes têm um
objectivo muito específico. Não pretendem demonstrar que a conjectura é verdadeira, mas antes
demonstrar que é falsa. A ciência funciona tentando falsificar teorias, e não demonstrar que são
verdadeiras. Qualquer teoria que se mostre ser falsa é abandonada ou, pelo menos, modificada. A
ciência progride, assim, através de conjecturas e refutações. Nunca podemos ter a certeza, em
relação a qualquer teoria, de que ela é absolutamente verdadeira: em princípio, qualquer teoria pode
ser falsificada. Esta perspectiva parece adaptar-se bem ao progresso testemunhado na história da
ciência: a visão ptolemaica do universo, que coloca a Terra no seu centro, foi ultrapassada pela
copernicana; a física de Newton foi ultrapassada pela física de Einstein.
A falsificação tem pelo menos uma grande vantagem em relação à perspectiva simples da
ciência: um único caso de falsificação é suficiente para mostrar que uma teoria não é satisfatória, ao
passo que, por mais observações que confirmem uma teoria, nunca podem ser suficientes para nos
darem cem por cento de certeza de que a teoria será confirmada por todas as observações futuras.
Esta é uma característica dos enunciados universais. Se digo «Todos os cisnes são brancos», basta a
observação de um único cisne preto para refutar a minha teoria. Contudo, se eu observar dois
milhões de cisnes brancos, o próximo cisne que observar pode muito bem ser preto: por outras
palavras, a generalização é muito mais fácil de refutar do que de demonstrar. Falsificabilidade O
falsificacionismo proporciona também uma maneira de distinguir as hipóteses científicas úteis das
hipóteses irrelevantes para a ciência. O teste da utilidade de uma teoria é o seu grau de
falsificabilidade. Uma teoria é inútil para a ciência — na verdade, nem sequer é uma hipótese
científica — se não for possível que exista qualquer observação que a falsifique. Por exemplo, é
relativamente simples conceber testes que poderiam falsificar a hipótese «A chuva em Espanha
atinge principalmente a planície», ao passo que nenhum teste pode mostrar que é falso que «Ou vai
chover hoje ou não». Este último enunciado é verdadeiro por definição e portanto não tem nada a
ver com a observação empírica: não é uma hipótese científica.
Quanto mais falsificável for um enunciado, mais útil é à ciência. Muitos enunciados são
expressos de forma vaga, fazendo que seja bastante difícil ver como poderiam ser testados e como
interpretar os resultados. Um enunciado arrojado e falsificável, contudo, mostrará muito
rapidamente ser falso, ou então resistirá à falsificação. Em qualquer dos casos ajudará ao progresso
da ciência: se for falsificável, contribuirá para encorajar o desenvolvimento de uma hipótese que
não possa ser assim tão facilmente refutada; se mostrar ser difícil de falsificar, fornecerá uma teoria
convincente, e quaisquer novas teorias serão ainda melhores. • Ao examinar melhor algumas
hipóteses que muitas pessoas pensam serem científicas verificamos não serem testáveis: não há
observações que as falsifiquem. U m exemplo controverso disto ocorre no caso da psicanálise.
Alguns falsificacionistas argumentaram que muitas das afirmações da psicanálise são logicamente
infalsificáveis, não sendo, portanto, científicas. Se um psicanalista afirma que o sonho de um certo
doente é de facto acerca de um conflito sexual não resolvido da sua infância, não há nenhuma
observação que possa falsificar esta afirmação. Se o doente negar a existência de qualquer conflito,
o analista tomará isto como mais uma confirmação de que o doente está a reprimir algo. Se o doente
admitir que a interpretação do analista é correcta, também isto irá confirmar a hipótese. Logo, não
há maneira de falsificar a afirmação, não podendo portanto aumentar o nosso conhecimento do
mundo. Portanto, segundo os falsificacionistas, é uma hipótese pseudocientífica: não é de maneira
nenhuma uma verdadeira hipótese científica. Contudo, só porque uma teoria não é científica neste
sentido, não se segue que não tenha valor. Popper pensava que muitas das afirmações da psicanálise
poderiam eventualmente tornar-se testáveis, mas que, na sua forma pré-científica, não deveriam ser
tomadas como hipóteses científicas.
A razão para evitar hipóteses que não podem ser testadas é o facto de impedirem o
progresso científico: se não é possível refutá-las, não há maneira de as substituir por uma teoria
melhor. O processo da conjectura e refutação característico do progresso científico seria
contrariado. A ciência progride através dos erros: através de teorias que são falsificadas e
substituídas por outras melhores. Neste sentido, há um certo grau de tentativa e erro na ciência. Os
cientistas experimentam uma hipótese, verificam se podem falsificá-la e, se o conseguirem,
substituem-na por outra melhor, que é então sujeita ao mesmo tratamento. Todas as hipóteses
substituídas — os erros — contribuem para o acréscimo geral do nosso conhecimento do mundo.
Ao invés, as teorias logicamente infalsificáveis são, a esse respeito, pouco úteis para o cientista.
Muitas das mais revolucionárias teorias científicas tiveram origem em conjecturas arrojadas
e imaginativas. A teoria de Popper sublinha a imaginação criativa envolvida na concepção de novas
teorias. A este respeito dá uma explicação mais plausível da criatividade cientifica do que a
perspectiva simples, que faz das teorias científicas deduções lógicas a partir das observações.
Uma crítica ao falsificacionismo é o facto de não conseguir tomar em linha de conta o papel
da confirmação de hipóteses na ciência. Ao concentrar-se nas tentativas de falsificar hipóteses, não
presta atenção aos efeitos das previsões bem sucedidas sobre a aceitação ou não de uma hipótese
científica. Por exemplo, se a minha hipótese afirma que a temperatura a que a água entra em
ebulição varia de forma constante em relação à pressão atmosférica do ambiente em que a
experiência for conduzida, isto permitir-me-á fazer várias previsões acerca da temperatura a que a
água entrará em ebulição sob diferentes pressões. Por exemplo, poderá levar-me a prever — e bem
— que os montanhistas não conseguirão fazer uma boa chávena de chá a altitudes elevadas porque a
água entra em ebulição a uma temperatura inferior a 100°C, de forma que a infusão das folhas de
chá não se daria da forma apropriada. Se se mostrar que as minhas previsões são precisas, esse facto
servirá para apoiar a minha teoria. O tipo de falsificacionismo descrito acima ignora este aspecto da
ciência. Previsões bem sucedidas com base em hipóteses, sobretudo se são hipóteses invulgares e
originais, desempenham um papel importante no desenvolvimento científico.
Isto não destrói o falsificacionismo: o poder lógico de uma única observação falsificadora
continuará a ser sempre maior do que qualquer número de observações confirmadoras. No entanto,
o falsificacionismo precisa de ser ligeiramente modificado para dar conta do papel desempenhado
pela confirmação de hipóteses.
O falsificacionismo parece advogar o derrube de uma teoria com base num único caso de
falsificação. Contudo, na prática há muitas componentes em qualquer experiência ou estudo
científico, havendo geralmente margem considerável para o erro e a má interpretação dos
resultados. Os aparelhos de medição podem funcionar mal ou os métodos de recolha de dados
podem não ser fidedignos. Assim, os cientistas não deviam, certamente, ser facilmente
influenciados por uma observação única que pareça destruir uma teoria. Popper concordaria com
isto. Não se trata de um problema sério para o falsificacionismo. Do ponto de vista da lógica é claro
que, em princípio, um único caso falsificador pode destruir uma teoria. Contudo, Popper não sugere
que os que praticam a ciência devem pura e simplesmente abandonar uma teoria assim que tiverem
um caso que aparentemente a falsifique: pelo contrário, devem ser cépticos e investigar todas as
origens possíveis de erro. Historicamente incorrecto O falsificacionismo não dá
adequadamente conta de muitos dos desenvolvimentos mais significativos da história da ciência. A
revolução copernicana, a ideia de que o Sol estava no centro do universo e de que a Terra e os
outros planetas o orbitavam, ilustra o facto de a presença de casos aparentemente falsificadores não
ter conduzido as grandes figuras à rejeição das suas hipóteses. Agarraram-se às suas teorias perante
dados em contrário que, segundo os padrões da época, eram arrasadores. A alteração do modelo
científico da natureza do universo não ocorreu segundo um processo de conjecturas seguido de
refutações. Só depois de vários séculos de desenvolvimento da física pôde a teoria ser
adequadamente testada em função da observação.
O que estes dois exemplos sugerem é que a teoria falsificacionista da ciência nem sempre se
ajusta muito bem à história efectiva da ciência. A teoria precisa pelo menos de ser modificada para
poder explicar de forma precisa como as teorias científicas são substituídas.
5.5.3 Conclusão
Neste capítulo centrei-me no problema da indução e na perspectiva falsificacionista do
método científico. Apesar de as pessoas que fazem ciência não precisarem de estar conscientes das
implicações filosóficas do que fazem, muitas delas foram influenciadas pela explicação
falsificacionista do progresso científico. Apesar de a filosofia não afectar necessariamente a forma
como os cientistas trabalham, pode, sem dúvida, alterar a forma como compreendem o seu trabalho.
What Is This Thing Called Science? (Milton Keynes, Open University Press, 1978), de A. F.
Chalmers, é uma excelente introdução a esta área: está bem escrito e é estimulante. Cobre de forma
acessível a maior parte dos temas importantes da filosofia contemporânea da ciência. Philosophy of
Natural Science (Nova Jérsia, Prentice-Hall, 1966), de C. G. Hempel, e An Introduction to the
Philosophy of Science (Oxford, Clarendon Press, 1989), de Anthony O'Hear, podem também ser
úteis. Popper (Londres, Fontana, 1973), de Bryan Magee, é uma boa introdução à obra de Karl
Popper. A Historical Introduction to the Philosophy of Science (Oxford, Oxford University
Press, 3.a ed., 1993), de John Losee, oferece um estudo claro e interessante da história da filosofia
da ciência.
6 MENTE
O que é a mente? Teremos nós almas não físicas? É o pensamento apenas um aspecto da matéria
física, unicamente um resultado do estímulo de nervos no cérebro? Como poderemos ter a certeza
de que as outras pessoas não são apenas robots sofisticados? Como podemos afirmar que são
efectivamente conscientes? Todas estas questões pertencem à área da filosofia da mente.
A filosofia da mente deve distinguir-se da psicologia, apesar de as suas relações serem estreitas. A
psicologia é o estudo científico do comportamento e pensamento humanos: baseia-se na observação
das pessoas, muitas vezes sob condições experimentais. Ao invés, a filosofia da mente não é uma
disciplina experimental: não envolve a produção de verdadeiras observações científicas. A filosofia
centra-se na análise dos nossos conceitos.
Para ilustrar este aspecto considere-se outro exemplo. Um neuropsicólogo que investigue o
pensamento humano pode observar padrões de estimulação nervosa no cérebro. Um filósofo da
mente colocaria a questão conceptual mais básica de saber se a actividade destes nervos é
equivalente ao pensamento ou se existe alguma característica do nosso conceito de pensamento que
signifique que não pode ser reduzido a uma ocorrência física. Ou, para colocar a questão de uma
forma mais tradicional, teremos nós mentes distintas dos nossos corpos?
Neste capítulo, examinaremos alguns dos debates centrais da filosofia da mente,
concentrando-nos nas questões de saber se uma explicação física da mente é adequada e se
podemos ter conhecimento das mentes das outras pessoas.
Na forma como nos descrevemos a nós próprios e ao mundo fazemos geralmente uma
distinção entre os aspectos mentais e os aspectos físicos. Os aspectos mentais são coisas como o
pensamento, o sentimento, A decisão, o sonho, a imaginação, os desejos, etc. Os físicos incluem os
pés, os membros, os nossos cérebros, chávenas de chá, o Empire State Building, etc.
Quando fazemos algo, tal como jogar ténis, usamos ambos os aspectos, mentais e físicos:
pensamos nas regras do jogo, de onde o nosso adversário irá provavelmente fazer a próxima jogada,
etc., e movemos os nossos corpos. Mas existirá uma verdadeira divisão entre a mente e o corpo, ou
será esta apenas uma forma conveniente de falar sobre nós mesmos? O problema de explicar a
verdadeira relação entre a mente e o corpo é conhecido como o problema da mente/corpo.
Chamam-se dualistas aos que acreditam que a mente e o corpo são coisas separadas, que
cada um de nós tem as duas coisas, a mente e o corpo. Os que acreditam que o mental é, num certo
sentido, a mesma coisa que o físico, que não somos mais do que carne e sangue e que não temos
uma substância mental separada são conhecidos como fisicalistas. Começaremos por considerar o
dualismo e as suas principais críticas.
6.3 DUALISMO
O dualismo, como vimos, envolve a crença na existência de uma substância não física: o
mental. Um dualista acredita tipicamente que o corpo e a mente são substâncias distintas que
interagem uma com a outra, mas que permanecem separadas. Os processos mentais, tais como o
pensamento, não são o mesmo que os físicos, tais como o disparar das células do cérebro; os
processos mentais ocorrem na mente, e não no corpo. A mente não é o cérebro vivo.
O dualismo mente/corpo é uma perspectiva defendida por muita gente, sobretudo aqueles
que acreditam ser possível sobreviver à nossa morte corpórea, quer vivamos num tipo qualquer de
mundo de espíritos, quer reencarnemos num novo corpo. Ambas estas perspectivas pressupõem que
os seres humanos não são apenas seres físicos e que a nossa componente mais importante é a mente
não física ou, como é geralmente chamada em contextos religiosos, a alma. René Descartes é
provavelmente o dualista mente/corpo mais famoso: tal dualismo é geralmente conhecido como
dualismo cartesiano (o adjectivo «cartesiano» é formado a partir do nome de Descartes).
Um motivo forte para acreditar que o dualismo é verdadeiro é a dificuldade que quase toda a
gente tem em ver como pode uma coisa puramente física, como o cérebro, dar origem aos
complexos padrões de sentimentos e pensamentos a que chamamos consciência. Como poderia uma
coisa puramente física sentir melancolia ou apreciar uma pintura? Tais questões dão ao dualismo
uma plausibilidade inicial, enquanto solução do problema da mente/corpo. Contudo, há várias
críticas importantes a esta teoria.
6.4 CRÍTICAS AO DUALISMO
Uma crítica por vezes levantada ao dualismo mente/ /corpo defende que esta perspectiva
não nos ajuda realmente a compreender a natureza da mente. Tudo o que nos diz é que existe em
cada um de nós uma substância não física que pensa, sonha, tem experiências, etc. Mas, alegam os
fisicalistas, uma mente não física não poderia ser investigada directamente: em particular, não
poderia ser investigada cientificamente, porque a ciência só lida com o mundo físico. Tudo o que
poderíamos examinar seriam os seus efeitos no mundo. Contra isto, o dualista poderia responder
que podemos observar a mente através da introspecção, isto é, através do exame do nosso
pensamento. E nós podemos investigar, e investigamos de facto, a mente indirectamente, através
dos seus efeitos no mundo físico. A inferência de causas a partir de efeitos é a maneira como a
maior parte da ciência funciona; a investigação científica de uma mente não física seria um exemplo
do mesmo tipo de abordagem. Além disso, o dualismo mente/corpo tem pelo menos a vantagem de
explicar como poderia ser possível sobreviver à morte corpórea, algo que o fisicalismo não pode
fazer sem introduzir a ideia de ressurreição do corpo depois da morte. Evolução Aceita-se
geralmente que os seres humanos evoluíram a partir de formas de vida mais simples. Contudo, um
dualista terá dificuldade em explicar como poderá isto ter sido assim. Presumivelmente, as formas
de vida muito simples, tais como as amebas, não têm mentes, ao passo que os seres humanos, e
talvez alguns dos animais mais complexos, as têm. Mas então como poderão as amebas ter dado
origem a criaturas que têm mentes? De onde poderia esta substância mental ter subitamente
aparecido? E por que razão é a evolução da mente completamente paralela à evolução do cérebro?
Uma maneira de responder a esta crítica é afirmar que mesmo as amebas têm mentes de um
tipo muito limitado e que a evolução da mente é paralela à evolução dos corpos dos animais. Ou
então o dualista poderia ir mais longe e afirmar que todas as coisas físicas têm também uma mente
de um certo tipo: esta última perspectiva é conhecida como pampsiquismo. De acordo com os
partidários do pampsiquismo, até as pedras têm mentes muito primitivas. O desenvolvimento da
capacidade mental humana pode então ser explicado em termos de uma combinação de substâncias
físicas, constituindo assim uma fusão de mentes simples que criam uma mente mais complexa.
Contudo, poucos dualistas são simpáticos a esta abordagem, em parte porque obscurece a distinção
entre seres humanos e aquilo que consideramos o mundo inanimado.
6.4.2 Interacção
A dificuldade mais séria que o dualista enfrenta consiste em explicar como é possível que
duas substâncias tão diferentes como a mente e o corpo possam interagir. Na perspectiva do dualista
é claro que, por exemplo, posso ter um pensamento, dando este pensamento em seguida origem a
um movimento. Por exemplo, posso pensar que vou coçar o nariz, movendo-se de seguida o meu
dedo em direcção ao meu nariz, coçando-o. A dificuldade para o dualista é mostrar precisamente
como pode o pensamento puramente mental conduzir à acção física de coçar o nariz.
Esta dificuldade torna-se mais crítica pelo facto de os acontecimentos no cérebro estarem
ligados de forma muito íntima a acontecimentos mentais. Para quê introduzir a ideia de que a mente
é distinta do corpo quando é óbvio que, por exemplo, as lesões cerebrais graves conduzem à
deficiência mental? Se a mente e o corpo são realmente distintos, como se explica isto? 192
6.4.3 Contradiz um princípio científico básico
6.5.2 Ocasionalismo
Outra tentativa igualmente estranha de explicar como a mente e o corpo podem interagir é
conhecida como ocasionalismo. Ao passo que o paralelismo afirma que a existência de uma ligação
aparente entre a mente e o corpo é uma ilusão, o ocasionalismo permite a existência real de uma
ligação, mas defende que esta é sustentada pela intervenção de Deus. Deus proporciona a conexão
entre a mente e o corpo, entre a lesão do meu pé e a minha sensação de dor ou entre a minha
decisão de coçar o nariz e o movimento da minha mão.
Um enorme problema que se depara quer ao paralelismo mente/corpo, pelo menos na sua
forma mais plausível, quer ao ocasionalismo, é o facto de ambos pressuporem a existência de Deus,
algo que, como vimos no capítulo 1, não é de forma alguma auto-evidente. Além disso, até os
teístas costumam achar estas teorias um pouco rebuscadas.
6.5.3 Epifenomenismo
6.6 FISICALISMO
Depois de termos examinado o dualismo mente/ /corpo e as suas várias críticas e variantes,
voltemo -nos agora para o fisicalismo. O fisicalismo é a perspectiva segundo a qual os
acontecimentos mentais podem ser completamente explicados em termos de acontecimentos físicos,
habitualmente e m termos do cérebro. Ao contrário do dualismo m e n t e / c o r p o , que a f i r m a
a existência de dois tipos de substâncias , o fisicalismo é uma forma de m on i s m o : é a
perspectiva de que só existe um tipo de substância, a física. U m a vantagem imediata do fisicalismo
em relação ao dualismo é o facto de sugerir um programa de estudo científico da mente.
Teoricamente, pelo menos, deve ser possível oferecer uma descrição c o m p l e t a m e n t e física
de qualquer acontecimento mental.
Os filósofos fisicalistas não procuram descobrir a correspondência precisa entre os estados mentais
particulares e os pensamentos: essa é uma tarefa para os neuropsicólogos e outros cientistas. Tais
filósofos estão sobretudo preocupados em demonstrar que todos os acontecimentos mentais são
físicos e que o dualismo é, portanto, falso.
Este tipo de fisicalismo afirma que os estados mentais são idênticos a estados físicos. U m
pensamento acerca do tempo, por exemplo, é unicamente um estado particular do cérebro. Sempre
que este estado particular do cérebro ocorre, podemos descrever isto como u m pensamento acerca
do tempo. Isto é conhecido como teoria da identidade-tipo. Todos os estados físicos de um tipo
particular são também estados mentais de um tipo particular.
Para tornar esta perspectiva clara, considere-se como os termos «água» e «H20» referem
ambos a mesma substância. Usamos o termo «água» em contextos quotidianos e «H20» em
contextos científicos. Ora, apesar de ambos os termos referirem a mesma coisa, têm significados
ligeiramente diferentes: «água» é usado para chamar a atenção para as propriedades básicas de
humidade, etc., da substância; «H20» é usado para revelar a sua composição química. Ninguém
pede um copo de H20 para misturar com o uísque; no entanto, n água é H20: são uma e a mesma
coisa.
Temos um conhecimento directo dos nossos pensamentos; no entanto, quase ninguém sabe
nada de processos cerebrais. Algumas pessoas encaram isto como uma objecção ao fisicalismo: o
pensamento não pode ser a mesma coisa que um processo cerebral, porque é possível conhecer o
pensamento sem saber nada de neuropsicologia. Todos nós temos um acesso privilegiado aos nossos
próprios pensamentos: isto é, sabemos melhor do que qualquer outra pessoa o que são os nossos
próprios pensamentos conscientes, mas o mesmo não acontece em relação aos estados do cérebro.
No entanto, se os pensamentos e os estados do cérebro são idênticos, deveriam partilhar as mesmas
propriedades.
Contudo, esta objecção não é um problema sério para o fisicalista. Podemos não saber nada
acerca da composição química da água; no entanto, isto não nos impede de compreender o conceito
de «água» e de reconhecer o seu sabor quando a bebemos. Analogamente, todos os pensamentos
podem ser processos do 198
cérebro sem que, no entanto, exista razão para esperar que os pensadores têm de compreender a
natureza precisa destes processos do cérebro para poderem compreender os seus pensamentos. As
propriedades dos pensamentos c dos estados do cérebro Se um pensamento acerca da minha irmã
é idêntico a um certo estado do cérebro, segue-se que o pensamento tem de estar localizado
exactamente no mesmo sítio do estado cerebral. Mas isto parece um pouco estranho: os
pensamentos não parecem ter uma localização precisa neste sentido. No entanto, deveriam tê-la,
pois isso é uma consequência da teoria da identidade-tipo. Se tenho uma pós-imagem verde
fluorescente provocada por fixar a vista numa luz intensa, esta pós-imagem tem um certo tamanho,
uma cor lívida e uma forma específica; no entanto, o estado do meu cérebro é, presumivelmente,
muito diferente em relação a estes aspectos. C o m o pode então a pós-imagem ser idêntica a uni
estado específico do cérebro? Todos os pensamentos são acerca de algo Todos os pensamentos são
acerca de algo: é impossível ter um pensamento acerca de nada. Se eu penso «Paris é a minha
cidade favorita», o meu pensamento relaciona-se com um local no mundo real. Mas os processos e
estados do cérebro não parecem ser acerca de nada: ao contrário dos pensamentos, não parecem
relacionar-se com nada de exterior.
6.8.2 Qualia
Outra crítica ainda à teoria da identidade-tipo resulta do facto de sustentar que, por exemplo,
os pensamentos acerca do tempo têm todos de ser estados do cérebro de tipo idêntico, mesmo
quando os pensamentos pertencem a pessoas diferentes. Mas podem existir boas razões para
acreditar que os cérebros de pessoas diferentes funcionam de formas ligeiramente diferentes, de
maneira que cérebros diferentes em pessoas diferentes possam, apesar disso, dar origem a um
pensamento análogo.
Mesmo esta ideia pressupõe que os pensamentos podem ser claramente divididos, que
podemos dizer onde acaba um pensamento e começa outro. Um pressuposto básico da teoria da
identidade-tipo é que duas pessoas podem ter pensamentos precisamente do mesmo tipo. Uma
análise mais detalhada mostra que este parece ser um pressuposto dúbio. Se o leitor e eu estamos a
pensar que o céu escuro é bonito, podemos exprimir-nos com palavras idênticas. Podemos ambos
chamar a atenção para a forma especial como a Lua ilumina as nuvens, etc. Mas estaremos nós
necessariamente a ter um pensamento do mesmo tipo?
O meu pensamento acerca da beleza do céu não pode isolar-se facilmente de toda a minha
experiência de céus nocturnos, que é obviamente muito diferente da do leitor. Outro caso: se
acredito que o autor de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro usou um pseudónimo e se o leitor
acredita que Eric Blair usou um pseudónimo, partilharemos nós um pensamento do mesmo tipo?
Certamente que os enunciados das nossas crenças referem o mesmo homem, geralmente conhecido
em círculos literários como George Orwell. No entanto, não há uma resposta fácil a estas questões.
O que elas mostram é a dificuldade de dividir a nossa vida mental em pedaços claramente definidos
que possam depois ser removidos e comparados com os pedaços da vida mental de outras pessoas.
Se é impossível determinar quando duas pessoas têm pensamentos do mesmo tipo, o fisicalismo do
género identidade-tipo é implausível enquanto teoria da mente.
6.9 TEORIA DA IDENTIDADE-ESPÉCIME
Uma forma de contornar algumas destas críticas à teoria da identidade-tipo é fornecida pela
teoria da identidade-espécime. Tal como a teoria da identidade-tipo, a teoria da identidade-
espécime, que é outra forma de fisicalismo, afirma que todos os pensamentos são idênticos a
estados do cérebro. Contudo, ao contrário da teoria da identidade-tipo, a teoria da identidade-
espécime permite que os pensamentos do mesmo tipo não sejam todos estados cerebrais do mesmo
tipo. Esta teoria usa a distinção básica entre «tipo» e «espécime»: esta distinção explica-se mais
facilmente através de exemplos. Todos os exemplares do livro Guerra e Paz são espécimes de um
tipo específico (o romance Guerra e Paz); se o leitor possui um Volkswagen «carocha», possui um
espécime de um tipo específico (um «carocha»). O tipo é a espécie; o espécime é o caso individual
da espécie. O que a teoria da identidade-espécime afirma é que os espécimes individuais de um tipo
específico de pensamento não são necessariamente estados físicos precisamente do mesmo tipo.
Assim, quando penso hoje «Bertrand Russell era um filósofo», isto pode envolver um estado
do cérebro diferente do de quando tive esse pensamento ontem. Analogamente, para que o leitor
tenha este pensamento, não precisa de estar no mesmo estado cerebral em que eu estava em
qualquer das duas situações anteriores. A teoria da identidade-espécime, contudo, está sujeita a pelo
menos uma crítica fundamental.
Esta simples identidade-espécime parece permitir que duas pessoas sejam fisicamente
idênticas, até à mais pequena molécula, e, no entanto, diferir completamente do ponto de vista
mental. Isto parece tornar o mental excessivamente independente do físico. Torna a relação entre o
físico e o mental completamente misteriosa: mais misteriosa até do que o dualismo mente/corpo.
6.11 BEHAVIOURISMO
6.12.1 Fingimento
Uma crítica que por vezes se faz ao behaviourismo defende que esta concepção não
consegue distinguir entre uma pessoa que esteja efectivamente com dores e outra que finja estar
com dores. Se tudo o que se diz do mental deve ser reduzido a descrições de comportamentos, então
não pode haver uma explicação da diferença entre um actor convincente e alguém que está
genuinamente em agonia.
Contra esta objecção, um behaviourista poderia fazer notai" que a análise disposicional de
uma pessoa que finge ter dores seria diferente da de uma pessoa i|ue tivesse efectivamente dores.
Apesar de o seus comportamentos serem superficialmente análogos, existiriam certamente aspectos
em relação aos quais seriam diferentes. Por exemplo, é improvável que uma pessoa que finja estar
com dores produza todas as características fisiológicas que acompanham a dor — mudanças de
temperatura, suores, etc. Além disso, uma pessoa que fingisse estar com dores reagiria de forma
muito diferente a analgésicos do que alguém que estivesse genuinamente com dores: o fingidor não
teria maneira de saber em que momento os analgésicos teriam começado a surtir efeito, ao passo
que a pessoa que estava efectivamente com dores o saberia, devido a uma mudança no seu
comportamento relacionado com a dor.
6.12.2 Qualia
Outra crítica ao behaviourismo é que ele não consegue incluir nenhuma referência ao que se
sente efectivamente quando estamos num estado mental específico. Ao reduzir todos os
acontecimentos mentais a tendências comportamentais, o behaviourismo deixa os qualia fora da
equação. Uma das críticas mais importantes ã teoria é a afirmação de que ela reduz a experiência de
ter efectivamente dores a ter pura e simplesmente uma disposição para gritar, ficar inquieto e dizer
«Está a doer-me». Há algo que se sente efectivamente quando temos dores, e isto é um aspecto
essencial da vida mental; no entanto, o behaviourismo ignora este aspecto.
6.12.3 Como adquiro conhecimento das minhas próprias crenças?
Uma resposta possível a esta crítica defende que o que faço na introspecção (quando olho
para o meu interior), para ver se acredito que, por exemplo, a tortura é cruel, é pensar para mim
mesmo: «Que diria e faria eu se descobrisse que alguém estava a ser torturado?» A resposta a esta
questão revelar-me-ia então as minhas disposições relevantes. Se isto for verdade, o behaviourista
pode justificadamente presumir que não existe nenhuma diferença entre descobrir quais são as suas
próprias crenças e descobrir quais são as crenças de outra pessoa qualquer. Contudo, esta análise da
introspecção não é especialmente convincente: não coincide com o que sinto que faço quando
pratico a introspecção.
6.12.6 Funcionalismo
Antes de examinar a forma mais comum de responder a estas dúvidas acerca da experiência
alheia, vale a pena fazer notar que o problema das mentes alheias não se levanta para os
behaviouristas. Para um behaviourista é claramente apropriado atribuir experiências mentais aos
outros com base no seu comportamento, uma vez que isso é o que a mente é: tendências para certos
comportamentos em certas situações. Isto dá origem à devastadora piada behaviourista: dois
behaviouristas fazem amor, após o que um deles diz ao outro: «Tu gostaste muito; e eu, também
gostei?»
A resposta mais óbvia à dúvida quanto à consciência alheia é um argumento por analogia.
Como vimos no capítulo 1, quando examinámos o argumento do desígnio a favor da existência de
Deus, um argumento por analogia baseia-se numa comparação entre duas coisas bastante
semelhantes. Se uma coisa é análoga a outra em alguns aspectos, presume-se que o será também
noutros.
As outras pessoas são semelhantes a mim em muitos aspectos importantes: somos todos
membros da mesma espécie e, consequentemente, temos corpos bastante semelhantes; também
temos comportamentos muito semelhantes. Quando tenho muitas dores, grito, tal como a maior
parte das pessoas quando se encontram em situações nas quais eu esperaria que sentissem dor. O
argumento por analogia defende que as semelhanças dos corpos e dos comportamentos entre o meu
caso e o das outras pessoas são suficientes para inferir que as outras pessoas são, tal como eu,
genuinamente conscientes.
6.16.2 Inverificável
No entanto, parece não existir nenhuma maneira de mostrar conclusivamente que uma
afirmação como «ele tem dores» é verdadeira ou, então, que é falsa. Só porque alguém está a gritar
não se segue que essa pessoa tenha o mesmo tipo de experiência que eu tenho quando sinto dores.
Essa pessoa pode nem estar a ter qualquer experiência. Nenhum relato verbal da sua experiência é
fidedigno: um robot poderia ter sido programado para responder persuasivamente em tais
circunstâncias. Não há observação possível que possa confirmar ou refutar a ideia de que a pessoa
tem dores. E óbvio que o facto de alguém estar a gritar seria suficiente, em casos reais, para que
estivéssemos razoavelmente certos de que a pessoa estava com dores. Mas, do ponto de vista lógico,
o comportamento não oferece uma demonstração absoluta da existência de dor (apesar de a maior
parte das pessoas partir do pressuposto de que o comportamento é um indício fidedigno).
Claro que podemos achar que a suposição de que as outras pessoas não são conscientes é
bastante rebuscada. Podemos, pois, estar já tão certos de que os outros têm mentes que não
precisamos de uma demonstração conclusiva nesta matéria — certamente que n maioria das pessoas
age, a maior parte do tempo, sob o pressuposto de que os outros têm mentes. O solipcismo, como
vimos no capítulo sobre o mundo exterior, não é uma posição sustentável.
6.17 CONCLUSÃO
Este capítulo centrou-se nos debates em torno do dualismo, do fisicalismo e do problema das
mentes alheias. Estes são tópicos centrais na filosofia da mente. Uma vez que a filosofia se ocupa
muito da natureza do pensamento, muitos filósofos, sobretudo os que se especializam na filosofia da
mente, acham que o tipo de questões discutidas neste capítulo constituem o âmago de quase todas
as questões filosóficas. Sem dúvida que muitos dos mais brilhantes filósofos do século xx têm
dirigido as suas energias para questões da filosofia da mente. Em resultado disso, muitos dos
escritos desta área são altamente sofisticados e técnicos. Os livros listados a seguir deverão orientá-
lo no complicado labirinto bibliográfico desta área.
The Mind's I, organizado por Douglas R. Hofstadter e Daniel C. Dennett (Londres, Penguin, 1982),
é uma colecção interessante e divertida de artigos, meditações e pequenos contos que tratam de
ideias filosóficas acerca da mente. Inclui o artigo «Mentes, cérebros e programas», de John Searle,
no qual se discute a questão de saber se os computadores podem realmente pensar.
7 ARTE
A maior parte das pessoas que visitam galerias de arte, lêem romances e poesia, vão ao
teatro e ao ballet, vêem cinema ou ouvem música, já perguntaram a si próprias, num momento ou
noutro, o que é a arte. Esta é a questão básica que subjaz a toda a filosofia da arte. Este capítulo
considera várias respostas que lhe têm sido dadas.
O facto de terem emergido novas formas de arte, tais como o cinema e a fotografia, e de as
galerias de arte terem exibido coisas como um monte de tijolos ou uma pilha de caixas de cartão,
forçou-nos a reflectir acerca dos limites do nosso conceito de arte. E óbvio que a arte tem tido
significados diferentes em culturas diferentes e em épocas diferentes: tem servido fins rituais e
religiosos, tem servido como diversão e tem dado corpo às crenças, medos e desejos mais
importantes da cultura na qual é produzida. Dantes, o que contava como arte parecia estar mais
claramente definido. No entanto, nos finais do século XX parece que chegamos a uma situação em
que tudo e mais alguma coisa pode ser arte. Se isto é assim, o que fará que um certo objecto — um
escrito ou uma peça musical — , e não outro, seja digno de se chamar arte?
7.1 PODE A ARTE SER DEFINIDA?
Há uma imensa variedade de obras de arte — pinturas, peças de teatro, filmes, romances,
peças musicais, dança — e todas elas parecem ter muito pouco em comum. Isto levou alguns
filósofos a defender que a arte não pode de maneira nenhuma ser definida; defendem que é um erro
completo olhar para um denominador comum, uma vez que existe, pura e simplesmente, demasiada
variedade entre as obras de arte para que uma definição que as cubra a todas possa ser satisfatória.
Para sustentar esta opinião, estes filósofos usam a ideia de parecença familiar, uma noção usada
pelo filósofo Ludwig Wittgenstein nas suas Investigações Filosóficas.
O leitor pode parecer-se ligeiramente com o seu pai e o seu pai pode parecer-se com a irmã
dele. Contudo, é possível que o leitor não se pareça nada com a irmã do seu pai. Por outras palavras,
podem existir parecenças sobrepostas entre diferentes membros de uma família, sem que exista uma
característica única observável, partilhada por todos. Analogamente, há muitos jogos semelhantes,
mas é difícil ver o que têm em comum as paciências, o xadrez, o râguebi e a malha.
As semelhanças entre diferentes tipos de arte podem ser deste tipo: apesar das semelhanças
óbvias entre algumas obras de arte, podem não existir características observáveis partilhadas por
todas: podem não existir denominadores comuns. Se isto for verdade, é um erro procurar uma
qualquer definição geral de arte. O melhor que podemos desejar é uma definição de uma certa
forma de arte, como o romance, o filme de ficção ou a sinfonia.
Uma forma de demonstrar a falsidade desta perspectiva seria produzir uma definição
satisfatória de arte. Examinaremos a seguir várias tentativas de o conseguir. Contudo, vale a pena
notar que mesmo no caso das parecenças de família há algo que todos os membros de uma família
têm realmente em comum: o facto de estarem geneticamente relacionados. E os jogos são todos
parecidos por poderem constituir interesses absorventes de carácter não prático para jogadores ou
espectadores. Ora, apesar de esta definição de jogo ser bastante vaga e nem sequer inteiramente
satisfatória — não nos ajuda a distinguir os jogos de outras actividades, como, por exemplo, beijar
ou ouvir música —, sugere que pode encontrar-se uma definição mais detalhada e plausível. Se isto
pode fazer-se em relação aos jogos, não há razão para afastar à partida a possibilidade de o fazer em
relação às obras de arte. Claro que o denominador comum a todas as formas de arte pode revelar-se
particularmente pouco interessante ou importante, mas é claramente possível encontrar um.
Consideremos, então, algumas das tentativas de definição da arte. Examinaremos a teoria da forma
significante, a idealista e a institucional.
7.4.1 Circularidade
O argumento a favor da teoria da forma significante parece ser circular. Parece estar apenas
a dizer que a emoção estética é produzida por uma propriedade que produz emoção estética,
propriedade acerca da qual nada mais pode dizer-se. Isto é a mesma coisa que explicar como
funciona um soporífero referindo a sua propriedade de provocar o sono. E um argumento circular
porque o que se pretendia explicar é usado na explicação. Contudo, alguns argumentos circulares
podem ser informativos; os que não são informativos são conhecidos como viciosamente circulares.
Os defensores da teoria da forma significante sustentam que esta não é viciosamente circular, uma
vez que permite compreender por que razão algumas pessoas são melhores críticos do que outras,
nomeadamente porque têm mais capacidade para detectar a forma significante. Proporciona também
uma justificação para a prática de tratar obras de arte de culturas e épocas diferentes como se
fossem análogas, em muitos aspectos, às obras de arte actuais.
7.4.2 Irrefutabilidade
Outra objecção à teoria defende que esta não pode nor refutada. A teoria da forma significante
pressupõe que todas as pessoas que genuinamente desfrutam da a r t e sentem um único tipo de
emoção quando apreciam verdadeiras obras de arte. Contudo, isto é extremamente difícil, se não
impossível, de demonstrar.
Se alguém afirmar ter desfrutado genuinamente Uma obra de arte, sem no entanto ter sentido a
referida emoção estética, Bell afirmará que essa pessoa está enganada: ou não a desfrutou
genuinamente ou então nílo é um crítico sensível. Mas isto é pressupor precisamente o que a teoria
estaria supostamente a demonstrar: que existe realmente uma emoção estética e que esta é
produzida pelas obras de arte genuínas. A teoria parece, portanto, irrefutável. Muitos filósofos
acreditam que uma teoria que seja logicamente impossível de refutar, porque todas as observações
possíveis a confirmariam, não tem qualquer significado.
Analogamente, se um exemplo de algo que consideramos uma obra de arte não evoca emoção
estética a um crítico sensível, um teórico da forma significante ilefenderá que não se trata de uma
obra de arte gen u í n a . Mais uma vez, não há qualquer observação pos'.(vel que possa demonstrar
que esse teórico não tem razão.
A teoria idealista da arte, cuja formulação mais persuasiva se encontra em Principles of Art,
de R. G. Collingwood (1889-1943), difere de outras teorias da arte pelo facto de sustentar que a
verdadeira obra de arte não é física: é uma ideia ou emoção na mente do artista. A esta ideia é dada
uma expressão imaginativa física e é modificada pelo envolvimento do artista com um meio
artístico específico, mas a própria obra de arte permanece na mente do artista. Algumas versões da
teoria idealista dão muita importância à sinceridade da emoção expressa, o que acrescenta um forte
elemento avaliativo à teoria.
A teoria idealista distingue a arte do artefacto. As obras de arte não têm qualquer propósito
específico. São criadas em resultado do envolvimento do artista com um meio específico, como as
tintas ou as palavras. Ao invés, o artefacto é criado com um propósito definido e o artesão começa
por ter um plano, em vez do ir concebendo o objecto à medida que o vai criando. Assim, um quadro
de Picasso, por exemplo, não tem nenhum propósito específico e não foi, presumivelmente,
previamente planeado na sua totalidade, ao passo que a mesa defronte da qual estou sentado tem
uma função óbvia e foi executada de acordo com um esboço preexistente, um projecto. O quadro é
uma obra de arte; a mesa é um artefacto. Isto não significa que as obras de arte não possam ser em
parte artefactos: é claro que muitas grandes obras de arte são em parte artefactos. Collingwood
afirma explicitamente que as duas categorias, arte e artefacto, não são mutuamente exclusivas.
Acontece apenas que nenhuma obra de arte é unicamente um meio para um fim.
A teoria idealista contrasta as obras de arte genuínas com a arte recreativa (arte produzida
com o propósito único de divertir as pessoas ou de provocar emoções específicas). A arte genuína
não tem nenhum propósito: é um fim em si. A arte recreativa é artefacto, sendo por isso inferior à
verdadeira arte. Analogamente, a chamada arte puramente religiosa é também artefacto porque foi
feita com um propósito específico.
7.6.1 Estranheza
Uma segunda objecção a esta teoria afirma que esta 6 excessivamente restritiva: parece
classificar muitas obras de arte estabelecidas como artefactos, e não como verdadeiras obras de arte.
Muitos dos grandes retratos foram pintados para se ter um registo da aparência da pessoa retratada;
muitas das grandes peças de teatro foram escritas para divertir. Significa isto que, porque foram
criadas tendo em mente propósitos específicos, lítio podem ser obras de arte? E quanto à
arquitectura, que constitui tradicionalmente uma das belas-artes? A maior parte dos edifícios foram
criados para um propósito específico, de maneira que esta teoria não pode considerá-los obras de
arte.
A chamada teoria institucional da arte é u m a tentativa recente, levada a cabo por autores c
o m o George Dickie (um filósofo contemporâneo), de explicar c o m o coisas tão diferentes como a
peça Macbeth, a Quint ti Sinfonia de Beethoven, uma pilha de tijolos, u m urinol intitulado «A
Fonte», o poema The Waste Land, de T. S. Eliot, As Viagens de Gulliver, de Swift, e as fotografias
de William Klein podem ser consideradas obras de arte. A teoria afirma existirem duas coisas
comuns a todas elas.
Em primeiro lugar, todas são artefactos: isto é, todas foram parcialmente manipula das por
seres humanos. A palavra «artefacto» é usada de forma bastante vaga — até um pedaço de madeira
flutuante apanhado na praia poderia ser considerado um artefacto se alguém o exibisse numa galeria
de arte. Colocá-lo numa galeria para que as pessoas o observassem de certa maneira contaria c o m
o manipulação. Na verdade, esta definição de artefacto é tão vaga que não acrescenta nada de
importante ao conceito de arte.
Em segundo lugar, e o que é mais importante, a todas aquelas obras foi dado o estatuto de obra de
arte por um membro ou conjunto de membros do mundo da arte, tal como o proprietário de uma
galeria, um editor, um produtor, um maestro ou um artista. Em todos os casos, alguém com a
autoridade apropriada fez o equivalente a baptizá-las como obras de arte.
Pode parecer que isto significa que as obras de arte são unicamente aquelas coisas a que certas
pessoas chamam obras de arte, uma afirmação aparentemente circular. Contudo, os membros do m
u n d o da arte não têm realmente de fazer nenhum tipo de cerimónia em que baptizam algo como
uma obra de arte; não precilam sequer de lhe chamar realmente «obra de arte»: basta que tratem a
obra como arte. A teoria institucional afirma, pois, que alguns indivíduos e grupos da nossa
lociedade têm a capacidade de transformar qualquer ârtefacto numa obra de arte, através de uma
acção de «baptismo», que pode consistir em chamar a algo ««arte», mas que muitas vezes consiste
em publicar, exibir ou representar a obra. Os próprios artistas podem ser membros deste mundo da
arte. Todos os membros desta elite têm uma capacidade equivalente ao rei Midas, que transformava
em ouro tudo em que tocava.
E sem dúvida verdade que a teoria institucional permite que quase tudo possa tornar-se uma
obra de arte. Baptizar uma coisa como obra de arte não significa que se trate de uma boa obra de
arte, nem, na verdade, de uma má obra de arte. Só faz que o objecto em questão seja uma obra de
arte do ponto de vista classificativo: por outras palavras, coloca o objecto na classe de coisas a que
chamamos obras de arte. Isto é diferente da maneira como muitas vezes usamos a palavra «arte»,
não apenas para classificar algo, mas também para sugerir que esse algo é um bom exemplo da sua
categoria. Por vezes também usamos o termo metaforicamente, para falar de coisas que literalmente
não são, de maneira nenhuma, obras de arte: quando dizemos coisas como, por exemplo, «aquela
omeleta é uma obra de arte». A teoria institucional não tem nada a dizer acerca de qualquer destes
casos de uso valorativo da palavra «arte». E uma teoria acerca do que todas as obras de arte —
boas, más e indiferentes — têm em comum. E apenas acerca do sentido classificativo da palavra
«arte». Contudo, a maior parte das pessoas que levantam a questão «O que é a arte?» não estão
apenas interessadas no que chamamos arte; querem saber porque valorizamos mais uns objectos do
que outros. Quer a teoria da forma significante, quer a idealista, são parcialmente valorativas:
segundo elas, chamar a algo «obra de arte» é dizer que é boa num certo sentido — quer porque tem
uma forma significante, quer porque é a expressão artística sincera de uma emoção. A teoria
institucional, contudo, não procura dar uma resposta a questões valorativas acerca da arte. E
extremamente aberta acerca do que pode contar como arte. Algumas pessoas vêm isto como a sua
maior virtude; outras, como o seu pior defeito.
7.8.2 Circularidade
A teoria institucional é circular. Afirma que a arte é o que um certo grupo de privilegiados
escolher chamar arte, seja lá o que for.'Isto parece um jogo de palavras — um jogo que pode ter
implicações políticas perturbadoras se só as pessoas de uma certa classe social tiverem o dom do
toque de Midas.
Um defensor da teoria institucional poderia argumentar contra esta crítica, sustentando que a
exigência de que a obra de arte seja um artefacto e a restrição sobre quem pode conferir o estatuto
de obra de arte a um objecto são suficientes para dar algum conteúdo à teoria. Se isto for verdade,
precisamos de uma elucidação mais pormenorizada acerca de quem faz exactamente parte do
mundo da arte. No entanto, mesmo que soubéssemos quem tem este toque de Midas e por que razão
estão habilitados a tê-lo, continuaríamos a querer saber porque escolhem eles alguns objectos, e não
outros, para serem considerados obras de arte. Isto conduz à terceira crítica.
A objecção mais forte à teoria institucional é, talvez, a que foi feita pelo filósofo e escritor
contemporâneo de arte, Richard Wollheim (1923-): mesmo que concordemos que os membros do
mundo da arte têm o poder de transformar quaisquer artefactos em obras de arte, eles têm de ter
razões para transformar em arte alguns artefactos e não outros. Se não há qualquer lógica por detrás
do que fazem, então que razão haveria para que a categoria da arte tivesse para nós qualquer
interesse? E se eles têm razões, serão estas, então, que determinam se algo é arte ou não. A análise
destas razões seria muitíssimo mais interessante e informativa do que a — algo vazia — teoria
institucional. Se pudéssemos identificar estas razões, a teoria institucional seria desnecessária.
Contudo, a teoria institucional chama-nos pelo menos a atenção para isto: o que faz que algo
seja uma obra de arte é uma questão cultural, dependendo de instituições sociais em épocas
específicas, e não de um cânone a temporal.
Outra área importante de debate filosófico acerca das artes tem-se centrado nos métodos e
justificações de vários tipos de crítica de arte. Um dos debates centrais nesta área tem sido acerca da
questão de saber até que ponto as intenções manifestas do artista são relevantes para a interpretação
crítica de uma obra de arte.
7.10 ANTI-INTENCIONALISMO
Uma crítica à posição anti-intencionalista é que ela depende de uma concepção errada das
intenções. Trata as intenções como se fossem sempre acontecimentos mentais que ocorrem antes de
fazermos qualquer coisa. Na verdade, muitos filósofos acreditam que as intenções estão
normalmente misturadas com a maneira como fazemos coisas: não podem separar-se assim tão
facilmente das próprias acções. Assim, quando acendo intencionalmente a luz, não tem de haver um
acontecimento mental que anteceda imediatamente a minha acção de alcançar o interruptor: pode
ocorrer ao mesmo tempo que eu alcanço o interruptor, constituindo o próprio acto de alcançar o
interruptor a corporização da intenção.
7.11.2 Ironia
Uma objecção mais forte ao anti-intencionalismo defende que certos tipos de recursos
artísticos, como a ironia, exigem um reconhecimento das intenções do artista. Em muitos casos
essas serão intenções exteriores.
A ironia é dizer ou descrever algo, querendo dizer o oposto. Por exemplo, quando um amigo
nos diz «Está um belo dia», pode não ser óbvio se isto deve ser tomado literalmente ou
ironicamente. Uma maneira de decidir seria olhar para coisas como o contexto no qual ele o disse
— por exemplo, será que estava a chover torrencialmente? Outra maneira seria dar atenção ao tom
de voz em que o disse. Mas se nenhuma destas informações decidisse a questão, uma forma óbvia
de o fazer seria perguntar ao locutor se a sua afirmação era irónica: por outras palavras, apelar a
intenções exteriores.
Em alguns usos da ironia na arte, a informação exterior à obra pode ser extremamente útil
para descobrir o seu significado. Não parece razoável rejeitar completamente esta fonte de
informação acerca da obra. Um anti-intencionalista responderia provavelmente que, se a ironia não
é prontamente compreensível a partir de uma análise minuciosa da obra, é porque não é relevante
para a crítica, uma vez que esta se ocupa do que é público. Qualquer ironia que se apoie nas
intenções externas do artista é excessivamente parecida com um código secreto para ser realmente
importante.
Uma terceira objecção ao anti-intencionalismo defende que esta posição adopta uma
perspectiva muito restritiva do que constitui a crítica de arte. A boa crítica de arte usará todas as
informações disponíveis, sejam elas internas ou externas à obra de arte em questão. É
excessivamente restritivo impor ao crítico, à partida, regras rígidas e absolutas acerca dos tipos de
informação que podem ser usados para apoiar comentários críticos.
Outra crítica a esta procura de uma interpretação historicamente autêntica é que ela implica
uma visão simplista da interpretação musical. Faz que o juízo sobre o valor de uma interpretação
específica dependa unicamente de considerações históricas, e não de outras considerações artísticas
relevantes. Limita seriamente as possibilidades do intérprete em termos de interpretação criativa de
uma partitura. Cria um museu de interpretação musical, em vez de dar aos intérpretes de cada nova
geração a possibilidade de interpretar de forma nova e estimulante a obra do compositor, uma
interpretação que leve em linha de conta quer a história da música quer a história da interpretação
daquela peça musical específica.
Uma preocupação exagerada com o rigor histórico pode muitas vezes piorar a interpretação
de uma peça musical. Um intérprete cuja preocupação principal seja a história pode muito bem não
conseguir fazer justiça à obra do compositor: uma interpretação sensível, que procure capturar o
espírito da obra do compositor, em vez de tentar reproduzir os sons originais, tem muito a seu favor.
Este é um tipo diferente de autenticidade: é uma autenticidade de interpretação, na qual a palavra
«autenticidade» quer dizer qualquer coisa como «sinceridade artística», e não apenas rigor histórico.
Outra questão acerca da autenticidade que levanta questões filosóficas é a que diz respeito
ao problema de saber se um quadro original tem mais valor artístico do que uma imitação perfeita.
Nesta secção tratarei apenas das imitações no caso da pintura, mas podem existir imitações de
qualquer tipo de obra de arte que se constitua como objecto físico: por exemplo, uma escultura,
uma gravura, uma fotografia, etc. A impressão em série de romances, poemas e sinfonias não é
considerada uma imitação. Contudo, os manuscritos originais podem ser falsificados e as imitações,
escritas segundo o estilo de u m certo autor ou compositor, podem passar por genuínas.
É importante distinguir à partida entre diferentes tipos de imitação. Os dois tipos básicos são
a cópia perfeita e a imitação do estilo de um artista famoso. Uma cópia exacta da Mona Lisa seria
uma imitação do primeiro tipo; os quadros do falsário Van Meegeren, pintados de acordo com o
estilo de Vermeer, que na verdade enganaram a maior parte dos especialistas, são exemplos do
segundo tipo — os seus quadros não foram copiados a partir de originais. E óbvio que só o
verdadeiro manuscrito de uma peça, de um romance ou de um poema podem ser falsificados no
primeiro sentido. Contudo, poderiam fazer-se imitações do segundo tipo (por exemplo, das peças de
Shakespeare), por alguém que imitasse de forma inteligente o estilo de um escritor.
Devem as imitações ser tratadas como obras de arte significativas em si? Se o falsário é
capaz de produzir algo capaz de fazer os especialistas ficar convencidos que se trata de uma obra do
artista original, isso significa que o falsário é certamente tão dotado quanto o artista original,
devendo por isso ser tratado como um igual. Há argumentos a favor e contra esta posição.
O que faz as pessoas dar valor aos originais em detrimento das boas imitações talvez sejam
apenas as preocupações financeiras do mundo da arte, a obsessão com o preço dos quadros. Se
existir um único exemplar de cada quadro, os leilões de arte podem vender cada quadro como um
objecto único, por um preço elevadíssimo. Isto é por vezes conhecido como o «efeito Sotheby», em
nome dos famosos leiloeiros de arte. Se existirem muitas cópias de um quadro, é provável que o
preço de cada cópia baixe, sobretudo se o original tiver o mesmo estatuto que as cópias. Com efeito,
isto colocaria os quadros na mesma posição que as gravuras. Ou talvez não seja apenas o aspecto
financeiro do mundo da arte, mas também o snobismo dos coleccionadores de arte, que conduz à
ênfase colocada nos quadros originais em detrimento das cópias. Os coleccionadores gostam de
possuir um objecto único: para eles pode ser mais importante possuir um esboço original de
Constable do que uma cópia perfeita, só por uma questão de valor snobe, e não de valor artístico.
Outra motivação para possuir originais tem a ver com o seu apelo enquanto relíquias. As
relíquias são fascinantes por causa da sua história: um fragmento da verdadeira Cruz (a cruz onde
Cristo foi crucificado) teria um fascínio especial comparado com quaisquer outros fragmentos
indistinguíveis de madeira só por se pensar que esteve em contacto directo com a carne de Cristo.
Analogamente, um quadro original de Van Gogh pode ser valorizado por se tratar de um objecto
que o grande pintor tocou, ao qual deu atenção e no qual investiu o seu esforço artístico, etc.
O preço, o valor snobe e o valor de relíquia têm pouco a ver com o mérito artístico. O
primeiro tem a ver com a raridade, as flutuações dos gostos dos coleccionadores e as manipulações
dos negociantes de arte; o segundo é uma questão de rivalidade social; o terceiro, uma questão
psicológica que tem a ver com a maneira como tratamos os objectos. Se estes três factores explicam
as causas da grande preferência por obras de arte originais em detrimento da preferência por boas
imitações, talvez as boas imitações sejam realmente tão significativas, artisticamente, quanto os
originais. Contudo, há vários argumentos fortes contra esta posição.
Uma razão para preferir originais a imitações é o facto de nunca podermos ter a certeza de
uma imitação ser realmente perfeita. O facto de uma imitação de um quadro de Van Gogh ser
suficientemente boa para enganar os especialistas actuais não significa que irá enganar os
especialistas do futuro. Se as diferenças se tornam visíveis mais tarde, nunca podemos ter a certeza
se uma imitação será perfeita. Logo, mesmo que acreditássemos que uma imitação perfeita tinha o
mesmo mérito artístico que o original, em nenhum caso real de imitação poderíamos ter a certeza se
essa imitação seria uma cópia rigorosa.
Vale a pena notar, contra esta posição, que as diferenças que poderão surgir entre imitação e
original serão geralmente pequeníssimas. E implausível supor que serão muitas vezes de uma
natureza tal que possam vir a alterar substancialmente a nossa apreciação do valor artístico do
quadro.
Mesmo que alguém conseguisse produzir um quadro que não se distinguisse de uma obra de
Cézanne, por exemplo, constituiria um feito muito diferente do feito do próprio Cézanne. Parte do
que valorizamos no feito de Cézanne não é apenas a produção de um belo quadro isolado, mas
também a forma como criou um estilo original e toda uma série de quadros. A sua originalidade faz
parte do seu feito; e os diferentes quadros que produziu ao longo da sua vida contribuem para a
nossa compreensão de cada imagem individual por ele pintada. Só podemos dar valor ao seu feito
artístico se pudermos colocar cada quadro no contexto da sua produção completa.
Ora, apesar de um falsário poder possuir a mesma destreza mecânica de pintor que Cézanne
tinha, não devemos reduzir o feito de Cézanne à sua destreza artesanal. O falsário, com a sua cópia
barata, nunca pode esperar vir a ser um grande pintor porque não pode ser original como Cézanne.
No caso de um falsário que produza obras com o estilo de Cézanne (imitações do segundo
tipo), em vez de fazer cópias efectivas de quadros específicos, pode haver mais razões para
comparar o mérito artístico das imitações com o mérito dos quadros de Cézanne. Mas, mesmo nesse
caso, o falsário estaria a copiar um estilo, e não a criar um novo — e nós temos tendência para dar
mais valor à criatividade do artista original do que à destreza de um imitador. A criatividade é um
aspecto importante do mérito artístico.
Isto mostra que não devemos realmente pôr o falsário a par do artista original só porque é
capaz de produzir uma imitação convincente. Mas, apesar disso, no caso de uma cópia de um
quadro original, poderíamos, mesmo assim, admirar o mérito artístico de Cézanne olhando para a
cópia. Logo, isto não é um argumento contra o valor artístico das imitações, mas contra o mérito
artístico dos falsários. A cópia permitiria detectar indícios do génio de Cézanne, e não do falsário.
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7.14.4 O argumento moral
O que as imitações têm realmente de errado é o facto de, pela sua própria natureza,
implicarem uma tentativa de enganar o público acerca das suas origens. Uma imitação não seria
uma imitação sem o objectivo de enganar: seria uma cópia ou um ensaio de pintura com o estilo de
outro artista — o que é conhecido como pasticho. E em parte devido à fraude envolvida — o
equivalente a uma mentira — que as imitações são inferiores aos originais. Contudo, podem existir
boas razões para separar por vezes as questões morais das artísticas: mesmo que uma imitação
brilhante implique a fraude, pode ser tocante como obra de arte.
7.15 CONCLUSÃO
Neste capítulo examinei várias questões filosóficas relacionadas com a arte e a crítica de
arte, desde questões sobre a definição da arte até questões sobre o valor estético das imitações.
Muitas das discussões sobre a arte conduzidas por artistas, críticos e público interessado são
confusas e ilógicas. O uso de rigor filosófico e a insistência na clareza dos argumentos só pode
melhorar a situação desta área. Como em todas as áreas da filosofia, o argumento claro não garante
respostas convincentes às questões difíceis, mas aumenta sem dúvida a probabilidade de que isso
venha a acontecer.
Sobre o tópico da autenticidade na música antiga, o livro organizado por Nicholas Kenyon,
Authenticity in Early Music (Oxford, Oxford University Press, 1988), é muito bom. The Forger's
Art, de Denis Dutton (Berkeley, Cal., University of California Press, 1983), é uma colecção
fascinante de artigos sobre o estatuto das imitações.
8 GLOSSÁRIO INGLÊS-PORTUGUÊS
Neste glossário listam-se não apenas os termos cuja tradução portuguesa se procurou fixar,
mas também outros que o leitor pode encontrar na literatura filosófica escrita em língua inglesa,
sem que, no entanto, saiba o seu equivalente português. Trata-se de equivalências de vocabulário
técnico, e não de equivalências linguísticas estritas. Na Internet encontra-se uma versão sempre
actualizada deste glossário: http://www.terravista.pt/Nazare/1339.
acceptance — aceitação
acquaintance — contacto
acquaintance, knowledge by— contacto, conhecimento por
acquaintance, principle of—contacto, princípio do
acrolect — acrolecto
actuality and potenciality — acto e potência
act utilitarianism — utilitarismo dos actos
aeviternity — eviternidade
after-image — imagem residual
agent-causation — causalidade do agente
Al — IA
akoluthic — acolutia
Al-Farabi — Alfarrabi
Al-Ghazali — Algazel
alienans — adjectivo pseudoqualificativo
aliorelative relation — relação irreflexiva
apodeitic — apodíctico
apodosis — apódose
aseity — asseidade
assertability — assertibilidade
assumption — pressuposto, premissa (lógica)
avowals — exteriorização
backwards causation — causalidade invertida
basiled — basilecto
belief— crença
bleen — azerde
boolean algebra — álgebra de Boole
bundle theory — teoria do feixe
burden of proof— ónus da prova
cancel out — neutralizar
cataphora — ca tá fora
categorial grammar — gramática categorial
causation — causalidade
central state materialism — materialismo de estados centrais
claim-right — exigência
cognitive achievement word — termo de consecução cognitiva
•coherentism — coerentismo
commensurable — comensurável
commitment — comprometimento
commonsense realism — realismo de senso comum
compactness theorem — teorema da compacidade
connectionism — conexionismo
consent — consentimento
conservantism — conservadorismo
consilience — consiliência
context-free grammar — gramática independente do contexto
co-ordinative definitions — definições coordenadoras
coreferential — co-referencial
counterpart theory — teoria das contrapartes
count-noun — termo contável
covering law model — modelo da cobertura por leis
crossing over — sobrecruzamento
deceit — dolo
deconstruction — desconstrução
defensible — revogável
definist fallacy — falácia da definição
delusion — delusão
demonstration — prova
denoting phrase — expressão denotativa
descriptive meaning — significado descritivo
desert — merecimento
differentia — diferença específica
disconfirmation — infirmação
domain — domínio
dominance (decision theory) — dominância (teoria da decisão)
dyslogistic — dislogístico
economistn — economismo
efective procedure — processo efectivo
egocentric predicament — dificuldade egocêntrica
eigenfunction — função própria
eigenvalue — valor próprio
eightfold path — caminho das oito vias
eliminativism — elimina tivismo
endurance/perdurance— permanência/persistência
entailment — derivabilidade
entrenchement — entrincheiramento
equitiumerous sets — conjuntos equipotentes
equivalence class — classe de equivalência
erotetic — erotemática
ESP — P E S
eudaimonism — eudemonismo
eulogistic — eu logístico
evidence — dados, indícios (em probabilidades: informação)
exaptation — exaptação
exchangeability — permutabilidade
existential import — implicação existencial
expected utility — utilidade esperada
experience — experiência
experiment — experiência científica
explanation — explicação
explication — explanação
/active — factivo
felicific calculus — cálculo da felicidade
field theory — teoria de campo
finitary methods — métodos finitistas
flourishing — prosperar
folk psychology — psicologia popular
follow — seguir-se
foundationalism — fundacionalismo
frame problem — problema do enquadramento
framework — enquadramento
frequency theory of probability — teoria frequencista das pro-
babilidades
free will — livre arbítrio
functional kind — categoria funcional
fuzzy logic — lógica difusa
gambler's argument — argumento do apostador
ghost in the machine — fantasma na máquina
great circles — geodésicas
greatest happiness principle — princípio da maior felicidade
grue — verdul
haecceity — ecceidade
halting problem — problema da paragem
hardware — suporte físico
high/low redefinition — redefinição forte/fraca
horns of dilemma — alternativas do dilema
Hume's fork — dilema de Hume
hylozoism — hilozoismo
ideational theory of meaning — teoria ideativa do significado
identity theory of mind — teoria identitativa da mente
ideolect — idiolecto
idiographic methods — métodos idiográficos
illocutionary act — acto ilocutório
immunity right — imunidade
implicature — implicatura
incongruent counterparts — contrapartes incongruentes
indexical — indexical
inertial frame — referencial de inércia
infirmation — desconfirmação
intentional stance — postura intencional
interval scale — escala de intervalos
intuition pump — sonda de intuição
inverse methods — métodos da inversão
intensive magnitude — grandeza intensiva
knowledge by acquaintance — conhecimento por contacto
labour theory of value — teoria do valor-trabalho
laiolike — legiforme
least upper bound — supremo
lect — lecto
libertarianism (metaphysical) — libertismo
libertarianism (political) — libertarismo
liberty-right — liberdade
locutionary act — acto locutório
many-one function — função de muitos para u m
many questions fallacy — falácia das várias perguntas
many-sorted logic — lógica multi-espécie
many-valued logic —lógica polivalente
mapping (function) — aplicação (função)
mass-noun — termo de massa
matter of fact — questão de facto
maximin principie — princípio maximin
mean (ethical) — m e i o t e r m o
meaning — significado
means-ends reasoning — raciocínio instrumental
measurement — medida
mechanism — m e c a n i c i s m o
median — m e d i a n a
mereology — mereologia
merit — mérito
method of agreement — m é t o d o da concordância
method of doubt — dúvida metódica
metric tensor — tensor métrico
mind — m e n t e
mnemic causation — causalidade mnésica
monophysite — m o n o f i s i s m o
monothetic — m o n o t é t i c o
moot — litigiosa
motive of an action — m o t i v a ç ã o de u m a acção
multi-valued logic — lógica polivalente
narrow content — c o n t e ú d o restrito
natural kind — categoria natural
neural net — rede neuronal
neustic — neustico
no false lemmas principle — princípio da recusa d e lemas falsos
nomic — n ó m i c o
nomological dangler — conexão nomológica
nonaptation — inaptação
non-standard analysis — análise não standard
no-ownership theory — teoria da despossessão
noun phrase — sintagma nominal
observation statement — enunciado observacional
one-one function — função injectiva
one-to-one correspondence — correspondência b i u n í v o c a
operation letter — símbolo funcional
ordering relation — relação de o r d e m
ordinal-interval scale — escala ordinal de intervalos
other minds — m e n t e s alheias
other-regarding — hetero-relativa
Pascal's wager — aposta de Pascal
performance — d e s e m p e n h o
performative utterances — elocuções p e r f o r m a t i v a s
peritrope — perítropo
perlocutionary acts — actos perlocutórios
perseity — p e r s e i d a d e
phatic — fático
phenomenalism — fenomenismo
phoronomy — foronomia
phrastic/neustic — frástico/nêustico
picture theory of meaning — teoria pictórica do significado
pleonotetic logic — lógica pliotética
phirative logic — lógica plurativa
power-right — poder
point particles — pontos materiais
posit — s u p o s t o
posterior probability — probabilidade a posteriori
power set — conjunto-potência
pragmatics — pragmática
pragmatism — p r a g m a t i s m o
prediction — previsão
principle of acquaintance — princípio do contacto
prior probability — probabilidade a priori
procedural semantics — semântica procedimental
projection function — função de projecção
proof— demonstração
protasis — prótase
protocol statements — proposições protocolares
proxy function — função de representação
pseudo-statement — pseudoproposição
range (function) — i m a g e m (função)
range (interpretation) — d o m í n i o de variação
range theory of probability — teoria do âmbito da probabilidade
ratio scale — escala de proporção
reduction sentence—frase de redução
relevance logics — lógicas relevantes
reliabilism — fiabilismo
reliability — fiabilidade
representationalism — representacionalismo
retrodiction — retroprevisão
reverse discrimination — discriminação positiva
satisfiable — satisfazível
scope — âmbito
self-deception — auto-engano
self-intirnating — auto-intimador
self-knowledge — conhecimento de si
self-regarding — auto-relativa
self-respect — respeito-próprio
semantic engine — dispositivo semântico
sense and reference — sentido e referência
sense-data — d a d o s dos sentidos
sensible knave — patife discreto
sentence — frase
sentenciai function — função frásica
set-theoretic hierarchy — hierarquia cumulativa dos c o n j u n t o s
Sheffer's stroke— traço de Sheffer
sign — sinal, signo
significant form theory—teoria da forma significante
situation semantics — semântica de situações
slingshot — catapulta
, slippery slope — situação escorregadia, d e r r a p a g e m
slippery slope argument — argumento da derrapagem
soft determinism — determinismo moderado
software — suporte lógico
sortal — categorial
soul — alma
soundness (of a formal system) — adequação (de u m sistema
formal)
spirit — espírito
state of mind — estado de espírito
statement — a f i r m a ç ã o , asserção, e n u n c i a d o
sum set — c o n j u n t o u n i ã o
success word — termo factivo
superstring theory — teoria das cordas
supervenience — superveniência
sure thing principle — princípio da coisa certa
surjection — sobrejecção
synderesis (synteresis) — sindérese
theory-laden — subordinação teórica
thick terms — termos densos
thisness — istidade
thought experiment — experiência mental
time-lag argument — a r g u m e n t o d o lapso d e t e m p o
time-slice — corte no t e m p o
tit for tat — p a g a r na m e s m a m o e d a
tone — tom
token — espécime
token reflexive — espécime-reflexiva
topic-neutral — tópico-neutral
trademark argument — argumento da marca
transcendental signified — transcendental assinalado
trial (probability) — ensaio, lançamento
trolley problem — problema do eléctrico
truth-apt — susceptível de verdade
two-way interactionism — interaccionismo reflexivo
type/tokeyi — tipo/espécime
unbounded quantifiers — quantificadores ilimitados
unit set — c o n j u n t o s i n g u l a r
universalizability — universalizabilidade
upper bound — majorante
utter — proferir
utterance — elocução
vagueness — vagueza
variable realization — realização variável
vindication — vindicação
warrant — garantia
warranted assertability — assertibilidade garantida
wave equation — equação de onda
wave function — função de onda
wave packet — pacote de ondas
well-ordering — boa-ordem
wickedness — perversidade
wide and narrow content — conteúdo lato e restrito
zoroastrianism— zoroastrismo