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SENTIDO M Í S T I C O

NA OBRA DE B O T T I C E L L I
Hilário Domingues Neto **

Resumo:
lisie artigo se propõe a analisar as manilcsiuçõcs culturais do Rcnascimcniü europeu do
s c c u i " XV, partindo da i n t c r j ) r o l ação t i a o b r u p i c i ó r i c a ""O N a s c i m e n i o d a V c n u s " . d o
pintor llorcntino Sundro Botticelli (1944-1510). C o m o eixo m e t o d o l ó g i c o t o m a o "mito
e n q u a n t o alegoria" e traça u m a perspectiva analítico-leórica das relações ideológicas que
p e n n c i a m us concepções renascentistas do culto à antigüidade.

Palüvras-thuvc:
Antigüidade clássica. Rena.sciineiuo. mito cotnn alegoria, ideologia.

ú
í
"O honieni c iiiiiii iiivcin'ão rcccnic"
Foiicanii

* l i s i c i c x i i t Ibi o r i f i i n a i m c n i e i i p r c s c n l a d o L-iiinii lfab;ilMii Ue t o i i c l u s i í o d a d i s c i p l i c u i " I c o r i a d o


M i l o " . dii p K i g r a n i a d c P ó s - G r a d u a ç ã o e m S o c i o k i g i u Ua F a c u l d a d e d e C i ê n c i a s e [ ^ I r n s d a U N l i - S K
M > H (iricniaijTin d a P m f . Or". .Silvta M a r i a S c l i m i i / i g c r d e C a r v a l h o .
* ' F i i r n i a d o c m C i ê n c i a s S<x:iais jx:la U N E S P . P r o l c s s o r d u D e p a r t a m e n t o d e C i ê n c i a s H u m a n a s e
S o c i a i s du l ' N I A R A e l a m b e m artista pl.islico,

REVISTA UNIARA. v.l. n.2. 1 9 9 7 4 1


Introdução
Esle artigo pretende realizar u m a abordagem analítica das manifestações
culturais do Renascimento na Europa do Quattroccnio, onde a visão humanista do
m u n d o a p r e s e n t a unia p r o p o s t a rcsiauradora de valores h á .séculos r e p r i m i d o s p e l a
instituição clerical feudal.
A reflexão, centrada na análise da obra " O Na.scimento de Vcnus". concebida
em 1484 pelo pintor florentino S a n d r o Botticelli (1444-1510). nos e n c a m i n h a r á à
d i s c u s s ã o d e a l g u m a s c a t e g o r i a s p o s s í v e i s , tais c o m o : a n o v a c o n c e p ç ã o n a s artes
plá.sticas renascentistas, a burguesia e o m e c e n a t o e a interpretação d o m i t o c o m o
alegoria.

O m o m e n t o histórico
O advento da Idade M o d e r n a ira/ e m seu bojo transformações nas mais variadas
esferas do conhecimento. A escolástica contrapõe-se o neoplatonismo que busca
revigorar o h u m a n i s m o da Antigüidade Clássica, o qual enfraquecido pcio m o n o p ó l i o
religioso d a Igreja, vai rena.scer pela lute n o culto m í t i c o d o ideal g r e c o - r o m ; i n o .
A ruptura e m todos os níveis do conhecimento científico determina profundas
alterações nos embasamentos éticos etllosóficos. Ao lado da expansão do comércio
internacional e urbano, icni lugar u m a política restauradora d o poder d o Estado
apoiada na nova classe detentora do poder econômico, a burguesia.
A censura inquisitória da igreja medieval, c o m o tantos e x e m p l o s históricos de
opressão, só fez deixar latente, ao coibir a liberdade, a vontade voraz e m manifestar
o incompatível c o m a estrutura social emergente. Tais mudanças somente se
c o n c r e t i z a m q u a n d o s u s t e n t a d a s p o r idéias i n o v a d o r a s ; a-ssim t e m s i d o h i s t o r i c a m e n t e ,
e, n o limiar d o m u n d o m o d e r n o não poderia ter sido diferente.
A o s p o u c o s se r o m p e m as amarras repressivas e o discurso na política, na
e c o n o m i a , n a filosofia, na matemática, na física e nas artes, nas ciências e m geral,
tenta resgatar o h o m e m da letárgica c o n c e p ç ã o de u m m u n d o q u e circunscrevia a
razão aos desígnios de u m a fé dogmática.
A b u r g u e s i a m e r c a n t i l e m s e u p r o j e t o d e a s c e n s ã o s o c i a l p a s s a a .ser o a g e n t e
financiador da cultuni. desenvolvendo e m seu m e c e n a t o o culto a novos padrões de
comportamento.
Botticelli foi iim dos artistas d e grande prestígio no Renascimento, e O
Na.scimento de Vênus é considerada a "primeira pintura renascentista c o m tema
e x c l u . s i v ã m e n t e l e i g o c m i t o l ó g i c o " ( C a s s i s , 1 9 8 7 ) e q u e p r o v a v e l m e n t e t e n h a .sido
executada sob e n c o m e n d a dos Médicis. Segundo a mitologia antiga, Vênus, a deusa
latina d o a m o r , o r i g i n a l m e n t e A f r o d i t e para os g r e g o s , na.sceu d a s e s p u m a s d o m a r ,
motivo pelo qual há repre.sentação simbólica na obra. de u m a ninfa sobre a concha.
Referencia-se que Botticclli sc inspirara n o H i n o a Afrodite, de H o m e r o , para a
consecução dessa obra.
N o entanto, fica a questão aberta à análise conclusiva a este trabalho: e m que

42 Sentido mítico na obra dc BotiicelU


sentido o simbolismo presente nessa representação pictórica justifica quaisquer
implicações c o m o contexto histórico d o Renascimento? Esse será pois o percurso a

que nos remeteremos a seguir.

K u n d a m t n l a ç ã n Icórica
Nosso estudo tem a preocupação de estabelecer u m espaço delimitado na
pesquisa para dar conta das implicações ideológicas do m o m e n t o , o "Quattrocento'
italiano, t o m a n d o c o m o objeto d e apreciação m e t o d o l ó g i c a a obra d o pintor florcnlino
S a n d r a Botlicelli (1444-1510). q u e nas artes plásticas f u n d o u g r a n d e parte de suas
criações, n a tentativa d o resgate às tradições clássicas da Antigüidade do ideal greco-
r o m a n o , n o q u a l a a ç ã o d o s d e u s e s .se c o n s u b s t a n c i a f o r t e m e n t e n o c u l t o m í t i c o .
Retomar a Antigüidade significa reler o pensamento daquela época,
interpretando-o dentro d e u m a n o v a visão; c a s o contrário, n a d a faz sentido; esse foi
pois ü objetivo d a m o d e r n i d a d e e m e r g e n t e e se m a n i f e s t o u c o m o j á v i m o s e m Iodos

os campos do conhecimento.
N ã o é objetivo desse artigo discutir o caráter inovador das artes plásticas na
ordenação do espaço pictórico das composições com o uso da perspectiva, do
individualismo e autonomia dos produtores de arte. b e m c o m o d e outras questões
importantes que afloram no m o m e n t o renascentista e que poderão nortear futuras

preocupações.
N o s s o esforço conceituai ante o p r o b l e m a q u e sc nos apresenta requer a análise

prévia de certos fenômenos e de algumas categorias.


N u m p r i m e i r o in.stante. as i m p l i c a ç õ e s f i l o s ó f i c a s , s o c i o l ó g i c a s e h i s t ó r i c a s
d o R e n a s c i m e n t o , ou seja. as condições q u e r e m e t e m o h o m e m m o d e r n o a u m n o v o
.senso p e r c e p t i v o d a realidade, c u j a n e c e s s i d a d e d e e x p r e s s ã o e r e p r e s e n t a ç ã o vai
conduzi-lo a u m novo paradigma, tomando por modelo o pensamento clássico greco-

romano.
Q u a l será p o i s essa n o v a ótica? S e c u n d a n d o tais p r e o c u p a ç õ e s , u m a a b o r d a g e m
que se pretende conclusiva, sobre a presença na obra e m estudo, de u m a iconografia
m i t o l ó g i c a p o r e x c e l ê n c i a , a f i m d e se p r o c e s s a r a u m a po.ssível leitura d e seu c o n t e i l d o

alegórico.
" O Renascimento quis voltaràsfontesdo pensamento e da beleza". (Delumeau.
1984) O h o m e m m o d e l o d o m u n d o de D a Vinci é o objeto preocupante dos filósofos
platônicos renascentistas — os neoplatônicos — como MarcílioFicino (1433-1499)
e Pico delia M i r â n d o í a ( 1 4 6 3 - 1 4 9 4 ) q u e re.sgatam o Platoni.smo dentro d e u m a n o v a
ótica n a qual "Platão é o filósofo que m o s t r a a c a p a c i d a d e d e o h o m e m elevar-.se a o
m u n d o inteligível e. c o m isso, untr-.se a D e u s " ( C a s s i s , 1987), e R o r e n ç a c o c e n t r o

d e s s e p e n s a m e n t o f i l o s ó f i c o n a Itália.
A p i n t u r a f l o r e n t i n a d e Botticelli b e m traduz esse sentimento d e íntima ligação
c o m a n a t u r e z a universal, d o artista q u e c o m o o d e u s d e m i u r g o d e Platão r e p r o d u z a
n a t u r e z a s o b r e a tela. m a i s ainda, p r o d u z u m a s i m b i o s e entre a n a t u r e z a c o n t e m p l a d a

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c a realidacic imaginucJa alcgoricanieiite.

N u m cortc sociológico, t o m a m o s c m FrancasteL (1982) a seguinte afirmaciva


I o d a s o c i e d a d e c|iie s c T o r m a s c g u i a . m a i s o u m e n o s , p o r u m m o d e l o absiralo.
S ã ü us escritores e o s artistas q u e e x p r i m e m e d i f u n d e m os traços materiais desse
m o d e l o |e mai.sj assis(e-se a o e n c o n t r o , n o terreno d a arte. d e h o m e n s tão d i v e r s o s
e n t r e si c o m o h i m i i l d e s a r t e s ã o s e p o t e n t a d o s e | ) o d c - s e d i z e r , e m s n m a , í]iie o gnipo
d c artistas e de sua clientela tem c o m o característica essencial superpor-se às classes
e às outras divisões sociais, letnbrando antes a figura de um partido ... Ris aí
simiillaneamente a causa e a conseqüência d o fato que. lendo sempre por matéria o
real, a arie lhe acrescenta s e m p r e algo. O u propõe aos h o m e n s n o v a s fórmulas para
a organização dos quadros m a t e r i a i s tie s u a vida. ou então torna a matéria mais
flexível aos desejos d o h o m e m , ou r e m e t e à sociedade n m a figura ideal uu a g r a v a d a
d e si m e s m a . " "

S e m dúvida as colocações de Francastel e n d o s s a m nosso pressupo.sto de que


a a r t e e m e r g e t i i e n a m o d e r n i d a d e r e n a s c e n t i s t a , v i n c u l a e n t r e si. d e u m lado u m a
classe detentora d o p o d e r h e g e m ô n i c o , a burguesia, que para se ilustrar vincula-se;
de outro, a o s e g m e n t o social produtor de c o n h e c i m e n t o , n o qual se inserem os artisias.

L c i l u r u (lo m i t u « n q u a n t u a l e g o r i a
Para estruturarmos nossa análise fundada na categoria "mito enquanto
alegoria " recorremos a Furio Jesi, que insere observações sobre o caríter
c o n t e m p o r â n e o da análise ou interpretação do milo enquanto f o r m a de representação
s i m b ó l i c a ile m n p e n s a m e n t o — alegoria — que e m contraposição à visão anterior
que a delimita ao "Conjunto de narrativas sobre deuses, seres divinos, heróis e viagens
ao além (Jesi, 1978), p a r a u m a c o m p r e e n s ã o m a i s a b r a n g e n t e a tal c o n c e i t o q u a n d o
diz; Este conjunto de materiais mitológicos compreende, c o m o já disse, não somente
autênticas narrações, mas também obras de arte figurativa, ações c o n u i mímica,
d a n ç a . etc. A e x t e n s ã o d a p a l a v r a m i t o l o g i a à s ohra.s d e arte e a ç õ e s q u e n ã o e n t r a m
na literatura oral o u escrita, é relativamenic m o d e r n a (no sentido c o n t e m p o r â n e o ) .
Kla implica o conhecinienio de uma certa quantidade de material etnográllco e
s o b r e t u d o u m a r e l l e x ã o c i e n t í f i c a q u e s e o b r i g u e a r e s p o n d e r a p e r g u n t a : "o q u e é
m i t o l o g i a ? " q u e c o l o q u e tal p e r g u n t a e m t e r m o s u n i v e r s a i s ( ' q u e é a m i t o l o g i a c o m o
f e n ô m e n o universal') e. por c o n s e g u i n t e , uin p e n s a m e n t o ' m o d e r n o ' , d e h o m e n s p a r a
quem a mitologia é 'imediatamente oferecida pela repre.seniação-, m a s Já n ã o é
imediaUunente perceptível. "O m o d e r n o e s t u d o d o mito encontra o seu primeiro
obstáculo na dificuldade de circunscrever c o m suficiente rigor o seu â m b i t o e o seu
objeto inclui dc lato a l g u m a s laulologias... o m i t o , escapa a qualquer c o n h e c i m c n l o
c i e n t í l ICO p o r q u e é u m a e s p é c i e d e o b j e t o f a n t a s m a q u e . l o g o q u e e s t á p a r a c o n c r e t i z a r -
se n u m a determinada hipótese, remete implicitamente a cognoscibilidade da sua
essência para u m a hipósiase precedente e hoje inacessível, perdida." (Jesi. 1978).
.Assim, para n ã o i n c o r r e r m o s na falsa c o n s c i ê n c i a d o f e n ô m e n o mito. o trabalho

44 Sfiiliílí/ mítico na obra dc lioiricclli


q u e se nos iiprcsenta tem implicações históricas, portanto, n ã o p o d e m o s reduzir a
análise da obru dc Bollicelli a u m mero icoiiografismo alegórico da miloiogiu da
Antigüidade, mus sim referenciá-la ao m e s m o tempo c o m o contexto do pensamento
filosóllco e m que esta foi concebida, o d o Rena.scimento.
() N a s c i m e n t o d c V c n u s . e m seu conjunto, nos passa de imediato u m a sensação
d e lotai equilíbrio e m siiacompo.sição. c o m o se o artista se realizasse a o se a p r o x i m a r
de D e u s d o m i n a n d o o lodo universal. N e s s e sentido ele extrapola o.senso d o c o m u m
e cria iunigens etéroas t|ue nos renieicm, q u a n d o d a c o n t e m p l a ç ã o , a u m a e x t e n u a n t e
b u s c a d a v e r d a d e ali c o m i d a .
P o d e r í a m o s p a t l i r d o pressuposto que a arte foi no R e n a s c i m e n t o revitalizada
d o s p a d r õ e s c l á s s i c o s dii A n i i u i i i d a d e , "... a p i n t u r a a p r e s e n t a u m c a r á l e r d i v i n o q u e
" f a z c o m q u e oespíriU' J " pintor se t r a n s f o r m e n u m a i m a g e m d o espírito d e D e u s " ,
c o n f o m i e D a Vinci. a pintura é esse olhar m á g i c o q u e capta, fixa e eterniza n a tela o
m u n d o r e c r i a d o e r e o r d e n . u l o pi lo a r t i s t a " ( C a s s i s . 1 9 8 7 ) .
T o m e m o s c o m o roteiro miiológico a citação de Kerenyi (1994) sobre o mito
d o N a s c i m e n t o d e A f r o d i l c ( V ."•nii-l c m s u a o b r a " O s d e u . s e s g r e g o s " :

"A história d o nasci meai. • J e Afrodite. preservada em Ilesíodo. forma a


continuação da história de Urano. Géia e C r o n o . C o m e ç a c o m a primeira v i a g e m da
d e u s a à iliui d o C h i p r e , s e d e d o s s e u s n m i s a n t i g o s e p o d e r o s o s . s a n t u á r i o s , o s d e P a f o
e A m a t o . A h i s t ó r i a f o i d e s e n v o h i>ki a u i n h i n o q u e s e a t r i b u i u a H o m e r o . M a s e u
contarei a história original...
" A v i r i l i d a d e e x t i r p a d a d o P.JI L l a m o c a i u n o m a r i n q u i e t o , e m q u e C r o n o a
atirara desde a terra firme. Durante muito lenipo ela vagou d e u m lado para oulro.
U m a e s p u m a hranca - aphros - juntou-se-lhe à roda. formada da pele imortal. U m a
d o n z e l a surgiu e cresceu d e n t r o dela. D e p o i s n a d o u p r i m e i r o p a r a a ilha d e C i t e m e.
e m seguida, para Chipre. Aqui a bela e tímida deusa se ergueu da água. e u m a relva
nova c o m e ç o u a crescer-lhe debaixo dos pés. H c h a m a d a Afrodite p o r d e u s e s e honwns.
p o r q u e foi feita d e e s p u m a . H é t a m b é m c h a m a d a C i t e r é i a . p o r q u e foi p a r a C i t e m
que primeiro nadou...
" O h i n o h o m é r i c o c o n t a m a i s o m o d o c o m que. e m Chipre, A f r o d i t e foi r e c e b i d a
e vestida pelas Horas. A s Horas são filhas de T ê m i s , a deusa da lei e d a o r d e m
apropriadas às relações naturais dos sexos. A contemplação da completa nudez da
d e u s a t e r i a s i d o c o n t r á r i a a T ê m i s - o u tal e r a a i d é i a d o s n o s s o s m a i o r e s n o s t e m p o s
antigos, exceiuando-se os dórios. Só depois de vestida, engrinaldada e adornada,
p ô d e A f r o d i t e s e r l e v a d a p a r a o m e i o d o s d e u s e s . A s s i m q u e :i v i r a m , t o d o s a b e i j a r a m ,
agarraram-lhe a m ã o c o m finiieza e procuraram recebê-la por mulher n u m casamento
pemianente..." (Kerenyi, 1994).
O exercício de u m a interpretação alegórica dos elementos temáticos
i c o n o g r a f i c a m e n t e representados na obra d e Botticelli será u m a prática n ã o m u i t o
smiples, requer a priori u m a análise particuíarizada d e c a d a integrante d o q u ad r o ,
tentando por fim incorporá-los ao conjunto relacionando-os no que for factível c o m

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o contexto mitológico dos hinos homéricos.
O c o r r e - n o s iiinda a n e c e s s i d a d e de o r i e n t a ç ã o q u a n t o a o c o n t e x t o espacial
geográfico d o acontecimento. Botticelli ao realizar sua c o m p o s i ç ã o pictórica o fez
s i t u a n d o a e n t r a d a d a p e r s o n a g e m principal. Afrodite, i m p u l s i o n a d a de leste p a r a
oeste, no Mediterrâneo, o que permite algumas conexões entre os elementos e m estudo.
A cultura grega, desde seus tempo.s primitivos apropriou-se do espaço
m e d i t e r r â n i c o e m u m m o v i m e n t o de c o n t í n u a e x p a n s ã o . Para o leste até Gibraltar —
"as c o l u n a s de H é r c u l e s " — p a r a o sudoeste o E g i t o no d e i t a d o Nilo, para o leste, as
costas da Ásia M e n o r e Chipre na rota costcira n i m o ao oriente.
Campbell (1992) faz considerações sobre a evolução do mito n u m
rcprocessamento culmral dentro do que denomina "zonas mitogencticas", numa
analogia às " z o n a s de difusão", nas quais d e t e r m i n a d a s representações mitológicas
se transferem dentro de u m processo evolucionista das civilizações. Isso nos permite
sustentar que. dentro de um processo expansionista implementado por contatos
culturais heterogêneos, encontremos na mitologia características análogas a de outros
g n i p o s e i vil i z a t ó r i o s . - A s s i m o m é t o d o c o m p a r a t i v o n o s i n t r o d u z i r á e m c o n s i d e r á v e i s
sistematizaçoes e m nosso trabalho.
Ainda quanto à fonte de inspiração, encontramos no escultor grego Praxíteles.
da escola de Atenas, u m a certa ideiuidade c o m os padrões que nortearam Botticelli.
A s s i m c o m o a E u r o p a a s s i s t i u a d e r r o c a d a d o m u n d o c l á s s i c o g r e c o - r o m a n o n o s fins
d o s é c u l o V d.C.. o m e s m o p a l c o social assistiu nos fins do século IV a.C., ao fim d o
classicismo helênico, do qual as guerras do Peloponeso foram um dos fatores
determinantes ao icmpo que contribuíram para u m a significativa degeneração do
refinamento cultural grego.
"... A o l o n g o d a d i s p u t a [guerra d o P e l o p o n e s o ] f o r a m - s e a b r a n d a n d o os v a l o r e s
q u e h a v i a m c a r a c t e r i z a d o o c l a s s i c i s m o . e a i n d a i n v e r t e n d o - s e a l g u n s ... e s t a s u b v e r s ã o
de valores incidiu nus manifestações artísticas, não porque tentassem reiletir a n o v a
ordem, mas porque o abandono do classicismo levava-se a fim n u m marco onde o
p r o p r i a m e n t e h u m a n o c o m e ç a v a a reclamar seus direitos. O n d e antes h a v i a m nascido
deuses, agora eram homens, uns h o m e n s idealizados, que o c u p a v a m e m sua figura o
lugar d e deuses, inclusive q u a n d o t e m a t i c a m e n t e se tratava de d e u s e s " (Bozal. 1995).
Nesse contexto humanista, justifica-se que o escultor Praxíteles, da escola de
•Atenas, t e n h a c o n c e b i d o sua Afrodite d e C n i d o , q u e s e g u n d o a lenda tivera p o r m u s a
inspiradora sua a m a d a Frinéia. T a m b é m Botticelli c o n f o r m e algumas insinuações
literárias teria por modelo para sua concepção de Vênus, a figura feminina de
S i m o n e t i a Vespucci. a m o r de ü i u l i a n o Mediei, que lhe e n c o m e n d a r a a obra.
C o m p a r a n d o a Afrodite de Praxíteles c o m a V ê n u s de Bütticelli, realmente
constatamos u m a identidade marcante na forma e expressão. C o m u m a nudez pudica
que propõe o sensual, a Afrodite de Cnido saindo do banho tendo ao lado a jarra de
p e r f u m e s e o m a n t o c o m o qual irá se e n v o l v e r , e a V ê n u s d e Botticelli e m e r g i n d o d a s
águas, e m meio ao perfume de rosas e t a m b é m pronta a ser envolvida por u m a

Sentida mítico na ohru de Botticelli


vestimenta trazida por u m a Hora. Ainda a coloração m a r m ó r e a de Vcnus nos induz
ao m o d e l o da estáciiade PraxíLcles (dela não se t e m a original, s o m e n t e reproduções,
principalmente pelos romanos) e m sua concepção.
C o m relação à n u d e z d e A f r o d i t e e V ê n u s , a n o s s o ver, a d e u s a está transitando
do puro para o impuro, do m u n d o das águas que faz nascer a vida e m sua sublime
inocência, para o m u n d o dos h u m a n o s , q u a n d o os deuses se materializam e m virtudes
e imperfeições. Essa transição se faz necessária para estes artistas, q u e a p e s a r de
n ã o c o n t e m p o r â n e o s são contemplativos de u m a o r d e m social de e x t r e m a identidade.
F a r e m o s a leitura do quadro da esquerda pura a direita, c o n f o r m e sugere
Luciano Beiti (1978):
E m primeiro plano aparece Zcllro, o vento brando do oeste, l a m b e m venerado
c o m o entidade fecundadora. Flora, d e u s a d a primavera, a b r a ç a d a a o seu con.sorte
completa o quadro no qual envoltos num aparente sensualismo parecem querer
transmitir a Vênus u m a aura de erotismo n u m ambiente p e r f u m a d o pelas rosax,
e n q u a n t o u m a eleg;inte ninfa. u m a Hora, entidade que personificava u m a das estações
d o ano, no caso a da primavera, encarrega-.se de vestir a nudez de Vênus.
A representação dc Vênus sobre u m a concha está ligada à sua concepção dos
t e s t í c u l o s c a s t r a d o s d e U r a n o e j o g a d o s a o m a r p o r .seu f i l h o C r o n o s , q u e n a u n i ã o
com a espuma branca —aphros — gerou Afrodite.
Sob os pés da Hora u m a ancmona floresce, reforçando a idéia da c h e g a d a da
primavera. A a n ê m o n a foi a flor gerada d o sangue de Adônis, a m a n t e de Vênus e
m o r t o p r e m a t u r a m e n t e por u m javali. Tal representação se refere à intenção da d e u s a
em lembrá-lo a cada ano e m que a a n ê m o n a florescesse, o que acontece de forma
e f ê m e r a c o m o foi a vida de Adônis.
A p r i m a v e r a é a e s t a ç ã o d a r e n o v a ç ã o , a-ssim c o m o o R e n a s c i m e n t o o é n o
contexto social da época, portanto há nesse conteúdo u m a forte reciprocidade entre
o texto iconográfico e o universo circundante de Botticelli,
N e s s e sentido, a f o r m a alegórica c o m a qual Botticelli estrutura a obra. reflete
lodo o contexto ideológico que transita da mitologia grega clássica às preocupações
existenciais do h o m e m do Quattrocento,

Abstract:
T l i i s a r t t c l e o f f e r s l o a n a l y s i s lhe c u l t u r a l m a n i f c s t a t i o n s abníit e u r o p c a n R c n a i s s a n c c in
the X V c e n t u r y . b e g i n n i n g tu lhe interprctalion of pictorii; w o r k "lhe birth o f V e n u s " , the
f l n w r e n c e painier S a n d r o BotiiccIIi ( 1 9 4 4 - 1 5 1 0 ) . H o w lhe m e i h o d o l o g y c axle c h a n g e the
"inyih i s long as allcgory" and deüneaie a pcrspeclive theory-analyiics abuut ideal relalions
lhal penctraie the rcnascciilist.s c o n c c p t i o n s of lhe cull by anliquily.

Keyword.s:
• A n l i q u i l y c l a s s i c , R e n a i s s a n c e , m y i h a.s l o n g a s a l l e g o r y , i d e o i o g y .

REVISTA U N I A R A . v.l. n.2. 1 9 9 7 4 7


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Sentido mítico n<i obra de Botticelli

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