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NA OBRA DE B O T T I C E L L I
Hilário Domingues Neto **
Resumo:
lisie artigo se propõe a analisar as manilcsiuçõcs culturais do Rcnascimcniü europeu do
s c c u i " XV, partindo da i n t c r j ) r o l ação t i a o b r u p i c i ó r i c a ""O N a s c i m e n i o d a V c n u s " . d o
pintor llorcntino Sundro Botticelli (1944-1510). C o m o eixo m e t o d o l ó g i c o t o m a o "mito
e n q u a n t o alegoria" e traça u m a perspectiva analítico-leórica das relações ideológicas que
p e n n c i a m us concepções renascentistas do culto à antigüidade.
Palüvras-thuvc:
Antigüidade clássica. Rena.sciineiuo. mito cotnn alegoria, ideologia.
ú
í
"O honieni c iiiiiii iiivcin'ão rcccnic"
Foiicanii
O m o m e n t o histórico
O advento da Idade M o d e r n a ira/ e m seu bojo transformações nas mais variadas
esferas do conhecimento. A escolástica contrapõe-se o neoplatonismo que busca
revigorar o h u m a n i s m o da Antigüidade Clássica, o qual enfraquecido pcio m o n o p ó l i o
religioso d a Igreja, vai rena.scer pela lute n o culto m í t i c o d o ideal g r e c o - r o m ; i n o .
A ruptura e m todos os níveis do conhecimento científico determina profundas
alterações nos embasamentos éticos etllosóficos. Ao lado da expansão do comércio
internacional e urbano, icni lugar u m a política restauradora d o poder d o Estado
apoiada na nova classe detentora do poder econômico, a burguesia.
A censura inquisitória da igreja medieval, c o m o tantos e x e m p l o s históricos de
opressão, só fez deixar latente, ao coibir a liberdade, a vontade voraz e m manifestar
o incompatível c o m a estrutura social emergente. Tais mudanças somente se
c o n c r e t i z a m q u a n d o s u s t e n t a d a s p o r idéias i n o v a d o r a s ; a-ssim t e m s i d o h i s t o r i c a m e n t e ,
e, n o limiar d o m u n d o m o d e r n o não poderia ter sido diferente.
A o s p o u c o s se r o m p e m as amarras repressivas e o discurso na política, na
e c o n o m i a , n a filosofia, na matemática, na física e nas artes, nas ciências e m geral,
tenta resgatar o h o m e m da letárgica c o n c e p ç ã o de u m m u n d o q u e circunscrevia a
razão aos desígnios de u m a fé dogmática.
A b u r g u e s i a m e r c a n t i l e m s e u p r o j e t o d e a s c e n s ã o s o c i a l p a s s a a .ser o a g e n t e
financiador da cultuni. desenvolvendo e m seu m e c e n a t o o culto a novos padrões de
comportamento.
Botticelli foi iim dos artistas d e grande prestígio no Renascimento, e O
Na.scimento de Vênus é considerada a "primeira pintura renascentista c o m tema
e x c l u . s i v ã m e n t e l e i g o c m i t o l ó g i c o " ( C a s s i s , 1 9 8 7 ) e q u e p r o v a v e l m e n t e t e n h a .sido
executada sob e n c o m e n d a dos Médicis. Segundo a mitologia antiga, Vênus, a deusa
latina d o a m o r , o r i g i n a l m e n t e A f r o d i t e para os g r e g o s , na.sceu d a s e s p u m a s d o m a r ,
motivo pelo qual há repre.sentação simbólica na obra. de u m a ninfa sobre a concha.
Referencia-se que Botticclli sc inspirara n o H i n o a Afrodite, de H o m e r o , para a
consecução dessa obra.
N o entanto, fica a questão aberta à análise conclusiva a este trabalho: e m que
K u n d a m t n l a ç ã n Icórica
Nosso estudo tem a preocupação de estabelecer u m espaço delimitado na
pesquisa para dar conta das implicações ideológicas do m o m e n t o , o "Quattrocento'
italiano, t o m a n d o c o m o objeto d e apreciação m e t o d o l ó g i c a a obra d o pintor florcnlino
S a n d r a Botlicelli (1444-1510). q u e nas artes plásticas f u n d o u g r a n d e parte de suas
criações, n a tentativa d o resgate às tradições clássicas da Antigüidade do ideal greco-
r o m a n o , n o q u a l a a ç ã o d o s d e u s e s .se c o n s u b s t a n c i a f o r t e m e n t e n o c u l t o m í t i c o .
Retomar a Antigüidade significa reler o pensamento daquela época,
interpretando-o dentro d e u m a n o v a visão; c a s o contrário, n a d a faz sentido; esse foi
pois ü objetivo d a m o d e r n i d a d e e m e r g e n t e e se m a n i f e s t o u c o m o j á v i m o s e m Iodos
os campos do conhecimento.
N ã o é objetivo desse artigo discutir o caráter inovador das artes plásticas na
ordenação do espaço pictórico das composições com o uso da perspectiva, do
individualismo e autonomia dos produtores de arte. b e m c o m o d e outras questões
importantes que afloram no m o m e n t o renascentista e que poderão nortear futuras
preocupações.
N o s s o esforço conceituai ante o p r o b l e m a q u e sc nos apresenta requer a análise
romano.
Q u a l será p o i s essa n o v a ótica? S e c u n d a n d o tais p r e o c u p a ç õ e s , u m a a b o r d a g e m
que se pretende conclusiva, sobre a presença na obra e m estudo, de u m a iconografia
m i t o l ó g i c a p o r e x c e l ê n c i a , a f i m d e se p r o c e s s a r a u m a po.ssível leitura d e seu c o n t e i l d o
alegórico.
" O Renascimento quis voltaràsfontesdo pensamento e da beleza". (Delumeau.
1984) O h o m e m m o d e l o d o m u n d o de D a Vinci é o objeto preocupante dos filósofos
platônicos renascentistas — os neoplatônicos — como MarcílioFicino (1433-1499)
e Pico delia M i r â n d o í a ( 1 4 6 3 - 1 4 9 4 ) q u e re.sgatam o Platoni.smo dentro d e u m a n o v a
ótica n a qual "Platão é o filósofo que m o s t r a a c a p a c i d a d e d e o h o m e m elevar-.se a o
m u n d o inteligível e. c o m isso, untr-.se a D e u s " ( C a s s i s , 1987), e R o r e n ç a c o c e n t r o
d e s s e p e n s a m e n t o f i l o s ó f i c o n a Itália.
A p i n t u r a f l o r e n t i n a d e Botticelli b e m traduz esse sentimento d e íntima ligação
c o m a n a t u r e z a universal, d o artista q u e c o m o o d e u s d e m i u r g o d e Platão r e p r o d u z a
n a t u r e z a s o b r e a tela. m a i s ainda, p r o d u z u m a s i m b i o s e entre a n a t u r e z a c o n t e m p l a d a
L c i l u r u (lo m i t u « n q u a n t u a l e g o r i a
Para estruturarmos nossa análise fundada na categoria "mito enquanto
alegoria " recorremos a Furio Jesi, que insere observações sobre o caríter
c o n t e m p o r â n e o da análise ou interpretação do milo enquanto f o r m a de representação
s i m b ó l i c a ile m n p e n s a m e n t o — alegoria — que e m contraposição à visão anterior
que a delimita ao "Conjunto de narrativas sobre deuses, seres divinos, heróis e viagens
ao além (Jesi, 1978), p a r a u m a c o m p r e e n s ã o m a i s a b r a n g e n t e a tal c o n c e i t o q u a n d o
diz; Este conjunto de materiais mitológicos compreende, c o m o já disse, não somente
autênticas narrações, mas também obras de arte figurativa, ações c o n u i mímica,
d a n ç a . etc. A e x t e n s ã o d a p a l a v r a m i t o l o g i a à s ohra.s d e arte e a ç õ e s q u e n ã o e n t r a m
na literatura oral o u escrita, é relativamenic m o d e r n a (no sentido c o n t e m p o r â n e o ) .
Kla implica o conhecinienio de uma certa quantidade de material etnográllco e
s o b r e t u d o u m a r e l l e x ã o c i e n t í f i c a q u e s e o b r i g u e a r e s p o n d e r a p e r g u n t a : "o q u e é
m i t o l o g i a ? " q u e c o l o q u e tal p e r g u n t a e m t e r m o s u n i v e r s a i s ( ' q u e é a m i t o l o g i a c o m o
f e n ô m e n o universal') e. por c o n s e g u i n t e , uin p e n s a m e n t o ' m o d e r n o ' , d e h o m e n s p a r a
quem a mitologia é 'imediatamente oferecida pela repre.seniação-, m a s Já n ã o é
imediaUunente perceptível. "O m o d e r n o e s t u d o d o mito encontra o seu primeiro
obstáculo na dificuldade de circunscrever c o m suficiente rigor o seu â m b i t o e o seu
objeto inclui dc lato a l g u m a s laulologias... o m i t o , escapa a qualquer c o n h e c i m c n l o
c i e n t í l ICO p o r q u e é u m a e s p é c i e d e o b j e t o f a n t a s m a q u e . l o g o q u e e s t á p a r a c o n c r e t i z a r -
se n u m a determinada hipótese, remete implicitamente a cognoscibilidade da sua
essência para u m a hipósiase precedente e hoje inacessível, perdida." (Jesi. 1978).
.Assim, para n ã o i n c o r r e r m o s na falsa c o n s c i ê n c i a d o f e n ô m e n o mito. o trabalho
REVISTA U N I A R A . v.l. n . 2 . 1 9 9 7 45
o contexto mitológico dos hinos homéricos.
O c o r r e - n o s iiinda a n e c e s s i d a d e de o r i e n t a ç ã o q u a n t o a o c o n t e x t o espacial
geográfico d o acontecimento. Botticelli ao realizar sua c o m p o s i ç ã o pictórica o fez
s i t u a n d o a e n t r a d a d a p e r s o n a g e m principal. Afrodite, i m p u l s i o n a d a de leste p a r a
oeste, no Mediterrâneo, o que permite algumas conexões entre os elementos e m estudo.
A cultura grega, desde seus tempo.s primitivos apropriou-se do espaço
m e d i t e r r â n i c o e m u m m o v i m e n t o de c o n t í n u a e x p a n s ã o . Para o leste até Gibraltar —
"as c o l u n a s de H é r c u l e s " — p a r a o sudoeste o E g i t o no d e i t a d o Nilo, para o leste, as
costas da Ásia M e n o r e Chipre na rota costcira n i m o ao oriente.
Campbell (1992) faz considerações sobre a evolução do mito n u m
rcprocessamento culmral dentro do que denomina "zonas mitogencticas", numa
analogia às " z o n a s de difusão", nas quais d e t e r m i n a d a s representações mitológicas
se transferem dentro de u m processo evolucionista das civilizações. Isso nos permite
sustentar que. dentro de um processo expansionista implementado por contatos
culturais heterogêneos, encontremos na mitologia características análogas a de outros
g n i p o s e i vil i z a t ó r i o s . - A s s i m o m é t o d o c o m p a r a t i v o n o s i n t r o d u z i r á e m c o n s i d e r á v e i s
sistematizaçoes e m nosso trabalho.
Ainda quanto à fonte de inspiração, encontramos no escultor grego Praxíteles.
da escola de Atenas, u m a certa ideiuidade c o m os padrões que nortearam Botticelli.
A s s i m c o m o a E u r o p a a s s i s t i u a d e r r o c a d a d o m u n d o c l á s s i c o g r e c o - r o m a n o n o s fins
d o s é c u l o V d.C.. o m e s m o p a l c o social assistiu nos fins do século IV a.C., ao fim d o
classicismo helênico, do qual as guerras do Peloponeso foram um dos fatores
determinantes ao icmpo que contribuíram para u m a significativa degeneração do
refinamento cultural grego.
"... A o l o n g o d a d i s p u t a [guerra d o P e l o p o n e s o ] f o r a m - s e a b r a n d a n d o os v a l o r e s
q u e h a v i a m c a r a c t e r i z a d o o c l a s s i c i s m o . e a i n d a i n v e r t e n d o - s e a l g u n s ... e s t a s u b v e r s ã o
de valores incidiu nus manifestações artísticas, não porque tentassem reiletir a n o v a
ordem, mas porque o abandono do classicismo levava-se a fim n u m marco onde o
p r o p r i a m e n t e h u m a n o c o m e ç a v a a reclamar seus direitos. O n d e antes h a v i a m nascido
deuses, agora eram homens, uns h o m e n s idealizados, que o c u p a v a m e m sua figura o
lugar d e deuses, inclusive q u a n d o t e m a t i c a m e n t e se tratava de d e u s e s " (Bozal. 1995).
Nesse contexto humanista, justifica-se que o escultor Praxíteles, da escola de
•Atenas, t e n h a c o n c e b i d o sua Afrodite d e C n i d o , q u e s e g u n d o a lenda tivera p o r m u s a
inspiradora sua a m a d a Frinéia. T a m b é m Botticelli c o n f o r m e algumas insinuações
literárias teria por modelo para sua concepção de Vênus, a figura feminina de
S i m o n e t i a Vespucci. a m o r de ü i u l i a n o Mediei, que lhe e n c o m e n d a r a a obra.
C o m p a r a n d o a Afrodite de Praxíteles c o m a V ê n u s de Bütticelli, realmente
constatamos u m a identidade marcante na forma e expressão. C o m u m a nudez pudica
que propõe o sensual, a Afrodite de Cnido saindo do banho tendo ao lado a jarra de
p e r f u m e s e o m a n t o c o m o qual irá se e n v o l v e r , e a V ê n u s d e Botticelli e m e r g i n d o d a s
águas, e m meio ao perfume de rosas e t a m b é m pronta a ser envolvida por u m a
Abstract:
T l i i s a r t t c l e o f f e r s l o a n a l y s i s lhe c u l t u r a l m a n i f c s t a t i o n s abníit e u r o p c a n R c n a i s s a n c c in
the X V c e n t u r y . b e g i n n i n g tu lhe interprctalion of pictorii; w o r k "lhe birth o f V e n u s " , the
f l n w r e n c e painier S a n d r o BotiiccIIi ( 1 9 4 4 - 1 5 1 0 ) . H o w lhe m e i h o d o l o g y c axle c h a n g e the
"inyih i s long as allcgory" and deüneaie a pcrspeclive theory-analyiics abuut ideal relalions
lhal penctraie the rcnascciilist.s c o n c c p t i o n s of lhe cull by anliquily.
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