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Assistência Farmacêutica no Sistema Único de Saúde:

TEMAS LIVRES FREE THEMES


da Política Nacional de Medicamentos à Atenção Básica à Saúde

Pharmaceutical Assistance in the Basic Units of Health:


from the National Drug Policy to the Basic Attention to Health

Luciane Cristina Feltrin de Oliveira 1


Marluce Maria Araújo Assis 1
André René Barboni 1

Abstract This study of theoretical revision dis- Resumo Este artigo é um estudo de revisão teóri-
cuss the Pharmaceutical Assistance in the Basic ca que discute a Assistência Farmacêutica no Sis-
Units of Health, rescuing briefly the history of tema Único de Saúde, resgatando-se brevemente a
the National Drug Policy, the mechanisms of fi- história da Política Nacional de Medicamentos, os
nancing in the process of health decentralization mecanismos de financiamento no processo de des-
and Pharmaceutical Assistance on the Basic At- centralização da saúde e a Assistência Farmacêu-
tention to Health. The expansion of the popula- tica na Atenção Básica à Saúde. A ampliação do
tion access to the health system has demanded acesso da população ao sistema de saúde exigiu
changes on drug distribution in order to increase mudanças na distribuição de medicamentos, de
the coverage and at the same time to reduce costs. maneira a aumentar a cobertura e ao mesmo tem-
It was identified advances in legal and institu- po minimizar custos. Identificam-se avanços no
tional structures: the management decentraliza- arcabouço jurídico e institucional: descentraliza-
tion of actions on pharmaceutical assistance; the ção da gestão das ações da assistência farmacêuti-
expansion of the population access to essential ca; ampliação do acesso da população aos medica-
medicines; and the establishment of the pharma- mentos essenciais; e estruturação da assistência
ceutical assistance in some cities. However, it still farmacêutica nos municípios. No entanto, persis-
persists priority actions in relation to the financ- tem ações prioritárias em relação ao financiamen-
ing and population coverage, in detriment of qual- to e cobertura populacional, em detrimento da
ity processes. The conclusion is that, many Bra- qualidade dos processos. Conclui-se que em mui-
zilian cities has low availability and discontinu- tos municípios brasileiros ocorrem baixa disponi-
ity of essential medicine offer; dispensation by bilidade e descontinuidade da oferta de medica-
workers without qualification; inadequate con- mentos essenciais; dispensação por trabalhadores
ditions of storage that compromise the quality of sem qualificação; condições inadequadas de arma-
medicines; medicine prescription that does not zenamento que comprometem a qualidade dos
belong to the National Reference of Essential Med- medicamentos; prescrição de medicamentos que
icines; and problems related to the access of users não pertencem à Relação Nacional de Medicamen-
1
Universidade Estadual de to the pharmacotherapy. tos Essenciais; e problemas relacionados ao acesso
Feira de Santana. Av. Key words Pharmaceutical assistance, Basic dos usuários à farmacoterapia.
Transnordestina s/no, Novo
Horizonte. 44036-900
Attention to Health Palavras-chave Assistência Farmacêutica, Aten-
Feira de Santana BA. ção Básica à Saúde
feltrinlc@yahoo.com.br
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Oliveira LCF et al.

Introdução A distribuição de medicamentos na ABS é par-


te integrante do processo de cura, reabilitação e
O Brasil vem experimentado, desde a criação do prevenção de doenças. Os medicamentos distribu-
Sistema Único de Saúde (SUS), mudanças im- ídos neste nível de atenção são os chamados medi-
portantes no seu sistema público de saúde. Neste camentos essenciais, que segundo a Organização
contexto, princípios importantes vêm nortean- Mundial da Saúde (OMS) são aqueles que satisfa-
do a política de saúde do país, tais como univer- zem as necessidades de cuidados de saúde básica
salidade do acesso, integralidade da atenção e da maioria da população. São selecionados de acor-
equidade1. do com a sua relevância na saúde pública, evidên-
A universalidade trouxe consigo a ampliação cia sobre a eficácia e segurança e os estudos com-
do acesso da população aos serviços de saúde. parativos de custo efetividade6. Vários autores,
Neste aspecto, a Atenção Básica à Saúde (ABS) dentre eles Donabedian7, referem a eficácia como o
tem-se constituído em prioridade governamen- efeito potencial ou o efeito em determinadas con-
tal na reorientação das políticas de saúde em ní- dições experimentais. Já a efetividade e o impacto
vel local com a finalidade de fortalecer a “porta traduziriam o efeito real num sistema operacional,
de entrada” do sistema. Nesse sentido, a ABS e a eficiência corresponde às relações entre custos e
toma força na década de 1990 com a implanta- resultados, ou entre resultados e insumos7.
ção do Programa Saúde da Família (PSF) em Nesse contexto, a ampliação do acesso da
1994, estabelecendo a Unidade de Saúde da Fa- população ao sistema de saúde público, princi-
mília (USF) como a principal via de acesso da palmente através da ABS, exigiu, ao longo dos
população ao sistema público de saúde2. últimos anos, mudanças na organização da As-
O PSF tem como “imagem objetivo” superar sistência Farmacêutica (AF) dentro do SUS, de
o modelo de saúde centrado na doença e em prá- maneira a aumentar a cobertura da distribuição
ticas, predominantemente, curativas, objetivan- gratuita de medicamentos e ao mesmo tempo
do a reorganização do processo de trabalho em minimizar custos. Além disso, foi necessária a
saúde na atenção básica. Vislumbra também a construção de um arcabouço legal para susten-
incorporação de conceitos e práticas inovado- tar o processo de descentralização da gestão das
ras, balizadas por diferentes tecnologias, entre ações da AF e assim garantir o acesso da popula-
elas as relacionadas à AF, para responder às ne- ção a medicamentos considerados essenciais.
cessidades apresentadas nos espaços concretos Dessa maneira, o trabalho objetiva discutir a
em que as pessoas constroem suas histórias e AF no SUS. Para tanto, resgata-se um breve his-
representam seu processo de saúde-doença3,4. tórico da Política Nacional de Medicamentos,
Vale lembrar que atualmente o PSF não é mais incluindo os mecanismos de financiamento da
um programa e sim uma estratégia para reorga- AF no processo de descentralização da saúde e a
nização da atenção básica, assim ganhou a deno- AF na ABS.
minação de Estratégia Saúde da Família.
Em relação às formas de financiamento da
ABS com a instituição do Piso de Atenção Básica Política Nacional de Medicamentos
(PAB) em 1997, estabeleceram-se mecanismos de no Brasil: um breve resgate histórico
incentivo à organização e financiamento deste
nível de atenção. Desde então, os recursos passa- A distribuição de medicamentos em qualquer
ram a ser transferidos, de forma regular e auto- nível de atenção à saúde é uma das atividades da
mática, diretamente da União para os municí- AF. A Política Nacional de Medicamentos (PNM),
pios através do fundo municipal de saúde5. aprovada em 1998, definiu as funções e finalida-
Nesse nível de atenção, procura-se responder des da AF dentro do SUS como um grupo de
às demandas sanitárias e às relacionadas com as atividades relacionadas com o medicamento, des-
ações clínicas. No primeiro caso estão as ações tinadas a apoiar as ações de saúde demandadas
de saneamento do meio, desenvolvimento nutri- por uma comunidade, incluindo o abastecimen-
cional, vacinação, informação em saúde, entre to de medicamentos (seleção, programação e
outras. As demandas relacionadas com as ações aquisição) com base na adoção da Relação Naci-
clínicas incluem vigilância epidemiológica (pre- onal de Medicamentos Essenciais (Rename); a
venção e tratamento de doenças de relevância conservação e o controle de qualidade; a segu-
epidemiológica) e as tipicamente clínicas (pre- rança e a eficácia terapêutica e o acompanha-
venção, tratamento e recuperação, com apoio de mento e avaliação da utilização para assegurar o
técnicas diagnósticas e terapêuticas)4. seu uso racional8.
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A PNM também estabelece que a gestão da sistiu até o início dos anos 90, quando aconteceu
AF deva ser descentralizada e a aquisição feita a extinção do INPS e a sua incorporação ao Mi-
com base em critérios epidemiológicos para me- nistério da Saúde (MS). Desde então, a aquisição
lhor atender às necessidades locais das popula- de medicamentos continuou por meio do MS,
ções por medicamentos8. secretarias estaduais e municipais de saúde que
A atual conformação legal do componente mantinham convênios com a Ceme13.
AF no âmbito do SUS é decorrente da constru- Ao longo dos anos de existência da Ceme,
ção histórica da PNM do país e de sucessivas foram detectados vários problemas relaciona-
tentativas de incrementar o acesso da população dos com o acesso da população aos medicamen-
aos medicamentos necessários para a sua tera- tos produzidos por ela, entre eles: a pouca utili-
pêutica. Autores como Bermudez9, Bonfim e Mer- zação da Rename pelos prescritores, desperdíci-
cucci10, Bermudez e Bonfim11 e Joncheere12, no os de medicamentos decorrentes principalmente
contexto em que escreveram seus trabalhos, en- do pouco conhecimento do perfil epidemiológi-
fatizaram a necessidade cada vez mais emergente co das populações atendidas, dificuldades de lo-
da implementação de uma Política Nacional de gística com grandes perdas de medicamentos por
Medicamentos inserida na Política Nacional de prazo de validade vencido, além de insuficiência
Saúde, principalmente no âmbito do SUS, colo- de recursos financeiros13.
cando o Ministério da Saúde como a principal Na tentativa de melhorar esse quadro, vários
agência e força condutora na formulação e im- programas especiais foram criados, entre eles o
plementação desta política. O enfoque principal Programa Farmácia Básica (PFB), em 1987, que
desses autores é que o direcionamento da políti- objetivava racionalizar a disponibilidade de me-
ca deveria ser feito através de três eixos princi- dicamentos essenciais na ABS. Este programa foi
pais: regulação sanitária de medicamentos, re- idealizado como um módulo padrão de supri-
gulação econômica e AF. Esta última, envolven- mento de medicamentos selecionados da Rena-
do um conjunto de ações e serviços de atenção à me. Os módulos contavam com 48 medicamen-
saúde do cidadão, que culminam eventualmente tos, necessários para atender às necessidades de
com o acesso propriamente dito ao medicamen- um grupo de três mil pessoas por um período de
to. Enfim, uma política de medicamentos deve seis meses. No entanto, devido a problemas de-
garantir disponibilidade e acesso de toda a po- correntes, principalmente, da centralização dos
pulação a medicamentos eficazes, seguros e de processos de programação e aquisição, que não
qualidade. correspondiam ao perfil de demanda das popu-
Durante muitos anos, as ações de AF no sis- lações atendidas, o programa foi extinto em
tema de saúde público do Brasil se confundiram 198814.
com as ações da Central de Medicamentos A década de 1990 foi marcada por uma crise
(Ceme). A Ceme, criada em 1971, nasceu da pre- na Ceme em razão de atritos entre a instituição e
ocupação do Estado em relação ao acesso ao me- os laboratórios oficiais e escândalos de corrup-
dicamento pelos estratos da população de redu- ção que culminaram com a sua extinção, em 1997.
zido poder aquisitivo, com o objetivo de promo- Ressalta-se, também nesta década, a regulamen-
ção e organização das atividades de assistência tação do SUS, através da Lei no 8.080/90, o que
farmacêutica direcionadas a esta população; iden- reforçou a necessidade cada vez mais emergente
tificação de indicadores de saúde por região e da formulação de uma política nacional de me-
faixa etária; levantamento da capacidade de pro- dicamentos, consoante com o novo sistema de
dução dos laboratórios farmacêuticos oficiais e saúde do país15,16.
nacionais; coordenação de mecanismos de dis- Nesse contexto, houve a reedição do PFB, se-
tribuição e venda de medicamentos em todo o melhante ao modelo do programa anterior de
território nacional. Os recursos financeiros eram mesmo nome, destinado somente a municípios
originários do convênio firmado entre a Ceme e de até 21.000 habitantes de todo o país, com ex-
o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), ceção dos municípios dos estados de São Paulo,
e a sua gestão era centralizadora, sendo que esta- Minas Gerais e Paraná que já haviam iniciado
dos e municípios encontravam-se excluídos de um processo de reorganização da AF. Consedey14,
todo o processo decisório9. ao analisar a implantação deste programa em
Os medicamentos fornecidos pela Ceme, cinco estados brasileiros, constatou falhas, prin-
constantes na Rename, eram destinados ao uso cipalmente no abastecimento, em razão do não
nos níveis primário, secundário e terciário de atendimento das necessidades específicas das
atenção à saúde. Este tipo de financiamento per- populações de diferentes localidades.
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Oliveira LCF et al.

Diante desse cenário, foi elaborada e aprova- execução; promover o uso racional de medica-
da em 1998 a PNM brasileira, com base nos prin- mentos junto à população, aos prescritores e aos
cípios e diretrizes do SUS, integrando esforços dispensadores; assegurar a dispensação adequa-
para a consolidação do novo sistema de saúde da de medicamentos; definir a relação municipal
brasileiro e norteando as ações das três esferas de medicamentos essenciais com base na Rena-
de gestão. A PNM traz como diretrizes a adoção me e no perfil epidemiológico da população; as-
da Rename; a regulação sanitária de medicamen- segurar o suprimento dos medicamentos desti-
tos; a reorientação da assistência farmacêutica nados à atenção básica; investir na infraestrutu-
com descentralização da gestão; a promoção do ra das centrais farmacêuticas e das farmácias dos
uso racional de medicamentos; o desenvolvimen- serviços de saúde, visando assegurar a qualidade
to científico e tecnológico; a promoção da pro- dos medicamentos5.
dução de medicamentos; a garantia de seguran- Em março de 2006, com a aprovação da Por-
ça, eficácia e qualidade dos medicamentos; e o taria GM 698/200617 instituiu-se então o bloco de
desenvolvimento e capacitação de recursos hu- financiamento para a AF constituído por quatro
manos envolvidos com a AF8. componentes: Componente Básico da Assistên-
A premissa básica seria a descentralização da cia Farmacêutica; Componente Estratégico da
aquisição e distribuição de medicamentos essen- Assistência Farmacêutica; Componente Medica-
ciais, respeitando as necessidades das populações mentos de Dispensação Excepcional e Compo-
locais através de critérios epidemiológicos – preo- nente de Organização da Assistência Farmacêu-
cupação pertinente, diante de fracassos anterio- tica, este último foi retirado do bloco de financia-
res com a experiência centralizadora da extinta mento pela Portaria nº 204/200718.
Ceme. O gestor federal, a partir desse momento, O componente básico da AF destina-se à aqui-
passa a participar do processo de aquisição, me- sição de medicamentos e insumos de AF no âm-
diante o repasse fundo a fundo de recursos fi- bito da ABS e aquelas relacionadas a agravos e
nanceiros e a cooperação técnica6. A partir de programas de saúde específicos, inseridos na rede
então se dá início ao processo de descentraliza- de cuidados. Ele é composto de uma parte finan-
ção da AF no SUS. ceira fixa e de uma parte financeira variável. A
parte financeira fixa consiste em um valor per ca-
pita destinado à aquisição de medicamentos e in-
Os mecanismos de financiamento sumos de AF em ABS, transferido ao Distrito Fe-
no processo de descentralização da AF deral, estados e/ou municípios, conforme pactu-
ação nas Comissões Intergestores Bipartite (CIB).
No final da década de 1990, os municípios pas- Nessa perspectiva, os gestores estaduais e
sam a gerir a aquisição de medicamentos essen- municipais devem compor o financiamento da
ciais distribuídos na ABS, enquanto a aquisição parte fixa, como contrapartida, em recursos fi-
dos outros medicamentos referentes a progra- nanceiros ou insumos, conforme pactuação na
mas específicos continua centralizada nas esferas CIB e normatização da política de AF vigente18.
estadual e federal. Já a parte financeira variável do componente
O financiamento passa a ser norteado pelo básico consiste em valores per capita destinados
Incentivo à Assistência Farmacêutica Básica esta- à aquisição de medicamentos e insumos de as-
belecida na Portaria GM no 176/995, e a participa- sistência farmacêutica dos Programas de Hiper-
ção do nível federal passa a ser através de repasse tensão e Diabetes, Asma e Rinite, Saúde Mental,
fundo a fundo, do fundo federal para os fundos Saúde da Mulher, Alimentação e Nutrição e Com-
estaduais e municipais de saúde com recursos no bate ao Tabagismo. Os recursos poderão ser exe-
valor de R$ 1,00 (um real) por habitante/ano, cutados pelo próprio Ministério da Saúde ou des-
repassados em parcelas de 1/12 mensais. A parti- centralizados, conforme pactuação na Comissão
cipação dos estados e municípios é feita através Intergestores Tripartite, mediante a implemen-
das contrapartidas financeiras que, somadas, não tação e organização dos serviços previstos nesses
podem ser inferiores ao valor repassado pelo programas 18.
governo federal5. Configura-se então, a atual conformação le-
O gestor municipal passa a ter algumas res- gal da AF no SUS, que, apesar de bem estrutura-
ponsabilidades importantes, como coordenar e da através das várias diretrizes e intenções ex-
executar a AF no seu respectivo âmbito; associ- pressas na legislação, ainda está restrita basica-
ar-se a outros municípios por intermédio de or- mente às atividades relacionadas ao processo de
ganização de consórcios, tendo em vista a sua abastecimento de medicamentos.
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A preocupação com o aumento da cobertura do país. Os resultados dessas pesquisas mostram
na distribuição de medicamentos é perceptível, que a realidade da AF na ABS é bem diferente do
principalmente no âmbito federal, especialmente que está instituído na legislação e do que é reco-
em relação aos medicamentos essenciais distri- mendado pelo MS.
buídos na ABS. Tal fato pode ser constatado atra- Tais avaliações verificaram que grande parte
vés da aprovação de leis que regulamentem o fi- dos municípios brasileiros, especialmente os mais
nanciamento para aquisição de tais medicamen- carentes, sofrem com a baixa disponibilidade e
tos pelos municípios5,18. Apesar disso, a análise descontinuidade da oferta de medicamentos es-
da legislação sobre AF no SUS mostra que as senciais nas unidades de ABS. Além disso, a dis-
questões do financiamento e de utilização racio- pensação na maioria das unidades é feita por tra-
nal dos recursos são predominantes, em detri- balhadores sem qualificação para orientar os
mento da qualidade dos medicamentos adquiri- usuários quanto ao uso correto dos medicamen-
dos e dos processos envolvidos na dispensação, tos, e em muitas unidades as condições de arma-
entre eles aspectos importantes como a orienta- zenamento dos medicamentos são inapropria-
ção e educação do usuário. das, comprometendo sua qualidade. Outro pro-
Diante dessa realidade, a aprovação, em 2004, blema encontrado é a prescrição de medicamen-
da Política Nacional de Assistência Farmacêutica tos que não pertencem à Rename, comprome-
(PNAF), vem reforçar o caráter amplo da AF, com tendo o acesso dos usuários à farmacoterapia.
ações voltadas à promoção, proteção e recupera- A análise dos resultados dessas pesquisas
ção da saúde, garantindo os princípios de univer- possibilita a identificação de possíveis causas para
salidade, integralidade e equidade do SUS19. os problemas encontrados na AF na ABS no
Através da PNAF, verifica-se a inserção da Aten- âmbito do SUS, entre eles a falta de comprome-
ção Farmacêutica como prática norteadora das timento ou a ingerência do gestor em relação à
atividades do farmacêutico dentro da AF. A Aten- AF; escassez de recursos financeiros, ausência de
ção Farmacêutica é considerada por Hepler e planejamento e programação para a aquisição
Strand20 como uma forma responsável de prover de medicamentos; aquisições equivocadas; e o
a farmacoterapia, considerando prioritariamente armazenamento em condições inapropriadas que
os resultados que devem ser alcançados, de modo contribui para a deterioração dos medicamen-
a influir decisivamente na melhoria da qualidade tos, ocasionando perdas.
de vida dos usuários, através de orientação ade- Em meio a inúmeras necessidades e deman-
quada quanto ao uso correto dos medicamentos, das, a estruturação da AF parece não ser consi-
assim como à promoção do seu uso racional. Des- derada prioritária na disputa por recursos nos
sa maneira, a Atenção Farmacêutica tem a preten- orçamentos de saúde. Talvez sua importância
são de atender a uma necessidade dentro do SUS ainda não esteja explicitada para a maioria dos
de humanização do atendimento, estabelecimento gestores – realidade constatada pelas condições
de vínculo e acolhimento em relação ao usuário. físicas e de recursos humanos das farmácias das
unidades de saúde. Nestes locais, as farmácias
geralmente ocupam espaços pequenos, sem con-
Assistência Farmacêutica dições mínimas necessárias para o armazena-
na Atenção Básica à Saúde mento de medicamentos. A dispensação é feita
por trabalhadores sem capacitação, e muitas ve-
Atualmente, no que tange à organização e ao fi- zes existem grades separando o usuário do pro-
nanciamento da AF no âmbito do SUS, percebe- fissional que faz o atendimento, descaracterizan-
se duas realidades um tanto quanto distintas. Por do a humanização do serviço24.
um lado, a AF legal consolidada e estruturada Os desafios para a estruturação e a imple-
pelas respectivas leis e portarias, e que de certa mentação de uma AF efetiva na esfera municipal,
forma norteia e contribui para uma melhor or- principalmente na ABS, começa pela conscienti-
ganização da AF nos municípios. Por outro lado, zação, por parte dos gestores, da importância da
visualiza-se a AF real, atravessada por vários pro- estruturação da AF municipal, através de inves-
blemas de ordem organizacional e financeira que timentos em estrutura física, organização dos
comprometem o acesso dos usuários aos medi- processos e capacitação permanente dos traba-
camentos necessários para a sua terapêutica. lhadores envolvidos com as atividades que fa-
Esta realidade vem sendo comprovada atra- zem parte do ciclo da AF. Desta maneira, a distri-
vés de vários estudos de avaliação da AF21-23 rea- buição de medicamentos à população pode se
lizados em unidades de ABS em distintas regiões tornar viável, racional e mais eficiente.
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Neste aspecto, há também a necessidade de calização orientada para o autocuidado, por meio
aproximação do profissional farmacêutico com de orientações educativas, em que a equipe é
as unidades de saúde que dispensam o medica- mediadora dos processos e a intervenção tera-
mento, de maneira a se comprometer não só com pêutica é compartilhada.
as atividades relacionadas ao processo de pro- Para que a ABS seja resolutiva, estabeleça vín-
gramação e aquisição, como também com a rela- culo e se responsabilize pelos usuários, alguns
ção existente entre o usuário e o uso racional dos fatores são importantes; dentre eles, é necessário
medicamentos. A Atenção Farmacêutica é uma que o usuário tenha acesso a medicamentos de
nova perspectiva de conduta do farmacêutico pe- qualidade no momento oportuno e de maneira
rante o usuário do medicamento; nela, o profissi- coerente, ou seja, receba todas as orientações per-
onal teria que estabelecer uma relação estreita e tinentes quanto ao uso correto das medicações.
acolhedora com o usuário, comprometendo-se As contribuições da legislação e das normati-
com o sucesso de sua farmacoterapia. Desta ma- zações do MS para a organização e o estabeleci-
neira, o farmacêutico deixará de se ocupar estri- mento de financiamento para a AF na ABS são
tamente com atividades de caráter burocrático indiscutíveis. No entanto, existe um grande dis-
relacionadas com a aquisição de medicamentos tanciamento entre a AF básica legalmente esta-
para se ocupar também do usuário. belecida e a AF básica real dos municípios brasi-
leiros. Os problemas encontrados vão desde o
desabastecimento de medicamentos essenciais e
Considerações finais má conservação deles no processo de armazena-
mento até a ausência total de orientação ao usuá-
É inegável a importância da AF na ABS, visto que rio quanto à utilização correta desses produtos.
este nível de atenção deve resolver os problemas Muitos são os fatores que comprometem a
de saúde de maior relevância em seu território, qualidade da AF nos municípios brasileiros; des-
utilizando “tecnologias de elevada complexidade tacam-se: insuficiência de recursos financeiros,
e baixa densidade”, dentre estas o uso de medica- necessidade de melhor capacitação dos trabalha-
mentos para cura, reabilitação, promoção da dores envolvidos com os processos, bem como
saúde e prevenção de doenças25. Em síntese, ao de seus gestores.
procurar um serviço na porta de entrada da rede Haja vista a possibilidade de melhoria ante as
SUS, a complexidade da AF é traduzida em ações demandas claramente perceptíveis, os estudos de
relacionadas às demandas que são construídas avaliação vêm contribuindo para diagnosticar pos-
no cotidiano das pessoas, da família e dos gru- síveis problemas, identificar suas causas e contri-
pos sociais, exigindo da equipe preparo para li- buir através da proposição de ações corretivas e
dar com questões subjetivas como anseios e dú- preventivas que venham melhorar a organização e
vidas sobre a terapêutica, que ultrapassam as a gestão da AF básica nos municípios, fazendo-a
queixas apresentadas nos encontros entre os di- cumprir efetivamente sua função social, qual seja:
ferentes componentes da equipe e os usuários assegurar o acesso universal e igualitário dos usu-
dos serviços. A baixa densidade envolve o uso de ários do SUS à AF de qualidade e com responsabi-
tecnologia na AF básica que opera com a medi- lidade por parte dos responsáveis por esta atenção.

Colaboradores

LCF Oliveira, MMA Assis e AR Barboni partici-


param igualmente de todas as etapas da elabo-
ração do artigo.
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