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TERAPIA NUTRICIONAL NOS

DISTÚRBIOS NUTRICIONAIS
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Sumário
FACUMINAS ............................................................................................ 2

INTRODUÇÃO ......................................................................................... 3

TERAPIA NUTRICIONAL NO PACIENTE COM TRANSTORNOS


ALIMENTARES .................................................................................................. 4

RECOMENDAÇÃO .................................................................................. 5

TERAPIA NUTRICIONAL NO PACIENTE COM TRANSTORNOS


ALIMENTARES .................................................................................................. 7

RECOMENDAÇÕES ............................................................................. 12

PAPEL DA DESNUTRIÇÃO NO PACIENTE CRÍTICO ......................... 16

O USO E O DESUSO DA VIA DIGESTIVA ........................................... 19

IMPACTO FISIOLÓGICO DA DEPLEÇÃO CALÓRICO-PROTEICA ..... 21

OS COMPARTIMENTOS CORPORAIS NO DOENTE GRAVE ............ 23

PERIGOS DA PRESCRIÇÃO INAPROPRIADA .................................... 25

UTILIZAÇÃO DE OUTROS NUTRIENTES............................................ 26

COMPORTAMENTO ALIMENTAR NO CAMPO ALIMENTAÇÃO E


NUTRIÇÃO....................................................................................................... 30

REFERÊNCIAS ..................................................................................... 45

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FACUMINAS

A história do Instituto Facuminas, inicia com a realização do sonho de


um grupo de empresários, em atender à crescente demanda de alunos para
cursos de Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a Facuminas,
como entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior.
A Facuminas tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas
de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a
participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua
formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos
culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e
comunicar o saber através do ensino, de publicação ou outras normas de
comunicação.
A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de
forma confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir
uma base profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma
das instituições modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela
inovação tecnológica, excelência no atendimento e valor do serviço oferecido.

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INTRODUÇÃO
O termo “transtorno alimentar” (TA) será nesta diretriz relacionado
somente aos transtornos AN e BN e aos quadros que não preenchem todos os
critérios, mas têm tratamento semelhante – transtornos alimentares não
especificados (TANE).
Existem critérios diagnósticos para tais transtornos, sendo o mais utilizado
o DSM-IV da American Psychiatric Association(D).
O glossário temático do Ministério da Saúde também fornece definição
para tais transtornos (D).
Os critérios de amenorreia, de frequência e duração dos episódios
bulímicos e mesmo a divisão de tais transtornos em subtipos têm sido
questionados como critério diagnóstico, por refletir mais o peso e estado
nutricional do que ser uma útil informação diagnóstica (B) (D).
Tem sido sugerido o reconhecimento formal do transtorno tipo “Binge
eating” (BD) como um diagnóstico (D).
Ademais, tais critérios dificilmente se tornam aplicáveis para as crianças
com suspeita de AN ou BN, haja vista que estão longe da menarca e que não
têm ainda bem definido sua imagem corporal.
No Quadro 1, são apresentados os tipos e critérios diagnósticos dos
transtornos alimentares (D).
Os TA influenciam o estado nutricional e o metabolismo?
Os TA influenciam o estado nutricional e o metabolismo.
Na AN, o peso corporal apresenta-se gravemente reduzido.

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A ingestão alimentar aquém das necessidades energéticas do organismo


provoca a queima das reservas de gordura e da massa magra corporal, com
aumento da água extracelular(B) (D).
As alterações metabólicas são semelhantes àquelas encontradas no
estado de inanição por carência de alimentos(B) (D).

TERAPIA NUTRICIONAL NO PACIENTE COM TRANSTORNOS


ALIMENTARES
A resposta metabólica e endócrina adaptativa do organismo à situação de
inanição provoca redução do gasto energético basal, quando se utiliza o peso
corporal total, redução dos níveis dos hormônios tireoidianos, do IGF1, da
concentração plasmática de leptina e do aumento dos níveis de cortisol e de
grelina(B) (D).
O gasto energético basal e a concentração de leptina diminuem nos
pacientes com AN e isso não é explicado por mudanças na composição corporal.
A relação entre leptina e gasto energético basal sugere que a leptina tenha
um papel na economia de energia, que ocorre em resposta à deficiência
energética crônica (B).
É comum, também em pacientes com AN, a hipercolesterolemia, que é
determinada na maioria dos casos por perda grave da massa gordurosa corporal.
A lipólise está aumentada e a síntese de colesterol reduzida, sendo que
as partículas do LDL colesterol têm retardada a sua remoção(B).
As consequências físicas se refletem sobre vários sistemas orgânicos.
Ocorre redução da força muscular, fraqueza do músculo cardíaco, redução do
crescimento corporal, alterações endócrinas, hidroeletrolíticas, gastrintestinais,
redução dos mecanismos de defesa orgânica e até alterações na matriz
cerebral(B) (D).
Muitas vezes este quadro pode estar exacerbado por aumento da
atividade física diária e intencional, frequentemente vista neste transtorno (B).

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Alguns autores mostraram a relação entre os níveis plasmáticos de grelina


e o estado nutricional, tanto em pacientes com AN quanto em pacientes com
obesidade.
Na AN, os níveis de grelina encontram-se aumentados e se normalizam
com a recuperação do peso, sendo assim um bom marcador do estado
nutricional destes pacientes(B).
Na BN, a desnutrição não é vista com frequência. O estado nutricional dos
pacientes sofrerá influência da restrição energética praticada nos períodos de
não purgação ou da queima calórica advinda da prática de atividade física.
A ingestão energética alimentar e a distribuição dos macronutrientes pode
estar dentro dos valores da normalidade, tanto no subtipo purgativo quanto no
subtipo não purgativo (B).
Entretanto, ocorrem alterações hidroeletrolíticas importantes, alterações
gastrointestinais, problemas dentários como aumento da frequência do
desenvolvimento de cáries e perda dos dentes, aumento dos triglicérides
plasmáticos, alterações hematológicas e comprometimento muscular e cardíaco
(D).

RECOMENDAÇÃO
As alterações metabólicas presentes em pacientes com AN são
semelhantes àquelas presentes na desnutrição por inanição.
Ocorre consumo importante da massa gordurosa e da massa magra
corporal, aumento da água extracelular, anormalidades dos eletrólitos,
alterações endócrinas adaptativas do organismo à deficiência energética e
alteração do metabolismo lipídico, sendo comum a hipercolesterolemia.
Na BN, ocorrem alterações metabólicas desencadeadas principalmente
por desequilíbrio hidroeletrolítico. O estado nutricional dos pacientes encontra-

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se, na maior parte dos casos, na faixa de adequação ou até na faixa de


sobrepeso.
O estado nutricional influencia o desenvolvimento dos TA?
Estudo conduzido com adolescentes de uma escola pública evidenciou
comportamentos não saudáveis para o controle de peso de adolescentes com
sobrepeso, principalmente quando eram Terapia Nutricional no Paciente com
Transtornos Alimentares meninas.
Dentre este comportamento estavam o uso de medicamentos, laxantes,
diuréticos ou prática de vômitos (B).
A insatisfação com a aparência física faz com que crianças do sexo
feminino com sobrepeso se engajem em dietas para perda de peso. Este
comportamento é duas vezes mais frequente nas crianças com sobrepeso do
que naquelas com peso dentro da normalidade.
Este comportamento psicológico de autoestima baseado na aparência
física e o engajamento em dietas para perda de peso podem ser fator de risco
para o desenvolvimento dos TA numa fase mais tardia, com comprometimento
do estado nutricional e do crescimento adequado (B).
A AN pode ser desencadeada em pacientes suscetíveis, com obesidade
mórbida submetidos à cirurgia bariátrica e que perdem quantidade importante de
peso de forma aguda (B) (C) 35 (D).
A presença de episódios compulsivos alimentares também é descrita em
pacientes com obesidade mórbida candidatos à cirurgia bariátrica (B). De outra
forma, o simples engajamento em dieta restritiva para perda de peso, assim
como, práticas não saudáveis para controle do peso em crianças e adolescentes,
pode ser fator de risco para o desenvolvimento dos transtornos alimentares,
incluindo aqui a obesidade, a AN e a BN (B) (D).
O sobrepeso e a obesidade em crianças e adolescentes podem estar
associados à voracidade alimentar e a práticas não saudáveis para controle do
peso. Estes comportamentos podem ser fator de risco para o desenvolvimento
dos transtornos alimentares.

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Pacientes submetidos à cirurgia bariátrica e que apresentam perda


significativa de peso podem desenvolver AN, BN ou TANE.
Quando a terapia nutricional enteral (TNE) e terapia nutricional parenteral
(TNP) estão indicadas?
A terapia nutricional (TN) raramente é indicada em pacientes com AN ou
BN (D). Entretanto, existem situações onde a gravidade clínica pode
comprometer a vida do paciente e, então, a hospitalização estaria indicada.
A gravidade pode ser expressa pela redução do peso corporal, distúrbios
do ritmo cardíaco, desidratação, distúrbio dos eletrólitos, hipotensão grave,
gravidade do ciclo de voracidade alimentar e purgação.
A alimentação oral deve ser a escolha, não sendo comum a indicação da
TNE e, principalmente, da TNP (B). A indicação da TNE ou TNP raramente é
feita em pacientes com BN, considerando-se que a maior parte dos pacientes
encontra-se com peso adequado ou acima do normal. Nestes pacientes, a
hospitalização estaria indicada para o restabelecimento do padrão alimentar
usual, para a redução do ciclo de voracidade e purgação e, para a correção de
distúrbios eletrolíticos(B) (D).
Na AN, não existe um consenso frente a qual índice de massa corporal
justificaria a internação hospitalar ou mesmo qual a percentagem de perda de
peso em relação ao usual seria indicador para a internação e aplicação da
TN(B)(D).

TERAPIA NUTRICIONAL NO PACIENTE COM TRANSTORNOS


ALIMENTARES
Alguns autores consideram IMC < 13 associado ou não a outras
complicações(D).
Outros consideram perda superior a 30% do peso usual ou presença de
complicações clínicas com risco de morte(D).

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Existem critérios de internação para os TA(D), como os que se seguem


abaixo:
• Risco de auto ou hetero-agressividade;
• Rápido e persistente declínio da ingestão alimentar e do peso, apesar
da intervenção em ambulatório ou hospital-dia;
• Presença de quadro psiquiátrico associado grave e resistente à
intervenção em ambulatório ou hospital-dia;
• Impossibilidade de reduzir ou interromper comportamentos purgativos e
restritivos;
• Recusa de tratamento, apesar da gravidade da situação (segundo os
critérios de internação involuntária);
• Falta de suporte familiar, por razões interpessoais ou distanciamento
geográfico, quando absolutamente necessário;
• Alterações clínicas, tais como:  Bradicardia < 40 b.p.m, taquicardia >
110 b.p.m, desidratação grave, hipotermia, hipotensão ortostática grave, com
aumento do pulso ≥ 20 b.p.m, hipopotassemia ou outros distúrbios
hidroeletrolíticos graves, arritmia cardíaca, insuficiência renal e crise epiléptica,
risco fetal.
A TNE pode ser importante recurso na recuperação de peso em pacientes
com NA (B) (D) e tem menores riscos do que a TNP, tanto em relação à via de
acesso quanto às complicações associadas a um paciente extremamente
desnutrido (D).
A TNE pode ser melhor aceita do que a alimentação oral e deve estar
associada ao tratamento psicológico e farmacológico (D). A TNP não é indicada
de forma usual em pacientes com AN.
Entretanto, devido ao quadro psicológico desta doença, que por vezes
leva o paciente a recusar a aplicação da TNE ou mesmo frente a complicações
que possam ocorrer com a utilização da TNE, como estase gástrica e íleo
paralítico, a TNP pode estar indicada.

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A TNP pode facilitar o ganho e a recuperação nutricional destes pacientes


quando comparada somente com a reabilitação oral49(B). A TNP deve ter seu
uso restrito a pacientes refratários à TN oral e/ou à TNE, deve ser feita uma
avaliação laboratorial prévia ao seu início e um seguimento regular, além do
acompanhamento psicoterápico concomitante (C).
A TN não é indicada rotineiramente em pacientes com AN ou BN. Não
existe consenso quanto ao parâmetro para se indicar a internação hospitalar e a
instituição da TNE ou TNP em pacientes com AN.
Tanto a TNE quanto a TNP podem ser importantes recursos na
recuperação de peso em pacientes com AN e exigem para sua aplicação equipe
multiprofissional especializada.
A TNE deve ser a primeira opção de escolha.
Quais são os objetivos da TN nos TA?
O objetivo principal da TN, no sentido amplo da palavra, em pacientes
com AN é a recuperação do peso corporal(B).
O parâmetro utilizado para se determinar este peso ideal pode ser o
IMC(D), o peso capaz de permitir retorno ao ciclo menstrual (D) ou o peso capaz
de permitir retorno ao volume ovariano e folicular normal avaliado por meio de
ultrassonografia pélvica, no caso de mulheres (C).
Para os pacientes com AN que se encontram hospitalizados, não existe
consenso de quanto de peso seria necessário para que o paciente tivesse alta
hospitalar e o tratamento continuado em nível ambulatorial. Alguns estudos
demonstram que, quando o paciente é liberado ainda com baixo peso, apresenta
pior evolução do que aqueles que são liberados com o peso próximo do normal
(B).
De qualquer forma, a reabilitação nutricional em pacientes com AN, seja
ela feita com a TN oral, TNE ou TNP, deve ser feita de forma gradual e
progressiva, para que se evitem complicações na realimentação (C) (D).
O ganho de peso normalmente recomendado durante a internação
hospitalar é de 0,5 a 1,0 kg/semana e, para pacientes em acompanhamento

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ambulatorial, 0,5 kg/semana. Durante este processo, está recomendada a


monitorização diária dos eletrólitos séricos (D).
Além deste objetivo principal, a TN visa à recuperação do padrão
alimentar saudável e ao tratamento das complicações clínicas e físicas da
doença (D). Nem sempre este objetivo é atingido com a TN oral, sendo por vezes
necessária a instituição da TNE ou TNP (D).
Em pacientes com BN, a TN a ser instituída é a TN oral que visa à redução
ou à eliminação do ciclo de voracidade alimentar e purgação. O planejamento
nutricional, para o fornecimento energético e proteico regular e adequado às
necessidades nutricionais do paciente, associado à educação nutricional,
apoiados na psicobioterapia (reabilitação nutricional psicobiológica), auxilia para
que este objetivo seja atingido (B).
A prática de atividade física no tratamento de pacientes com BN subtipo
purgativo, e que apresentam seu peso dentro da normalidade, parece ser mais
efetiva do que o aconselhamento dietético ou a aplicação da psicoterapia
cognitiva comportamental isolados, no que se refere à redução dos episódios de
voracidadepurgação (B).
Na BN, raramente a TNE ou TNP estão indicadas. Na AN, os objetivos
principais da TN são a recuperação do peso corporal e a normalização do padrão
alimentar.
O ganho de peso em pacientes com AN durante a hospitalização está
associado com melhor evolução em curto prazo e continuidade do tratamento.
Na BN, o objetivo da TN é reduzir ou eliminar o comportamento alimentar de
voracidade e de purgação, quando este último estiver presente.
De que forma a TN pode ser implementada?
O fornecimento energético por meio da TN, em pacientes com AN, deve
ser feito de forma gradual e progressiva.
Pode-se iniciar com 20 kcal/kg de peso atual dia ou 10 kcal/kg peso
atual/dia, no caso de pacientes extremamente desnutridos (D).

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A fórmula enteral deve ser fórmula-padrão isotônica, com 1,0


kcal/ml57(D). A suplementação de vitaminas, eletrólitos e minerais deve ser feita
conforme controle laboratorial (D).
Na AN, os valores sanguíneos de eletrólitos e minerais podem estar
normais e o quadro de deficiência orgânica aparece somente na realimentação
e é agravado pela necessidade metabólica aumentada decorrente da
alimentação (C) (D).
A reposição destes elementos pode ser feita por via oral e, em casos mais
extremos, por via intravenosa. Neste último caso, a monitorização
eletrocardiográfica e o acompanhamento contínuo por equipe especializada
estão recomendados (D).
É recomendada a monitorização dos níveis séricos de fósforo e
suplementação, quando necessária, durante a primeira semana de
hospitalização, especialmente nos pacientes gravemente desnutridos (D).
A fórmula de NE deve ser de composição padrão, isotônica,
normocalórica e, em alguns casos, hipogordurosa e sem fibras. Isto porque é
comum nos TA a redução do tempo de esvaziamento gástrico, de forma mais
acentuada em pacientes com NA (D).
Na presença de purgação, as deficiências hídricas e de sal podem levar
ao aparecimento de edema durante a realimentação, sendo necessária
monitorização contínua, com restauração do volume circulatório e reposição dos
eletrólitos (D).
Na TNP, o valor energético oriundo da glicose pode ser completado com
a adição de lipídeos, para reduzir a carga de glicose e complicações como
hiperglicemia ou desidratação hiperosmótica não-cetótica66(B).
A formulação da TNP em pacientes com AN deve ser individualizada (B)
(C).

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RECOMENDAÇÕES
Na fase inicial de recuperação ponderal, a TN deve fornecer 20 kcal/kg de
peso atual/dia ou 10 kcal/kg de peso atual/dia em pacientes gravemente
desnutridos.
A fórmula enteral deve ter composição padrão, ser isotônica, com
densidade calórica de 1 kcal/ml e, em alguns casos, hipogordurosa e sem fibras.
A formulação da TNP em pacientes com AN deve ser individualizada.
A implementação da TNE e da TNP em pacientes com AN deve
considerar o fornecimento energético e aporte de micronutrientes e de eletrólitos.
Não existe recomendação para distribuição específica de macronutrientes
para os pacientes com TA (D).

Quadro 1: Tipos de transtornos

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O tratamento atual do paciente gravemente enfermo é o resultado de


avanços obtidos em diversas áreas de cuidados hospitalares.
Nas últimas duas décadas, a terapia nutricional administrada pela via
enteral tem ganho considerável atenção. Suas características favoráveis, tais

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como, baixa taxa de complicações, facilidade na administração e baixo custo,


tornaram-se bem conhecidas.
Segundo Waitzberg (1998), a nutrição enteral consiste na
administração, por meio de sondas ou estomias digestivas, de uma
dieta líquida contendo macro e micronutrientes para pacientes com
trato digestivo funcionante, mas que não querem, não podem ou não
devem se alimentar pela boca, posto que o acesso da nutrição enteral
se dá pela via digestiva.
Esse tipo de suporte terapêutico está contraindicado nas situações em
que o trato gastrintestinal não se encontra íntegro ou funcionante, como por
exemplo, no íleo adinâmico, em obstruções intestinais e hemorragias digestivas
altas.
No entanto, a nutrição enteral pode ser de extrema valia em doentes
graves, com tubo digestivo funcionante e que apresentam funções metabólicas
modificadas, balanço nitrogenado negativo e desnutrição proteico-calórica
(Waitzberg, 1998).
Esforços têm sido feitos nos últimos anos para desenvolver métodos
nutricionais eficientes não apenas em termos de acesso e formas de
administração, mas também de formulação de dietas mais adequadas para cada
condição clínica.
A nutrição enteral tem, recentemente, ganho nova popularidade. Diversas
publicações descrevem a importância da manutenção da integridade da mucosa
intestinal pela infusão de nutrientes, como também a manutenção da
homeostase e competência imunológica.
Em adição, a utilização do trato gastrintestinal, no período pós-operatório
imediato, tem-se associado a diminuição na taxa metabólica e melhora do
balanço nitrogenado (Shikora, 1994).
Em todas as eventualidades, a utilização da nutrição enteral garantirá pelo
menos igual, e possivelmente, melhor desfecho em relação a NPT, nos cuidados
dos pacientes hospitalizados, requerendo terapia nutricional (Shikora, 1994).

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Para a melhora da resposta imune, a prevenção de atrofia intestinal,


evitando a translocação bacteriana, e a diminuição da resposta inflamatória tem-
se recomendado o uso de nutrição enteral preferentemente à nutrição parenteral
total (NPT), uma vez que o uso da via enteral produz menor incidência de
complicações, atenua a resposta inflamatória e previne a atrofia intestinal, e,
consequentemente, a translocação de bactérias do lúme intestinal (Echenique,
Correia, 1998).
Também, tem-se estudado a utilização de diferentes substratos como os
aminoácidos glutamina e arginina, os ácidos graxos ômega-3, assim como os
nucleotídeos.
O objetivo é melhorar a resposta imune e atenuar a resposta inflamatória,
com a intuito de aliviar a sobrevida do paciente, diminuindo complicações e
reduzindo a permanência de pacientes na unidade de terapia intensiva e também
a internação hospitalar.
Avaliar a eficácia clínica da terapia nutricional é particularmente difícil em
pacientes de terapia intensiva. Isto se dá pela dificuldade de se agrupar número
satisfatório de pacientes com o mesmo diagnóstico, observando a gravidade da
doença e o estado nutricional.
Igual desafio oferece a condução clínica, em face a múltiplas terapias que
são alteradas de acordo com as mudanças nas condições clínicas (Klein et al.,
1997).
Não obstante, os potenciais benefícios para esta população de alto risco
justificam os esforços empenhados em se aprimorar o seu atendimento
nutricional.
O valor teórico da terapia nutricional, em pacientes críticos, é fornecer
substratos que vão ao encontro das necessidades dos diferentes nutrientes e,
desta forma, proteger os órgãos vitais e amenizar a utilização do músculo
esquelético e outros nutrientes de reservas como substratos energéticos
(Klein et al., 1997).

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PAPEL DA DESNUTRIÇÃO NO PACIENTE CRÍTICO


Apesar do notável avanço ocorrido nos últimos 30 anos, os cuidados aos
pacientes críticos continuam sendo o maior desafio para todos os profissionais
que atuam na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
A crescente atenção ao choque e à insuficiência circulatória levou à
formação de bancos de sangue durante a II Guerra Mundial, tal como a
insuficiência renal gerou o desenvolvimento da hemodiálise na década seguinte.
A década de 1960 assistiu a introdução das unidades de terapia intensiva
com constantes melhoras na monitorização dos pacientes.
Paralelamente, o crescente reconhecimento dos riscos da perda de peso
do doente grave levou a esforços para fornecer nutrição intravenosa e, no final,
à introdução da nutrição parenteral total.
A NPT comprovou-se mais do que uma nova e importante terapia. Foi, na
verdade, poderoso instrumento de pesquisa para aprofundar os conhecimentos
sobre a resposta metabólica do paciente grave (Kinney, 1995).
Na década de 70, a NPT foi considerada a terapia nutricional de ''padrão
ouro''. Pode ser administrada com segurança e tem sido parte dos cuidados dos
pacientes desnutridos e criticamente enfermos (Shikora, 1994).
As preocupações centrais da UTI são o manejo do suporte respiratório,
incluindo ventilação mecânica; suporte cardiovascular; apoio renal, metabólico e
dos distúrbios com obstrução sanguínea e controle de complicações infecciosas
(Morlion, Puchstein, 1998).
Entretanto, a terapia nutricional faz parte de forma integral e crucial do
cuidado do paciente em terapia intensiva. Numerosos experimentos e estudos
clínicos sugerem que a nutrição enteral - a mais fisiológica forma de nutrição
clínica - confere múltiplos benefícios sobre o paciente criticamente enfermo
(Moore et al., 1992; Matarese, 1994; Bower et al., 1995; Giner et al., 1996;

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Suchner et al., 1996; Kaminski, 1997; Echenique, Correia, 1998; Morlion,


Puchstein, 1998).
As alterações do estado nutricional podem surgir como consequência do
inadequado aporte de nutrientes (por exemplo: desnutrição), ou como resultado
de uma alteração do seu metabolismo (por exemplo: sepse).
Em qualquer um dos casos segue-se a redução da massa corporal magra
e a subsequente perda de estrutura e função dos órgãos e tecidos que a
compõem.
Em ambos os casos, a meta é prevenir que a desnutrição chegue a se
converter em um cofator importante na disfunção orgânica e na morbidade e
mortalidade (Shronts, 1997). Isto é possível quando se ofertam os nutrientes,
ajustando-os em quantidade e qualidade para as exigências do
hipermetabolismo, especialmente o catabolismo proteico, observado nessas
circunstâncias.
A adequada terapia nutricional para pacientes criticamente enfermos
depende da compreensão da fisiopatologia das respostas metabólicas às
grandes cirurgias, traumas, doenças infecciosas e eventos similares, que se
caracterizam por intenso estresse.
A terapia nutricional, seja enteral ou parenteral, deve ser adaptada às
exigências do metabolismo frente ao estresse, com o propósito de evitar a
utilização inadequada dos nutrientes e os efeitos colaterais respectivos.
A resolução-RCD número 63, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
do Ministério da Saúde, de 06/07/00, define a Nutrição Enteral como: ''alimento
para fins especiais, com ingestão controlada de nutrientes, na forma isolada ou
combinada, de composição definida ou estimada, especialmente formulada e
elaborada para uso por sondas ou via oral, industrializada ou não, utilizada
exclusiva ou parcialmente para substituir ou completar a alimentação oral em
pacientes desnutridos ou não, conforme suas necessidades nutricionais, em
regime hospitalar, ambulatorial ou domiciliar, visando à síntese ou manutenção
dos tecidos, órgãos ou sistemas.''

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Na realidade, hoje, dispomos de dietas que não só satisfazem essa


exigência, mas também fornecem nutrição diferenciada para indivíduos de várias
faixas etárias e situações clínicas (Waitzberg, 1998).
Determinar as necessidades nutricionais requer, em princípio, o
conhecimento de um conjunto de informações da história nutricional do paciente,
dos sinais clínicos de desnutrição, de medidas antropométricas e determinações
laboratoriais hematológicas, séricas e urinárias.
Esta avaliação permite o planejamento da alimentação mais eficiente,
precisa e segura (Waitzberg et al., 1998).
As vias de acesso em nutrição enteral podem estar dispostas no
estômago, duodeno ou jejuno, conforme as facilidades técnicas, as rotinas de
administração, bem como alterações orgânicas e/ou funcionais a serem
corrigidas.
Na dependência da localização em que for administrada, a dieta enteral
deverá apresentar características específicas de osmolaridade, pH e conteúdo
dos diferentes nutrientes indispensável ao paciente.
A técnica de administração pode ser contínua ou intermitente, em bolo ou
gravitacional e, também, varia de acordo com a posição da sonda/estomia no
estômago e intestino delgado (Waitzberg, 1998).
Basicamente, uma dieta enteral deve ser balanceada em proteínas,
lipídeos, carboidratos, eletrólitos, vitaminas e minerais (Nobrega et al., 1993).
Sepse é causa frequente de morbidade e mortalidade em pacientes
críticos. Pode resultar em insuficiência de múltiplos órgãos, acarretando a morte
dos pacientes. Uma das causas da sepse, em pacientes críticos, é a bacteremia
que poderá estar relacionada com o trato gastrintestinal, sendo este a fonte de
infecção.
Nesta caso, as bactérias atravessam a barreira da mucosa intestinal e
invadem os linfonodos e outros órgãos, num processo denominado translocação
bacteriana (Nirigiotis, Andrassy, 1994).

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O intestino contém grande quantidade de bactérias e endotoxinas. É


sobejamente conhecido que sob circunstâncias normais a mucosa intestinal
previne a translocação bacteriana. No entanto, a agressão e o dano da mucosa
intestinal permitirão que a bactéria colonize os tecidos e leve à infecção e ao
hipermetabolismo com consequente perda de nutrientes (Nirigiotis, Andrassy,
1994).
Assim sendo, o principal objetivo da terapia nutricional para os pacientes
na UTI é prevenir a desnutrição, visando aos menores índices de morbidade e
mortalidade.
Como mencionado anteriormente, a desnutrição em pacientes
criticamente enfermos, associada ao hipermetabolismo e catabolismo
aumentado, quase inevitavelmente resulta em perda de peso.
A correlação entre a extensão de perda de peso e os resultados
terapêuticos tem sido descrita, desde 1936, por vários autores (Morlion,
Puchstein, 1998). Prejuízos mensuráveis já podem ser atribuídos à perda de
peso maior que 10%.
A perda de peso superior a 30% está associada ao aumento significativo
na morbidade e mortalidade.
A terapia nutricional desempenha papel temporário, mas valioso, até que
as demais intervenções terapêuticas possam vir a desempenhar seus efeitos.
Diferentemente das intervenções específicas, tais como, antibioticoterapia, ou
cirurgias, a terapia nutricional não oferece expectativa que produzirá relevantes
efeitos clínicos (Morlion, Puchstein, 1998).

O USO E O DESUSO DA VIA DIGESTIVA


Até algumas décadas atrás, a utilização do trato gastrintestinal era
considerado irrelevante para pacientes em UTI, uma vez que o intestino era visto
como mero sítio de digestão e absorção dos nutrientes.

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Como resultado, a nutrição enteral foi substituída pela nutrição parenteral,


a qual, com o advento de substratos sintéticos, como aminoácidos cristalinos e
emulsões lipídicas, tornou-se bem estabelecida ao término da década de 1960
(Morlion, Puchstein, 1998). O processo digestivo era tido como inativo em
pacientes criticamente enfermos.
Durante as duas últimas décadas, entretanto, o papel do trato
gastrintestinal em várias condições fisiopatológicas tem sido bem reconhecido.
Em 1988, Wilmore, entre outros autores, postularam ''a hipótese que a
Síndrome da Resposta Inflamatória Sistêmica (SIRS) é originada no
intestino''. Essa hipótese aponta o papel da translocação bacteriana no
desenvolvimento da SIRS, sepse, choque e falência de múltiplos
órgãos. Na luz dessa percepção, a restauração e o suporte da mucosa
intestinal, como barreira, têm significância particular.
Tanto o duodeno como o jejuno são dinamicamente órgãos ativos, cuja
função depende da presença dos nutrientes no espaço intraluminal (Morlion,
Puchstein, 1998).
A presença dos nutrientes é o maior estímulo para manutenção da função
e integridade da mucosa intestinal.
A completa ausência de alimentação oral e/ou enteral e a utilização da
nutrição parenteral resultam no comprometimento e na atrofia das
microvilosidades da mucosa intestinal.
A utilização da nutrição enteral tem vantagens comprovadas em evitar a
incidência de complicações sépticas e técnicas relacionadas com o cateter
venoso central, tanto quanto em reduzir custos e manutenção da função e
integridade da mucosa intestinal (Moore et al., 1992; Bower et al., 1995;
Suchner et al., 1996; Shronts, 1997; Trice et al., 1997).
Suchner e colaboradores (1996), entretanto, relataram a superioridade
significativa da nutrição parenteral sobre a enteral, como, por exemplo,
em prover nutrientes e, consequentemente, balanço nitrogenado mais
favorável. Já os adeptos da nutrição enteral lembram que a
manutenção do trato gastrintestinal é assegurada com a administração
do suporte nutricional por via enteral, como também, os pacientes pós-

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2
1

cirúrgicos têm diminuição na morbidade, manutenção da


imunocompetência e melhora na cicatrização de feridas (Moore et al.,
1992; Kudsk, 1994; Trice et al., 1997).
Trice e colaboradores (1997) ressaltam que a nutrição parenteral leva
a maiores complicações infecciosas e o custo desta terapêutica é bem
maior que o da nutrição enteral. Portanto, aquela só deve ser utilizada
em casos específicos, quando é realmente indicada.
Assim sendo, o crescimento e a integridade da mucosa intestinal são
mantidas por meio da nutrição enteral.
Portanto, é preferível a nutrição enteral nos pacientes cujo trato
gastrintestinal está funcionante: ''Quando o intestino funciona, use-o'', ou melhor,
''Quando o intestino funciona, use-o ou perca-o'' (Shronts, 1997; Morlion,
Puchstein, 1998).

IMPACTO FISIOLÓGICO DA DEPLEÇÃO CALÓRICO-PROTEICA


A desnutrição hospitalar contribui definitivamente para a elevação dos
índices de morbimortalidade.
Conforme diversos levantamentos publicados, de 30% a 40% dos
pacientes internados em hospitais gerais apresentam algum grau de desnutrição
(Correia et al., 1998).
No Brasil, a frequência de desnutrição hospitalar também tem sido
relatada como sendo alta, principalmente nas enfermarias de cirurgia do
aparelho digestivo.
O estudo mais recente na nossa área é o Inquérito Brasileiro de Avaliação
Nutricional Hospitalar (IBRANUTRI), que foi um estudo transversal, multicêntrico,
envolvendo 12 estados brasileiros e o Distrito Federal, com amostra de 4.000
doentes.
Este nos revelou que 43,5% dos pacientes eram nutridos, 39,1%
potencialmente ou moderadamente desnutridos e 17,4% gravemente
desnutridos (Correia et al., 1998).

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2
2

A desnutrição é comum também no paciente crítico. Estudo recente de


Giner e colaboradores (1996) revela que a desnutrição em paciente
criticamente enfermo tem sido descrita em 43% em pacientes de UTI.
A incidência de complicações e a permanência hospitalar são
significativamente maiores nos pacientes desnutridos.
Segundo Ruffier (1997), a desnutrição frequentemente acompanha o
diagnóstico principal que gerou a internação na UTI.
O resultado desse somatório, do ponto de vista metabólico-nutricional, é
um estado hipermetabólico com gasto energético elevado, caracterizado por
hiperglicemia e resistência à insulina, aumento do catabolismo de proteínas e
lipídeos, com consequente balanço nitrogenado negativo.
A síntese de glicose hepática está aumentada pela gliconeogênese e não
é suprimida por infusão de glicose (Ruffier, 1997; Echenique, Correia, 1998).
Também ocorre supressão da cetogênese.
O aumento na produção de glicose se faz necessário para as células que
se utilizam dela como fonte de energia. Como prova disso, podemos citar os
neurônios, as células reparadoras das feridas, as dos processos inflamatórios e
as do sistema imune (Echenique, Correia, 1998).
Assim sendo, a necessidade da terapia nutricional nesses pacientes é de
fato relevante, no fornecimento dos substratos energéticos essenciais para a
produção de proteínas na fase aguda e na manutenção do sistema imune.
Qualquer que seja a causa da desnutrição, o primeiro passo para definir
terapia nutricional e metabólica adequada é a avaliação nutricional completa.
Este diagnóstico do estado nutricional é processo dinâmico, devendo, portanto,
ser estabelecida análise inicial e contínua, de acordo com o tempo de tratamento
do paciente (Shronts, 1997).
A melhor forma de realizar uma avaliação nutricional em um paciente
crítico ainda não foi definida, devido às mudanças que ocorrem nos líquidos intra
e extracelulares e no metabolismo ao nível celular, em decorrência da resposta
ao estresse (Echenique, Correia, 1998).

22
2
3

As técnicas antropométricas são utilizadas principalmente para o


diagnóstico do estado nutricional. No entanto, fornecem poucas informações
sobre transtornos funcionais e metabólicos.
Os métodos laboratoriais, como auxiliares na avaliação nutricional,
surgem na medida em que se evidenciam alterações bioquímicas precoces,
anteriores às lesões celulares ou orgânicas.
Os parâmetros séricos bioquímicos são primariamente proteínas
utilizadas no planejamento do programa de estabilização do estado nutricional
dos pacientes, determinando se há risco de complicações e monitorando a
terapia nutricional.

OS COMPARTIMENTOS CORPORAIS NO DOENTE GRAVE


O estudo da composição corpórea é relevante na avaliação e controle de
doentes agudos ou cronicamente desnutridos. Pode-se admitir que a
composição corpórea representa a distribuição corporal dos nutrientes ingeridos
e que está intimamente relacionada às funções bioquímicas, metabólicas e
mecânicas do organismo. Parte da composição corpórea de uma população
normal e saudável é constituída por tecido adiposo, que equivale de 10 a 25%
do peso corpóreo para o sexo masculino e de 18 a 30% para o sexo feminino.
Teoricamente a porção restante da composição corpórea, que não é gordura,
constitui a massa corpórea magra (MCM), composta de 75 a 85% do peso
corpóreo (Mattar, 1997; Coppini et al., 1998).
Na prática da UTI, dificilmente os dados mencionados são apurados
com a mesma exatidão, por se tratar de um paciente crítico sujeito a
inúmeras alterações dos valores pré-determinados para os distintos
compartimentos corporais. O mais relevante, segundo Ruffier (1998),
é agrupar dados de forma a se caracterizar o paciente como desnutrido
grave ou não e se evitar a síndrome de hiperalimentação do desnutrido,

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2
4

que é uma prática habitual nos casos de estado nutricional grave do


paciente.
A terapia nutricional, nessa condição, deve ser instituída precoce e
cautelosamente, minimizando desde o início a resposta catabólica.
Atualmente, existe muita controvérsia quanto à definição do melhor
método de estimar as necessidades calóricas, principalmente no paciente crítico.
Sabe-se que se deve manter o equilíbrio entre a necessidade e o gasto
energético, uma vez que o objetivo primordial da terapia nutricional é prover
nutrientes de acordo com as necessidades.
Existem dois métodos amplamente recomendados para estimar as
necessidades calóricas dos adultos. Um é a equação de Harris-Benedict e o
outro é a análise dos gases inspirados e expirados pela calorimetria indireta.
Colhem-se amostras dos gases expirados no reservatório acoplado ao paciente
e a partir daí são determinadas as frações expiradas de O2 e de CO2, em
sensores específicos ou aparelhos para gasometria arterial, preparados e com
sensibilidade para esses tipos de medidas. Assim, são medidos o volume do
oxigênio (VO2) e o volume do gás carbônico (VCO2), que serão finalmente
transformados em Gasto Energético de Repouso (GER) em kcal/dia (Neto, 1993;
Shikora, 1994; Waitzberg et al., 1995; Shronts, 1997; Echenique, Correia, 1998).
Um dos melhores métodos para determinar as necessidades calóricas é
a medida pela calorimetria indireta. Foi determinado que a média dos pacientes
requer 23 kcal/Kg de peso/dia para atender a suas necessidades basais.
A necessidade energética da maioria dos pacientes hipermetabólicos
(sepse, queimados) aumenta para valores de 40-50 kcal/kg de peso/dia (Neto,
1993; Shikora, 1994; Waitzberg et al., 1995; Shronts, 1997; Echenique, Correia,
1998).

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2
5

PERIGOS DA PRESCRIÇÃO INAPROPRIADA


A determinação das necessidades calóricas ideais não pode ser super-
enfatizada, uma vez que a baixa oferta calórica levará à continuidade de perda
de peso, má cicatrização, sepse, perda proteica e, em última análise, à falência
de órgãos e morte. A superalimentação, embora menos frequente, pode levar a
problemas como hiperglicemia, intolerância gastrintestinal e sobrecarga de
volume (Neto, 1993; Shikora, 1994; Waitzberg et al., 1995; Shronts, 1997;
Echenique, Correia, 1998).
Segundo Mainous e Deitch (1994), os efeitos da desnutrição incluem
prejuízo na função imune, perda muscular e demora na cicatrização de
feridas. No passado, era comum os pacientes receberem mais que
4000 calorias por dia, com o esforço de se evitar tais complicações.
Atualmente, sabe-se que a hiperalimentação é mais prejudicial que a
subnutrição. Estudos recentes, como de Valdés e colaboradores
(1997) e Hannigan (1994), demonstraram que o excesso da ingestão
de glicose passa a ser utilizado como substrato para o crescimento
bacteriano e eleva a produção de CO2,que conduz à insuficiência
respiratória. Ocasiona, também, a esteatose hepática e prejuízo na
função dos neutrófilos. O excesso do consumo de proteínas aumenta
a eliminação do nitrogênio urinário, o qual pode complicar a função
renal. Em pacientes com falência hepática pode ocorrer o
desenvolvimento da encefalopatia, devido ao acúmulo de outros
resíduos nitrogenados. O excesso da ingestão de gordura, por sua vez,
ocasionará o prejuízo da função dos neutrófilos, linfócitos, função
pulmonar, o bloqueio do sistema reticuloendotelial, com perda das
funções dos macrófagos e aumento da produção de prostaglandinas
E2. Assim sendo, os autores concluem que a hiperalimentação pode
resultar em graves problemas na função do sistema imune (Elisa, 1995;
Kaminski, 1997).
Em resumo, para pacientes de UTI, preconiza-se ingestão, em condições
basais, de 20-25 kcal/kg do peso atual/dia; para aqueles que não estão na UTI,
30 kcal/kg do peso atual/dia (Lebow, 1994; Waitzberg, et al., 1995).

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2
6

UTILIZAÇÃO DE OUTROS NUTRIENTES


Pacientes críticos têm alto risco de desenvolver complicações infecciosas.
A integridade da mucosa gastrintestinal é frequentemente prejudicada,
predispondo à translocação da flora entérica, toxinas e macromoléculas para a
circulação sanguínea. Desta forma, a nutrição enteral precoce é considerada a
rota fisiológica recomendada. Apesar do fornecimento adequado de calorias, as
fórmulas padrão parecem não manter a função imune em níveis adequados.
Assim sendo, esforços foram realizados para mudar a dieta padrão,
para uma terapia nutricional farmacológica. De acordo com um novo
conceito, que vem sendo discutido e testado em vários estudos que
envolvem animais e seres humanos (Cerra, 1990; Kinsella, 1990;
Alexander, 1993; Ziegler et al., 1994), certos nutrientes, entre eles a L-
arginina, L-glutamina, nucleotídeos e os ácidos graxos poli-
insaturados, administrados tanto pela via enteral como parenteral,
influenciam o sistema imune, diminuindo a bacteremia e os índices de
infecção. Proporcionam, ainda, redução significativa na morbidade
destes pacientes, na diminuição do período de permanência na UTI e
de internação hospitalar e, consequentemente, no custo do tratamento.
O grupo de candidatos que podem se beneficiar dessas dietas
imunomoduladas são, dentre outros, os pacientes operados, os de UTI e os que
apresentam a função imune deprimida (Bower et al., 1995; Kemen et al., 1995;
Braga et al., 1996; Schilling et al., 1996; Beale, Bryg, 1997; Gianotti et al., 1997;
Senkal et al., 1997; Soeters, 1997; Taylor et al., 1997; Atkinson et al., 1998;
Weimann et al., 1998; Galbán et al., 2000; Schloerb, 2001).
Os comportamentos alimentares estão na moda. Para entendê-los, tende-
se a buscar referências no campo das Ciências Humanas e Sociais, numa
tentativa de encontrar um caminho para o controle dos desejos e impulsos.
No início do século XX, Watson (2008) propôs a ideia de que o objetivo
principal da Psicologia seria o comportamento, sua previsão e controle.
Essa ideia ainda se verifica, por exemplo, em estudos que buscam a

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2
7

solução para problemas relacionados à alimentação e valorizam o


controle dos comportamentos, como se estivesse aí a garantia para o
funcionamento adequado dos indivíduos.
Neste texto, busca-se compreender a influência dessa visão reducionista
no campo da Alimentação e Nutrição, destacando algumas discussões sobre os
comportamentos alimentares à luz das Ciências Humanas, para estabelecer
uma diferenciação em relação aos hábitos alimentares.
Na literatura do campo da Alimentação e Nutrição, encontram-se
trabalhos que incluem tanto hábitos quanto comportamentos alimentares em
suas explicações e conexões, de formas diversificadas (PACHECO,
2008; FREITAS et al., 2012; CARVALHO, 2012; KAMIL, 2013).
Da mesma maneira, no campo das Ciências Humanas, as formas de
entender esses dois termos também não são unívocas.
Comportamento e hábito confundem-se em suas utilizações, quiçá em
suas definições. De modo geral, o termo comportamento se tornou na atualidade
quase domínio das teorias comportamentais, funcionando como sinônimo de
ação.
No campo das Ciências Sociais, vários estudos de cunho antropológico e
sociológico dedicam-se a entender a relação dos hábitos alimentares com a
cultura e a tradição em determinados grupos sociais, constituindo um importante
campo de pesquisa (CANESQUI, 2005; CANESQUI; DIEZ-GARCIA,
2005; CARVALHO, 2012; DIEZ-GARCIA, 2005; FREITAS et al.,
2012; PACHECO, 2008).
Segundo Bock, Furtado e Teixeira (2001), uma das dimensões da vida
é o cotidiano, incorporada como um conhecimento: o senso comum.
Como modos de produção de conhecimento, o senso comum e a
ciência não são categorias absolutas, mas guardam estreita relação
entre si. No dia a dia, o senso comum se apropria de diversas teorias,
dentre elas as teorias científicas, ressignificadas livremente. Da
mesma maneira, as teorias científicas originam-se de fatos da vida
cotidiana, que passam a ser problematizados a partir dos modelos de
conhecimento científico (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2001).

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2
8

Nesse sentido, pode-se considerar que, nos estudos relacionados ao


campo da Alimentação e Nutrição, os termos “comportamentos alimentares” e
“hábitos alimentares” são extraídos de seu uso no senso comum. São, portanto,
categorias empíricas que expressam uma realidade, diferentemente das
categorias analíticas, que se relacionam com conceitos e teorias estabelecidas
(MINAYO, 2010). Para empreender os objetivos deste ensaio, buscaram-se
referências teóricas para auxiliar na diferenciação desses dois termos,
possibilitando utilizá-los como categorias de análise (CARVALHO, 2012). Ou
seja, trata-se de destacar esses termos do uso coloquial, onde não há distinção
entre um e outro, para constituir instrumentos com a sensibilidade que se faz
necessária para analisar a polifonia desses termos no campo da Alimentação e
Nutrição, “através de uma estratégia metodológica de conceituação”
(CARVALHO; LUZ; PRADO, 2011, p. 156).
É seguindo essa proposta de conceituação que Klotz-Silva
(2015) aborda a questão do hábito/costume e hábito/disposição,
discutindo o conceito bourdieusiano de habitus e a presença de
objetividade/subjetividade, permanência/mudança e
indivíduo/coletividade como elementos que podem trazer importantes
contribuições para a compreensão dos hábitos alimentares, para além
de visões simplificadoras que tendem a manter separações estanques
entre o que é material e o que é dos afetos e valores. Para a autora, a
ideia do hábito alimentar não pode ser restrita ao domínio individual,
pois, uma vez inserido na cultura, o indivíduo é atravessado por
disposições que o ultrapassam e o marcam de modo indelével.
Segundo Viana (2002), na interseção entre os campos da Psicologia e
da Alimentação e Nutrição, um dos interesses que se destaca é
relacionado aos transtornos alimentares e à obesidade, prevalecendo
a ideia de que o comportamento alimentar dos indivíduos deve ser
observado para a prevenção de doenças, uma vez que é
repetidamente associado aos fatores de risco à saúde. O domínio
dessa perspectiva da prevenção de comportamentos e hábitos
patológicos no campo da Alimentação e Nutrição o torna terreno fértil
para a adesão aos discursos biomédicos, tanto no que diz respeito à

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2
9

prática profissional, quanto no que tange à construção de explicações


teóricas para fenômenos que não se reduzem à lógica simplificada de
causa e efeito. O modelo científico positivista que domina o modo de
fazer ciência em diversos campos e influencia sobremaneira o senso
comum mostra-se incapaz de explicar de modo suficiente os hábitos e
comportamentos patológicos.
Na vastidão de formas de abordar as distorções do modelo científico
positivista de explicação dos fenômenos humanos, Michael Gard e Jan
Wright (2005) destacam, por exemplo, que o modelo explicativo para o
fenômeno da atual “epidemia da obesidade” apresenta uma série de
inconsistências e falhas. Os dados quantitativos das pesquisas não
conseguem explicar a incoerência entre o substancial investimento em
pesquisas sobre a obesidade e seu aumento estatístico significativo, o
que coloca dificuldades em identificar os avanços científicos e sua
eficácia.
Para Seixas e Birman (2012), Gard e Wright enfatizam as contradições
do discurso científico e explicam que as certezas e generalizações
científicas contribuem para a construção da “epidemia da obesidade”.
Uma dessas certezas é de que a obesidade é uma doença ocasionada
por fraquezas individuais, ideia que é reforçada e disseminada pelo
senso comum, dificultando ainda mais os tratamentos.
Na esteira dessas considerações, pode-se identificar uma tendência à
responsabilização dos indivíduos pelas mudanças nos hábitos e
comportamentos alimentares (DIEZ-GARCIA, 2012; FRANCISCO; DIEZ-
GARCIA, 2015) levando a um aumento no interesse por estudos no campo da
Psicologia.
Assim, modelos tradicionais da Psicologia - como, por exemplo, a
Psicanálise e a Gestalt - que teriam como foco os processos internos e subjetivos
do ser humano - perdem espaço para abordagens mais afeitas ao modelo
biomédico de explicação causal.
Aqui, pode-se citar a Análise do Comportamento, a Terapia Cognitivo-
Comportamental e o Modelo Transteórico, nos quais a diferenciação entre
comportamento e hábito alimentar se dá de forma naturalizada, numa prática

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3
0

discursiva do senso comum, visando somente à mudança de hábitos por meio


da adequação do comportamento alimentar.
Dependendo de cada abordagem, hábitos e comportamentos alimentares
podem ser analisados de formas iguais ou diferentes, com intenções e propósitos
diversos, gerando uma indiferenciação que reduz o indivíduo a seu
comportamento e estereotipa essas duas categorias de análise. É com esse
incômodo que se realizou a leitura de trabalhos do campo da Alimentação e
Nutrição, assim como da Psicologia e da Filosofia, para delimitar a relação entre
o comportamento e o hábito alimentar, a fim de apreender seus modos de
conceituação e seu uso no campo científico.

COMPORTAMENTO ALIMENTAR NO CAMPO ALIMENTAÇÃO E


NUTRIÇÃO
No campo da Alimentação e Nutrição, hábitos alimentares são
relacionados à ideia de consumo alimentar ou, ainda, ingestão alimentar
(ingestão energética e de nutrientes), enquanto o comportamento alimentar
aparece, na maioria das vezes, relacionado aos aspectos psicológicos da
ingestão de comida.
A insuficiência de referências que busquem delimitar ou conceituar os
termos aqui tratados aponta a necessidade de ampliar as discussões sobre a
interface entre os campos da Alimentação e Nutrição e das Ciências Humanas
e Sociais, o que começa a ser realizado no interior de alguns grupos de pesquisa
e também por pesquisadores isoladamente.
Partindo de uma breve revisão bibliográfica, identificaram-se pelo menos
três chaves de leitura, que permitiram organizar os modos de utilização dos
termos “comportamentos” e “hábitos alimentares” no campo da Alimentação e
Nutrição, a fim de auxiliar o entendimento dos sentidos que estão aí dispersos.

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3
1

Repetição do comer
Reconhecendo a indiferenciação dos termos supracitados no discurso
cotidiano, Carvalho (2012), ao buscar estabelecer o uso do termo
“hábito” no que concerne à alimentação, enxerga nítidas diferenças
entre hábito e comportamento.
O comportamento alimentar implica uma ideia que pode ser
profundamente específica de um modo de se alimentar, mas não tem uma
preocupação com a duração da ação como a de hábito. Traduz uma prática sem
a pretensão de situá-la no tempo, e dessa forma não expressa um processo
contínuo, porque não tem a obrigação de relacionar um momento a outro - que
se segue, o que não ocorre com a ideia de hábito alimentar (CARVALHO, 2012,
p. 431 e 432).
Nessa mesma linha, foram situados trabalhos que relacionam os
hábitos ao cotidiano social e à cultura. Para Freitas et al. (2012), o
hábito alimentar relaciona-se com a percepção sobre a comida em
determinado contexto social, sendo adquirido pela repetição na
experiência que cada indivíduo tem ao longo de sua vida.
Vale destacar que os autores afirmam que o hábito alimentar traz uma
intersubjetividade que se dá num nível pré-reflexivo, ou seja, não se limita à
percepção racional ou a uma escolha intencional, mas é uma qualidade “onde o
indivíduo tece uma infinita rede de símbolos que reflete sua realidade, o cotidiano
de seu corpo, sua comida” (FREITAS et al., 2012, p. 35).
Os autores entendem, assim, que hábitos e comportamentos podem ser
parecidos e ter, ao mesmo tempo, diferenças de sentido.
Freitas et al. (2012) entendem que comportamentos e hábitos estão
intimamente relacionados no que diz respeito à etiologia das doenças.
Enquanto o primeiro situa-se na esfera da ação individual,
inevitavelmente condicionada pela estrutura social e dela
condicionante, o segundo relaciona-se com a experiência que se
repete cotidianamente do indivíduo no social, um ato polissêmico que
“faz parte de uma trama de significados do cotidiano em que o ser
humano vive e no qual se encontra quase sempre cativo” (FREITAS et
al., 2012, p. 36).

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3
2

Diferentemente dos autores que buscam diferenciar hábito e


comportamento, Pacheco (2008) analisa também os hábitos
alimentares à luz da teoria de Bourdieu, indicando, contudo, uma
estreita relação com o comportamento. Para a autora, o hábito é um
comportamento, e este deriva de disposições incorporadas em nível
pré-reflexivo e atua em escolhas que não são mecanizadas ou
automatizadas, mas que são contextualizadas e se repetem no tempo.
Na Nutrição se entende que os hábitos são formados desde a infância e
vão se modificando de acordo com o processo de socialização. Posteriormente,
na adolescência, os hábitos alimentares se modificam na busca da identidade
grupal e ao longo da vida sofrerão outras influências, mudanças e alterações
(PACHECO, 2008).
A criança cresce em um ambiente familiar que tem um comportamento
alimentar definido, que se repete dia após dia e ao qual ela se adapta. [...] Ao
sair do convívio basicamente familiar e penetrar no contexto escolar, o indivíduo
experimentará outros alimentos e preparações e terá oportunidade de promover
alterações nos seus hábitos alimentares... (PACHECO, 2008, p. 221).
Observa-se, assim, a tentativa de delimitar diferenças e semelhanças,
continuidades e descontinuidades entre comportamentos e hábitos alimentares
sob a ótica de sua repetição no tempo e no contexto sociocultural. Ainda que não
haja consenso, identificam-se tentativas de aprofundamento dessa discussão,
agregando elementos das teorias sociais. Tal aspecto não fica evidente nos
textos que tratam os hábitos e comportamentos alimentares numa perspectiva
biomédica, como se discute a seguir.

Ingestão de nutrientes
Sob a influência da tradição biomédica no campo da Alimentação e
Nutrição, aponta-se outra perspectiva, apresentada por alguns autores que
associam as ideias de hábito e comportamento alimentar ao tipo de ingestão
alimentar (RIBEIRO et al., 2011; PANZA et al., 2007; TORAL et al.,
2006; KANNO et al., 2008; KAMIL, 2013).

32
3
3

São trabalhos que se interessam por examinar que tipo de alimento


determinado grupo ingere, a frequência e o modo, nomeando essa ingestão
como hábito ou comportamento alimentar, indistintamente. Seu interesse
expressa uma visão mais tradicional no campo da Nutrição, que entende o
alimento como carreador de nutrientes e a análise apurada do
hábito/comportamento alimentar como aquilo que permite diagnosticar e tratar
os problemas alimentares adequando a alimentação a uma norma
cientificamente determinada de ingestão de alimentos.
Dentro dessa perspectiva da ingestão alimentar, é possível, porém,
encontrar também uma problematização dessa forma mais estrita de entender o
comer indicando a necessidade de ir além da ideia de ingestão de nutrientes e
avançar nas discussões sobre as semelhanças e diferenças entre hábitos,
práticas e comportamentos.
Fischler (1995 apud POULAIN; PROENÇA; DIEZ-GARCIA, 2012), por
exemplo, considera que o termo “hábitos alimentares” implica
comportamentos mecânicos e “comportamento alimentar” costuma
encarar questões culturais por meio de aspectos deterministas. Assim,
prefere o termo “práticas alimentares”, em vez de comportamentos ou
hábitos alimentares.
Os autores criticam a visão de Fischler (1995), citado por eles, de evitar
certas palavras devido ao uso que outros pesquisadores fazem delas.
Para eles, por mais que algumas expressões sejam descritas
simplificadamente, isso não é razão para não utilizá-las. Seria preciso,
portanto, diferenciá-las melhor.
A fim de ampliar a visão sobre esses termos, Poulain, Proença e Diez-
Garcia (2012) agregam a caracterização do consumo alimentar nas
práticas e comportamentos à sua conceituação. Ao incluir aspectos
culturais e subjetivos do consumo nos comportamentos alimentares os
autores extrapolam a visão mais tradicional do campo da nutrição, sem,
contudo, diferenciá-los das práticas e dos hábitos alimentares.

Psicologia dos transtornos

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3
4

Uma terceira chave de leitura proposta busca compreender a


diferenciação entre comportamento e hábito alimentar a partir dos conceitos
advindos da Psicologia. Na presente pesquisa, foram encontrados textos que
relacionam o campo da Psicologia com a Nutrição para demonstrar as
contribuições que uma área traz à outra no estudo dos comportamentos
alimentares (VIANA, 2002; MOTTA; MOTTA; CAMPOS, 2012), sobretudo no
manejo dos comportamentos patológicos e na promoção de hábitos alimentares
saudáveis (TORAL; SLATER, 2007; FRANÇA et al., 2012; CAVALCANTI; DIAS;
COSTA, 2005).
Nesses textos que fazem a interface com a Psicologia, a ideia de hábito é
pouco problematizada e é utilizada como a mera repetição de um
comportamento aprendido. O interesse volta-se prioritariamente para o
comportamento alimentar em sua forma mais ampla, mas, na maioria das vezes,
o comportamento é pensado a partir de seus aspectos patológicos, como
aqueles que são observados nos transtornos alimentares e na obesidade.
Como consequência da hegemonia de um modelo científico positivista,
observou-se uma forte tendência a empreender uma leitura da realidade em que
os conhecimentos são compartimentados em disciplinas, tornando-se
ininteligíveis inclusive para especialistas de disciplinas próximas (MORIN,
2010; 2011). Ainda que nesses textos que se dedicam a entender os
comportamentos patológicos se busque a interação entre os diversos saberes
que tocam a questão da alimentação, fica evidente sua compartimentalização.
De modo geral, entende-se que a tentativa de relacionar esses dois
campos é ainda incipiente, prevalecendo a lógica da fragmentação por
especialidades. Ou seja, se um fenômeno não pode ser entendido pelo modelo
biomédico que prevalece no campo da Nutrição, uma parte dele deve ser
explicada pelas teorias socioantropológicas e outra parte pelas teorias
psicológicas, separando a complexidade característica da alimentação em
pequenas ilhas de conhecimento. O indivíduo, a partir desse ponto de vista, é
tomado como um conjunto de partes que poderiam ser estudadas

34
3
5

separadamente, e o conhecimento assim produzido poderia ser reunido a


posteriori para integrar um todo inteligível.

A complexidade da alimentação
A alimentação mostra-se um fenômeno de difícil abordagem, que não se
presta a generalizações ou explicações simplificadoras. Na tentativa de
responder à incapacidade de abordar alguns problemas de modo simples,
Edgar Morin (2010; 2011) constrói ao longo de sua trajetória intelectual o
pensamento complexo.
Rompendo com o paradigma da simplificação, que caracteriza o modo
de produzir conhecimento de acordo com princípios científicos
clássicos, como a ordem, a disjunção, a redução e a
razão/lógica, Morin (2010) entende que a complexidade emerge
justamente das fissuras do pensamento simplificador dominante, cujos
paradoxos e contradições foram o estopim para a reconsideração de
princípios científicos clássicos.
Segundo o autor, a solução de problemas complexos não reside em
sua simplificação ou na descoberta de uma verdade última em um
único campo de saber, mas na potencialização das contradições que
lhe concernem. Para pensar o imprevisível e o incalculável, Morin
propõe a quebra das barreiras disciplinares que estruturam o
pensamento e o mutilam, reconhecendo o que liga e religa o objeto ao
seu contexto, as partes ao todo e o todo às partes, rompendo com a
tradição cartesiana que acaba reduzindo o complexo ao simples
(MORIN, 2010; 2011).
Alheios ao paradigma da complexidade (que vem ganhando adeptos em
vários campos de conhecimento) observou-se que tanto textos científicos quanto
ações e políticas do campo da Alimentação e Nutrição permanecem regidos pela
lógica da simplificação. Tratadas de modo simplificador e naturalizado, as
questões concernentes à subjetividade, comportamentos e hábitos aparecem
obrigatoriamente nos textos científicos e nas políticas públicas oficiais sem

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3
6

fundamento teórico, gerando uma proliferação de verdades que se generalizam


tanto na ciência quanto no senso comum (KLOTZ-SILVA, 2015).
Estudos como de Vaz e Bennemann (2014) ilustram tal condição do
campo científico uma vez que partem de dados estatísticos relativos
ao aumento do sobrepeso e da obesidade na população brasileira para
fundamentar a necessidade de identificar significados e diferenças
entre hábitos e comportamentos alimentares.
A tarefa de “abordar esses conceitos de forma didática” (VAZ;
BENNEMANN, 2014, p. 108), considerada pelos autores como objetivo do artigo
e como essencial para prevenir, intervir e tratar os indivíduos, se mostra, ao fim
e ao cabo, como mais uma descrição quantitativa dos artigos que tocam na
temática, encontrados numa revisão bibliográfica, sem que se chegue, no
entanto, a problematizar o conceito em si, ou a explicitar as ligações entre eles.
Já na Política Nacional de Alimentação e Nutrição (2013), onde
problemáticas como os transtornos alimentares e a obesidade estão
ligados a alterações no comportamento alimentar, destaca-se que a
alimentação e a nutrição devem ser encaradas como determinantes de
saúde e precisam “levar em conta a subjetividade e complexidade do
comportamento alimentar” (BRASIL, 2013, p. 28).
Por outro lado, seja em propostas internacionais relativas à alimentação
saudável, atividade física e saúde (WHO, 2004), seja no recém-lançado Guia
alimentar para a população brasileira (BRASIL, 2014), que coloca em prática as
políticas que norteiam as ações no campo da Nutrição e constitui, segundo o
próprio guia, um importante instrumento de educação alimentar e nutricional no
Sistema Único de Saúde (SUS), não foram localizadas as palavras subjetividade
nem comportamento, apesar de haver uma ênfase em prescrever formas
corretas de ser, agir e se alimentar.

O enigma do comportamento
Num esforço de diferenciar e ao mesmo tempo religar esses saberes
fundamentais para a ampliação e consolidação do campo da Alimentação e
Nutrição como campo científico, foram identificados diversos estudos no campo

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da Psicologia que falam sobre métodos de intervenção utilizados para


modificação do comportamento alimentar.
Nota-se que o behaviorismo é a base filosófica de muitas das atuais
intervenções realizadas por profissionais tanto do campo da Psicologia quanto
da Nutrição, tais como, a Análise do Comportamento, a Terapia Cognitivo-
Comportamental (TCC) e o Modelo Transteórico.
Na busca por uma base científica para a Psicologia, a origem do
Behaviorismo com o manifesto de Watson (2008) está relacionada a uma
tentativa de contestar os métodos subjetivos da Psicologia, que, no século XIX,
constituíam as principais ferramentas da pesquisa científica (BAUM, 2007).
O behaviorismo metodológico de Watson configura uma filosofia que visa
combater a introspecção como método da Psicologia e inaugura uma nova forma
de entendimento, baseada nas leis do condicionamento clássico, ou seja,
considerando que o organismo responde de modo reflexo aos estímulos do
ambiente (BAUM, 2007).
A operação Estímulo-Resposta, que ganhou ênfase no modelo
proposto por Watson, é levada ao extremo no behaviorismo radical (ou
Análise do Comportamento) de Skinner (1982), quando admite uma
perspectiva pragmática do comportamento: o comportamento
operante. Skinner (1982) considera que, no comportamento operante,
o homem age sobre o ambiente e este retroage sobre ele. Além disso,
para que um comportamento continue ou pare, há a necessidade de
um determinado tipo de reforço, como diz o autor: Quando um
comportamento tem um tipo de consequência chamada reforço, há
maior probabilidade dele ocorrer novamente. Um reforçador positivo
fortalece qualquer comportamento que o produza: um copo d’água é
positivamente reforçador quando temos sede e, se então enchemos e
bebemos um copo d’água, é mais provável que voltemos a fazê-lo em
ocasiões semelhantes. Um reforçador negativo revigora qualquer
comportamento que o reduza ou o faça cessar: quando tiramos um
sapato que está apertado a redução do aperto é negativamente
reforçadora e aumenta a probabilidade de que ajamos assim quando
um sapato estiver apertado.

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3
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Essa concepção de comportamento evidencia seu aspecto reducionista e


dessubjetivado, que exclui as dimensões psicossociais do fenômeno humano.
Entretanto, na esteira das críticas sofridas por esses teóricos, pode-se observar
um alargamento das concepções do behaviorismo radical de Skinner.
Na contemporaneidade, muitas vozes falam em nome da Terapia
Comportamental; contudo, para Franks (2002), atualmente ela reflete
uma combinação de procedimentos e métodos multidimensionais em
vez de abordagens únicas, além de uma disposição para ultrapassar
os limites rígidos do condicionamento tradicional.
Seu enfoque permanece sendo a resolução de problemas, desde que a
miríade de atuações clínicas mantenha suas bases em dados e predições
comprovadas e não em intuições e impressões clínicas (FRANKS, 2002).
É nesse panorama que emergem estudos relativos ao tratamento dos
comportamentos patológicos no campo da Alimentação e Nutrição que conjugam
técnicas comportamentais e elementos mentais.
Trata-se de novas soluções para o velho e conhecido problema da
subjetividade: se um modelo de previsão e controle do comportamento que exclui
os elementos mentais não é suficiente para eliminar os comportamentos
indesejáveis, é preciso retomar algumas premissas, no caso, trata-se de incluir
a cognição como elemento pessoal interno previsível e monitorável. Nesse
sentido, o autor admite que técnicas mais atuais, como a Terapia Cognitiva de
Beck, caem na órbita da Terapia Comportamental, na medida em que seguem
seus preceitos fundamentais (FRANKS, 2002).
Assis e Nahas (1999) apresentam o Modelo Transteórico e a TCC no
intuito de trazer informações sobre motivação e adesão em
intervenções alimentares e que podem ser tomadas aqui como
exemplos dessa modulação que a Terapia Comportamental sofreu na
contemporaneidade.
O Modelo Transteórico, de James Prochaska, Carlo DiClemente e
Norcross (1992) tem sido considerado promissor na abordagem do
comportamento relacionado à saúde.

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3
9

Ainda que tenha sido elaborado originalmente para pesquisas com


tabagistas (TORAL; SLATER, 2007), pois admite que a mudança de
comportamento é processual e compreende cinco estágios (pré-contemplação,
contemplação, preparação, ação e manutenção), sua utilização no manejo dos
transtornos alimentares vem se ampliando.
Duchesne e Almeida analisam como a TCC pode ser utilizada em
casos de transtornos alimentares por ser “uma intervenção
semiestruturada, objetiva e orientada para metas, que aborda fatores
cognitivos, emocionais e comportamentais no tratamento (...)” desses
transtornos.
Observa-se que, em sua definição, a TCC indica a necessidade de
ampliação da noção de comportamento, incluindo aspectos internos mais
variados do que o Modelo Transteórico. Mantém, entretanto, a concepção
tradicional de que o comportamento pode ser condicionado pela mudança de
crenças e tornar-se, por repetição, um hábito.
Como o foco na maioria dos estudos sobre essas técnicas está nos
resultados apresentados durante o período de tempo da intervenção, vale
considerar aqui que poucas investigações fazem um acompanhamento no longo
prazo dos resultados obtidos com essas abordagens e indicam a necessidade
de realizá-los (DUCHESNE et al., 2007; KNAPP et al., 2007; WRIGHT et al.,
2010). Da mesma maneira, observa-se que, em alguns livros sobre as técnicas
e formas de aplicar a TCC, pode-se encontrar a indicação de que “mesmo os
terapeutas mais experientes encontram dificuldades em estabelecer uma aliança
terapêutica, conceituar as dificuldades corretamente e trabalhar de forma
coerente em direção aos objetivos” (SILVA, 2014, p. 168).
Toral e Slater (2007) apontam também limitações no uso do Modelo
Transteórico em relação aos comportamentos alimentares. Uma delas
aponta que, diferentemente da aplicação do modelo para outros
comportamentos aditivos, como o tabagismo, a alimentação não pode
ser excluída da vida do indivíduo, mas precisa ser manejada para que
se limite a uma alimentação saudável e adequada. Outra limitação
seria que a maioria dos estudos que utilizam o Modelo Transteórico no

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0

comportamento alimentar não inclui outras dimensões do


comportamento, “tais como os processos de mudança, o equilíbrio de
decisões e a autoeficácia do indivíduo” (TORAL; SLATER, 2007, p.
1647).
Apesar das críticas relativas a essas técnicas, elas são consideradas
modelos hegemônicos de intervenção de fácil aplicação na área da saúde. Os
efeitos da banalização desses modelos no senso comum não são menos
significativos e alimentam a culpabilização dos indivíduos pelos fracassos nas
mudanças de hábitos, descontextualizando-os de uma dinâmica psíquica mais
abrangente.

Do hábito ao comportamento
Tendo em vista que as teorias científicas têm sua origem na
problematização da vida cotidiana a partir do modelo de conhecimento científico
(BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2001), no que concerne ao hábito, do ponto de
vista da Psicologia, ele vem sendo relacionado à repetição de ações ou
comportamentos realizados pelos indivíduos. Grosso modo, no domínio da
Psicologia geral, entende-se que o ser realiza uma ação e, por repetição,
constitui seus hábitos cotidianos, vinculando agir e hábito numa série observável
(JUNIOR; MELO, 2006).
Na perspectiva da construção social dos hábitos, é a repetição de uma
forma de prática eficiente que produz o hábito, pois, devido à sua efetividade, ele
tende a se manter e reproduzir, perpetuando determinadas práticas em uma
tradição que passa através de gerações. Essa transmissão da tradição e do
hábito se faz presente nas famílias, na educação e nas instituições de modo
geral e tem uma função de manutenção de ideias dominantes (BOCK;
FURTADO; TEIXEIRA, 2001).
A revisão apresentada explicita a perspectiva simplificadora com que o
hábito tem sido tratado. Entretanto, seria essa a única maneira de compreender
o hábito em sua relação com o comportamento?

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4
1

Na tentativa de restituir a complexidade própria aos comportamentos e


hábitos alimentares, pode-se seguir o caminho trilhado por Deleuze
(2006), que considera fundamental se questionar quanto à relação
existente entre a ação e o hábito.
Para levantar um questionamento relativo à própria gênese do ser,
Deleuze se interroga se é agindo que os hábitos são adquiridos ou se, ao
contrário, são adquiridos por meio da contemplação. Essa pergunta fundamenta-
se em sua concepção de tempo, segundo a qual há uma síntese passiva do
tempo, onde a contemplação é privilegiada na constituição do ser, em detrimento
da ação.
A partir da célebre frase de Hume, “a repetição nada muda no objeto
que se repete, mas muda alguma coisa no espírito que a contempla”
(DELEUZE, 2006, p. 111), Deleuze deduz e enfatiza a emergência da
diferença na repetição e não a semelhança entre aquilo que
aparentemente se repete. Diferentemente de tudo que se escuta na
ciência positivista, para ele, a diferença é extraída da repetição pelo
hábito como algo de novo que separa o primeiro objeto daquele que se
repete.
A concepção de tempo apresentada por Deleuze difere da
temporalidade linear que se utiliza tradicionalmente para observar
certos fenômenos, pois indica que há uma síntese passiva do tempo
que se constitui em contrações que ficam retidas e emitem
expectativas que se relacionam intimamente com o hábito. Ou seja,
quando Deleuze afirma que uma sequência se constitui pela repetição
de elementos que se contraem e emitem a expectativa do novo
acontecimento, afirma, outrossim, que o advento do novo elemento na
sequência é, em última análise, uma inferência daquele que contempla,
pois os eventos que se repetem são independentes em si mesmos.
É assim a síntese passiva que constitui nosso hábito de viver, isto é, nossa
expectativa de que ‘isto’ continue, que um dos dois elementos ocorra após o
outro, assegurando a perpetuação do nosso caso. Quando dizemos que o hábito
é contração, não falamos, pois, da ação instantânea que se compõe com outra

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2

para formar um elemento de repetição, mas da fusão dessa repetição no espírito


que a contempla (DELEUZE, 2006, p. 116).
A ideia do autor mais importante a ser destacada aqui é de que não há
uma repetição em si mesma: é o aparecimento de um novo elemento que afirma
o desaparecimento do anterior aos olhos daquele que contempla. Ele aponta
que, se não há contemplação, o aparecimento desses mesmos elementos seria
independente, mas se há contemplação há a indagação sobre a natureza desse
elemento novo que surge.
Segundo Junior e Melo (2006, p. 71), é a partir da experiência que se
pergunta “como seria possível ordenar ‘o segundo’, ‘o terceiro’ e ‘é o
mesmo’, já que a repetição não tem em si, que não existe a priori? Não
existir a priori indica: não é possível antes de qualquer experiência”.
Dessa forma, para Deleuze, o hábito constitui o ser e inaugura sua
ontologia que desvia a subjetividade do lugar comum e do
determinismo que se costuma a considerar. Se na Psicologia
reducionista, assim como no campo da Alimentação e Nutrição, a
subjetividade é considerada como algo que não exige um
questionamento quanto à sua origem e constituição - podendo até
mesmo ser eliminada ou controlada -, na concepção deleuzeana,
observa-se uma inflexão na conceituação da subjetividade diferente
das concepções simplificadoras do ser.
Na base das proposições de Deleuze está a crítica de Hume à razão como
algo inquestionável. Para Hume, é o hábito que permite a dedução de que a
existência de um objeto está ligada a outro, ou seja, a aparição de um sucede à
de outro.
A novidade deleuzeana que o diferencia de Hume está no fato de atribuir
à repetição a condição de emergência da subjetividade como diferença
(EIRADO, 1998; JUNIOR; MELO, 2006) e não como repetição. O apagamento
do sujeito da ação na concepção tradicional de hábito é tributária de um projeto
de cientificização e racionalização do humano e tem como efeito o reforço da
ideia de que a ação intencional modifica por si só o hábito e, consequentemente,
o indivíduo. Nessa perspectiva, o hábito como condição de existência se

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3

distingue do comportamento, não podendo ser, assim, manipulado de modo


intencional ou mesmo condicionado.
Para o campo da Alimentação e Nutrição, considerar o hábito como o que
possibilita a emergência da subjetividade na repetição implica considerar aquilo
que faz sentido para cada indivíduo, ou seja, para que seja possível pensar em
mudança de hábitos alimentares é preciso que a diferença, a singularidade
individual tenha lugar privilegiado, e não seu apagamento característico dos
comportamentos condicionados. Se uma nova atitude tem ancoragem no
contexto social, na história e na vida de um indivíduo, é mais provável que elas
se mantenham, pois funcionam como uma acomodação às demandas que a vida
coloca (DIEZ-GARCIA, 2012).
E como todas as coisas são causadas e causadoras, ajudadas e
ajudantes, mediatas e imediatas, e todas se mantêm por um laço natural e
insensível que liga as mais afastadas e as mais diferentes, tenho como
impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, bem como conhecer o todo
sem conhecer as partes (MORIN, 2010, p. 191).
Integrar a necessidade cartesiana de separar as coisas para entendê-las
e o princípio de Pascal citado acima por Morin é o desafio para o pensamento
complexo. Para o presente trabalho, esse desafio implica interrogar o campo da
Alimentação e Nutrição em seus aspectos conceituais que ficam submersos nas
práticas cotidianas e não se prestam ao enfrentamento de seus paradoxos e
contradições. Se comportamentos podem ser alterados e com isso repetidos até
tornarem-se hábitos, mas se isso não se confirma no longo prazo, qual seria de
fato a relação entre hábitos e comportamentos? Qual seria o equívoco que o
modelo de ciência positivista impõe aos pesquisadores?
Neste ensaio, limitamo-nos a um delineamento inicial de um problema que
temos por relevante: a frequente - e mesmo hegemônica - abordagem
simplificadora de objetos complexos, como é o caso do comportamento
alimentar. Sem dúvida, fica a necessidade do aprofundamento dessa discussão
a demandar novos olhares e cotejamentos de perspectivas teóricas e

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4
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metodológicas outras que, além do biológico e médico, da causa e efeito,


venham a considerar o que é da subjetividade, da cultura, da sociedade, do
contraditório, do paradoxal. Nesse sentido, cabe enfatizar a necessidade de
estudos voltados ao aprofundamento de reflexões de caráter conceitual, seja
problematizando categorias empíricas correntes no campo da Saúde, seja
propondo categorias analíticas dentro do objetivo de compreender relações
sociais mediadas pela comida, por exemplo.
No campo da Alimentação e Nutrição, trata-se, portanto, de abordar o
comportamento em sua relação com o hábito, não de forma simplificadora, mas
considerando a complexidade da vida e do ser humano.
A obstinação pela prevenção e pela cura que se apoia no uso ingênuo
desses termos expõe com seu fracasso que o comportamento não pode ser
controlado, o ser humano e seus hábitos não podem ser condicionados.
Nessa perspectiva, o hábito poderia afirmar-se como aquilo que faz
sentido, permitindo que o sujeito possa apropriar-se de forma singular das
informações e orientações provenientes da ciência e sustentar suas mudanças.

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