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ATUALIDADES EM NUTRIÇÃO CLÍNICA E BIOÉTICA

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 2
2. NUTRIÇÃO CLÍNICA ATUALIZADA ..................................................................... 4
3. CONCEITO DE BIOÉTICA ................................................................................. 13
3.1 Ciências da Nutrição e da Bioética, na Perspectiva da Segurança Alimentar
e Nutricional e do Direito Humano à Alimentação Adequada ................................ 14
4. O PROCESSO NUTRICIONAL E A BIOÉTICA .................................................. 17
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 25

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1. INTRODUÇÃO

Dentre as diversas áreas de prática do nutricionista como profissional de saúde,


destaca-se a nutrição clínica. Essa área pode ser caracterizada como aquela que se
desenvolve em hospitais, clínicas, consultórios e outros, na qual o nutricionista clínico
realiza atenção dietoterápica ao paciente baseada, principalmente, no seu quadro
clínico e diagnóstico nutricional.
No Brasil a prevalência de mortalidade por doenças do aparelho circulatório,
câncer, diabetes e doenças respiratórias é cerca de 70% ao ano e não abrangem
apenas os indivíduos que apresentam condições limitadas de conhecimento, renda
salarial e acesso aos recursos de saúde.
Dos 57 milhões de óbitos no mundo durante o ano de 2008, 63% tinham como
causa as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT). Destas, aproximadamente
80% são em países de renda baixa à média, atingindo indivíduos com idade inferior a
60 anos.
As DCNT foram em 2008 responsáveis por mais da metade dos óbitos no
mundo, estima-se que 7,3 milhões de pessoas morrem por ano, e em até 2030
ultrapassará os 23,6 milhões. Tratando-se do perfil epidemiológico da população, o
excesso de peso está cada vez mais prevalente entre os brasileiros, sendo assim,
ressalta-se a importância da avaliação antropométrica como instrumento fundamental
ao nutricionista clínico a fim de criar ações de promoção da saúde e prevenção de
doenças.
Pesquisas realizadas recentemente em ambulatórios, demonstram que as
medidas antropométricas estão relacionadas com alterações metabólicas e podem
indicar o risco do desenvolvimento de doenças cardiovasculares. Considerando que
a prevenção e o monitoramento da prevalência dos fatores de risco para DCNT,
permitem a implementação de ações com maior custo-efetividade, observa-se que a
educação nutricional é fundamental nas redes básicas de saúde, proporcionando
assistência principalmente aos indivíduos com excesso de peso que procuram
adequar seu estado nutricional e melhorar seu estilo de vida.
Contudo, os profissionais de saúde encontram diversas dificuldades em
atender a demanda elevada, priorizando o tratamento das doenças. Desta forma,
identificando as prevalências de patologias apresentadas em ambulatórios, é possível
direcionar meios de prevenção e tratamentos dos diferentes grupos etários.

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Incentivando assim, o acompanhamento longitudinal destes pacientes, visando o
acolhimento pelo profissional, resultando em melhor satisfação e adesão ao
tratamento.
Sabe-se que ainda não é obrigatória em Unidades Básicas de Saúde e
Estratégias de Saúde da Família a inserção do nutricionista para atendimento de
forma gratuita a população usuária do Sistema Único de Saúde (SUS).
A concepção da clínica nutricional ampliada é uma temática nova para o campo
da nutrição, sobretudo da nutrição clínica. Diante do processo de reformulações nos
cenários de práticas em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde, esse tema
instiga substancial interesse na produção científica, na formação e na prática clínica
do nutricionista com a aplicação de competências comunicacionais e a ampliação do
olhar técnico-nutricional perante o processo saúde-doença-cuidado, que podem
contribuir para a reconfiguração da relação nutricionista-paciente a fim de ampliar sua
humanização.
Como política, a humanização deve, portanto, traduzir princípios e modos de
operar no conjunto das relações entre trabalhadores e usuários, entre os diferentes
trabalhadores, entre diversas unidades e serviços de saúde e entre instâncias que
constituem o SUS.
Observa-se a clínica nutricional como prática social e utiliza-se a concepção da
clínica ampliada para discutir as possibilidades de reestruturar a nutrição clínica e
ampliar seus saberes e suas técnicas para além de um modelo biomédico restrito e
restritivo. Por fim, discute-se a nutrição clínica ampliada como possibilidade para
repensar a relação nutricionista-paciente e propor, nesse sentido, sua humanização,
a incorporação de conteúdos não biomédicos, a valorização da sabedoria prática e da
escuta, a articulação de saberes e a exploração da dimensão dialógica no exercício
legítimo da nutrição clínica na contemporaneidade.
O contexto e o momento histórico em que vivemos fazem com que a bioética
se debruce sobre as transformações políticas, econômicas, sociais, culturais,
ambientais, epidemiológicas e demográficas, para uma aproximação com os
problemas da coletividade, principalmente em países com grandes níveis de
desigualdade social, como o Brasil.

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2. NUTRIÇÃO CLÍNICA ATUALIZADA

Área da nutrição responsável pelo tratamento de diversas enfermidades que


afetam as pessoas, a nutrição clínica é aplicada aos pacientes por meio de um plano
focado na alimentação adequada. Essa área também atua no combate e na
prevenção do surgimento de doenças e, de forma terapêutica, no controle das
doenças crônicas. O atendimento em nutrição clínica, seja em nível ambulatorial, seja
no hospitalar, é feito pelo profissional nutricionista.
Manter uma boa saúde e ter um corpo resistente a doenças se dá por meio de
uma alimentação adequada e com todos os nutrientes necessários. Dentro do
ambiente hospitalar, a nutrição clínica atua no gerenciamento e balanço energético de
todos os pacientes. É ela que garante que todos recebam as quantidades necessárias
de proteínas, vitaminas, minerais, lipídios e glicose. Essa ingestão acontece por meio
da alimentação hospitalar — esta, quando é de alta qualidade, atende às
necessidades nutricionais da maioria dos pacientes do hospital.
Tendo em vista que nem todos os pacientes ingerem toda as refeições que lhes
são servidas, uma maior deterioração do estado nutricional deles pode ocorrer por
conta de uma ingestão dietética insuficiente. Por esse motivo, o papel do nutricionista
atuando dentro da nutrição clínica é fundamental para a rotina hospitalar e a
manutenção da saúde de seus pacientes.
O profissional nutricionista que atua em nutrição clínica pode realizar seu
trabalho em consultórios particulares ou públicos, clínicas, creches, asilos ou SPAs, e
também em enfermarias, lactários ou bancos de leite humano.
A atuação em nutrição permite que o profissional se especialize em um ou mais
segmentos da profissão (figura1): nutrição no pré ou pós-operatório, nutrição em
lactário, nutrição em SPAs, nutrição em banco de leite humano, nutrição em geriatria,
nutrição enteral e parental e nutrição materno-infantil.

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Figura 1 - Segmentos da Área de Atuação do Profissional Nutricionista

Fonte: docplayer, 2020

Uma das doenças comuns tratadas pelo nutricionista clinico é a desnutrição.


Uma doença causada por uma dieta inapropriada, carente de nutrientes essenciais
para a boa manutenção do corpo humano, a desnutrição ainda assola diversos países
mundo afora. Somente na Nigéria, país do continente africano, a Organização das
Nações Unidas estima que até 75 mil crianças morrerão de fome no próximo ano. Isso
falando apenas de crianças.
No mundo inteiro, a desnutrição afeta pessoas de todas as idades. Crianças e
idosos, por terem o organismo mais frágil, são os que mais sofrem. A desnutrição
afeta não somente os países mais pobres e carentes de recursos, mas alas
hospitalares de grandes hospitais, principalmente as relacionadas à oncologia,
geriatria, cirurgia, medicina interna e gastroenterologia.
O combate à desnutrição e suas consequências na vida das pessoas, como a
dificuldade em cicatrização de feridas e a falência múltipla de órgãos, se dá por meio
da atuação do profissional nutricionista. O nutricionista clínico identifica o estado
nutricional do paciente e inicia o tratamento adequado.

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Quando o nutricionista clínico entra em ação, ele precisa cumprir determinadas
etapas para conseguir identificar o problema e buscar o tratamento necessário para
cada paciente.
Veja quais são as etapas de um atendimento nutricional clínico:
 Primeiro, avalia-se a condição nutricional do paciente;
 Todas as necessidades e exigências nutricionais do paciente são levantadas
por meio de uma avaliação completa feita pelo profissional;
 Desenvolve-se uma estratégia nutricional;
 A energia e os nutrientes necessários para o equilíbrio nutricional do paciente
são calculados;
 Decide-se como essa energia e nutrientes serão administrados — suplementos
ou alimentação, por exemplo;
 A terapia nutricional é aplicada. Cabe ao nutricionista clínico monitorar
rigorosamente o paciente;
 Durante o tratamento, o paciente pode ser submetido a adaptações para criar
ou manter nova condição clínica.
Diante dos problemas de saúde que a população sofre por conta da má
alimentação, a nutrição clínica surge como uma via que contribui para a melhora dos
resultados tanto em pacientes clínicos quanto hospitalares. A alimentação balanceada
e com todos os nutrientes necessários proporciona uma série de benefícios. Vejamos
como a nutrição clínica impacta na saúde das pessoas:
 As feridas são cicatrizadas em menor tempo;
 Complicações relacionadas a cirurgias, por exemplo, podem ser reduzidas;
 As taxas de infecções passam a ser menores;
 O tempo de ventilação mecânica é reduzido;
 Reduz o tempo de internação hospitalar;
 Eleva a taxa de sobrevivência.
Muito se fala em crise, corte ou redução de verbas para áreas importantes,
como a saúde. Falta dinheiro e pouco se pensa em soluções práticas e eficazes para
hospitais, clínicas e demais centros de tratamento para a população.
O fato é que a nutrição clínica melhora a qualidade de vida e a saúde dos
pacientes, reduzindo assim o uso de recursos hospitalares. Isso proporciona
benefícios econômicos para todas as instituições, inclusive o governo. As internações
hospitalares são mais curtas e os custos, dessa forma, são reduzidos.

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Note que a nutrição clínica é uma área que atua, principalmente, com a
prevenção. É graças a essa prevenção que a população e as instituições têm a
ganhar. Enquanto a população pode desfrutar de uma vida com mais saúde e
disposição, as instituições conseguem economizar recursos para aplicar em outras
áreas que possam precisar deles.
A intervenção precoce proporcionada pelo nutricionista clínico é fundamental
para que os pacientes não cheguem a um estágio grave de suas doenças, reduzindo
não somente o sofrimento deles, mas de toda a família. Quando introduzida desde os
estágios iniciais da desnutrição, a nutrição clínica consegue ter um papel importante
nos resultados que os pacientes apresentam e na qualidade do tratamento como um
todo.
Percebe-se o que é nutrição clínica e por que essa é uma prática fundamental
para a manutenção da saúde e do bem-estar de toda a população, além de
proporcionar economia aos agentes que atuam diretamente no ramo da saúde.
A complexidade inerente ao sistema de saúde e os progressos da medicina e
nutrição têm suscitado discussões acerca da relação profissional de saúde-paciente
na prática clínica.
Por um lado, não se deve desprezar a relevância de tais progressos para o
campo da saúde; por outro, constata-se que a dimensão humana, vivencial e
psicossociocultural da doença bem como os padrões e as variabilidades na
comunicação verbal e não verbal precisam ser considerados no processo relacional
entre o profissional da saúde e os usuários.
Assim, o estabelecimento de relações de confiança, respeito e reciprocidade
entre nutricionista e paciente deve permear as práticas de atenção à nutrição e à
saúde no intuito de ampliar a sua humanização e o vínculo terapêutico.
No contexto da política de humanização das práticas em saúde, a aplicação de
tecnologias do cuidado humanizado ainda esbarra em uma cultura técnica que carece
de revisão sobre os marcos do poder, da verticalização das relações e da promoção
de um ambiente mais favorável à criatividade e ao acolhimento.
É nesse contexto que a concepção de clínica ampliada, propõe-se à tarefa de
(re)pensar mecanismos que reconfigurem a relação singular profissional de saúde-
usuário e de sugerir uma análise crítico-reflexiva sobre os modelos biomédico e
hospitalocêntrico, que têm sustentado epistemologicamente a clínica contemporânea.

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Nesse sentido, discute-se a possibilidade de ampliar a clínica nutricional para
uma inovação da prática profissional em nutrição clínica não mais pensada somente
com base em um a priori individual, mas na perspectiva da dialética entre sujeitos,
perspectiva singular e coletividade: chamamento provocado pelos usuários dos
serviços de saúde e de nutrição a um alargamento do olhar técnico-nutricional, da
escuta e dos modos de trabalhar com as demandas e expectativas.
Como a concepção de nutrição clínica ampliada pode contribuir para uma
reflexão sobre a ampliação da humanização da relação nutricionista-paciente no
âmbito dos serviços de saúde. Pretende-se abarcar alguns elementos dessa
concepção a fim de sugerir caminhos para reformulação do modelo de clínica
nutricional vigente, podendo estender-se à reflexão de outros profissionais de saúde
sobre suas práticas e competência relacional com o paciente.
Em vista, tem-se duas partes para explanação das ideias, a saber: ponto de
partida e ponto de continuação.
No ponto de partida, reúnem-se alguns apontamentos que abrangem a
conjuntura sócio-histórica conformadora do modelo biomédico por meio da trajetória
de construção da medicina social e da clínica, para demonstrar que o movimento
contemporâneo tem suas raízes em séculos passados, e chega-se ao Relatório
Flexner, com suas consequências para a prática clínica.
No ponto de continuação, resgatam-se alguns aspectos históricos do
surgimento do nutricionista e da nutrição clínica no Brasil e se discute em que sentido
a concepção da nutrição clínica ampliada pode contribuir para dilatar a visão
humanística na prática clínica nutricional.
Nos últimos dois séculos, a medicina se afastou do paciente (sujeito) e de seu
sofrimento como objetos de ação e legitimou seu foco na doença, na lesão e na
incorporação e valorização de uma tecnologia instrumental, diagnóstica e terapêutica,
que representou o que denominou de “medicina centrada no procedimento”.
O paradigma cartesiano do organismo humano levou a uma abordagem
tecnobiocientífica da saúde, na qual a doença é reduzida à avaria mecânica, e a
terapia médica, à manipulação técnica.
A tecnociência médica desenvolveu métodos altamente sofisticados para
remover ou consertar diversas “peças” (partes) do corpo, com importantes êxitos. No
campo do saber médico, a influência desse paradigma sobre a racionalidade médica
resultou no chamado modelo biomédico, base consensual da moderna medicina

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científica. Esse modelo concebe o corpo humano como uma máquina complexa, que
obedece a leis naturais e psicologicamente “perfeitas” e que necessite
constantemente de inspeção por parte de um especialista.
Dentro desse modelo, os fenômenos biológicos são explicados pela química e
pela física. Parece não haver espaço para os aspectos sociais, culturais, psicológicos
e para as dimensões comportamentais do processo de adoecimento. Assim, as
doenças são resultados ou de processo degenerativo dentro do corpo, ou de agentes
químicos, físicos ou biológicos que o invadem, ou, ainda, da falha de algum
mecanismo regulatório do organismo. De acordo com essa visão, as doenças podem
ser identificadas somente pela ciência, e os tratamentos médicos consistem em
esforços para reestruturar o funcionamento normal do corpo, para intervir nos
processos degenerativos ou para eliminar invasores.
Sobre o normal e o patológico torna mais complexa a abordagem da prática
médica, que, impregnada de reducionismo organicista, colaborou para a
fragmentação do indivíduo. A consequência mais visível dessa fragmentação foi o
distanciamento médico-paciente. Sinaliza ainda que a racionalidade anatomoclínica,
imanente ao modelo biomédico, revelou-se insuficiente, pois excluiu da prática clínica
aspectos psicossocioculturais relacionados ao processo de adoecimento.
A Associação Americana de Diabetes (ADA) define a atenção dietoterápica
como um processo que vai ao encontro às diferentes necessidades nutricionais de um
indivíduo, o que inclui a avaliação do seu estado nutricional, a identificação das suas
necessidades ou problemas nutricionais, o planejamento de objetivos de cuidado
nutricional que preencham essas necessidades, a implementação de ações dietéticas
e a avaliação da atenção dietoterápica. Os aspectos sensoriais, psicológicos e
socioculturais também devem estar envolvidos na atenção dietoterápica. Para a
efetivação da conduta dietoterápica no âmbito hospitalar, são necessárias ações
articuladas entre os setores de produção de refeições e de atendimento clínico-
nutricional.
Na atualidade, observa-se que a Nutrição Clínica tem se fragmentado em
subáreas deatuação conforme o modelo biomédico organicista. Assim, encontram-se
nutricionistas clínicos atuando por grupos biologicamente vulneráveis ou outras
especializações médicas, por exemplo, nutricionista clínico atuando em Obstetrícia,
Pediatria, Geriatria, Gastroenterologia, Hepatologia, Cardiologia, Endocrinologia

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(principalmente, obesidade e diabetes), Nefrologia, Cirurgia, Oncologia e em Saúde
Mental (Transtornos alimentares).
Expressa-se a necessidade de um processo de humanização da nutrição, em
particular da relação entre nutricionistas e pacientes, reconhecendo a necessidade de
uma maior sensibilidade e densidade comunicacional diante do sofrimento do paciente
portador de enfermidade. Essa proposta inspira uma nova identidade profissional,
responsável pela efetiva promoção da saúde ao considerar o paciente em sua
integridade física, psíquica e sociocultural, e não somente de um ponto de vista
biológico.
Assim, entende-se o processo de humanização da nutrição como a capacidade
de oferecer cuidado nutricional de forma integral e qualificado, valorizando o diálogo
e a escuta em suficiência na relação profissional-usuário e articulando o conhecimento
tecnocientífico das áreas de alimentação, nutrição e saúde com princípios ético-
humanísticos, com aspectos psicossocioculturais do ser humano, acolhimento,
melhoria do ambiente de cuidado nutricional e das condições de trabalho dos
nutricionistas.
O cuidado humanizado não deve ser tratado como uma intervenção sobre o
paciente: a relação não é sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito. Experimentamos os seres
como sujeitos, como valores, como símbolos. A relação do cuidado não é de domínio
sobre, mas de convivência, não é pura intervenção, mas interação.
O processo de mudanças de hábitos alimentares e os sentidos atribuídos ao
comer diante dos problemas nutricionais. Tomando como exemplo o problema da
obesidade, doença de prevalência crescente no Brasil, tem-se a complexidade
atrelada ao processo de mudança de hábitos alimentares. Desse modo, a obesidade
não é uma questão somente do indivíduo (do corpo biológico), mas trata-se de uma
enfermidade que também comporta determinantespsicossocioculturais. O corpo
obeso, originário, fundamentalmente, daformação de hábitos alimentares e estilos de
vida modernos, vincula-se aos interesses da indústria e do mercado de alimentos. O
contexto do indivíduo é obesogênico e, portanto, deve ser transformado.
E sobre a alimentação fornecida em um hospital com proposta de atendimento
humanizado, observaram que o comer bem no hospital depende do que os pacientes
podem ou não se alimentar devido a sua doença, revelando ser ausente a
identificação da alimentação hospitalar com sua história alimentar, preferências ou
hábitos adquiridos ao longo de sua vida.

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A prescrição dietética, traduzida sob a forma de orientação nutricional, é
concebida pelo paciente como uma receita medicamentosa. Os nutrientes
organizados como um receituário nutricional fazem oposição à tradição, aos hábitos e
aos valores culturais do comer. A elaboração do receituário dietético na clínica sem a
incorporação dos aspectos socioculturais da alimentação pode resultar no sofrimento
do paciente, em desgostos e rupturas do cotidiano com seus valores e crenças
culinárias.
Assim, uma proposta humanizadora da relação nutricionista-paciente é a
compreensão por parte do terapeuta nutricional quanto ao significado da alimentação
para o paciente, a interpretação que ele faz sobre sua dieta, seu corpo em seu mundo.
Sabe-se que, na concepção biomédica, os nutrientes possuem diversas funções
orgânicas e atuam sinergicamente no corpo não apenas em uma célula ou órgão
específico, como ocorre, por exemplo, com um fármaco que a priori possui sítio-alvo
de atuação no organismo.
Dessa maneira, os alimentos não devem ser tratados apenas do seu ponto de
vista nutricional, nutracêutico, nutrigenômico e funcional nas especificidades
patológicas, mas também na sua pluralidade de sentidos e significados que assumem.
Pelo exposto, o entendimento da complexidade imanente a esses problemas remete
à necessidade do nutricionista considerar também outros elementos semiológicos do
paciente (emoções, sentidos, significados, valores, memória alimentar etc.) na
elaboração do plano dietético.
A desconsideração desses fatores por parte do profissional pode interferir
negativamente na adesão ao tratamento nutricional. Nessa perspectiva, é necessário
entender ainda que o ser humano não come apenas quantidades de nutrientes e
calorias para manter o funcionamento do corpo em nível adequado. O comer não
satisfaz apenas as necessidades nutricionais e biológicas, mas preenche também
dimensões sócio-históricas, culturais e ecológicas.
Se o homem “come tudo”, ele “não come de tudo”. Nem todo alimento
biologicamente ingerível é culturamente comestível. O ato de se alimentar envolve
seleção, escolhas, ocasiões e rituais, imbrica-se com a sociabilidade, com ideias e
significados, com as interpretações de experiências e/ou interações cotidianas, não
permitindo à sua abordagem visões unidimensionais.
O comer, desenrola-se em consonância com regras impostas pela sociedade,
influenciando a escolha alimentar. Essas regras “são representadas pelas maneiras

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de preparo dos alimentos, pela montagem dos pratos e pelos rituais das refeições
(como, por exemplo, os modos e as posições das pessoas à mesa, a divisão da
comida entre os indivíduos, os horários estipulados, entre outros), contribuindo para
que o homem se identifique com o alimento e por sua representação simbólica”. Nesse
sentido, o nutricionista deve assumir a alimentação como resultado da pluralidade e
singularidade das interações entre o sociocultural e o biológico.
Tendo em vista a complexidade da abordagem em nutrição clínica e saúde,
argumentam-se que os serviços de saúde estão sendo direcionados no sentido de
considerar não apenas a patologia, mas também as preferências, hábitos e aversões
do indivíduo no atendimento nutricional.
Entretanto, reconhecem que ainda há muito que avançar nesse sentido,
sobretudo no que diz respeito à formação e prática clínica do nutricionista, pautadas
na humanização e interdisciplinaridade. A despeito disso, as diferentes abordagens e
significados que circundam a alimentação podem permitir ao nutricionista clínico
aproximação maior e conhecimento cada vez mais profundo do indivíduo
hospitalizado ou acompanhado ambulatorialmente, na sua totalidade, valorizando sua
essência e respeitando sua individualidade na programação da terapia nutricional.
É valido ressaltar que o papel terapêutico dos alimentos tem evoluído devido
ao avanço considerável dos conhecimentos relacionados à dietética e à nutrição. Dos
novos pontos de vista acerca da terapia nutricional, ficando cada vez mais evidente
que a nutrição pode, de fato, apresentar função importante no processo saúde-
doença.

 SAIBA MAIS:
Acesse o link: https://www.youtube.com/watch?v=-73UBZtgbgU para saber
mais sobre a Nutrição Diferente e Humanizada.

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3. CONCEITO DE BIOÉTICA

A bioética surge para solucionar e resolver muitas vezes os conflitos existentes


das interações humanas no âmbito das ciências da saúde ou ciências da vida, em
tudo aquilo que envolve questões morais e dos sistemas de valores que chamamos
de ética.
O termo bioética é constantemente usado nas práticas que envolvem assuntos
relacionados com a medicina. Com o crescimento de pesquisas envolvendo assuntos
como mapeamento de DNA (deoxyribonucleicacid, em português ácido
desoxirribonucleico) e códigos genéticos, novas áreas precisaram ser inseridas neste
contexto.
Portanto a bioética acaba por envolver uma série de outras áreas, como a
biologia, a psicologia, sociologia, filosofia, teologia, direito, antropologia e ecologia,
todas analisando a bioética conforme seus valores e conhecimentos.
A bioética tem a função de assegurar o bem estar das pessoas, garantindo e
evitando possíveis danos que possam ocorrer aos seus interesses. O dever da
bioética é proporcionar ao profissional e aos que são atendidos por ele, o direito ao
respeito e a vontade, respeitado suas crenças e os valores de cada indivíduo.
O início da Bioética se deu no começo da década de 1970, com a publicação
de duas obras muito importantes de um pesquisador e professor norte-americano da
área de oncologia, Van Rensselaer Potter (figura 2).

Figura 2 - Pesquisador e professor norte-americano da área de oncologia, Van Rensselaer


Potter.

Fonte: JUNQUEIRA, 2012

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Um dos conceitos que definem Bioética (“ética da vida”) é que esta é a ciência
que tem como objetivo indicar os limites e as finalidades da intervenção do homem
sobre a vida, identificar os valores de referência racionalmente proponíveis, denunciar
os riscos das possíveis aplicações.

 SAIBA MAIS:
Acesse o link: https://www.youtube.com/watch?v=XssmDpackx4 para saber
mais sobre a Bioética na Área da Saúde.

a. Ciências da Nutrição e da Bioética, na Perspectiva da Segurança


Alimentar e Nutricional e do Direito Humano à Alimentação Adequada

Há a necessidade de discutir estratégias de políticas públicas para o


atendimento das necessidades alimentares especiais no ambiente escolar, à luz da
interdisciplinaridade da Alimentação e Nutrição e da Bioética, na perspectiva da
segurança alimentar e nutricional e do direito humano à alimentação adequada
(DHAA).
A alimentação, por atender a uma das necessidades básicas do homem, a
sobrevivência, sempre foi objeto de preocupação individual e coletiva. Deste modo,
no Brasil, a realização do direito à alimentação – a partir da promulgação na Emenda
Constitucional 64, que inclui a alimentação entre os direitos sociais, fixados no artigo
6° da Constituição Federal no dia 05 de fevereiro de 2010, foi referenciada na
perspectiva de estratégias que visam à Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Ou
seja, ratifica as dimensões da concepção brasileira de SAN, que dizem respeito à
“garantia do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de
qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras
necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da
saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, econômica e
socialmente sustentáveis”.
A SAN é uma temática de política pública que está em processo de
consolidação no Brasil, trazendo bases para a inclusão da questão do direito humano
à alimentação adequada (DHAA) na agenda política e na gestão pública mediante a
realização sistemática de conferências nacionais e a estruturação dos marcos legais

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da política nacional que sustentam a configuração do Sistema e do Plano Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN).
As ações de SAN têm como um dos princípios a articulação entre o governo e
a sociedade para a formulação de políticas e na definição de orientações para que o
país garanta o direito humano à alimentação – a fim de fazer cumprir o dever do poder
público em respeitar, proteger, promover, prover, informar, monitorar, fiscalizar e
avaliar a realização do direito humano à alimentação adequada, bem como garantir
os mecanismos para sua exigibilidade.
Através dos princípios de abrangência, intersetorialidade, equidade,
participação social e articulação entre medidas de caráter emergencial e estrutural, se
conforma a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
As diretrizes dessa política estão organizadas no sentido de atender a oito
dimensões, dentre as quais se destacam as seguintes:
 Promoção do acesso universal à alimentação adequada e saudável, com
prioridade para as famílias e pessoas em situação de insegurança alimentar e
nutricional;
 Promoção do abastecimento e estruturação de sistemas sustentáveis e
descentralizados, de base agroecológica, de produção, extração, processamento e
distribuição de alimentos;
 Instituição de processos permanentes de educação alimentar e nutricional,
pesquisa e formação nas áreas de segurança alimentar e nutricional e do direito
humano à alimentação adequada;
 Fortalecimento das ações de alimentação e nutrição em todos os níveis da
atenção à saúde, de modo articulado às demais ações de segurança alimentar e
nutricional; e monitoramento da realização do direito humano à alimentação
adequada.
Neste sentido, há necessidade de ampliar o olhar da bioética para questões
concretas existentes em nosso país, incluindo as relacionadas à qualidade da vida
humana, como a alimentação adequada. Uma bioética que se oriente pelo respeito e
incentivo à liberdade individual de tomada de decisão, adicionada dos princípios
dasolidariedade, da justiça, da equidade e da responsabilidade, reforçando a
necessidade de proteção dos mais desfavorecidos, vulneráveis, vulnerados ou
frágeis.

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É imperativo que a bioética e seus referenciais sejam incorporados nos
processos de definição das políticas públicas, contribuindo na construção das
sociedades que garantam os direitos humanos, pois se fundamenta numa visão
macro, ampliada e seguramente comprometida com a dimensão social.
A interdisciplinaridade, condição fundamental para a Bioética, a torna um
campo peculiarmente interessante de se debater as questões relacionadas aos
direitos humanos, pois se não houver o enfrentamento da realidade na qual os
mesmos serão aplicados, a simples adoção de princípios universais é inadequada.

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4. O PROCESSO NUTRICIONAL E A BIOÉTICA

O processo nutricional é aquele pelo qual as pessoas selecionam, ingerem e


metabolizam alimentos; absorvendo nutrientes, excretando metabólitos, produzindo
energia útil e calor, transformando-os em seu próprio corpo. Desse modo, o processo
nutricional possibilita a manutenção da vida e a realização de potencialidades.
Aponta-se algumas correlações entre as dimensões afetiva, ética e lógica
desse processo, que se expressam de modo complementar e indissociável. Para tal,
compõe-se um diagrama que apresenta a complexidade envolvida nas diversas
dimensões e etapas do processo nutricional (figura 3).
Deve-se considerar no diagrama, tanto a possibilidade de fenômenos auto-
organizados nos processos nutricionais (processos sobre os quais não se exerce um
controle ou aqueles que ocorrem sem autocontrole) quanto fenômenos nutricionais
hetero-organizados (isto é, aqueles sobre os quais se exerce certo grau de controle),
como é possível apontar, por exemplo, em nossa sociedade, o direcionamento do
consumo alimentar por meio de propagandas veiculadas na mídia.
Em contrapartida, se indica que ações educativas que se exercem de modo a
correlacionar os aspectos psicobiossociais implicados na nutrição podem facilitar
processos auto-organizados de mudanças de hábitos nutricionais prejudiciais à saúde
das pessoas.
Figura 3 - Diagrama da complexidade envolvida nas diversas dimensões e etapas do processo
nutricional

Fonte: CARVALHO, 2013

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Cotidianamente fazemos escolhas alimentares e podemos perceber que não
temos controle total sobre nossa conduta alimentar, sendo assim, coloca-se uma
questão: pode o processo nutricional se auto-organizar no sentido de beneficiar nossa
saúde?
A partir da Teoria Semiótica, investiga-se acerca desta questão, adotando a
seguinte hipótese: a auto-organização não se restringe à dinâmica de um dos
momentos do processo nutricional (por exemplo, o autocontrole corporal), mas
abrange tanto a pessoa como a sociedade em que se insere. A elaboração de um
modelo semiótico do processo nutricional (indicado a seguir) nos permite investigar o
processo nutricional em suas várias etapas e dimensões.
Como um todo, o processo nutricional se refere aos hábitos alimentares. O
hábito como uma tendência mental, apresenta uma tendência de economia
energética. Por meio dos hábitos as pessoas selecionam, ingerem e metabolizam
alimentos transformando-os em seu próprio corpo.
Hábitos terão poder para influenciar o comportamento real do mundo exterior,
especialmente se cada reiteração for acompanhada por um esforço peculiarmente
forte que é geralmente comparado a emitir um autocomando para seu futuro. E, aqui
está o ponto - todo o homem exerce um controle mais ou menos sobre si mesmo por
meio da modificação de seus próprios hábitos.
Nessa perspectiva de investigação, considera-se o instinto nutricional como o
processo semiótico do qual se retiram inferências sem necessariamente acionar a
consciência. Embora sejamos originalmente dotados de um instinto nutricional,
devemos ressaltar que, a consciência exerce uma função real no autocontrole, pois
sem ela, o exercício do mundo interior não poderia afetar as determinações reais e
hábitos do mundo exterior.
Podemos então, refletir por meio do diagrama, acerca de nossos limites e
possibilidades no que diz respeito ao processo nutricional e ao modo como podemos
ou não “afinar” nosso instinto de nutrição. A ética se estabelece num campo dual de
atração exercida pelo objeto admirável querido como SummumBonum (objetivo final).
É neste sentido que devemos ter em vista todas as dimensões que se
entrelaçam e compõem a auto-organização do processo nutricional, considerando que
a questão nutricional ética traz consigo a questão estética que move essa conduta.
Nesta perspectiva surgem solicitações como as seguintes: O que vale a pena
querer? Que concepção de saúde nós adotamos? Que conduta alimentar devemos

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ter? Em muitos casos, os instintos sociais são caros ao indivíduo, até mesmo
perigosos, e às vezes fatais, devemos considerar todos os aspectos psicobiossociais
implicados na nutrição, como por exemplo, as formas de cultivo, armazenamento,
transporte, distribuição e comercialização dos alimentos, e demais etapas que
influenciam diretamente as escolhas alimentares no âmbito pessoal.
Neste sentido, uma conduta nutricional ética pode ser pensada em duas
perspectivas correlacionadas: uma perspectiva do corpo e uma perspectiva do meio
ambiente. Considerando que uma conduta corporal ética, diz respeito às
consequências pós-ingestão dos alimentos, ela deve atender às necessidades
psicofísicas, socioeconômicas e culturais e deve incluir a ingestão (equilibrada) de
alimentos que possuem conteúdo nutricional.
Deste modo, uma perspectiva corporal antiética envolve uma ingestão em
excesso de calorias vazias e/ou de substâncias tóxicas ao organismo. Ressalta-se
que uma conduta de excessos e desperdícios alimentares promove e acentua
desigualdades sociais, aumentando as privações alimentares daqueles que são
financeiramente mais desfavorecidos.
O estímulo ao consumo exacerbado de produtos alimentícios processados
industrialmente apresenta um padrão de consumo que leva ao esgotamento dos
recursos naturais e, ao contrário, a redução de desperdício alimentar e o boicote a
produtos poluidores e sem conteúdo nutricional poderá promover um padrão de
consumo alimentar mais ético, necessário à manutenção da vida.
Uma conduta nutricional ética na perspectiva do meio ambiente envolve a
cadeia alimentar em todas as etapas: produção, transporte, armazenamento,
distribuição, comercialização e consumo dos alimentos e, neste sentido, uma conduta
nutricional ética é aquela capaz de valorizar e preservar o potencial do meio ambiente
e do trabalhador (figura 4).

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Figura 4 - Segmentos da Área de Atuação do Profissional Nutricionista

Fonte: doc player, 2020

Ao contrário, uma conduta nutricional antiética é aquela que desvaloriza tanto


o trabalhador e\ou o meio ambiente, ou seja, é uma conduta incapaz de promover a
sustentabilidade. Deve-se dar ênfase na agricultura familiar, ao transporte regional
dos produtos alimentícios (com redução de emissão de Co2), à valorização do
trabalhador, a reeducação alimentar e às diretrizes de Segurança Alimentar.
Do ponto de vista do controle que se pode, ou não, exercer sobre si próprio, De
acordo com a teoria da Auto-organização, não há muita compatibilidade – e muito
menos fusão- entre a “Filosofia do sujeito” e as Teorias da Auto-organização. Ocorre
auto-organização principalmente a nível físico, químico, biológico “aquém do sujeito”,
isto é, na dinâmica auto organizada o sujeito age inconsciente no “piloto automático”.
Neste sentido, há uma face-sujeito que não é onipotente em relação ao resto
do organismo - se fosse onipotente o resto do organismo seria objeto, pois haveria
cisão entre um Ego organizador e um Ego organizado (alheio ao primeiro) - (a
maximaização da Auto-organização viraria hetero-organização). Deste modo, Auto-
organização só existe enquanto imperfeita e Não há o sujeito da auto-organização.
mas, há “sujeitos”.

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Devemos também notar, de acordo com os conceitos centrais da Teoria da
auto-organização que: Há auto-organização cada vez que o advento ou a
reestruturação de uma forma, ao longo de um processo, se deve principalmente ao
próprio processo - as características nele intrínsecas -, e só em grau menor as suas
condições de partida, ao intercâmbio com o ambiente ou a presença eventual de uma
instância supervisora.
Em resumo: das duas uma, ou o sujeito está ausente da auto-organização,
havendo quando muito- a nível físico, químico ou biológico- uma subjetividade
“difusa”(intersubjetividades?); ou então, o sujeito está presente, mas, apenas como
elemento (principal) da auto-organização “secundária”, como primus inter pares; ou
como um dos múltiplos “sujeitinhos” da auto-organização coletiva humana primária.
Não encontramos na TAO o sujeito auto-transparente, formulador da lei moral
(ou da negação da lei moral), doador de sentido ao mundo. Nunca encontramos,
obrando na auto-organização, o sujeito da “meta física ocidental”, dono de si mesmo
como do universo.
Podemos dizer que na dinâmica auto-organizada há um sujeito que age de
modo inconsciente, digamos, no “piloto automático”. Para ilustrar essa ideia do sujeito
da auto-organização, vejamos algumas indicações de pesquisas científicas atuais: as
pesquisas neurocientíficas indicam que processos cerebrais hedônicos provem um
guia intrínseco de seleção de alimentos (o instinto de nutrição do qual somos dotados).
Pelo fato de gorduras serem essenciais ao funcionamento celular, “temos essa
ação evolucionária de reconhecer a gordura e, quando temos acesso a ela, consumi-
la o máximo que podemos”. Algumas compulsões alimentares podem ter origem em
sistemas biológicos sobre os quais o indivíduo não tem controle”.
De acordo com dados de pesquisas temos uma vulnerabilidade às “tentações
alimentares”, isto é, o esforço para tentar controlar emoções e inibir impulsos para
ingerir alimentos altamente considerados “proibidos” numa dieta de controle da
obesidade, por exemplo, não pode ser mantido por muito tempo, ou seja, o auto
controle sofre esgotamento.
No processo nutricional o domínio do nosso livre arbítrio parece ser limitado
quando consideramos, que não nos cabe escolher nossos juízos perceptivos
instintivos. A partir daí deve ficar claro que nossa liberdade será sempre relativa e
condicionada.

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É interessante ressaltar que o conceito de “vulnerabilidade” é um referencial
importante da bioética. A vulnerabilidade é uma condição (situação, estado)
sindrômica”. Metaforicamente, vulnerabilidade é uma síndrome, isto é, estado (em
medicina, estado mórbido) caracterizado por um conjunto de sintomas de sinais e que
pode ser produzido por diferentes causas. Vulnerabilidade é uma síndrome que pode
atingir não apenas um ponto ou uma área, mas pode atingir o sistema. É uma
síndrome que pode ser localizada a uma ou mais área, mas que pode também ser
sistêmica e pode ter várias causas.
Encarando a vulnerabilidade sob forma de síndrome e inserindo o ser humano
(o paciente ou o sujeito da pesquisa) em um sistema, (sistema de saúde ou sistema
de pesquisa) torna-se evidente que, sob o prisma da bioética, o referencial da
vulnerabilidade deve ser analisado e avaliado de modo mais abrangente e de modo
mais complexo do que habitualmente é feito.
Retornando então a nossa questão inicial, consideramos que as possibilidades
de autoorganização do processo nutricional, devem ser pensadas numa perspectiva
de ação de 'sujeitinhos‘, isto é, seres que fazem suas tentativas de ‘controlar o
controle’ de suas escolhas alimentares por meio de uma mente ‘imatura’, mais sujeita
a erros que a parte instintiva de sua mente.
Somos seres falíveis em processo evolucionário de constante aprendizagem.
Neste aspecto, devemos ressaltar a importância da dimensão sócio-histórica-cultural
do processo nutricional, pois a nutrição humana é expressão de aquisições
ontogenéticas e filogenéticas de hábitos alimentares.
Consideramos também importante apontar que a semiose (ação dos signos) é
compreendida como diálogo, e, toda semiose tem um caráter comunicativo.
Pretendemos então, explicitar a inserção da semiose no contexto da produção social
de signos. Quando ocorre uma quebra de hábito, por exemplo, por meio de uma
sensação de fome, se desencadeia uma consciência corporal imediata que busca de
um modo lógico não-racional, agir razoavelmente por meio do instinto nutricional
adquirido ao longo de processos evolutivos da nossa espécie.
Desse modo, uma conduta nutricional ocorre inicialmente por meio de
julgamentos perceptivos instintivos e neste processo o domínio do nosso livre arbítrio
parece ser limitado quando consideramos que os juízos perceptivos, primeiro elo
semiótico ao real, escapam ao livre arbítrio, ele é falível, mas indubitável, não nos
cabendo escolher o nosso instinto nutricional.

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A partir daí deve ficar claro que nossa liberdade será sempre relativa e
condicionada quando venham a envolver representações. Porém, devemos notar que
a ética se estabelece num campo dual de atração exercida pelo objeto admirável
querido como SummumBonum e, neste sentido cabe-nos refletir acerca de nossos
limites e possibilidades no que diz respeito aos instintos nutricionais e ao modo como
podemos ou não “afinar” esses instintos.
Podemos citar um exemplo na tentativa de fazer uma reflexão a esse respeito.
Grosso modo, podemos dizer que há pessoas que se alimentam, mas que não se
nutrem, porque ingerem alimentos que contém calorias vazias. Sendo assim, o
alimento não pode causar saciedade quando não contem os nutrientes necessários
aos processos vitais de síntese metabólica.
É notável como há no mercado de consumo dos alimentos promoções
exageradas de produtos alimentícios industrializados que são formulados no intuito
de agradar o paladar causando sensação de prazer imediato durante a degustação
(por exemplo, alimentos processados ricos em gorduras saturadas).
Em muitos casos, o produto alimentício não nutre de fato, e o que é ainda pior,
produz um vício de consumo ao causar maior apetite. Podemos apontar, por exemplo,
em nossa sociedade, o direcionamento do consumo alimentar por meio de
propagandas veiculadas na mídia, que exerce certo grau de controle externo sobre as
escolhas alimentares das pessoas e, desse modo, torna o processo nutricional um
fenômeno heteroorganizado.
Em contrapartida, consideramos que ações educativas podem se exercer de
modo a redimensionar os aspectos psicobiossociais implicados na nutrição e deste
modo, facilitar processos auto-organizados de mudanças de hábitos nutricionais
prejudiciais à saúde das pessoas.
Resta-nos assim, a possibilidade de afinar nossos instintos nutricionais por
meio de critérios de escolhas (alimentares) que valorizam não só o prazer imediato,
mas igualmente, escolhas que valorizam as consequências pós-ingestão dos
alimentos bem como aquelas que valorizam uma dimensão nutricional ética na
perspectiva do meio ambiente.
A partir do conceito de aprendizagem, segundo o qual, aprender é mudar de
hábito, é fundamental que todo profissional da área da saúde seja um educador, isto
é, deve promover mudanças de hábitos, principalmente tendo em vista que na área
da saúde uma ação educativa é uma ação preventiva de doenças.

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O esforço para afinar nosso instinto nutricional envolve correlações entre a
pessoa e o coletivo. Devemos notar que o esforço pessoal é necessário, mas não
suficiente para a mudança do habito nutricional.
O refinamento do nosso instinto nutricional deve ocorrer em âmbito coletivo,
pois as mudanças devem ocorrer em todas as etapas da cadeia alimentar e envolvem
além da pessoa, o meio ambiente (por exemplo, as formas de cultivo,
armazenamento, transporte, distribuição e comercialização dos alimentos), etapas
que se correlacionam a nossas escolhas alimentares de âmbito pessoal.
Tendo em vista todas as dimensões que se entrelaçam e compõem a auto-
organização do processo nutricional, pensamos que a busca do ideal estético que
move a nossa conduta nutricional ética não se limita ao âmbito pessoal e na busca
por melhores condições de vida e saúde, o esforço de “crescimento de um hábito
devido ao exercício” deve ser um exercício coletivo!
Por fim, ressalta-se que a auto-organização do processo nutricional deve
ocorrer a partir da correlação de três dimensões, indicadas no diagrama (um modelo
semiótico do Processo Nutricional): uma dimensão potencial de “feellings” nutricionais
instintivos, uma dimensão energética que envolve uma consciência carnal e uma
dimensão lógica que remete ao futuro e envolve uma consciência social da Nutrição.

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1. REFERÊNCIAS

Jéssica Leal Carvalho² et al. Perfil De Pacientes Atendidos Em Laboratório De


Práticas Em Nutrição Clínica Na Região Central Do Rs.DisciplinarumScientia.
Série: Ciências da Saúde, Santa Maria, v. 16, n. 1, p. 137-145, 2015.

Maria Amélia Carvalho Carvalho. O Processo Nutricional E A Bioética:


Perspectivas Da Teoria Semiótica E Teoria Da Auto-Organização.Doutora em
Saúde Coletiva - Faculdade de Medicina – UNESP – Botucatu. Rev. Simbio-Logias,
V. 6, n.8, Nov/2013.

Portal Educação. O que significa bioética?Disponível em:


https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/medicina/o-que-significa-
bioetica/50873. Acesso em 17 set 2020.

Cilene Rennó Junqueira. Bioética. UNIFESP, 2012. Disponível em:


http://ares.unasus.gov.br/acervo/handle/ARES/231. Acesso em 17 set 2020.

Nutri Soft Brasil. O que é nutrição clínica? Entenda de uma vez por todas!
Disponível em: https://nutrisoft.com.br/o-que-e-nutricao-clinica-entenda-de-uma-vez-
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todas/#:~:text=O%20que%20%C3%A9%20nutri%C3%A7%C3%A3o%20cl%C3%AD
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%20pacientes. Acesso em 17 set 2020.

Franklin DEMÉTRIO et al. A nutrição clínica ampliada e a humanização da relação


nutricionista-paciente: contribuições para reflexão. Rev. Nutr., Campinas,
24(5):743-763, set./out., 2011.

Cilene da Silva Gomes Ribeiro et al. Necessidades alimentares especiais em


ambiente escolar: um ensaio sobre a interface entre ciências da Nutrição e
Bioética. Demetra; 2014; 9(3); 633-643.

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