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Não mexam no meu popó!

283 Novembro 2021

E ntre 31 de outubro e 12 de novembro, decorrerá em Glasgow (Escócia) a


26.ª Conferência das Partes sobre as alterações climáticas. Cerca de trinta
mil pessoas participarão nesta grande reunião organizada pela ONU para deba-
ter objetivos e meios de os atingir. Os temas em cima da mesa serão os mesmos
Onde estão os monopolos? 10
de sempre, e é de temer que os resultados também: umas vagas declarações
sobre a necessidade de descarbonificar a economia e caminhar para um cenário Realidade granulada 16
de neutralidade carbónica. Infelizmente, o que temos visto em edições anterio-
res é que os governos não se comprometem com metas realmente drásticas para
limitar o aquecimento da atmosfera a 1,5 graus Celsius, e mesmo esses modes- Compras pós-pandemia 18
tos objetivos acabam por não ser cumpridos. Os últimos meses mostraram que
os efeitos das alterações climáticas já se sentem. Houve incêndios devastadores
desde o Canadá e a Sibéria à Austrália, passando pela bacia mediterrânica.
Sobre duas rodas 24
Houve cheias nunca vistas nos Estados Unidos, no norte da Europa, na China...
No princípio de outubro, um ciclone abateu-se sobre o golfo pérsico, coisa Recordar Alzheimer 26
nunca antes registada, provocando em poucas horas precipitação equivalente a
três anos “normais”. O resultado foi o previsível: inundações em pleno deserto.
Uns dias depois, uma tempestade gigantesca fez abater em menos de um dia, Como dormimos 32
sobre Itália, chuva equivalente a um ano inteiro “normal”. Entretanto, o nível do
mar vai subindo uns milímetros todos os anos, o que significa que as povoações
costeiras estão cada vez mais vulneráveis. Um estudo publicado em agosto
Realidades alternativas 38
mostra que 73 por cento dos habitantes dos países que compõem o G20 estão
conscientes da gravidade do problema e 58% declaram-se muito ou extrema- Randi, herdeiro de Houdini 40
nente preocupados. Dos quase vinte mil participantes, 83% julgam que é pre-
ciso endurecer as medidas tomadas para evitar o pior. Entretanto, em Portugal,
um dos temas das eleições autárquicas foi (pelo menos em Lisboa) as ciclovias. O triunfo dos dinossauros 42
Estamos (quase) todos de acordo em que é preciso mudar de vida, fazer sacri-
fícios, optar por um estilo de vida mais sustentável. Aceitamos, em princípio,
que isso significará algum sofrimento imediato, mas por uma boa causa a longo
A mãe da arte nova 52
prazo. Somos cidadãos responsáveis e pensamos nas gerações futuras. Desde
que não toquem no meu popó. Como diria a Greta Thunberg, bla, bla, bla. C.M. Crónica da vida real 54
O homem-dragão 56
A ligação denisovana 66
A ascensão de Hitler 74
Desastres culturais 84
A barbarização da juventude 86
Ibéria, terra desejada 88

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Observatório

Viagens
até 2050
O
plano Voyage 2050, recentemente
divulgado, estabelece as principais
linhas de investigação da Agência
Espacial Europeia (ESA) para o período
entre 2035 e 2050.
A primeira será descobrir se alguns dos satélites
de Júpiter e Saturno têm potencial para albergar
vida, ou se neles existe alguma bioassinatura, ou
seja, uma impressão digital química ou física que
indique que ali houve ou há vida. Para isso, sondas
e até drones serão enviados a esses mundos para
explorar as suas atmosferas, a superfície e even-
tuais oceanos subterrâneos.
A segunda aprofundará o estudo das atmosferas
de exoplanetas semelhantes à Terra, para deter-
minar se eles têm as condições certas para o
desenvolvimento da vida. Isso exigirá a criação de
instrumentos capazes de capturar as emissões
térmicas diretas de atmosferas desses mundos,
em busca de indícios de habitabilidade nas suas
superfícies.
A terceira prioridade da ESA será recolher mais
dados sobre o universo inicial para responder às
grandes questões: como nasceram e evoluíram as
primeiras estruturas cósmicas e os buracos negros?
O plano inclui criar novos instrumentos, detetar
ondas gravitacionais e melhorar dispositivos de
espectroscopia de alta precisão, a fim de aprender
mais sobre a radiação de fundo de micro-ondas, o
ténue brilho que preenche o cosmos e começou
a inundá-lo apenas 380 mil anos após o Big Bang,
quando o arrefecimento permitiu que os fotões se
separassem do resto das partículas.
Uma missão da ESA será crucial para as futuras
explorações dos satélites de Júpiter e Saturno
previstas no plano Voyage 2050. Chama-se Juice
(sigla inglesa de Explorador das Luas Geladas de
Júpiter), deverá ser lançada em 2022 e chegar ao
gigante gasoso em 2029. A sonda passará três
anos a orbitar o sistema joviano, investigando o
planeta e três dos seus principais satélites: Gani-
medes, Calisto e Europa. Os cientistas pensam
que há oceanos escondidos sob a superfície des-
ses mundos gelados e que eles poderiam abrigar
vida ou já o fizeram no passado. A sonda foi cons-
truída nas instalações da Airbus em Madrid antes
de viajar para o Centro Europeu de Tecnologia e
Pesquisa Espacial da ESA em Noordwijk (Países
Baixos), onde foi concluída a montagem de todos
os componentes e instrumentos (na foto).
ESA

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SUPER 5
Observatório

Tom (à esquerda) mapeia os campos e envia dados


para o programa Wilma. Dick (à direita) queima ervas
daninhas com uma descarga elétrica. Tudo isto é fruto
da imaginação de Ben Scott-Robinson (em baixo).

Terminators de ervas daninhas


U
m robô vagueia por algumas quintas
britânicas em busca de ervas dani-
nhas. Quando Wilma, a inteligência
artificial a bordo, deteta um desses
intrusos (usa reconhecimento de padrões para
distingui-los), aplica-lhes um choque de 8000 volts
que literalmente os frita. Uma vez eliminada
a ameaça, Dick continua a sua ronda mortal.
Este assassino não trabalha sozinho. Para exter-
minar as ervas daninhas, precisa que o batedor
Tom percorra e filme todo o terreno e envie os
dados para Wilma, que define os alvos. Em equipa,
mata-se melhor... Dick é um protótipo. Os seus pri-
meiros testes foram bem sucedidos e espera-se
que entre em operação já neste outono/inverno.
Tom já está à venda e é muito útil: seus recursos de
digitalização e medição obtêm muitos dados preci-
sos, que podem ser analisados e processados com
ferramentas de inteligência artificial. A consequên-
cia é o aumento da produtividade: quanto mais
informações tiver o agricultor, melhor saberá o que
fazer para melhorar o desempenho dos seus cam-
pos. Os robôs foram desenvolvidos pela empresa
FOTOS: SMALL ROBOT COMPANY

britânica Small Robot Company, com o objetivo de


alcançar uma agricultura sustentável com o auxílio
da tecnologia. É por isso que Dick é um extermina-
dor ecologista que trabalha sem herbicidas, o que
é essencial para manter a biodiversidade.

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SUPER 7
O Lado Escuro do Universo

Há estrelas de neutrinos?
H

NASA, ESA, E. JULLO (JPL), P. NATARAJAN (YALE), J.-P. KNEIB (LAM, CNRS)
á dias, procurava explicar aos meus alu-
nos a importância do arrefecimento
por neutrinos em estrelas maciças,
uma vez começada a fusão de carbono.
A energia das reações termonucleares do centro
estelar é nessa altura essencialmente transportada
por neutrinos, e não tanto por convecção ou por
processos radiativos. Dado que estas partículas (e a
energia que transportam) se escapam facilmente,
o equilíbrio hidrostático (ou gravítico) altera-se e
as camadas estelares mais exteriores “caem”,
encolhendo a estrela, ou seja, aumentam a tem-
peratura interior e a taxa de reações nucleares.
Assim, as sucessivas fases finais da vida destas
estrelas são cada vez mais rápidas, por causa dos
neutrinos.
Um aluno perguntou, então, se seria possível
formarem-se estrelas de neutrinos, uma vez que
estas partículas existem em grandes quantidades
e terão massa, por muito pequena que seja, acima
de zero. No ensino, não há perguntas estúpidas, só
respostas estúpidas. Haverá então estrelas feitas
de neutrinos, como parte da massa escura? Em
princípio, não há, mas vejamos por que razão não
podemos excluir de todo essa hipótese.
Enxame galáctico Abell 1689
Todos os neutrinos que se conhecem são emiti-
dos a velocidades muito próximas da da luz, não
se conhecendo processos que produzam neutrinos
lentos. Isto é muito importante: dada a sua baixa Curiosamente, em 1993, alguns físicos escreviam tam para que os neutrinos não sejam partículas de
massa e elevada velocidade, é fácil ter neutrinos a sobre a hipótese da existência de estrelas de neu- Majorana, e que os neutrinos estéreis possam ter
ultrapassar a velocidade de escape de estruturas trinos ou de outros fermiões escuros, como os quiralidade direita. As esperanças eram elevadas
em formação do tipo estelar. Esta é uma das razões “escurinos”, já referidos aqui recentemente como sobre a existência deste novo tipo de neutrino,
que levam a favorecer a massa escura fria no alternativa ao buraco negro central da Via Láctea. quando se detetaram raios X característicos em
modelo cosmológico padrão, por oposição a estes Estas partículas teriam massas de aproximada- Andrómeda e Perseu, mas tudo esmoreceu quando
neutrinos “quentes”, cujas velocidades os levariam mente 17 keV/c2, o que é uma barbaridade em face não foram detetados os mesmos raios X na galáxia
a escapar facilmente de regiões de alta densidade, do que sabemos hoje de experiências como a esferoide anã Dragão (satélite da Via Láctea) e
uniformizando as flutuações de densidade que KATRIN, que colocou a massa dos neutrinos abaixo foram conhecidos resultados posteriores noutras
foram as sementes na formação de estruturas de dos 2 eV. Enfim, 1993 foi há quase três décadas, galáxias, igualmente negativos.
larga escala no universo primitivo. quando era novidade a existência de quasares e Em qualquer caso, baseado no que se conhece
Há quem argumente que, se o número de Rey- outros buracos negros galácticos com massas na sobre os neutrinos de Dirac e a sua massa, será pos-
nolds do universo primitivo for muito grande, num ordem dos dez mil milhões de massas solares. sível termos cerca de um por cento da massa escura
plasma com tal turbulência interna, alguns grupos Defendia-se então que estas estrelas e estes centros na forma de neutrinos, o que corresponde aproxi-
de galáxias poderiam formar-se nessas condições, galácticos, feitas de fermiões “escuros”, poderiam madamente à massa de todas as estrelas no uni-
e uma massa do neutrino na casa de 1 eletrão-Volt/c2 ter massas similares às desses quasares e raios verso, sem que, ironicamente, seja possível a exis-
não seria tão impeditiva como se admite. Os testes que poderiam ir até os dez dias-luz. tência de estrelas de neutrinos. É isto que indicam
de maior rigor aos modelos que sugerem diferentes Há demasiadas coisas ainda por explicar cabal- estudos como o do enxame galáctico Abell 1689
massas e subsequente desempenho funcional para mente no que respeita aos neutrinos. A possível (um dos maiores que se conhece), que terá um halo
os neutrinos terão de passar necessariamente pelo existência dos neutrinos estéreis, uma partícula esférico supragaláctico constituído por neutrinos
crivo dos resultados da radiação de micro-ondas de ainda por confirmar, com massa na ordem dos de Dirac, com uma massa na casa dos 1,5 eV.
fundo cósmico (CMBR, na sigla inglesa). Não cabe 10 keV/c2, é potencialmente compatível com algu- PAULO AFONSO
aqui, porém, discutir a maior ou menor compatibi- mas destas “estrelas de neutrinos” e com os requi- Astrofísico

lidade de cada modelo com a CMBR, que depende sitos da massa escura fria. As flutuações entre
igualmente dos efeitos de turbulência sobre diferentes tipos de neutrinos e a ausência de deteção N.R. – Este texto foi adaptado para seguir o Acordo
a própria CMBR no universo primitivo. do duplo decaimento beta sem neutrinos apon- Ortográfico de 1990, embora sob protesto do autor.

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Física
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Até agora, nem aceleradores


de partículas nem observatórios
foram capazes de encontrar essas
entidades exóticas e supermaciças.

10 SUPER
As teorias postulam a sua existência

Onde estão
os monopolos?
Todos sabemos que é impossível separar os dois polos de um íman,
mas as ideias mais avançadas da física para explicar a realidade baseiam-se
na existência de partículas com um único polo magnético. Após quase oito
décadas de procura infrutuosa, os cientistas não desistem de tentar detetá-las.

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CERN

E
m 12 de julho de 2012, houve um anún- de um fio condutor de eletricidade. Todavia, foi na primeira, em separado, verifica-se que surgem
cio histórico: o Grande Colisionador de o francês André-Marie Ampère (1775–1836) que sempre, no segundo, aos pares; por muito que ten-
Hadrões (LHC, na sigla inglesa), do CERN, acabou por estabelecer as bases do eletromagne- temos separar um íman, nunca isolaremos o polo
perto de Genebra, detetara por fim tismo, ao considerar que, se a corrente elétrica se norte do sul. Se cortarmos um íman ao meio, fica-
o bosão de Higgs, última peça que faltava no quadro comportava como um íman, era porque devia, de remos com dois ímanes, não com dois monopolos.
de referência da física de partículas, o chamado algum modo, ser um íman. A grande síntese foi É por isso que se diz que não há monopolos mag-
“modelo-padrão”. Todavia, ainda restava outra proporcionada pelo escocês James Clerk Maxwell néticos. Contudo, não há porque não os vemos ou
incógnita que os físicos procuram há décadas dis- (1831–1879), que chegou à conclusão de que a luz, a porque não podem existir?
sipar, e que abriria as portas a um mundo povoado eletricidade e o magnetismo estavam interligados, Esta ausência incomoda alguns físicos, porque
por hipotéticas entidades subatómicas com nomes pelo que enunciou, em 1864, o que é hoje conhe- viola um critério estético que consideram sacros-
como “axiões”, “neutralinos”, “charginos”, etc. cido por “leis de Maxwell”. santo: o da simetria. As leis de Maxwell não são
Referimo-nos ao monopolo magnético. Três anos totalmente simétricas. No entanto, explicam na
depois do êxito com o Higgs, o CERN lançou uma VIOLAÇÃO DA SIMETRIA perfeição todos os fenómenos eletromagnéticos,
nova experiência, denominada Monopole and A mera observação diz-nos que existe uma dife- um grande feito para equações com mais de 150
Exotics Detector (MoEDAL): a caça à partícula que rença fundamental entre eletricidade e magne- anos de história. Nesse caso, se a teoria não pre-
foge aos físicos desde finais dos anos 1970 acabava tismo: enquanto as cargas elétricas podem existir, cisa dos monopolos para explicar o que sucede à
de começar. nossa volta, para quê insistir?
Embora o magnetismo seja um velho conhecido
(há indícios arqueológicos que revelam ter sido Os monopolos SOLIDAMENTE DEMONSTRADO
utilizado pelos antigos olmecas, por volta do ano Em 1931, com a teoria quântica já bem estabele-
1200 a.C., nos seus rituais), foi um enigma até ao poderiam cida, o físico inglês Paul Dirac (1902–1984) demons-
século XIX. Em 1819, um professor de física da Uni- trou que os monopolos magnéticos fazem a carga
versidade de Copenhaga, Hans Christian Ørsted preencher muitas elétrica só poder alcançar um valor discreto, ou
(1777–1851), observou que a agulha de uma bús- seja, um múltiplo de uma unidade mínima. Até
sula mudava de direção quando a aproximava lacunas da física então, esse facto era inserido à força na mecânica

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Esta ilustração, elaborada Paul Dirac postulou
por cientistas do CERN, a existência de partículas
permite visualizar a diferença elementares com
entre as forças magnéticas um único polo magnético.
dos monopolos e dos dipolos
da natureza (em baixo).

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quântica, mas agora surgia de maneira natural. Ao verifica-se a temperaturas altíssimas que só foram Alan Guth (n. 1947) nos anos 1980: a chamada
que parece, a existência dos monopolos é neces- alcançadas no universo logo a seguir ao Big Bang. “inflação cósmica” (o universo viu a sua expansão
sária para o eletrão poder apresentar a carga que Contudo, em 1974, o físico holandês Gerardus acelerada, de forma exponencial, 1036 a 1032 segun-
possui. Não apenas isso: também pode contribuir ‘t Hooft (n. 1946) e o seu colega russo Alexander dos depois da explosão inicial).
para resolver o atoleiro em que mergulhou a física Polyakov (n. 1945) mostraram que todas as TGU
de partículas. O modelo-padrão, contruído lenta- pressupõem a existência de monopolos. Além TEORIAS ESPECULATIVAS
mente ao longo de meio século, descreve tanto as disso, diziam-nos qual poderia ser a sua massa: Trata-se de uma teoria consistente, capaz de
propriedades das partículas subatómicas como o cerca de dez mil biliões de vezes a do protão. Vatici- explicar alguns inconvenientes do paradigma do
funcionamento de três das quatro forças da natu- navam também que uma grande quantidade teve Big Bang, mas é pura conjetura. Como escreveu
reza. Está, porém, incompleto: não incorpora a de ser criada nos primeiros instantes de vida do o cosmólogo inglês Martin Rees (n. 1942), os que
gravidade, e também não tem espaço (ou não foi universo: praticamente um por cada protão exis- não acreditam muito nessa física exótica “não irão
encontrado) para a misteriosa matéria escura que tente. Ora, isso não foi observado. ficar muito impressionados com um argumento
enche o universo. O monopolo poderá preencher Como resolver o problema? Seria necessário bai- teórico que serve para explicar a ausência de par-
essas lacunas. xar rapidamente a temperatura do cosmos para tículas já de si hipotéticas”.
não se formarem tantos monopolos. O mecanismo As TGU não se terão enganado? Por agora, não
AUSENTES DAS OBSERVAÇÕES foi encontrado pelo cosmólogo norte-americano passam de especulações, pois os nossos acele-
O monopolo começou a ser procurado na década radores de partículas não se aproximam nem de
de 1970, quando surgiram as chamadas Teorias da longe das energias necessárias para poder com-
Grande Unificação (TGU), filhas do empenho dos No entanto, provar as suas previsões, e as pouquíssimas que foi
físicos em encontrar a grande simetria cósmica. possível constatar não se afiguram muito pro-
Neste caso, as TGU pretendem agrupar sob uma não conseguimos missoras. O interesse suscitado por estas teorias
única formulação três forças da natureza: a ele- nos anos 1970 e 1980 perdeu-se em prol de outras
tromagnética, a forte (responsável pela coesão detetar um único, mais grandiloquentes, por assim dizer.
do núcleo atómico) e a fraca (da qual depende Trata-se das chamadas “teorias de tudo”, como
um tipo de desintegração radioativa). Essa união até hoje a das cordas, que procuram incluir a gravidade

SUPER 13
Presumíveis
observações
A verdade é que já houve algumas
deteções misteriosas atribuíveis
a monopolos. Por exemplo, investi-
gadores da Universidade de Stanford
(Califórnia), dirigidos pelo físico nor-
te-americano Blas Cabrera (n. 1946),
mediram, em 1982, uma corrente
elétrica numa bobina supercondutora
com as características de ter sido provo-
cada pela passagem de um monopolo.
Três anos depois, em 11 de agosto de
1985, um grupo do Imperial College
London deparou com o mesmo: a
corrente coincidia perfeitamente com
as previsões teóricas do que faria uma
dessas partículas. Até hoje, ainda não se
conseguiu explicar convenientemente
o que se passou. Há quem pense que
se tratou de erros do equipamento
ou, simplesmente, de ruído de fundo;
porém, como argumenta James Pinfold,
“é muito difícil que haja um problema
que imite exatamente o sinal de um
monopolo”.

Os cientistas
procuram
novas formas O MoEDAL é uma das doze experiências
instaladas no LHC do CERN. Ocupa 250
metros quadrados e, além dos monopolos,
de os descobrir pode detetar outras partículas supermaciças.

nessa busca de uma única superforça que aglutine o LHC? Graças a Einstein, sabemos que energia e diferente das restantes partículas: é fácil distingui-
as quatro que existem na natureza. Neste caso, as massa estão relacionadas pela fórmula E = mc2 . -lo do “ruído” causado por elas.
forças e partículas surgiriam como consequência Isso implica que, se quisermos criar uma partícula,
da vibração de pequenos e misteriosos filamentos teremos de multiplicar a sua massa pelo quadrado PROJETO DEDICADO
de energia (as cordas). Ora, todas as teorias de da velocidade da luz para obter a energia necessá- Infelizmente, por causa destas diferenças, a maior
tudo dizem que os monopolos deveriam existir. ria. No caso dos monopolos prognosticados pela parte das experiências instaladas no LHC não é
Um dos especialistas mais importantes neste TGU, seria necessário um bilião de vezes mais do apropriada para a procura de monopolos. Por isso,
campo, o físico teórico norte-americano Joseph que a que se produz no LHC. Porém, é possível em dezembro de 2009, o CERN aprovou o projeto
Polchinski (1954–2018), afirmou, em 2002, que que existam exemplares de massa intermédia, e é MoEDAL, que começou a reunir dados em 2015
constituía “uma das apostas mais seguras que se nesse sentido que se dirige a caçada. e no qual trabalham 70 investigadores de qua-
pode fazer em física”. Até à sua morte prematura, Com as restantes partículas, como o bosão de tro continentes. O objetivo é também encontrar
há três anos, continuou a defender essa tese. Higgs, o método é muito diferente. Possuem uma outras partículas exóticas supermaciças que pos-
vida extremamente curta e desintegram-se rapida- sam surgir através das colisões de protões.
TRÊS VIAS POSSÍVEIS mente. Para poder descobri-las, os físicos têm de Para podermos fazer uma ideia do processo,
Assim, há várias equipas empenhadas em pro- procurá-las entre o emaranhado de partículas que imaginemos uma quantidade de camadas de plás-
curá-los, algo que se pode fazer de três maneiras: se produzem no acelerador quando se faz colidir tico colocadas umas por detrás das outras. Se dis-
primeiro, tentar produzi-los nos aceleradores de dois protões. Ao invés, o monopolo é estável pararmos um projétil, atravessará todas as lâminas
partículas; segundo, encontrá-los nos raios cós- (só pode ser destruído se deparar com o seu gémeo e deixará um orifício em cada uma: ao alinhar bem as
micos ou capturados em determinados materiais; de antimatéria), pelo que não desaparece depois de lâminas, será possível traçar a trajetória seguida pelo
terceiro, seguir provas indiretas da sua existência se produzir. Devido à sua carga magnética, interage projétil. No caso do MoEDAL, dispomos de apro-
em diferentes fenómenos astronómicos. acentuadamente com o campo eletromagnético, ximadamente 400 detetores nucleares de traços
Poderiam ser produzidos num acelerador como e o melhor de tudo é que o faz de maneira muito (NTD), e cada um contém dez camadas de plástico

14 SUPER
MOEDAL COLLABORATION
empilhadas. “É como uma máquina fotográfica tanques cheios de água, instalados numa área rochas do manto terrestre, subindo depois lenta-
gigante, e as lâminas são a película”, afirma o físico de 3000 quilómetros quadrados, aguardam um mente à superfície em direção aos polos geomag-
canadiano James Pinfold, porta-voz do MoEDAL. monopolo oculto entre os “aguaceiros” espaciais. néticos. Em 2013, cientistas suiços examinaram
Se registar algo, os físicos irão festejar com cham- Por outro lado, o observatório IceCube, situado 23,4 kg de rochas polares sem qualquer resultado.
panhe, pois “nenhuma partícula do modelo-padrão no Polo Sul, utiliza o cristalino gelo antártico para Todavia, a ausência de provas não é prova de
pode deixar rasto no nosso plástico”, diz. Para estudar o neutrino, uma partícula que não interage ausência. As regras da lógica dizem que não se pode
completar a caçada, foi instalado, em setembro de com a matéria. Isso torna esta instalação um lugar demonstrar a não existência de, por exemplo, a fada
2012, o Magnetic Monopole Trapper, que consiste propício para tentar observar a passagem do mono- dos dentes. Nesse caso, para que serve tanto resul-
numa estrutura de alumínio que, “se capturar um polo pesado e lento das TGU. Se um protão do tado negativo? Para determinar um limite à sua
monopolo, produz uma corrente elétrica; também gelo antártico colidisse com um monopolo, desin- abundância. Assim, deduz-se do estudo dos meteo-
não pode detetar outra coisa”, explica Pinfold. tegrar-se-ia e surgiriam outros tipos de partículas, ritos que a densidade de monopolos no Sistema
Em julho de 2019, foram publicados os primeiros que o IceCube registaria imediatamente. Solar deve ser igual ou menor do que um exemplar
resultados, iguais aos anteriores: zero monopolos. por cada cem quilos de rochas meteoríticas. Os
Em vez de tentar produzi-los em laboratório, METEORITOS E ROCHAS VULCÂNICAS limites mais estritos provêm da experiência subter-
podemos também procurar os que já existem, Procurou-se também encontrar monopolos no rânea MACRO (Monopole, Astrophysics and Cosmic
presumivelmente, na natureza: aqueles que foram interior de meteoritos, pois poderiam ter ficado Ray Observatory), realizada no Gran Sasso (Itália),
criados com o Big Bang ainda devem andar por aí. colados a algum átomo: em 1995, foi desenvolvido entre 1989 e o 2000. Desta e de outras investiga-
Evidentemente, a possibilidade de encontrá-los o estudo mais extenso realizado até à data, no qual se ções, depreende-se que deve haver no universo
dependerá da quantidade que houver. O Observa- estudou um total de 112 quilos de rocha espacial. Por menos de un monopolo por quintilião de nucleões
tório Pierre Auger (Argentina) dedica-se a observar último, foram esquadrinhadas rochas vulcânicas (protões e neutrões). Uma agulha (magnética)
as cascatas de partículas e fotões provocadas pelos obtidas nos polos: alguns monopolos poderiam ter num palheiro.
raios cósmicos ao colidir com a atmosfera. Ali, 1700 ficado presos, ao longo da história da Terra, em M.A.S.

SUPER 15
Física

Um século de um Prémio Nobel

Realidade
granulada
No início do século XX, uma geração de brilhantes
físicos mostrou que a matéria e a energia interagem
de formas supreendentes a escalas diminutas
e que esses fenómenos desempenham um papel
essencial no modo como o universo se organiza.

A
pandemia de Covid-19 fez muitas pes- As termografias, que permitem
soas familiarizarem-se com as câmaras saber a temperatura dos corpos,
usam um efeito quântico.
termográficas, que permitem conhecer
a temperatura do corpo pelo compri-
mento de onda da radiação que emitimos. Emana-
mos calor a uma temperatura que não é visível aos
nossos olhos, mas que é detetada por esses dispo-
sitivos capazes de captar raios infravermelhos. Por
outro lado, a energia que emana do Sol ou da chama
de uma vela fá-lo a uma temperatura maior, pelo
que já a podemos ver. Do mesmo modo, se aque-
cermos uma barra de ferro, chega uma altura em
que se começa a ver o calor, pois fica vermelha;
porém, se continuarmos a aumentar a tempera-
tura, passará a ser cor de laranja e, depois, amarela,
pois vão-se somando a essa luz comprimentos de
onda cada vez mais curtos.
No final do século XIX, este tema interessava a
física e tinha aplicações práticas: diversas fontes
afirmam que, em 1894, alguém teria encarregado
Max Planck (1858–1947) de investigar que tipo de
filamento permitiria a uma lâmpada incandescente
produzir maior quantidade de luz com menos
gasto de energia elétrica. Mais uma vez, si non
è vero, è ben trovato. O caso é que, na altura, o
matemático alemão, professor catedrático de
física teórica na Universidade de Berlim, andava
empenhado em compreender verdadeiramente
as relações entre a intensidade de uma radiação,
a temperatura e a cor (ou comprimento de onda),
que por vezes mostravam comportamentos sur-
GETTY

preendentes.

16 SUPER
GETTY

Embora seja mais conhecido pela teoria


da relatividade, Einstein (página oposta)
ganhou o seu Nobel pela explicação
do efeito fotoelétrico, que resulta
diretamente da natureza granular
da energia postulada por Planck
(nesta foto), galardoado em 1918.

GRÃOS DE ENERGIA eletrões aos átomos. Cada quantum possui uma o austríaco Wolfgang Pauli (1900–1958), o prin-
Em 14 de dezembro de 1900, data hoje conside- energia diferente consoante o seu comprimento cípio da exclusão; o norte-americano de origem
rada histórica, pois assinala o nascimento da mecâ- de onda; os quanta de luz infravermelha são ucraniana George Gamow (1904–1968), o efeito
nica quântica, Planck tornou públicas as suas ideias menos energéticos do que os de luz vermelha, e de túnel… O inglês Paul Dirac (1902–1984) publi-
numa reunião da Sociedade Alemã de Física. os ultravioleta mais do que os visíveis. cou, em 1930, a obra The Principles of Quantum
O contributo mais revolucionário do seu trabalho, Depois, em 1913, o físico dinamarquês Niels Bohr Mechanics, que se tornou um manual imprescin-
que intitulou “Sobre a teoria da lei de distribuição (1885–1962) propôs um modelo atómico planetário, dível para a compreensão da fascinante disciplina
de energia no espectro contínuo”, consistiu em no qual as órbitas circulares dos eletrões tinham de científica. Todos (menos Gamow) foram Nobel.
afirmar que a energia não pode tomar um valor cumprir as normas quânticas: não podiam ter um Hoje, a teoria quântica permite-nos entender os
qualquer, mas tem de ser forçosamente um múlti- raio qualquer. Isso explicava os espectros de emis- átomos, as ligações químicas, a condutividade dos
plo inteiro de uma quantidade mínima, que deno- são do hidrogénio. Em 1918, Planck ganhou o Nobel metais, a interação da luz com as partículas, o com-
minou quantum (daí o termo “física quântica”). “pelo seu papel no avanço da física devido à des- portamento dos semicondutores, a superconduti-
A natureza é rígida com as quantidades de energia coberta da teoria quântica”. vidade e a superfluidez, e também propriedades
que um corpo pode emitir ou absorver. térmicas, como a radiação, e magnéticas, caso do
A ideia de que também havia átomos de energia, FUTURO INIMAGINÁVEL antiferromagnetismo, assim como muitos outros
como de matéria, teve implicações imediatas. Em Após a Primeira Guerra Mundial, um exército de conceitos e fenómenos. Entre as suas aplicações
1905, o físico alemão Albert Einstein (1879–1955) físicos desenvolveu a nova ciência: o francês Louis tecnológicas, temos o transístor, o laser, a fibra
encontrou a explicação para o efeito fotoelétrico de Broglie (1892–1987), a dualidade onda-partí- ótica, a iluminação com LED e todo um futuro em
(que lhe valeu o Prémio Nobel, em 1921), mediante cula; o austríaco Erwin Schrödinger (1887–1961), computadores ainda impossível de imaginar. Tudo
os quanta de energia luminosa (os fotões), e jus- as equações de onda; o alemão Werner Hei- começou com a conferência de Planck, em 1900.
tificou como eram ou não capazes de arrancar senberg (1901–1976), o princípio da incerteza; R.N.

SUPER 17
Tecnologia Novas possibilidades digitais
GETTY

Compras
pós-pandemia

A realidade virtual permite


conhecer melhor os produtos
antes de decidir comprar.

18 SUPER
A Covid-19 acelerou as mudanças
na forma de consumir. Ferramentas
tecnológicas como a realidade virtual
e a aumentada, as compras por voz
ou mesmo os robôs começam
a fazer parte do nosso quotidiano.

SUPER 19
E
m março de 2020, a nossa vida ficou em
suspenso. Ficámos confinados em casa,
sozinhos ou acompanhados, com o
receio de que o mundo também parasse.
Contudo, não foi isso que aconteceu. Continuámos
a trabalhar, a estudar, a comunicar com os nossos
seres queridos, a ter acesso a serviços básicos e,
também, a comprar. Os supermercados não dei-
xaram de abrir, tanto na versão física como na
digital. Os camiões de distribuição continuaram a
levar encomendas para toda a parte, embora as
entregassem sem qualquer contacto. Muitas lojas,
obrigadas a encerrar, não tiveram outro remédio
se não dar o salto para o comércio eletrónico.
A crise provocada pelo coronavírus criou uma
mudança de paradigma que consolidou a tendên-
cia, iniciada há alguns anos, de comprar através do
telemóvel e de outros dispositivos, levando mui-
tos consumidores a estrear-se num mundo que
lhes era alheio: as lojas digitais. Forçados pelas
circunstâncias, perderam finalmente o receio das
novas tecnologias e aceitaram outras formas de
encher o carrinho. O leitor é um deles? Deixou de ir
às compras no supermercado mais próximo, todas
as semanas, para passar a adquirir até o papel
higiénico através das compras online?

CRESCIMENTO EXPONENCIAL
Segundo um relatório da consultora McKinsey,
nos últimos quatro anos, a taxa de crescimento
anual das vendas online em todo o mundo rondou
os 14 por cento. Todavia, a aumento alcançou os
25% só nas duas primeiras semanas do confina-
mento de março do ano passado. A descarga de
aplicações entre janeiro e abril de 2020 subiu 11% em

O confinamento
acelerou O Digit é um robô
desenvolvido pela Ford

a transição e pela Agility Robotics


para levar encomendas
à porta, com a ajuda
para o digital de veículos autónomos.

comparação com o mesmo período do ano ante- os artigos de forma tridimensional e avaliar muito liário. Por exemplo, já pensou alguma vez em
rior. Cerca de metade dos comerciantes deram melhor as suas dimensões e características. experimentar óculos graduados ou de sol sem
prioridade a planos para oferecer aos clientes uma deambular de loja em loja? É o que oferece a Grey-
aplicação móvel ou uma experiência digital que DOS MÓVEIS AOS ÓCULOS Glasses, que recorre a esta tecnologia para poder-
pudesse substituir ou reforçar as compras presen- Alguns gigantes do setor do comércio já tinham mos ver como nos fica cada modelo. Seleciona-
ciais. O relatório da McKinsey indica que três em lançado, antes da pandemia, vários serviços deste mos a armação que nos chamou a atenção, car-
cada quatro consumidores experimentaram novas tipo. Desde há cerca de dois anos, por exemplo, a regamos no botão “Testar” e autorizamos o uso
marcas e lojas durante o confinamento e, o que é Ikea oferece a possibilidade de verificar como fica- da câmara para ver o resultado. A empresa também
mais importante, que 60% irão manter os novos rão nas nossas casas as suas mesas, cadeiras, sofás, envia armações para podermos usufuir em casa de
hábitos quando a pandemia terminar. candeeiros, etc. Basta utilizar a aplicação Ikea uma experiência mais próxima da presencial, mas
Durante os confinamentos, duas tecnologias Place e a câmara do telemóvel. Podemos efetuar sem a necessidade de visitar a loja.
tornaram-se uma alternativa viável às compras tra- estimativas com medidas reais e experimentar Esta técnica começa a tornar-se um extra à dis-
dicionais: a realidade virtual e a realidade aumen- modelos, cores, tamanhos… Os produtos da cadeia posição dos comerciantes que o desejem. A Sho-
tada. Evitam o risco de contágio, são menos sueca sobrepõem-se de forma mágica às divisões pify, a plataforma que permite criar lojas digitais
“frias” do que clicar várias vezes numa loja online da nossa casa diante do nosso olhar. sem conhecimentos de programação, oferece aos
e proporcionam uma maior sensação de confiança Contudo, a realidade aumentada em compras utilizadores a possibilidade de acrescentar modelos
do que simples fotos e vídeos, pois podemos ver online chega a mais produtos do que o mobi- tridimensionais às suas páginas com produtos, e

20 SUPER
GETTY
Falar para comprar
O avanço dos altifalantes inteligen-
tes e dos assistentes virtuais per-
mitiu o aparecimento do voice shopping.
Dispositivos como o Echo, da Amazon,
que integra a tecnologia Alexa, ofe-
recem a possibilidade de acrescentar
artigos ao cesto de compras quando se
dá a ordem verbal, depois de escutar
informações sobre as características
e as funções do produto. Um estudo
elaborado pela Microsoft, em 2019,
revelou que 40 por cento dos inqui-
ridos já tinham experimentado fazer
uma compra por via verbal através dos
seus assistentes inteligentes. Segundo a
consultora eMarketer, em 2020, quase
31 milhões de norte-americanos teriam
feito consultas sobre artigos de todos
os géneros através dos seus altifalantes
inteligentes. As estatísticas revelam que
AGILITY ROBOTS

cerca de dois terços dessas consultas se


convertem em compras.

assegura que as taxas de conversão (as visitas que da qual os consumidores podem percorrer virtual- VÍDEOS EM DIRETO
terminam com uma compra) sobem cerca de 250% mente um estabelecimento (organizado por divi- A explosão do vídeo em direto (livestreaming)
quando os clientes veem os artigos em realidade sões, como uma casa) e ir escolhendo os produtos está também a invadir o mundo das compras.
aumentada. que lhes interessam. O YouTube e o Twitch abriram um caminho que
Esta tecnologia oferece tantas possibilidades começou a ser explorado por outros serviços no
VISITAS VIRTUAIS que se expande a grande velocidade, e as marcas setor das vendas. Na China, têm grande êxito as
Quanto ao grau de imersão conseguido na mostram-se interessadas em explorá-las. Há quem emissões em que uma figura conhecida demonstra
experiência de compra, é preciso reconhecer que as ajude a fazê-lo, através, por exemplo, de simu- um produto e responde às dúvidas e perguntas da
a realidade virtual vai um pouco mais longe do lações de pontos de venda e cenários imersivos de audiência interessada. É como se as televendas
que a aumentada. Permite penetrar em jogos em compras que permitem analisar pormenorizada- tradicionais fossem feitas por youtubers em tempo
360 graus, mergulhar até ao fundo do mar, viajar mente o comportamento do consumidor e passar real e com a interação dos espetadores. De modo
para lugares a centenas de quilómetros de distân- essa informação às cadeias de lojas e aos anuncian- geral, a aplicação que transmite os vídeos em direto
cia, ver pormenorizadamente como é por dentro tes. Assim, podem efetuar estudos de mercado permite também adquirir os artigos em questão.
um andar que nos chamou a atenção ou passear sem ter de reunir os clientes: por exemplo, a O Alibaba, a plataforma chinesa de comércio ele-
por uma loja. A Walmart, a cadeia norte-americana influência nas vendas de um artigo, a eficácia dos trónico, uma das maiores do mundo, tem um ser-
de grandes armazéns, lançou há um par de anos o diferentes tipos de embalagem, quais as marcas viço (Taobao Live) exclusivamente dedicado a esta
3D Virtual Shopping Tour, uma ferramenta através mais escolhidas… forma de venda.

SUPER 21
SHANGHAINEKO
Lojas sobre rodas
N a China, a cadeia de comida rápida
Kentucky Fried Chicken começou
a utilizar pequenos veículos autónomos
transação, uma das portas abre-se para se
levantar a encomenda. Estes vendedores
sobre rodas reduzem o contacto humano e
dirigidos através das redes 5G. Trata-se de o risco de contágio em tempos de pande-
uma mistura entre food trucks e máquinas mia, mas parece provável que continuem a
de vending que se deslocam sem condutor circular mesmo quando voltarmos a levar
pelas ruas de Xangai e levam os pedidos a uma vida normal. No futuro, poderiam ser
casa. Funcionam também como minilojas utilizados por todo o tipo de comerciantes
rolantes. Os clientes que as encontram pela e produtores para cobrir zonas urbanas
cidade podem selecionar o seu pedido em especialmente movimentadas, ou respon-
ecrãs táteis, nos quais se indica toda a oferta der à procura em bairros que não dispo-
e respetivo preço. Depois de concluída a nham de estabelecimentos comerciais.
GETTY

Cada uma das emissões em direto atrai multidões. o Amazon Live, um serviço em que se podem encon- O livestreaming poderá estender-se às compras
Estima-se que havia na China, no final de 2020, 524 trar canais em que diferentes pessoas experimen- do quotidiano. Consegue imaginar-se a contactar
milhões de utilizadores de livestreaming: cerca de tam artigos em direto. As emissões abrangem com a peixaria do bairro por videoconferência?
seis em cada dez internautas daquele país seguem múltiplas temáticas: culinária, beleza, desporto, Não, não é uma fantasia a longo prazo: é o que pro-
estas emissões. Em 2019, o volume de negócios moda, casa, animais de estimação, tecnologia… põe a empresa Frestic, que lançou uma aplicação
do comércio eletrónico através dessa ferramenta Durante as transmissões, surgem na parte inferior poucos meses antes do confinamento de março
alcançou cerca de 55 mil milhões de euros, uma do ecrã ligações para os produtos apresentados ou do ano passado. Não podia ser mais oportuna
quantia que se prevê tenha duplicado em 2020. referidos no vídeo, caso os utilizadores queiram (involuntariamente): durante as semanas de obri-
Segundo um relatório do Taobao, só no passado adquiri-los de imediato. gatoriedade de ficar em casa, a proposta adqui-
Dia dos Solteiros (11 de novembro, uma data muito riu maior sentido, e manteve-se dado o distan-
popular para se presentear a si próprio na China), ciamento social que devemos cumprir. A Frestic
movimentou cerca de 5000 milhões de euros em Influenciadores permite ao consumidor comprar produtos frescos
vendas, o dobro do que faturara em 2019. Meio por videoconferência: o cliente só tem de indicar a
milhar de canais do Alibaba ultrapassaram a quan- geram milhares sua morada e escolher um dos estabelecimentos
tia de 1,2 milhões de euros em vendas. próximos que prestam o serviço. Depois, quando
Esta vaga começa a chegar ao Ocidente, e os de vendas chegar a sua vez, o empregado do talho ou da pei-
analistas preveem que o boom ocorra daqui a pou- xaria entra em contacto por videoconferência. Os
cos anos. Desde o início de 2019, a Amazon possui em minutos estabelecimentos que participam na iniciativa dis-

22 SUPER
Cada vez há mais canais de vídeo
em direto em que se comentam
produtos que o utilizador pode
comprar com dois ou três cliques.

põem de câmaras que mostram o que há nos bal- vidades no campo, aproveitando para dar saída à criadora de conteúdos digitais que, depois de
cões, de forma a poder escolher a peça que mais matéria-prima. No final de 2020, o número teria trabalhar como hospedeira de bordo, regressou
lhe agrada. Assim, pode indicar a que selecionou quadriplicado, segundo as estimativas. Um dos a casa dos pais para os ajudar. Começou a trans-
e pedir ao empregado que a prepare como gosta. maiores casos de sucesso foi o de um produtor de mitir vídeos diariamente, nos quais proporcionava
Com a encomenda pronta, obtém-se um código mangas que conseguiu vender 30 toneladas de conselhos sobre métodos de cultivo de diversas
para poder acompanhar a entrega e o pagamento frutos em apenas dois minutos. frutas. A sua persistência foi amplamente com-
é feito com cartão de crédito. A compra é enviada Graças a esta ferramenta, modestos negócios pensada. Em 2019, ganhou cerca de cinco milhões
diretamente para a casa do cliente e este pode familiares chineses abriram-se ao mundo e ganha- de euros, e emprega atualmente uma dezena de
escolher a hora que mais lhe convém. ram milhões de euros. He Shuang é uma jovem trabalhadores.
Será que um dia irá preferir comprar fruta a esses
DO GADO À FRUTA agricultores que mostram o seu trabalho ao vivo
Voltemos à China, um dos principais centros (ou A tendência e em direto, em vez de fazê-lo na mercearia da
mesmo o maior) das novas formas de comprar. esquina ou no supermercado do bairro? Talvez ache
Ali, criadores de gado e agricultores começaram a já chegou que não, por enquanto, mas lembre-se: nunca
usar o vídeo em direto para se dar a conhecer, um se teria imaginado, há dois anos, a comprar pela
fenómeno que disparou após o aparecimento da aos produtos internet pacotes de farinha, papel higiénico, más-
Covid-19. Em 2019, havia mais de mil agricultores caras descartáveis ou lâminas de barbear.
no Taobao a fazer diretos para mostrar as suas ati- frescos A.P.

SUPER 23
Tecnologia

Pequeno veículo, grande impacto

Sobre
duas rodas
Atualmente, fabrica-se quase o triplo de bicicletas
em relação aos automóveis. Há cinquenta anos,
estavam a par. As duas rodas rêm contribuído, desde
o século XIX, para forjar a imagem da modernidade.

A
quela que costuma ser considerada a Foi também nessa altura que começaram a ser
primeira bicicleta foi construída, em usados tubos de aço no quadro dos veículos.
1817, pelo alemão Karl Drais (1785–1851) O pneu com câmara de ar foi inventado pelo
para fazer frente à escassez de cavalos escocês John Boyd Dunlop (1840–1921) em 1888.
no “ano sem verão”, um ano de anomalias clima- A partir de 1900, a bicicleta, até aí um produto
téricas provocadas pela explosão do vulcão Tam- caro, começou a ficar mais acessível.
bora (Indonésia). Era um veículo de madeira com
duas rodas, assento e um dispositivo para con- FEMINISTA E ECOLÓGICA
trolar a direção. Era impulsionado com os pés e À medida que se difundiu para lá da elite, a bici-
atingia o dobro da velocidade de uma deslocação cleta melhorou a vida dos segmentos populares.
a pé. O escocês Kirkpatrick Macmillan (1812–1878) Foi também um instrumento de libertação femi-
incorporou, em 1839, pedais que ativavam um nina. “A bicicleta fez mais pela emancipação das
mecanismo com bielas, num movimento que não mulheres do que qualquer outra coisa no mundo”,
era circular mas de vaivém. Já não era necessário assegurava, em 1896, a sufragista norte-ameri-
impulsionar o veículo com os pés. cana Susan B. Anthony (1820–1906), aludindo à
Em 1861, Pierre Michaux (1813–1883) e o seu filho liberdade de movimentos que esta proporcionava.
Ernest, franceses, incorporaram pedais no eixo A identificação da bicicleta com a modernidade
da roda dianteira. Para conseguir uma maior rotação diminuiu com a chegada da época dourada do
por pedalada, os velocípedes passaram a ter rodas automóvel, depois da Segunda Guerra Mundial.
dianteiras muito altas, o que era perigoso. Ainda assim, manteve o seu papel de agente do
Depois do sucesso na Exposição de Paris de 1867, progresso em todo o mundo, com uma importân-
a bicicleta dos Michaux começou a ser fabricada cia fundamental nos países menos desenvolvidos.
de forma industrial, com uma produção de 200 A sua utilização foi revalorizada nas últimas déca-
unidades por dia. Chegou a ter uma roda dianteira das, como veículo ecológico e eficaz para o trans-
com 1,5 metros de diâmetro, e foi com este modelo porte nos pequenos trajetos diários.
que se realizou a primeira competição, em 1868. A sua contribuição para o desenvolvimento téc-
Em 1880, introduziu-se a transmissão por cor- nico foi assinalável: rolamentos, transmissão por
rente, mas o antecedente da bicicleta atual seria correntes e pneus, depois amplamente utilizados
criado pelo inglês John Kemp Starley (1854–1901) noutras áreas, foram criados para as bicicletas, que
em 1885. Utilizava a corrente de tração traseira, também introduziram na indústria civil o fabrico
as duas rodas tinham uma dimensão semelhante de componentes intercambiáveis entre diferentes
e o assento estava apoiado na roda de trás, o que modelos, técnica que só havia sido usada em
proporcionava mais segurança. armamento e, mais tarde, foi fundamental para a
Em 1887, chegaram as rodas de borracha maciça, produção em série, nomeadamente de automóveis. Prova do Campeonato Mundial
de Ciclismo, em 1902.
que substituíram as de madeira com aro de ferro. M.M.

24 SUPER
SUPER 25
SHUTTERSTOCK
Medicina

ARCHIVE COLLECTION
Da paciente zero aos nossos dias

Recordar Alzheimer
Não conseguir reconhecer os familiares, ser incapaz de efetuar uma simples soma,
esquecer a passagem do tempo ou onde se está e como se chegou ali. A doença
de Alzheimer, o tipo de demência mais comum, isola quem a padece dentro
do seu próprio corpo. Embora seja verdade que ainda não tem cura, já é possível
retardar o seu avanço e tentar prever se a poderemos sofrer no futuro.
26 SUPER
ARCHIVE COLLECTION
Auguste Deter, uma dona-de-casa alemã,
foi a primeira pessoa a ser diagnosticada
com a doença que recebeu o nome
do médico Alois Alzheimer (página oposta).

SUPER 27
A
doença de Alzheimer consiste numa
síndrome neurodegenerativa caracte-
rizada, principalmente, por uma perda
progressiva da memória. Contudo, os
familiares das pessoas afetadas por esta triste
doença sabem que os sintomas não se detêm aí.
A desorientação permanente, a agitação e, em
muitas ocasiões, a agressividade fazem parte do
quotidiano. Isso torna a doença de Alzheimer um
desafio, não só para a pessoa afetada como, tam-
bém, para os que a rodeiam e, por extensão, para
a sociedade em geral.
Qualquer doença tem um paciente zero. No
caso da doença de Alzheimer, também se pro-
duziu um primeiro diagnóstico de uma pessoa
concreta: a alemã Auguste Deter (1850–1906),
que entrou para a história não pelos seus atos e
obras, mas por ser oficialmente a primeira pessoa
que, ainda muito jovem (aos 51 anos), se esqueceu
de tudo. Tal como a maior parte dos afetados por
esta patologia neurológica, Auguste sofria tam-
bém de violentas alucinações, estados vegetati-
vos intermitentes, sono alterado e episódios de
agressividade que podiam durar horas.
Em novembro de 1901, o seu marido, Carl, não
conseguiu aguentar mais e internou a mulher numa
instituição mental em Frankfurt. É aqui que entra

O processo
deve-se a uma
falha no sistema Retinografias como esta podem
ajudar a prever o aparecimento
de limpeza futuro da doença.
AGE
AGE

Ilustração da formação de placas


em cena Alois Alzheimer (1864–1915). O jovem psi- de beta-amiloides (feixes laranja)
em torno dos neurónios (em azul).
quiatra deixou-se obcecar pelo caso de Auguste A acumulação descontrolada
nos anos que se seguiram, e interveio mesmo para destas proteínas é característica
que pudesse permanecer internada apesar do ele- das vítimas de Alzheimer.
vado custo que o seu acompanhamento e trata-
mento acarretavam. Como acontece com tantos
doentes de Alzheimer, a senhora Deter faleceu
devido a uma paragem completa e acelerada das
funções cerebrais.

SEMENTE CIENTÍFICA
Assim, Alois pôde finalmente dispor do cérebro
da sua doente (e também amiga, por esta altura)
para o analisar. Ao colorir e examinar vários cortes
histológicos ao microscópio, descobriu algumas
estranhas e características malformações, nunca
antes observadas e que não deveriam estar ali.
A presença dessas estruturas invasoras era a causa
do quadro de demência de Auguste (e, eventual-
mente, da sua morte), a qual acabaria por ser bati-
zada com o nome do tenaz autor da descoberta:
Alzheimer.
Esta dona-de-casa foi a primeira pessoa a ser
diagnosticada com (e a falecer de) Alzheimer.
Todavia, a sua vida e o seu sofrimento não foram

28 SUPER
Deteção precoce
M esmo quando não surge qual-
quer sinal visível de deteriora-
ção cognitiva, já estão a ser estudadas
inovadoras técnicas para prever futuros
cenários relacionados com a doença de
Alzheimer. Por exemplo, uma equipa
da Universidade de Rhode Island está
a usar retinografias como se fossem
uma janela para o cérebro. O objetivo
é observar sinais da doença na retina
décadas antes de qualquer sintoma
começar a manifestar-se de forma clí-
nica. Outro grupo, da Norwich Medical
School (Inglaterra) estuda o que acon-
tece a pessoas com e sem riscos gené-
ticos de vir a ser vítima de Alzheimer
quando se movimentam livremente
por um meio virtual. A empresa Win-
terlight Labs desenvolveu um sistema
para identificar potenciais processos
de demência através de um algoritmo
baseado em aprendizagem automática
aplicada à linguagem. Apesar destes
louváveis avanços, não deixam de ser
fotografias bem-intencionadas capta-
das em determinado momento, numa
população concreta e num cenário fixo
e controlado. A comunidade científica
lamenta a pouca disponibilidade de
estudos longitudinais em que se possa
seguir a pista da doença ao longo do
tempo, mesmo durante várias gerações.

em vão. Além disso, a sua morte representou uma Antes de continuar, devemos esclarecer que a trolo (mucos, pus, citoquinas, colesterol, etc.) são
espécie de semente na história da ciência, contri- produção das substâncias aglomerantes são repre- benéficas e pertinentes na devida proporção, mas
buindo para o avanço das disciplinas da neurologia senta, de modo algum, uma deficiência no sistema eventualmente letais se a sua produção natural
e da psiquiatria tal como hoje as conhecemos. ou um funcionamento defeituoso do metabo- ocorrer de forma descontrolada ou num curto
Atualmente, a investigação relacionada com lismo, pelo contrário. As beta-amiloides desem- espaço de tempo. Do mesmo modo, a existência
este complexo processo neurodegenerativo segue penham uma função muito importante: proteger das beta-amiloides não representa por si só qual-
firmemente o seu rumo, com o objetivo de perceber os neurónios de elementos externos (vírus, bacté- quer problema, nem revela desempenho defei-
por que razão afeta mais de 50 milhões de pessoas rias, toxinas, etc.). A forma como a levam a cabo tuoso por parte do cérebro: é a sua acumulação
no mundo. Neste número, não estão representados é muito semelhante ao que certos moluscos fazem desordenada que pode eventualmente conduzir
os familiares de cada doente, pois, tal como acon- quando detetam um corpo estranho na sua concha: ao aparecimento de um quadro característico de
tece com outras situações de dependência, a doença isolam-no através da formação de uma pérola. demência de Alzheimer.
de Alzheimer acaba também por afetar séria e As proteínas amiloides desenvolvem uma tarefa Poderíamos dizer que o corpo se vai progressiva
irremediavelmente a saúde e o estado emocional semelhante: enjaulam elementos alheios ao fun- e inocentemente sabotando a si próprio. Até essa
dos cuidadores. cionamento do sistema nervoso. Talvez também altura, qualquer pessoa pode levar uma vida normal
possamos comparar esse trabalho de carcereiro ao em que se torna perfeitamente compreensível algo
NEURÓNIOS ENCARCERADOS que se verifica nas artérias por intermédio do coles- tão comum como perder as chaves; o que, efetiva-
A nível microscópico, a doença de Alzheimer terol. Até determinada altura da sua produção, mente, nos deve colocar em alerta é se, por exem-
afeta principalmente as sinapses entre duas células esta substância biossintetizada pelo nosso corpo plo, estas aparecerem de repente no frigorífico.
nervosas. Durante a conversa entre dois neuró- desempenha um papel positivo na saúde do sis-
nios vizinhos, são expelidos (e recebidos) neu- tema sanguíneo; contudo, uma acumulação des- FUNCIONAMENTO INEFICAZ
rotransmissores. Além destes componentes, são controlada pode conduzir ao colapso de uma via O organismo não reage? Será possível que o
também produzidas proteínas beta-amiloides. circulatória e, no pior dos casos, a um enfarte. nosso corpo permita esse autoenvenenamento
Estes compostos possuem a capacidade de se Ao contrário do colesterol, é muito mais com- impercetível sem dar por ele? Efetivamente. A nossa
aglomerar, chegando a formar as placas que plicado reduzir as acumulações de beta-amiloides saúde é o resultado de um diálogo quase demo-
Alzheimer observou no cérebro de Auguste. uma vez iniciadas. Todas estas substâncias de con- crático entre diferentes poderes que se contra-

SUPER 29
balançam uns aos outros. As células gliais (neuro-
glias) estão, entre outras coisas, encarregadas da
limpeza normal das sinapses e de digerir os excessos
de beta-amiloides. Todavia, quando a limpeza não
é bem feita, além de as pérolas cerebrais se acumu-
larem de forma desnecessária, começa também
a produzir-se a aglomeração de outras proteínas,
denominadas tau, e essas são ainda piores.
As placas de beta-amiloides e as bobinas de tau
são as duas principais lesões de um cérebro com
Alzheimer. Até há pouco, havia um debate no seio
da comunidade científica sobre qual dos proces-
sos era o mais crítico para o desencadeamento de
um processo de demência; contudo, já existe hoje
grande consenso. Por um lado, parece inquestio-
nável que, dos dois processos, a produção em
massa de proteínas tau desempenha um papel
mais importante. Por outro, já se demonstrou cien-
tificamente que a acumulação das beta-amiloides
acontece antes do aparecimento das tau e que existe
um nexo de casualidade. Esta última certeza leva-
-nos a afirmar que uma intervenção em qualquer
parte da cadeia pode contribuir substancialmente
para proporcionar novos (e talvez definitivos) tra-
tamentos para a doença.
A nível clínico, produz-se algo mais simples de
descrever. Poderíamos dizer que o cérebro é como
um tapete bem entrançado com milhares de milhões
de neurónios e triliões de ligações. O tandem
beta-amiloide-tau desempenharia o papel de uma
criança travessa que vai desfazendo o entrançado,

Há dados sólidos
a relacionar a
doença com sono
SHUTTERSTOCK

de má qualidade
fio a fio. Eventualmente, o tapete neuronal exibirá ção de sono é suficiente para acumular uma quan- tes de agilidade mental. Existem vários, mas talvez
uma imagem confusa, outrora bela e definida: a tidade respeitável de beta-amiloides. Doenças os mais reputados sejam o Mini-Exame do Estado
plausível, mas esquecida, vida do doente. cardiovasculares, diabetes, dependências ou uma Mental (MMSE, na sigla inglês) e a Avaliação
vida sedentária também não contribuem para pro- Cognitiva de Montréal (MoCA). Este último estuda
DORMIR MELHOR piciar um descanso suficientemente reparador, diferentes tipos de aptidões cognitivas: orientação
Por que razão algumas pessoas acabam por durante o qual as glias possam desempenhar o seu (datas, lugares...), memória a curto prazo (repeti-
desenvolver esta doença e outras não? Por um lado, trabalho: varrer o excesso de amiloides. ção de palavras), função visuoespacial (desenho de
parece haver fatores genéticos, mas não são defi- Esta relação entre o sono e a doença de Alzheimer formas geométricas, padrões, etc.), capacidades
nitivos. Atualmente, os especialistas pensam que baseia-se em dados sólidos, mas ainda há muito por linguísticas (repetir frases, enumerar palavras
os processos de autolimpeza de que falámos antes fazer. Por exemplo, uma equipa de investigação que começam por determinada letra…) e aten-
funcionam (ou deveriam funcionar) com pleno de uma universidade espanhola monitorizou o sono ção (por exemplo, repetir uma série de números
rendimento durante a noite, enquanto dormimos. de quase 200 pessoas com Alzheimer em diferentes para a frente e para trás). Por último, pede-se à
Ao que parece, e por diferentes razões, a extração fases de evolução da doença, com o objetivo de pessoa que está a ser avaliada para desenhar um
dos excessos de beta-amiloides por parte do sistema relacionar a forma de dormir com o grau de dete- relógio analógico cujos ponteiros marquem deter-
glinfático (no qual se integram as células gliais) não rioração cognitiva. minada hora.
se produz com suficiente fluidez. A ferramenta seguinte de que dispomos é a
O sono profundo funcionaria como uma equipa TESTES E IMAGENS imagem clínica do cérebro. Pode mostrar o seu
de limpeza e, ou não opera com suficiente diligên- Quando uma pessoa começa a manifestar sinto- metabolismo, a atividade neurocinética num certo
cia, ou então não deixamos que o faça adequada- mas precoces de deterioração cognitiva, temos à período de tempo ou uma imagem estática num
mente (maus hábitos, poucas horas de sono, etc.). nossa disposição várias técnicas para encontrar a momento concreto. De todas as modalidades rela-
Já foi comprovado que uma única noite de priva- sua fonte. As ferramentas mais básicas são os tes- cionadas com esta disciplina, as duas mais utilizadas

30 SUPER
A má qualidade do sono pode ser
um fator de risco para desenvolver
a doença da Alzheimer ou constituir
um primeiro sintoma do mal.

neste contexto são a ressonância magnética (MRI) de incómodas e dolorosas, acarretam sérios riscos mais fortalecidas se encontrarem, melhor. É o que
e a tomografia por emissão de positrões (PET). de infeção ou lesão. os neurologistas designam por “reserva cognitiva”.
Partilham a vantagem de a imagem se formar com Sim, é possível que certos neurónios e sinapses
a radiação a viajar de dentro (do corpo, cérebro, RESERVA COGNITIVA morram afogados pelo Alzheimer, mas, enquanto
etc.) para fora (para o detetor). Atualmente, a doença de Alzheimer não tem houver outros e estiverem bem exercitados, a mente
Além disso, ambos os tipos de dispositivos cura. Uma vez atingido certo grau de deterioração encontrará forma de continuarmos a ser quem
podem trabalhar em 4D, isto é, podemos inspe- mental, não há como voltar atrás. A única coisa somos. É como se tivéssemos ligações sobressa-
cionar um cérebro não apenas nas três dimensões que se pode fazer é retardar o mais possível o lentes para o caso de falharem as originais.
espaciais como no tempo, o que permite visualizar seu avanço ou, se ainda se for a tempo, o apareci- Por último, não devemos esquecer que, embora
o caminho seguido por certas substâncias (naturais mento dos sintomas iniciais. Já existem fármacos o processo de demência acabe por desfiar o tapete
ou injetadas no paciente) e a atividade elétrica e para limar a sobreabundância de beta-amiloide. das recordações, a memória emocional nunca se
metabólica. A MRI de difusão é outra técnica que Todavia, os especialistas concordam que, por perde. Mesmo em estados avançados da doença,
permite acompanhar o percurso e o movimento enquanto, a melhor coisa para tentar evitar ou alguém que seja vítima de Alzheimer continuará
de moléculas de água. O objetivo deste trabalho tratar a doença é o estímulo intelectual. Porquê? a compreender coisas como o amor, a gratidão e
de espionagem é detetar indiretamente as indese- A acumulação de beta-amiloides e tau não acabará a tristeza. É possível que não se lembre que já leu
jáveis idas e vindas das beta-amiloides e das tau. por atrofiar até a mais capaz das cabeças? este artigo quando foi publicado, mas recordará,
Além da imagiologia, a extração de líquido cefa- A resposta é sim, mas nem tudo está perdido. possivelmente, o que sentiu ao lê-lo. Ninguém
lorraquidiano através de uma punção lombar per- O cérebro é um órgão muito plástico, capaz de con- deixa de ser quem foi (nem sequer Auguste Deter
mite medir a concentração exata das proteínas por tinuar a criar novas ligações (mesmo numa idade nos piores momentos), pois somos mais do que
intermédio de técnicas de eletroluminescência. mais avançada) se for convenientemente estimu- aquilo que conseguimos recordar.
Recorre-se raramente às punções, porque, além lado. Em resumo: quanto mais sinapses e quanto A.C.B.

SUPER 31
Antropologia

32 SUPER
AGE
O quadro A Bela Adormecida (c. 1886),
do pintor inglês Thomas Ralph Spence
(1845–1918), reflete a nossa obsessão
por decifrar os mistérios do sono.

A evolução do sono humano

Como dormimos
Dormir de seguida uma vez por dia, de preferência à noite, é o habitual
na nossa sociedade, mas nem sempre foi assim. Por vezes, os nossos antepassados
repousavam por períodos mais curtos, em função das necessidades
de sobrevivência. Depois, a irrupção da luz artificial e dos dispositivos
tecnológicos impôs uma mudança na evolução do sono, essa função
fundamental para o nosso bem-estar que afeta a saúde física e mental.

SUPER 33
E
m 2006, numa zona isolada junto do lago
Constança, no sul da Alemanha, um grupo
de cinco adultos e seis crianças viveu,
durante dois meses, como se estivesse
na Idade da Pedra. Participavam num reality show
intitulado Steinzeit – Das Experiment, de um canal
da televisão alemã, e uma equipa de cientistas
aproveitou a experiência para analisar diretamente
a forma de dormir de comunidades despojadas
dos atuais avanços. Os participantes tiveram de
se habituar, durante esse tempo, a viver em cabanas
sem eletricidade, água corrente, telemóveis e jor-
nais. Para se parecer o mais possível com uma socie-
dade pré-histórica, tinham de obter comida e dor-
mir em camas feitas com arbustos e peles. A única
forma de iluminação de que dispunham era uma
fogueira situada no exterior.
“Deitavam-se cedo, seguramente por causa da
falta de luz artificial, e passavam muito tempo na
cama”, revela um dos autores do estudo, Christoph
Nissen, investigador da Clínica Psiquiátrica da Uni-
versidade de Berna. Os especialistas compararam
os padrões de sono e a hora de ir dormir com os seus
hábitos antes de participarem no programa. Na vida
televisiva, deitavam-se por volta das 21h30 horas e
levantavam-se às 6h30, enquanto antes o faziam
às 23h30 e às 7h. Todavia, embora passassem mais
tempo na cama, os autores do estudo descobriram,
através das actigrafias (pulseiras que usavam na
parte superior dos braços para medir os seus movi-
mentos enquanto dormiam), que o tempo real de
sono era menor. “O ambiente em que dormimos
atualmente, nas nossas casas, é muito mais cómodo
do que o da Idade da Pedra, que incluía todo o tipo
de problemas e ameaças representadas por diversos
insetos e animais, além do frio”, diz Nissen.

A iluminação
artificial altera
os padrões
de sono
DIFERENTES MODELOS especialista. No seu entender, se cada um alcançar a atividades do organismo em função de fatores
Segundo os autores do estudo, a luz natural do dia totalidade do tempo de descanso necessário, não ambientais como a luz), a criança dorme por períodos
e a interação social influenciavam os hábitos de há provas de que uma forma de dormir seja melhor mais longos de noite, e as sestas diurnas começam
sono, sobretudo a primeira, que exercia um impacto do que outra. Nissen distingue entre um modelo com a reduzir-se. A partir dos quatro anos, há quase
muito mais acentuado do que no mundo moderno. várias fases (polifásico), como o que se pensa ter sempre um único episódio de descanso noturno,
Embora os investigadores sublinhem as limitações imperado na Idade da Pedra, o de uma única fase o sono monofásico, presente desde a primeira
do estudo, devido ao tamanho reduzido da comu- de sono (habitual atualmente) e os modelos inter- infância, sem despertares durante a noite.
nidade e à impossibilidade de recriar as condições médios, de pequenas sestas. Os seres humanos, tal como a maioria dos seres
exatas da Idade da Pedra (na qual os seres humanos vivos, regem-se por um relógio biológico de 24
estavam sujeitos a uma tensão muito maior, dada RELÓGIO BIOLÓGICO horas que coincide com os ritmos de sono e vigília.
a dificuldade em encontrar alimentos e a menor Este formato de descanso com várias fases é o É aqui que entram em cena os ritmos circadianos,
segurança), a experiência ajuda a fazer uma ideia que os bebés continuam a manter: passam habi- cuja descoberta foi premiada com o Prémio Nobel
de como dormiam os nossos antepassados. tualmente por episódios de sono de duas a quatro de Fisiologia e Medicina, em 2017 (Jeffrey C. Hall,
O que podemos aprender com os seus padrões de horas, interrompidos quando sentem fome. A par- Michael Rosbash e Michael W. Young). Com uma
sono? “Não devemos pensar que eram necessaria- tir dos seis meses de idade, com o desenvolvimento precisão extrema, o nosso relógio interno adapta
mente melhores ou piores do que os atuais”, diz o de ritmos circadianos próprios (que regulam as as funções do organismo às diferentes fases do dia.

34 SUPER
Os participantes de um reality show alemão conhecem, até hoje, a luz artificial. O neurobió-
de 2006 viveram dois meses como na Idade logo norte-americano Jerome Siegel, da Universi-
da Pedra, sem eletricidade ou água corrente.
Uma das consequências foi que foram para dade da Califórnia em Los Angeles, e a sua equipa
a cama duas horas mais cedo do que antes. estudaram os registos de sono de 94 adultos de
tribos da Tanzânia (os hadzas), Namíbia (os sãs) e
Bolívia (os tsimanes). Analisaram igualmente a sua
temperatura corporal, a do ambiente e a quanti-
dade de luz a que tinham estado expostos.
O resultado da investigação, publicada na revista
Current Biology, mostra que estes povos de caça-
dores-recoletores permanecem, em média, acor-
dados cerca de três horas depois do pôr do Sol,
apesar de não disporem de luz elétrica. Quanto à
duração do sono, dormem quase seis horas e meia
numa única fase. A luz natural e a temperatura
exterior têm influência no tempo de descanso,
o que faz dormirem uma média de seis horas no
verão e quase sete no inverno. É muito raro faze-
rem sestas diurnas.

REDUZIR A TEMPERATURA
“A duração do sono neste contexto é um pouco
menor do que nas sociedades modernas, ao con-
trário do que seria de esperar. Os caçadores-re-
coletores raramente adormecem ao entardecer,
embora despertem habitualmente uma hora antes
do amanhecer”, diz Siegel, professor de psiquia-
tria e de ciências do comportamento do Centro
para a Investigação do Sono da UCLA.
A diferença relativamente à Idade Média, quando
o sono noturno se dividia em duas fases, poderia
estar na latitude, segundo os autores. As três tribos
analisadas vivem perto do equador, enquanto os
primeiros europeus emigraram para latitudes com
noites muito mais compridas, o que pode ter alte-
rado os padrões naturais do descanso. Neste caso,

Na Idade Média,
ainda era usual
fazer uma vigília
a meio da noite
CORDON

DORMIR EM DUAS FASES etapa de vigília, de duas ou três horas, e depois embora durmam menos do que nós, também
O sono, os níveis hormonais e a temperatura adormeciam e passavam por um ou dois ciclos podemos aprender algo com o seu ciclo de sono.
corporal são regulados por esse biocronómetro, completos de sono NREM-REM (sem e com movi- “A principal lição é que se deve reduzir a tempera-
embora outros fatores também tenham influência mentos oculares rápidos, respetivamente) durante tura da casa de noite e acordar a uma hora fixa”,
no sono, como as horas que permanecemos des- cerca de quatro horas, despertando a meio da noite. propõe Siegel.
pertos. No fim do dia, existe um nível suficiente de Nessa vigília de uma ou duas horas, podiam con-
vontade de descansar para induzir o sono. Essa versar, rezar, refletir, manter relações sexuais, etc. MAIS HORAS NO INVERNO
necessidade junta-se ao mecanismo circadiano, Depois, voltavam a adormecer. Por isso, ao contrário Outra forma de analisar os hábitos de sono é
que entra em ação. É isso que faz continuarmos a do que muitos pensam, não é anormal despertar comparar a forma como dormem povos indígenas
dormir até ao amanhecer. durante a noite e tornar a dormir. com acesso à eletricidade e os que não dispõem de
Contudo, dormir horas seguidas nem sempre foi luz artificial. Foi o que fez uma equipa de investiga-
comum. Os padrões de sono foram mudando ao SEM LUZ ARTIFICIAL dores dos Estados Unidos e da Argentina, liderada
longo da história. Era habitual, na Idade Média e nos Para saber como viviam e descansavam as comu- por Horacio de la Iglesia, que estudaram a comuni-
séculos anteriores, o descanso bifásico. Os nossos nidades pré-industriais, para além da experiência dade dos tobas, na região de Gran Chaco, situada
antepassados retiravam-se muito cedo, mas não do reality show alemão, outros investigadores no nordeste daquele país sul-americano. Embora
adormeciam rapidamente. Havia uma primeira analisaram o comportamento de tribos que não constituam a mesma comunidade, os seus mem-

SUPER 35
Os dorminhocos
e os nem por isso
O sono não é exclusivo do ser
humano. Trata-se de uma ati-
vidade fundamental em toda a vida
animal, mas difere muito de espécie
para espécie. No campo dos mamífe-
ros, os elefantes dormem apenas entre
três e quatro horas, um número muito
distante das 18 horas dos armadilhos.
Diferentes estudos demonstraram a
influência de elementos externos nos
hábitos de sono. Por exemplo, tanto
os seres humanos como as moscas
dormem mais depois de uma refeição.
Nestes insetos, quando os machos se
exibem diante das fêmeas, deixam de
ter sono, algo que poderia considerar-se
um traço relacionado com a atração e
que é também comum entre os seres
humanos. Um fator com influência no
sono dos peixes cavernícolas é a fome:
quanto mais apetite sentem, mais von-
tade de dormir, algo que também foi
observado nas aves, o que poderia aju-
dá-las a poupar energia em períodos de
escassez de alimento. Seguem-se alguns
exemplos.
Morcego-orelha-de-rato (dorme 19,9
horas por dia) – Quando não está a
repousar, cada exemplar come numa
noite entre 300 e 3000 insetos.
Serpente piton (18 horas) – Os seus
oito metros de comprimento e as pesa-
das digestões exigem muito descanso.
Tigre (15,8) – Como outros felinos,
dorme de dia e caça de noite.
Esquilo (14,9) – Constrói ninhos nos
ramos das árvores e descansa de olhos
abertos.
Gato (12,1) – É mais ativo no período
noturno.
Cão (10,6) – Dorme cerca de oito
horas por noite e faz pequenas sestas
durante o dia.
Leão (13,5) – Dorme muito e a bros vivem em zonas muito diferenciadas: na vizi- da eletricidade como também se expõem mais à
qualquer hora, mas quase sempre em nhança de cidades, com acesso à eletricidade, ou luz natural, e têm ciclos de sono-vigília mais bem
pequenas sestas, para estar atento a pos- em comunidades isoladas, sem esse recurso. sincronizados com o dia solar e não com ciclos
síveis vítimas. Como relataram na revista Journal of Biological artificiais”, diz Horacio de la Iglesia, professor do
Porco (7,8) – Dorme sempre para o Rhythms, depois de analisarem duas povoações, os Departamento de Biologia da Universidade de
mesmo lado. investigadores descobriram que, no verão, os que Washington.
Cabra (5.3) – Procura normalmente dispunham de iluminação elétrica tendiam a apre-
refúgios para se proteger de predadores. sentar fases de sono mais curtas (entre 20 e 40 AUSTRALOPITECOS E NEANDERTAIS
Elefante-africano (3,3) – É pouco minutos) do que aqueles que tinham apenas luz Se recuarmos até ao tempo dos nossos antepas-
dorminhoco, pois tem de procurar natural. No inverno, os que não tinham eletricidade sados mais remotos, podemos também observar
muita comida para encher a barriga. também dormiam mais 15 a 50 minutos. Isto era como evoluiu o sono. Parece que Lucy, a Australopi-
Cavalo (2,9) – Tanto pode dormir de comum a todos: dormiam mais no inverno do que thecus afarensis com mais de três milhões de anos
pé como deitado no chão. no verão. de antiguidade descoberta na Etiópia, dormia numa
Girafa (1,9) – Repousa sempre de pé. “Estas sociedades vivem em maior sintonia com espécie de ninho, nos ramos de uma árvore, segundo
a iluminação natural. Não só dependem menos Fred Coolidge, professor de psicologia da Universi-

36 SUPER
AGE-SPL
Cabiam ali até oito indivíduos e destinavam-se
exclusivamente ao sono.
Os investigadores encontraram vestígios de
fogo, o que indica que o usavam para se aquecer.
“Dormiam em grupos de oito a doze pessoas, com
uma espécie de braseiras nas zonas que serviam de
dormitório. Trata-se de espaços limpos, e utiliza-
vam o fogo de forma diferente dos braseiros onde
assavam a carne para comer”, descreve Vallverdú.
Além disso, também descobriram restos de ali-
mentos, o que indica que comeriam em algum
momento do seu período de descanso.

DISPOSITIVOS ELETRÓNICOS
Como se vê, o sono foi-se adaptando ao ambiente
e aos avanços que iam surgindo. A influência da
eletricidade é inquestionável, e permitiu o desen-
volvimento dos dispositivos eletrónicos de que
dispomos atualmente e que adiam cada vez mais a
hora a que vamos para a cama. “A maior parte dos
seres humanos que vive em ambientes urbanos opta
por prolongar o final do dia, e não por antecipar o
seu início. São raros os casos de quem utiliza a luz
para sair da cama antes do amanhecer, a não ser por
motivos laborais ou para ir para a escola. O resul-
tado é que o sono diário, durante os dias úteis,
se reduziu muito em comparação com os nossos
antepassados”, indica Horacio de la Iglesia.
O que se destaca é que apenas metade das
pessoas está satisfeita com a forma como dorme,
segundo o V Inquérito do Sono, realizado pela
empresa de tecnologia global Royal Philips em
treze países. Quatro em cada dez participantes
ficam a olhar para o telemóvel até adormecer ou
começam mal acordam. Grande parte da popula-
ção não descansa bem nos dias úteis e utiliza o fim
de semana para recuperar as horas perdidas.

Os neandertais
Restos encontrados em jazidas
já possuíam
como o Abric Romaní (Barcelona)
mostram que os neandertais tinham
espaços específicos para dormir.
áreas de dormir
Na foto, recriação de um casal.
nas suas grutas
dade do Colorado: “Os australopitecos mantinham neandertais (Homo neanderthalensis), há entre 230 Embora a tecnologia nos roube horas de sono,
um ritmo circadiano, dormiam principalmente de e 40 mil anos, descobrimos ainda mais semelhan- os especialistas começam a observar uma nova
noite, durante cerca de oito horas, e permaneciam ças connosco. Estas comunidades reservavam um tendência que valoriza a qualidade do período de
despertos 16 horas durante o dia. É provável que espaço nas habitações para dormir e descansar, descanso. Um exemplo é o livro A Revolução do
o seu sono fosse interrompido por ventos, chuva como demonstram os vestígios encontrados no Sono – Transforme a Sua Vida, Uma Noite de Cada
ou trovoadas.” Abric Romaní, uma jazida situada no município Vez (Matéria-Prima Edições, 2017), da escritora
Os Homo erectus de há cerca de dois milhões de Capella (Barcelona), em Espanha. Josep Vall- norte-americana de origem grega Arianna Huffing-
de anos já dormiam no chão, em grandes grupos, verdú, investigador da Unidade de Geoarqueologia ton (n. 1950), no qual defende que desvalorizar as
e aproveitavam saliências de rochas e cavernas do Instituto Catalão de Paleoecologia Humana e horas que passamos a dormir e considerá-las uma
pouco profundas para se instalar, ou construíam Ecologia Social, estuda-o há anos. Numa inves- perda de tempo é um risco para a saúde e para a
mesmo uma espécie de casas com ramos. “Foi tigação publicada na revista Current Anthropo- capacidade de tomar decisões, além de exercer um
então que os nossos antepassados conseguiram, logy, o paleoantropólogo revela que, há cerca efeito negativo sobre a vida profissional, pessoal
finalmente, um descanso relativamente ininter- de 55 mil anos, a comunidade de neandertais do e sexual. Um regresso às origens, mas com as
rupto durante oito horas por noite”, diz Coolidge. Abric Romaní dispunha de divisões de cerca de comodidades atuais.
Se avançarmos no tempo e observarmos os dez metros quadrados na zona interior da gruta. L.C.

SUPER 37
Sociedade

A normalização das fake news

Realidades
alternativas
Sempre houve manipulação da opinião pública
através das notícias, especialmente em tempos
de guerra (a verdade é a primeira vítima)
e em regimes ditatoriais. A presidência
de Donald Trump, nos Estados Unidos,
elevou a fasquia a níveis nunca antes vistos.
Em última análise, trata-se de reescrever a história,
como escreve o filósofo Jorge Santos.

M
anhã de 20 de janeiro de 2017. pelo que são, mas sim pela forma como são inter-
Nas imediações do Capitólio, em pretados. A “pós-factualidade” é o aríete de outro
Washington, D.C., concentra-se um fenómeno com ainda maiores consequências epis-
número de pessoas para assistir à temológicas (na forma e na capacidade de com-
investidura presidencial de Donald Trump (n. 1946). preender as coisas): a “pós-verdade”. A “narra-
Quantas pessoas se juntaram naquele local? Preci- tiva”, que não é sequer “baseada em factos reais”,
sando melhor o que esta pergunta pretende veri- ganha à “história”. Se não há factos conclusivos,
ficar: há mais pessoas (mais apoio) nesta cerimó- não há verdade; se não há verdade, o historiador é
nia do que na do seu antecessor, Barack Obama um simples contista, não se diferencia dele.
(n. 1961)? Os factos, que há participantes e qual o
seu número, são tão facilmente verificáveis, tão NARRAR O CONSTATADO Kellyanne Conway chega a uma conferência
aparentemente inquestionáveis como dizer se o A crítica tradicional ao trabalho do historiador de imprensa sobre a pandemia de Covid-19,
na Casa Branca, em 1 de abril de 2020.
GETTY

novo presidente usava ou não gravata e de que cor. é antiga e incide fundamentalmente na sua mis-
Depois da verificação dos factos, não há dúvidas: são última: a narração do constatado. O filósofo
há um número concreto de pessoas, que é inferior francês Paul Ricoeur (1913–2005) apontou opor-
ao da investidura anterior. tunamente as três fases que caracterizam e dis- da verdade. É por isso que a história nasce “contra”
Para um historiador, isto parece não levantar tinguem o trabalho do historiador, existindo um a ficção, com a vontade de não ser em caso algum
problemas, mas, ainda assim, eles existem. Quando propósito inequívoco e diferencial na sua função. fictícia ou mitológica, ainda que para narrar o que
os factos permitem constatar a evidência histórica, As três etapas consecutivas do seu trabalho são é histórico seja necessário recorrer à ficção que
surge uma pessoa, conselheira do novo presidente a constatação dos factos através da investigação implica qualquer narração.
dos Estados Unidos, Kellyanne Conway (n. 1967). (neste caso, há X pessoas e antes havia Y), a Platão e Aristóteles olharam com receio, se não
Para justificar o falseamento dos números pelo compreensão do que estes factos significam (há com estrondosa indiferença, o trabalho do historia-
assessor de imprensa da Casa Branca, que indicou menos gente agora do que antes) e a forma dis- dor. Interpretar e relatar o constatado parecia-lhes
que assistiram mais pessoas a esta tomada de cursiva através da qual expõe o significado dos um exercício duvidoso, algo suscetível de corrup-
posse do que à anterior, ela declara que o porta-voz factos (a interpretação do que constatou). ção, no sentido em que podia ser feito por medida,
não mentiu: forneceu “factos alternativos”. O propósito de tudo isto, que distingue o his- para justificar e inocentar as maiores atrocidades
A isto, chama-se “pós-factualidade”, uma peculiar toriador, por exemplo, de um ideólogo, de um que alguém pudesse cometer. A falsidade poderia
teoria que alega que os factos não têm relevância romancista ou de um demagogo, é a demonstração aflorar sob a forma de verdade indiscutível, pelo

38 SUPER
que o seu caráter epistemológico era questionável. mundo e da sua história, a sua falta de sentido vazio sobre a própria necessidade do historiador.
Porém, havia algo mais, sempre centrado na ine- e de lógica, a loucura com a qual se vai tecendo, Enquanto a história certifica a verdade, a narrativa
vitável função narrativa: esta exige uma coerência que levou o pintor surrealista alemão Max Ernst certifica a conveniência: de entre os infinitos possí-
literária, que os factos se sucedam uns aos outros e (1891–1976) a argumentar que apenas um louco veis, ficarei com o que mais me satisfaz, com o que
que culminem – e sejam já condicionados por ele – poderá entender o mundo, não um historiador. mais me convém. O critério já não é aceitar o que
num final lógico. De facto, a realidade não opera Com o auge do relativismo pós-moderno, o aconteceu, mas adaptar o sucedido ao que mais
dessa forma: a racionalidade argumentativa cos- questionamento acerca da função do historiador benefícios me dá. É uma tentação, a maldita tenta-
tuma ser posta de parte; as coisas, defendia Aris- tem vindo a crescer e a popularização de uma ção do sucesso, para os historiadores. Razão pela
tóteles, passam “uma ao lado de outra”, não uma enviesada e vaga leitura do filósofo prussiano qual temos de saber, por exemplo, que, indepen-
“em função da outra”, ou, como o escritor inglês Friedrich Nietzsche (1844–1900), que defende que dentemente do seu significado, a investidura de
Aldous Huxley (1894–1963) exprimiu a questão: “não há factos mas apenas interpretações” ou Trump teve menos participantes do que a de Obama.
“O problema da ficção é ter demasiado sentido, que “as verdades são ilusões que se esqueceram É um facto histórico, o resto são narrativas.
a realidade não o tem.” Foi a irracionalidade do de que o são”, exponencia um questionamento J.S. / A.R.

SUPER 39
Sociedade

James Randi (1928–2020)

Herdeiro
de Houdini
A morte de James Randi, há um ano, deixou
um espaço vazio na batalha contra o charlatanismo:
o do mago que deteta o truque onde o cidadão
comum (e crédulo) só vê prodígios inexplicáveis.

P
ouco antes da meia-noite de 20 de outu- primeiro a demonstrar que um ilusionista poderia
bro de 2020, saía no Twitter a notícia: reproduzir todos os seus supostos prodígios.
James Randi tinha morrido. Como nas
redes sociais se mata e se ressuscita as CRIANÇA SOBREDOTADA
pessoas com facilidade, esperei inicialmente que se Contudo, Randi foi muito mais do que o mágico
tratasse de um boato. Conhecia a idade avançada que desmascarou Geller. Nascido em Toronto
de Randi e o seu delicado estado de saúde, mas (Ontário), em 7 de agosto de 1928, com o nome de
James Randi em 2016.
não queria acreditar. Segundos depois, dei com Randall James Hamilton Zwinge, era o mais velho de
um tweet de Penn Jillete que confirmava o pior. três irmãos e uma criança sobredotada: obteve
“Randi, Randi, Randi, Randi. É incrível a falta que uma licença especial para poder estudar em casa e
me fazes. Não imagino que este sentimento vá só ir à escola para fazer exames. “Nem sequer tive O CASO URI GELLER
desaparecer jamais, Randi”, lamentava o membro explicadores. Vivia entre o museu e a biblioteca Fez a delícia dos rádio-ouvintes e dos telespeta-
falador da dupla de ilusionistas Penn & Teller. “Um pública de Toronto, sempre rodeado de livros e a dores norte-americanos entre os anos 1950 e 1980,
dia triste para a verdade e a coragem. James Randi, fazer perguntas a pessoas mais velhas. Achava a mas tudo mudou quando se cruzou com Uri Geller.
um amigo e herói, morreu hoje aos 92 anos”, escola aborrecida; adormecia nas aulas”, contou. Não só deu a Johnny Carson os conselhos neces-
escreveu o físico Lawrence Krauss. “Choro James Um dia, quando tinha 12 anos, viu um espetáculo sários para não ser enganado, como assistiu a uma
Randi, mago de classe mundial, nemésis bem-hu- do ilusionista Harry Blackstone, no qual este fazia demonstração do israelita na redação da revista
morado de dobra-colheres, espiritistas e outros levitar a sua assistente, a “princesa Astra”. O jovem Time, reproduziu os seus superpoderes diante dos
charlatães”, disse o biólogo Richard Dawkins. quis saber como alguém podia fazer aquilo e, quando jornalistas e dedicou-lhe um livro, The Truth About
Muita gente nunca ouviu falar de Randi. Não é de um acidente de bicicleta o imobilizou durante Uri Geller (1982).
admirar. Apesar de ser uma figura do ilusionismo meses, devorou todos os livros de magia ao seu O seu olhar de ilusionista permitia-lhe detetar um
equiparável a Harry Houdini, poucos dos seus livros alcance. Aos 17 anos, abandonou os estudos e jun- truque onde os outros viam um milagre. “Não há
foram traduzidos, e raras vezes foi visto em pro- tou-se a um grupo de feirantes como ilusionista. nada como um ladrão para apanhar outro ladrão”,
gramas de televisão, quase sempre em canais por Primeiro como Randall Zwinge e, depois, como o justificava-se, enquanto dobrava uma colher
cabo. Nos Estados Unidos, o seu país adotivo, Assombroso Randi, maravilhou o público durante diante dos nossos olhos sem que percebêssemos
Randi foi primeiro uma grande estrela do espetá- quatro décadas com os seus números de men- como. Randi expôs na televisão fraudes como
culo e, depois, o caça-charlatães mais popular, um talismo e escapismo. Tanto se libertava de uma os cirurgiões psíquicos, os videntes, os astrólo-
indivíduo cujos livros prolongavam as obras de Isaac camisa de forças, pendurado pelos pés sobre as gos, os adivinhadores, os pregadores televisivos
Asimov, Arthur C. Clarke e Carl Sagan, entre outros. cataratas de Niágara, como permanecia dentro de que diziam poder curar doentes graças ao poder
Decerto que o leitor se lembra de Uri Geller, o um caixão de metal, no fundo de uma piscina, divino, os médiuns…
israelita que alcançou fama mundial porque dizia durante 93 minutos, batendo um record de Harry Mais importante, Randi foi o aglutinador de
conseguir dobrar colheres com o poder da mente. Houdini de 1926. “Eu era muito mais novo, quando um grupo de intelectuais que, preocupados com
Foi Randi que, em 1973, evitou que ele enganasse o consegui, do que Houdini quando estabeleceu o avanço da irracionalidade na sociedade norte-
com os seus truques Johnny Carson na NBC, o seu record”, sublinhava quando lhe falavam da -americana, achavam que tinham de intervir. Jun-
perante 40 milhões de telespetadores, sendo o proeza. tamente com os seus amigos Isaac Asimov, Martin

40 SUPER
GETTY
Gardner, Ray Hyman, Philip Klass, Paul Kurtz e Carl homeopatia. Randi integrou a delegação da Nature que desafiaram, no século XX , médiuns e outros
Sagan, fundou, em 1976, a Comissão para a Inves­ que se deslocou ao laboratório de Benveniste. Des­ indivíduos presumivelmente dotados de poderes
tigação Científica das Afirmações do Paranormal cobriu não apenas erros metodológicos que tor­ extraordinários. Ninguém reclamou qualquer dos
(CSICOP), atual Comissão para a Investigação navam os resultados irrepetíveis como, também, prémios.
Cética (CSI) e germe de um movimento raciona­ que os investigadores recebiam dinheiro da multi­ Randi considerava­se herdeiro intelectual de John
lista e humanista que se tornou global. nacional homeopática Boiron. Nevil Maskelyne, um ilusionista vitoriano que des­
No início dos anos 1980, dois jovens surpreen­ mascarava médiuns, e de Harry Houdini. Ele próprio
deram com as suas extraordinárias faculdades À ESPERA DE UM SUCESSOR fez escola com alunos como Banachek (um dos
os parapsicólogos do Laboratório McDonnell de “Estou muito orgulhoso de ter seguido os passos jovens que ridicularizaram os parapsicólogos do
Investigação Psíquica, na Universidade de Washing­ de Houdini”, dizia James Randi em referência à Laboratório McDonnell e que cria, agora, truques
ton. Quando os investigadores se preparavam cruzada contra médiuns e outros embusteiros que para Penn & Teller), Criss Angel e David Blaine,
para anunciar que, após três anos de experiências, o mágico de origem húngara tinha protagonizado. entre outros. Desde Maskelyne, na segunda
tinham provas sólidas da existência de poderes Randi ofereceu, entre 1996 e 2015, um milhão de metade do século XIX, até Randi, houve sempre
paranormais como a telecinese (a capacidade dólares a quem demonstrasse, em condições con­ ilusionistas que se destacaram como caçadores
para mover e alterar objetos sem lhes tocar), troladas, qualquer faculdade paranormal ou algo de charlatães.
Randi revelou que os dois sobredotados eram, que fosse considerado cientificamente impossível, É apenas uma questão de tempo até chegar
na realidade, aprendizes de ilusionismo e que, como provar que a homeopatia funciona. Seguia, alguém que possa preencher o vazio deixado, há
se tinham conseguido tais feitos, era porque os assim, uma tradição que remonta a 1922, quando um ano, por um homem cuja coragem, ousadia e
parapsicólogos não tinha tomado precauções a revista Scientific American ofereceu 2500 dóla­ compromisso social serviu de exemplo a cientistas,
para evitar ser enganados. res à primeira pessoa que fotografasse espíritos, céticos e divulgadores de todo o mundo. “Fazem
Recordando o episódio, John Maddox, diretor da e outros 2500 a quem protagonizasse manifesta­ muito mal às pessoas. Fazem­nas sofrer e, em alguns
revista Nature e também seu amigo, confiou nele, ções psíquicas. Entre os encarregados de verificar casos, as suas vítimas são pessoas com problemas
em 1988, quando o imunologista francês Jacques os factos, estava Houdini. Depois desse desafio ini­ mentais que deveriam ser tratadas por profissio­
Benveniste assegurou ter demonstrado que a água cial, houve outros patrocinados por mágicos como nais”, dizia Randi sobre os promotores de fraudes.
tem memória, o que conferia uma base científica à Joseph Rinn e Joseph Dunninger, dois ilusionistas L.A.G.

SUPER 41
Paleontologia

Como conseguiram impor-se?

O triunfo dos
dinossauros
Originalmente, eram répteis errantes
do tamanho de um gato, rodeados
de pesos-pesados. Todavia, evoluíram
até conseguirem dominar a Terra
durante mais de cem milhões de anos.

42 SUPER
JOSÉ ANTONIO PEÑAS
Dois herrerassauros (dinossauros carnívoros
que estão entre os mais antigos conhecidos,
pois viveram há cerca de 230 milhões
de anos) aperceberam-se a tempo
da presença de Prestosuchus, um dos
predadores mais temíveis do Triássico,
mas que não tinha a velocidade
daqueles animais ágeis, cujos fósseis
foram descobertos na Argentina em 1963.

SUPER 43
C. HENDRICKX

Três Coelophysis patrulham uma floresta


no final do Triássico. Estes primeiros
dinossauros carnívoros, do tamanho
de um cão grande, eram rápidos
e tinham dentes afiados. Nesta
ilustração, são sobrevoados por
Eudimorphodon, um pterossauro.

Steve Brusatte (n. 1984), autor deste artigo,


é um paleontólogo e biólogo evolucionista
norte-americano. Estudou na Universidade
de Chicago (Illinois), fez o doutoramento
na Universidade Columbia (Nova Iorque)
e está agora na Universidade de Edimburgo
(Escócia). O seu livro A Ascensão e Queda
dos Dinossauros – Uma Nova História de um
Mundo Perdido (Contraponto Editores, 2020)
foi um grande sucesso. Na foto, escava na jazida
de Loulé onde foram encontrados os fósseis
da salamandra Metoposaurus algarvensis,
um dos maiores predadores da sua época
(viveu há cerca de 200 milhões de anos).

Os antepassados
dos crocodilos
dominavam
o planeta
GETTY

H
á cerca de 250 milhões de anos, uma por causa do impacto contra a Terra de um grande irreconhecível nos dias em que o Prorotodactylus
criatura caminhou pela margem pan- asteroide. Hoje, o grande mistério sobre a evolu- vagueava pelas margens do lago. Acabava de ocorrer
tanosa de um lago, no que é agora a ção dos dinossauros é descobrir como consegui- uma das maiores extinções em massa conhecidas.
Polónia, deixando as suas pegadas ram situar-se no topo do reino animal. Um aquecimento global intenso e rápido, promo-
impressas na lama. Era um ser tímido, chamado vido por erupções vulcânicas a uma escala inimagi-
Prorotodactylus, não maior do que um gato e de ADAPTAÇÕES ANATÓMICAS nável na atual Sibéria, exterminara 95 por cento das
patas finas. Todavia, as pegadas não foram a única Os primeiros descendentes do Prorotodactylus espécies. Foi dessa catástrofe que surgiram os
coisa que deixou para a posteridade: os seus des- deveriam viver semiescondidos, sempre descon- antepassados e parentes mais próximos dos dinos-
cendentes iriam transformar-se nos verdadeiros fiados da possível presença de predadores muito sauros, incluindo o Prorotodactylus. Ao fim de vinte
amos da Terra, os dinossauros. Só o seu nome maiores e mais temíveis do que eles. Como se milhões de anos, tinham evoluído e diversificado
evoca uma imagem de majestade. Figuram entre explica, nesse caso, que acabassem por desem- em três subgrupos principais: os terópodes, car-
os grupos de animais mais bem sucedidos da his- penhar o papel de protagonistas? Averiguá-lo não nívoros; os saurópodes, de compridos pescoços e
tória da vida, e dominaram o planeta durante mais é fácil, mas surgiu, nos últimos anos, uma hipótese devoradores de plantas; e os ornistíquios, bicudos
de cem milhões de anos. Incluíam seres de todas surpreendente que tem vindo a conquistar adep- e herbívoros. Muito depois, estas linhagens dariam
as formas e tamanhos (alguns eram maiores do tos: talvez a razão para o êxito dos dinossauros não origem a dinossauros muito conhecidos: o Tyran-
que um avião) e povoaram o globo. resida nos seus dentes, garras ou músculos. Talvez nosaurus, o Brontosaurus e o Triceratops, respeti-
Os paleontólogos estiveram muito tempo obce- se deva a uma série de estranhas adaptações ana- vamente.
cados pela tentativa de compreender a razão pela tómicas, invisíveis do exterior, que lhes permitiram
qual esses poderosos organismos se extinguiram prosperar num dos períodos de alterações climáticas CONCORRÊNCIA TEMÍVEL
de repente, há 66 milhões de anos. Conhecemos, mais extremas da história terrestre. Antes disso, durante o Triássico (252 a 201 milhões
agora, a resposta: os seus dias chegaram ao fim O mundo tinha-se transformado num lugar quase de anos atrás), a maior parte dos dinossauros era do

44 SUPER
tamanho de um cavalo ou mais pequenos, e não corriam muito mais depressa do que os seus paren- tinham convergido na adoção de estilos de vida e
estavam sozinhos. Proliferavam ao seu lado todo tes mais próximos, diz John Hutchinson, especia- dietas semelhantes.
o tipo de répteis, incluindo alguns muito bem suce- lista em locomoção animal do Real Colégio Veteri-
didos: os pseudossúquios, dos quais descendem nário da Universidade de Londres. Tendiam a des- DESCOBERTA SURPREENDENTE
o moderno crocodilo e o caimão, que formam hoje locar-se sobre patas compridas e eram frequen- Em 2008, voltei a analisar esses novos restos a
um grupo pouco importante de cerca de 25 espécies temente bípedes. A hipótese foi articulada por fim de perceber a evolução de ambas as estirpes,
e vivem em climas quentes e meios semiaquáticos. especialistas como Robert Bakker (n. 1945, então e cheguei a uma conclusão surpreendente: durante
Contudo, no Triássico, havia muito mais espécies, na Universidade de Harvard, Massachusetts) e todo o Triássico, os pseudossúquios impuseram-se
incluindo animais “blindados” que comiam vege- Alan Charig (1925–1997), do Museu de História aos dinossauros. Abarcavam mais espécies, eram
tais, omnívoros desdentados que corriam sobre as Natural de Londres. Assim, a resposta parecia fácil: mais abundantes nos seus ecossistemas e possuíam
patas traseiras e superpredadores (isto é, sem os dinossauros eram mais velozes do que os cro- uma grande variedade de padrões corporais,
outras espécies que os comessem), os rauissúquios, codilos e conseguiram, com o tempo, afastá-los. características anatómicas e regimes alimentares.
que podiam alcançar nove metros de compri- Tratava-se de uma hipótese elegante, mas, já Estas descobertas voltavam a colocar a questão
mento e possuíam dentes como facas para des- nos meus tempos de estudante de paleontologia, de compreender como tinham os dinossauros
pedaçar a carne. incomodava-me. Na primeira década do século XXI, conseguido converter-se nos animais dominantes.
começava a parecer cada vez mais insustentável. Isso deveria ter acontecido de forma relativamente
HIPÓTESE DA VELOCIDADE Desde que Bakker e Charig tinham apresentado a rápida, no final do Triássico, uma época em que
Com rivais assim, como se arranjaram os dinos- sua teoria, fora descoberta uma grande quantidade sabemos que os pseudossúquios começaram a
sauros para conseguir afastá-los e tornar-se as cria- de fósseis de pseudossúquios do Triássico, e muitos entrar em declínio definitivo. Faz todo o sentido,
turas dominantes? Nos anos 1970, alguns paleon- eram extremamente parecidos com os dos dinos- pois foi precisamente então que ocorreu algo
tólogos pensavam que os primeiros dinossauros sauros, sinal inequívoco de que os dois grupos épico no planeta.

SUPER 45
JOSÉ ANTONIO PEÑAS

Há 66 milhões de anos, um asteroide


com cerca de dez quilómetros de diâmetro
caiu no que hoje é o noroeste da península
do Iucatão (México). Grandes tsunamis
e incêndios (como este do qual fogem
Triceratops) foram o primeiro efeito.
Posteriormente, a grande quantidade
de poeira e detritos levantados pelo
impacto bloqueou a passagem da radiação
solar durante anos. O arrefecimento
global e a morte de muitas plantas,
privadas da fotossíntese, devastaram
o ambiente e eliminaram os dinossauros.

46 SUPER
SUPER 47
FRATURA GEOLÓGICA
Nos tempos do Prorotodactylus, quase toda a
terra firme fazia parte do supercontinente Pangeia.
Há cerca de 200 milhões de anos, essa massa come-
çou a fragmentar-se. A fratura começou pelo centro
e iria dividi-la em duas metades. A América do Norte
separou-se da Europa, e a América do Sul do sul
do continente africano. Nesse processo, e durante
500 mil anos, os vulcões situados no que é hoje
o fundo do Atlântico sangraram incessantemente
lava, acompanhada de enormes quantidades
de dióxido de carbono e dissulfeto de carbono.
Estes gases aqueceram a atmosfera ao mesmo
tempo que as cinzas das erupções vulcânicas difi-
cultavam a passagem da radiação solar. Como
resume Paul Olsen (n. 1953), paleontólogo da Uni-
versidade Columbia, “períodos de calor intenso
alternavam com cruéis invernos vulcânicos que
duravam décadas”. Resultado: pelo menos 30%
das espécies iriam extinguir-se.

O segredo
poderia estar
no sistema O Eoraptor era um dinossauro bípede
primitivo com pernas longas e do tamanho
de um cão médio que viveu no Triássico,
respiratório há cerca de 230 milhões de anos.
AGE

SUPERPODER OCULTO entra e sai. Isso implica que a membrana que os nas surgem geralmente pneumatizadas, o que
Oo registo fóssil revela-nos que os dinossauros reveste (a pleura) não possa ser muito fina: caso indica que tinham, provavelmente, pulmões seme-
se adaptaram a esse inferno, mas os pseudossú- isso acontecesse, iria desgastar-se e romper-se ao lhantes aos das aves. Segundo Emma Schachner,
quios não. A sua rica diversidade no Triássico desa- mover-se e roçar incessantemente nas costelas. “essa anatomia respiratória poderia proporcionar-
pareceu, e só restou um par de raminhos da sua Contudo, os pulmões funcionam de forma dife- -lhes uma grande vantagem adaptativa”.
outrora frondosa árvore genealógica. Surgiram rente noutros animais, como as aves, descendentes Ainda não sabemos se essa característica foi
muitas hipóteses para tentar explicar o fenómeno, diretas dos dinossauros. Nos pássaros, são como decisiva para a surpreendente escalada até ao topo
mas podemos agrupá-las em dois blocos: o dos que uma densa esponja que permanece imóvel. Por dos dinossauros. Antes, pensava-se que a atmosfera
defendem que os dinossauros possuíam alguma essa razão, a membrana pode ser extremamente do Triássico continha muito menos oxigénio do que
vantagem sobre os tetravôs dos crocodilos (maior fina sem correr o risco de se rasgar, o que aumenta a de hoje, pelo que pulmões mais eficientes teriam
inteligência, mais velocidade ou agilidade…), que a eficiência com que o oxigénio passa dos pulmões constituído um verdadeiro trunfo. Todavia, consi-
não fora suficiente para se imporem no Triássico para o sangue. Além disso, vários sacos de ar inde- dera-se agora que havia, durante esse período,
mas se revelou decisiva quando Pangeia se sepa- pendentes expandem-se e contraem-se para cana- oxigénio em abundância no ar.
rou, e o dos que afirmam que não venceram por lizar num única direção o fluxo de ar que passa Desconhecemos também se os pseudossúquios
qualquer razão especial. A subida das tempera- pelos pulmões. Isso significa que se extrai oxigénio possuíam adaptações respiratórias parecidas.
turas foi tão rápida e brutal que a sobrevivência do ar tanto na inalação como na exalação: as À partida, os seus ossos fossilizados não apre-
dependia do acaso. aves aproveitam muito mais cada respiração. Em sentam as marcas de pneumatização típicas dos
Emma Schachner, paleontóloga e especialista resumo: os pulmões das aves são super-eficientes. primeiros dinossauros. Contudo, Richard Butler,
em anatomia comparada da Universidade Estatal Schachner já publicou vários trabalhos nos quais paleontólogo da Universidade de Birmingham
da Luisiana, não acredita que os dinossauros pre- defende que os dos dinossauros triássicos eram (Inglaterra), demonstrou que apresentavam
valeceram por pura casualidade, e adiantou uma semelhantes, e que foi isso que os ajudou a pros- depressões em algumas vértebras que poderiam
interessante sugestão que está a despertar grande perar num meio muito complicado. indiciar a existência de sacos de ar, algo diferentes
entusiasmo entre os especialistas: as criaturas dos das aves modernas.
possuíam um superpoder oculto que lhes permitiu SACOS DE AR
suportar a atmosfera tóxica do Triássico tardio. Os pulmões são tecidos moles que raras vezes se RESPIRAR POR TODO O CORPO
convertem em fósseis, mas podem deixar indícios Cecilia Apaldetti, da Universidade Nacional de
COMPREENDER OS PULMÕES reveladores. Nas aves, os sacos de ar deslocam-se San Juan (Argentina), estuda uma hipótese que
Para podermos compreender esta tese, temos de muitas vezes na direção das vértebras, criando nelas pode transpor para outro nível a questão da pneu-
saber primeiro alguma coisa sobre o funcionamento fissuras ou mesmo cavidades, num processo que se matização dos ossos. Há uma década, ela e a sua
dos pulmões, mesmo em traços largos. Nos mamí- designa por “pneumatização”. Observamos algo de equipa descobriram numerosos dinossauros des-
feros, o diafragma e vários músculos ajudam esses parecido nos esqueletos dos dinossauros do Triás- conhecidos do Triássico tardio na bacia de Marayes-
órgãos a expandir-se e a contrair-se quando o ar sico? Sim. Algumas partes dos ossos das suas colu- -El Carrizal, situada no nordeste daquele país

48 SUPER
Um reinado bruscamente interrompido
A longa era dos dinossauros foi marcada por extinções em massa. Há 66 milhões de anos, chegou o seu fim, causado por um asteroide.

PÉRMICO (299–252 Ma) A extinção em massa Milhões de anos (Ma)


antes do presente.
do Pérmico elimina 95%
Neste período, surgiu todo o tipo das espécies marinhas
de animais, incluindo muitos lagartos e 70% das terrestres.
parecidos com os dinossauros,
mas sem parentesco com eles.

Desenvolvem-se
os gorgonopsídeos,
260 parentes distantes
dos mamíferos
252

TRIÁSSICO (252–201 Ma) Nova extinção assinala


o final do Triássico.
245 Aparecem
os primeiros
O supercontinente Pangeia ictiossauros.
Aparecem os dinossauros. A maioria
separa-se e os vulcões
não era maior do que um cavalo.
libertam gases que causam
O planeta era governado por outras
um aquecimento global.
criaturas, como os pseudossúquios,
Os pseudossúquios
antepassados dos atuais crocodilos.
são quase aniquilados.
220 Surge o Odontochelys,
uma das tartarugas
mais antigas conhecidas.

201 200 Emergem


os protomamíferos
JURÁSSICO (201–145 Ma) Aparece de sangue quente.
o Stegosaurus.
Os dinossauros sobrevivem
à extinção do Triássico tardio
e começam a diversificar-se
e a aumentar de tamanho. Os saurópodes gigantes
(como os Diplodocus)
já se disseminaram
amplamente.
155
150
145

CRETÁCICO (145–66 Ma)


Uma extinção menor
Evoluem alguns dos grupos de causa incerta
de dinossauros mais emblemáticos, elimina muitos dos 130 Evolução das primeiras
como os Tyrannosaurus e os Triceratops. grandes dinossauros. plantas com flores.

100 Desenvolvem-se
as primeiras abelhas.

Um grande asteroide
embate na Terra
e apaga do mapa
os dinossauros,
exceto os antepassados
das atuais aves.

66
62 Surgem os pinguins.

52 Surgem os morcegos.

SUPER 49
O mundo do Triássico
N o tempo do Triássico, não teríamos
reconhecido o planeta. Quase toda
a terra estava unida num supercontinente.
pensar que os animais atravessavam Pangeia
livremente, pois não havia mares nem gran-
des barreiras geológicas que o impedissem,
dos demonstraram que a região equatorial
do supercontinente era terrivelmente quente
e húmida, e a temperatura nos desertos ultra-
“Pangeia estendia-se de um polo a outro e a mas não era assim. “Embora uma criatura passava os 50 graus Celsius. Os dinossauros
cavalo sobre o equador, e tinha a forma do ambiciosa pudesse atravessar o superconti- deparavam com demasiadas dificuldades
ícone dos vídeojogos Pac-Man”, diz Jessica nente desde que gastasse toda a vida a conse- para ocupar essas regiões extremas, pelo que
Whiteside, professora de geoquímica na gui-lo, havia zonas climáticas que ditavam as viviam sobretudo em latitudes médias. Os
Universidade de Southampton (Inglaterra). suas regras”, explica Whiteside. Os seus estu- pseudossúquios partilhavam com eles essas
Estava rodeado por um vasto oceano cha- regiões, mas eram também capazes de habi-
mado Panthalassa. Poder-se-ia tar os desertos.

Europa
China
América
do Norte

PANGEIA
África
A Terra era muito diferente,

AGE
há 220 milhões de anos.

sul-americano. Entre eles, há uma espécie que sistemas. Somadas, poderiam tê-los transformado laser para criar modelos digitais dos dinossauros
denominaram Ingentia prima, que poderia ser o em organismos de grande eficiência, quase indes- e dos pseudossúquios, que submetem depois a
dinossauro mais antigo conhecido maior do que um trutíveis. rotinas de ginástica virtual para fazer uma ideia de
elefante. O seu esqueleto está cheio de orifícios, como se movimentavam. O projeto só ficará con-
o que sugere que possuía numerosos sacos de ar. TRUNFOS VARIADOS cluído dentro de um ou dois anos, mas já esclare-
O sistema respiratório deste grande herbívoro À luz destas descobertas, o que acontece à ceu algumas coisas. Por exemplo, observaram que
estendia-se literalmente pelo corpo, por estranho hipótese de Bakker e Charig de que os dinossauros uma espécie de dinossauro parecia caminhar sobre
que possa parecer. conseguiam correr mais do que os protocrocodilos, quatro patas nos primeiros anos, e sobre duas
Para Cecilia Apaldetti, “estes dinossauros dispu- e que isso teria sido decisivo para a sua preponde- quando alcançava a idade adulta.
nham de um sistema respiratório melhorado que rância? A equipa de John Hutchinson está a reexa- Talvez nunca encontremos uma resposta simples
lhes proporcionava numerosas vantagens”. Com minar a teoria. Segundo este investigador, “as para o enigma de saber como puderam os dinos-
sacos de ar distribuídos por quase todo o orga- antigas noções sobre locomoção animal basea- sauros conquistar o trono do Jurássico, há 200
nismo, podiam respirar com uma eficiência inacre- vam-se quase exclusivamente na anatomia”, mas milhões de anos. A hipótese mais completa indica
ditável e fazer circular o ar pelo seu interior, o que isso não nos revela, necessariamente, a rapidez de que dispunham de vários trunfos: pulmões muito
os mantinha frescos. Isso teria, por sua vez, promo- uma espécie. Ele e a sua equipa usam o varrimento eficientes, um metabolismo acelerado e um cres-
vido um metabolismo e um crescimento rápidos. cimento rápido. Possivelmente, teria de se acres-
Além disso, os ossos eram leves. A soma destes centar outros fatores ainda desconhecidos, e não
fatores ter-lhes-ia permitido tornar-se enormes Modelos digitais devemos esquecer-nos de que, se as condições
sem serem afetados por problemas como a inca- ambientais tivessem sido apenas um pouco dife-
pacidade de suportar o próprio peso ou o sobrea- permitem saber rentes, o seu reinado poderia nunca ter aconte-
quecimento. Qualquer destas características cido. No entanto, aquelas ténues pegadas do
poderia ter ajudado os dinossauros a ultrapassar como se moviam Prorotodactylus no barro foram o princípio de um
centenas de milhares de anos de aquecimento longo caminho rumo à grandeza.
global, atmosferas tóxicas e degradação dos ecos- os dinossauros S.B.

50 SUPER
SUPER 51
História
ASC

Margaret Macdonald
no início do século XX.

52 SUPER
Margaret Macdonald

A mãe da arte nova


Uma talentosa designer inglesa, aliada a um igualmente genial arquiteto escocês,
criou praticamente sozinha a art nouveau, mas hoje poucos lembram o seu nome.

C
harles Rennie Mackintosh (1868–1928) gou com a formação dos Quatro de Glasgow. convencional nos primeiros anos, seria posterior-
é mundialmente conhecido como o Não há informação exata sobre como as irmãs mente designado por Glasgow Style.
arquiteto mais famoso da Escócia. A sua Macdonald conheceram Charles Rennie Mackin-
mulher, a artista Margaret Macdonald tosh e o seu colega Herbert MacNair (1868–1955), EM DEFESA DA ARTE TOTAL
(1864–1933), ocupa, em contrapartida, um lugar futuros maridos de ambas. O que sabemos é que, A rutura com a tendência anterior baseava-se
secundário, apesar da fama que conquistou no em 1894, já todos colaboravam e tinham criado o na extensão do design a cada um dos pormenores
seu tempo: entre 1895 e 1924, contribuiu para denominado “estilo Escola de Spook”, caracteri- que compunham um projeto, incorporando desde
mais de 40 exposições na Europa e na América, zado pelo arts & crafts e pelo simbolismo; pouco a arquitetura até à decoração, com todos os seus
e foi reconhecida pelas principais elementos. A equipa foi pioneira no

ASC
revistas de arte da época. design e na decoração de interiores
Todavia, quando morreu, ape- característicos da art nouveau, ou
nas o Glasgow Herald lhe dedicou modernismo.
uma breve menção. Textos pos- Um dos seus projetos mais repre-
teriores sobre história da arte sentativos foi o Willow Tea Room.
também não lhe fizeram justiça, Margaret dirigiu o design da deco-
minimizando a sua importância. ração interior, em estilo lírico e
Porém, Margaret esteve entre os estilizado, com primazia das formas
mais destacados designers, arqui- arredondadas e de elementos vege-
tetos, decoradores e artistas plás- tais; Mackintosh remodelou a estru-
ticas da sua época, tudo isso no tura do edifício (anteriormente, um
contexto conservador do final do armazém), transformando-o em
século XIX, início do XX. vários espaços diferenciados, cada
um com a sua função e decoração. O
INFLUÊNCIAS MILENARES design abarcou todos os pormeno-
Nascida em Tipton (Inglaterra), res, incluindo os serviços de mesa.
o seu pai era um engenheiro de Numa das salas, podemos observar
minas escocês. No final de 1880, uma das obras mais famosas de
a família mudou-se para Glasgow, Margaret: um painel de gesso inspi-
e Margaret e a sua irmã, Frances rado num soneto de Rossetti.
(1873–1921), matricularam-se na Outro grande exemplo do seu tra-
Escola de Artes, onde ambas bri- balho é House for an Art Lover, que
lharam pelo seu talento. o casal apresentou, em 1901, num
Terminada a formação, as irmãs concurso de design arquitetónico
abriram um estúdio onde traba- da revista de decoração de interio-
lharam juntas com tal nível de res alemã Zeitschrift für Innendeko-
cooperação que, por vezes, não ration, embora a casa só viesse a
se sabia quem tinha criado cada ser construída 88 anos depois, com
obra. Os seus cartazes, anúncios, base no projeto original. Margaret
aguarelas e trabalhos em metal e Macdonald foi tão importante que
têxteis conheceram tal êxito que não lhe é apenas atribuído o design
muitos foram expostos no estran- das rosas características da art nou-
geiro. O estilo Macdonald carac- veau: a sua influência atravessou
terizava-se por figuras femininas, fronteiras, e artistas tão emblemá-
sinuosas e alongadas, e um forte ticos como Gustav Klimt ou Josef
simbolismo de influências egípcias Hoffmann inspiraram-se nas suas
e celtas. criações.
Painéis Bordados (1902), obra emblemática da artista.
A época de maior impacto che- A.G.

SUPER 53
Arte

Gótico Americano (1930)

Crónica da vida real


Muitas obras ao longo da história tornaram-se emblemáticas pelo seu tema,
pelo seu autor ou pela época em que foram feitas. Esta, apesar de ser facilmente
reconhecida, remete para uma história e um autor talvez não tão conhecidos.

O
quadro American Gothic é obra do keit), feitos por artistas como Otto Dix (1891–1969) tos, tanto o bico do telhado da casa como os cor-
artista norte-americano Grant Wood ou Max Beckmann (1884–1950), bem como de pos das personagens e a própria forquilha do feno.
(1891–1942) e destaca-se por um estilo absorver o património cultural e pictórico do pas- Com grande pormenor, o artista representa cada um
muito particular, algures entre o rea- sado gótico alemão e de artistas como Albrecht dos elementos e nem sequer se permite divagar fora
lismo dos anos 1920 e as pinturas do Renascimento Dürer (1471–1528) ou Hans Memling (1430–1494). de contexto com a cor, como se se tratasse de uma
alemão. É muito curioso o motivo que inspirou A disposição do quadro recorda, por sua vez, fotografia instantânea ou se estivesse a imitar o
Wood no momento de realizar esta obra: durante a fotografia tradicional dos Estados Unidos: um estilo dos artistas do passado.
uma viagem pelos campos do Iowa, ficou fascinado homem e uma mulher diante da sua modesta pro- A obra é datada de 1930, sem dúvida um ano
pela janela em ogiva que se destacava numa das priedade. Neste caso, o pintor, como dissemos, complicado na história dos Estados Unidos, dado
típicas fachadas de madeira das casas norte-ameri- esboçou primeiro a casa; as personagens do pri- que meses antes tinha acontecido a Quinta-Feira
canas com telhado de duas águas. Desenhou rapi- meiro plano são quase um acréscimo para comple- Negra na Bolsa de Nova York (o Crash de 29), que
damente um croquis e, sem pensar, acrescentou mentar. Os modelos que aceitaram posar para esta dera lugar à crise económica que conhecemos
dois esboços de figuras à frente da casa, para obra foram a irmã do artista e o seu dentista, que como “Grande Depressão”. No campo, as coisas
completar a cena. retratou de modo muito fidedigna, apesar de lhes corriam mal, os bancos exigiam o pagamento dos
Há que referir que o artista vivera três meses em ter prometido que não ficariam reconhecíveis. empréstimos e os preços de venda dos produtos
Munique (Alemanha), onde se fabricavam janelas agrícolas baixavam sem parar. A obra de Wood não
de grande dimensão, semelhantes à da casa do Iowa. VERTICALIDADE E CONTEXTO SOCIAL pode ser entendida sem esse contexto social que
Ali, teve também oportunidade de contemplar os Ataviados como camponeses, chama a atenção a a marca, dado que o artista, como tantos outros,
retratos frios da Nova Objetividade (Neue Sachlich­ verticalidade com que aparecem todos os elemen- interessava-se pelo país e pela sua realidade, ao
contrário do que acontecia com a corrente de van-
guardas que reinava na Europa.
Também há que frisar que a arte nos Estados
Em pormenor Unidos, em 1930, tinha mais ou menos um século.
Depois de ter começado com retratos de perso-

P ara representar com tal veracidade o


olhar deste homem, o seu dentista
(diz-se que é um dos olhares mais inquietan-
camponês; é um fato típico que os pintores
costumavam usar nos seus ateliers quando
davam aulas. A pregadeira que a mulher tem
nagens influentes da Igreja e da alta sociedade, os
pintores foram adotando um papel mais de cronis-
tas (no caso de Wood, da vida no campo). É uma
tes, por ser tão real, da história da pintura), junto ao pescoço fazia parte da coleção de obra de linhas verticais, como dissemos, e de olhos
Wood dedicou-se a, cada vez que ia a uma joias da família do autor. O quadro, uma pin- e olhares que prendem o espetador à sua frente.
consulta, contemplar com grande atenção tura a óleo sobre aglomerado de madeira, com Há uma tensão palpável entre o que se vê e o que
cada gesto dos seus olhos, que depois memo- 78 por 65 centímetros, pode ser visto no Insti- se não vê, entre a nitidez formal e o obscuro e cin-
rizaria, no momento de o passar para a tela. tuo de Arte de Chicago (Illinois), onde integra zento mundo rural que se adivinha.
O fato que o homem tem vestido não é de a coleção Friends of American Art.
ASC

E.D.A.

54 SUPER
SUPER 55
Antropologia

56 SUPER
Nova descoberta surpreendente

O homem-dragão
A recente descoberta do crânio de Harbin (China), com 146 mil anos, deu lugar
ao surgimento de uma nova espécie humana, o homem-dragão ou Homo longi,
em homenagem à zona onde foi encontrado. Cientistas que o estudaram explicam
como era esse hominídeo com uma capacidade cerebral semelhante à nossa.

Xijun Ni, Chris Stringer e Qiang Ji,


três dos paleoantropólogos
que estudaram o crânio de Harbin.

SUPER 57
CHUANG ZHAO

Usando a morfologia craniana do espécime


de Harbin (página oposta, em baixo),
o especialista Chuang Zhao recriou
a provável aparência do Homo longi,
um dos nossos parentes mais próximos,
talvez mesmo mais do que os neandertais.

58 SUPER
CHUANG ZHAO
XIJUN NI
U
ma equipa de cientistas chineses curta, com malares delicados (as maçãs do rosto) laterais, enquanto o toro de Harbin tem a forma
liderada por Xijun Ni e Qiang Ji apre- e retraídos sob a abóbada craniana. Essas carac- de um arco duplo com a área central mais fina. Da
sentou ao mundo um novo crânio terísticas são modernas por natureza e lembram mesma forma, a parte posterior do crânio chinês
humano, quase perfeito, preservado o Homo sapiens. No entanto, a abóbada craniana não mostra o osso occipital altamente angulado
ao longo do tempo como uma preciosa dádiva. do Homo longi tem um perfil claramente primitivo; característico de Miguelón. Visto por trás, Harbin
Provém do rio Songhua, próximo de Harbin, uma é alongada e baixa, e carece da forma globular tem um crânio muito largo com lados paralelos,
cidade localizada na província de Heilongjiang, no característica da nossa espécie. sem a expansão parietal superior do Homo sapiens
nordeste da China. Conhecido como “crânio de e a forma quase esférica da maioria dos restos
Harbin” pela comunidade paleoantropológica e A QUE FAMÍLIA PERTENCE? neandertais.
apelidado de “homem-dragão” pela imprensa, a Nestes aspetos, o neurocrânio de Harbin asse- Portanto, o homem-dragão não é exatamente
sua apresentação foi feita por meio de diversas melha-se ao Homo heidelbergensis presente na um ser humano moderno, não é um Homo hei-
publicações na revista The Innovation. O trabalho gruta de Sima de los Huesos de Atapuerca (Burgos, delbergensis e não é um neandertal. É um Homo
de Ni e dos seus colaboradores causou grande Espanha). No entanto, os hominídeos deste local, erectus? É a questão lógica, já que na Ásia há um
rebuliço, já que o espetacular fóssil permitiu definir como Miguelón (Crânio 5), têm um toro supraor- extenso registo de fósseis humanos atribuídos a
uma nova espécie, batizada como Homo longi. bital consideravelmente mais proeminente e esta espécie. Para responder à pergunta, iremos
O termo deriva do nome geográfico Long Jiang, espesso na parte central do que nas margens até 1978, na cidade de Jiefangcun (município de
habitualmente usado para a província de Heilong- Dali, província de Shaanxi, China). Naquele ano,
jiang, e significa “rio do Dragão”. o geólogo Liu Shuntang encontrou outro crânio
O crânio de Harbin possui uma espantosa capa- A sua capacidade importante num terraço do rio Lohe. O espécime
cidade cerebral de 1420 centímetros cúbicos, de Dali também tem uma grande capacidade cere-
comparável à dos humanos modernos. Tem um craniana bral (1120 cm3) e um espesso toro supraorbital
toro supraorbital (a crista óssea localizada acima em forma de arco duplo. Da mesma forma, o seu
das órbitas oculares) muito robusto e espesso, e era semelhante rosto é extremamente baixo e de aparência
a parte superior da face larga, assim como a aber- moderna. Todos os seus traços são praticamente
tura nasal. Ao contrário, a altura da face é muito à nossa idênticos aos do de Harbin.

SUPER 59
QIANG JI ET AL.
ANÁLISE FILOGENÉTICA

Vemos aqui as relações


de parentesco entre vários tipos
humanos. Um grupo é parafilético
quando inclui o ancestral comum
dos seus membros, mas não
todos os seus descendentes,
e monofilético se eles estão
incluídos no grupo. Os hominídeos
do leste asiático, como os de Dali,
Jinniushan, Hualongdong e Harbin
são parecidos e filogeneticamente
mais próximos do Homo sapiens
do que dos neandertais ou
de outros humanos arcaicos.
ANÁLISE BIOGEOGRÁFICA

CONTINUIDADE REGIONAL como uma forma intermédia entre o Homo erectus Jinniushan e Hualongdong, todos dotados de toro
Essa característica do esplancnocrânio (a parte e o Homo neanderthalensis, embora com mais supraorbital semelhante e faces curtas, planas e
que envolve os ossos do rosto) surpreendeu os características do primeiro e num estado evolutivo situadas sob a abóbada craniana.
investigadores chineses. Na época, o hominídeo- mais avançado do que o Homem de Pequim. Quanto à idade geológica do crânio de Harbin, a
-chave era o Homem de Pequim, um conjunto de Em 1981, Wu Xinzhi, o paleoantropólogo mais questão é complicada: esteve enterrado durante
fósseis encontrados em Choukoutien, uma mina eminente da China, descartou que Dali fosse um 85 anos num local secreto, onde foi escondido por
de calcário abandonada. O Homem de Pequim Homo erectus e também não viu nele qualquer um empreiteiro que provavelmente o encontrou
foi o modelo clássico de referência para o Homo característica neandertal. Considerou-o um Homo nos níveis sedimentares do rio Shounga, não muito
erectus do continente asiático. A reconstrução do sapiens arcaico e atribuiu-lhe a nova subespécie longe da cidade de Harbin. Sem o contexto do
seu crânio, a partir de vários espécimes, mostra Homo sapiens daliensis. Em 2006, o paleoantro- local, é extremamente difícil estimar a idade de um
o Homo erectus de Choukoutien com uma face pólogo norte-americano Dennis A. Etler, que tra- fóssil. Michael Petraglia, do Instituto Max Planck
prognática, ou seja, projetada para fora da abó- balhou durante muitos anos anos na China, clas- para a Ciência da História Humana (Alemanha), que
bada craniana. Por outro lado, o toro supraorbital sificou-o como uma nova espécie e, portanto, foi não esteve envolvido no estudo publicado, explica:
é espesso e reto, sem arco duplo, características renomeado como Homo daliensis. “A proveniência é tudo. Se não a conhecemos,
muito diferentes dos de Dali e Harbin. não temos informações sobre a idade exata, o
De maneira tradicional, os paleoantropólogos IDADE INCERTA contexto ambiental ou o comportamento de uma
chineses sustentaram, embora seja discutível, que Neste ponto, é útil saber qual a antiguidade espécie de hominídeo.”
o Homem de Pequim foi um ancestral direto dos do crânio de Dali, mas isso ainda está em debate.
humanos atuais que habitam o grande país asiático. Uma análise por vários métodos realizada em 2017 ISÓTOPOS E RAIOS X
O Homo erectus de Choukoutien teria evoluído pro- mostra uma idade geológica de cerca de 260 mil Para tentar resolver o imbróglio, a equipa da Xijun
gressivamente para formas intermédias até termi- anos (entre 240 e 327 mil anos). É contemporâ- Ni tirou amostras de sedimento contidas no crânio
nar finalmente no Homo sapiens. Algumas dessas neo de outros crânios do Pleistoceno Médio (126 e analisou a concentração de elementos de terras
supostas formas intermédias foram reunidas a 700 mil anos de idade) da China, como os de raras e a composição isotópica do estrôncio para
num grupo chamado “Homo sapiens arcaico”, sem compará-la com uma série de mamíferos fósseis
validade taxonómica. Essa estrutura conceptual (veado, cavalo, mamute) e dois fósseis de crânios
é conhecida como “continuidade regional” ou Múltiplos humanos. Tanto os mamíferos quanto os humanos
“hipótese multirregional”. variam em idade desde o Pleistoceno Superior
estudos tentaram (entre 129 mil e 11 700 anos atrás) e o Holoceno
NOVA ESPÉCIE Inferior (11 700 a 8200 anos). Todos esses vestígios
Esta visão reflete-se claramente nos altos e baixos datar os restos foram recuperados dos depósitos do rio Songhua,
taxonómicos do espécime de Dali. Inicialmente, em numa área geológica que inclui a cidade de Harbin
1979, foi descrito por Wang Yongyan e colaboradores encontrados e os seus arredores.

60 SUPER
Talvez seja um denisovano
O professor Chris Stringer, paleoantro-
pólogo do Museu de História Natu-
ral de Londres e coautor do estudo compa-
nível mais popular. Acho que o clado [grupo de
organismos com um antepassado comum] de Har-
bin (mas não de outros fósseis chineses, como
resultante, que o liga ao Homo sapiens e não
ao Homo neanderthalensis, mas as nossas
conclusões são baseadas na análise de gran-
rativo publicado na revista The Innovation, Xuchang e Maba) poderia igualmente referir- des quantidades de dados. Foram usadas
respondeu às nossas perguntas. -se ao Homo daliensis, já que esse nome tem mais de 600 características, igualmente
precedência. Além disso, a variação que aceito ponderadas, e muitos milhões de processos
A vossa análise filogenética mostra uma rela- para espécies como Homo sapiens e Homo nean- de construção de árvores até chegar às mais
ção estreita entre a mandíbula de Xiahe, o derthalensis poderia acomodar a variação entre parcimoniosas. Nos suplementos da The
crânio de Harbin e o espécime de Dali. Já que Harbin e Dali. Innovation, apresentámos uma filogenia
propõem que Dali poderia ser um denisovano alternativa limitada pelos dados proteómi-
e Xiahe é um denisovano, o crânio de Harbin Se o espécime de Harbin é um denisovano, o que cos de Xiahe e do Homo antecessor [de Ata-
também o seria? devemos fazer? Falamos sobre denisovanos porque puerca], mas é muito menos parcimoniosa.
Sim, acho que Harbin poderia ser um eles foram originalmente descobertos na gruta Só a investigação futura nos dirá se é mais
denisovano, por causa do grande molar e de Denisova. Nesse caso, é justo manter o nome precisa. Para mim, o resultado mais impor-
da relação filogenética com a mandíbula de “daliensis”? Não seria melhor considerar o nome tante é o estabelecimento de uma terceira
Xiahe. Isso simplificaria as coisas para unir específico que se refere à gruta de Denisova? linhagem humana no leste asiático, com a
uma linhagem asiática baseada no ADN Na minha opinião, nomes como Homo longi sua própria história evolutiva, o que ajuda
antigo com outra linhagem asiática baseada e Homo altaiensis não devem ter precedência a interpretar fósseis até então enigmáticos,
na morfologia craniana. Até que tenhamos sobre Homo daliensis, que foi classificado como como os de Dali e Jinniushan, que há muito
um genoma denisovano e um crânio com- subespécie em 1981. tempo são interpretados como formas
pleto, não podemos resolver essa questão locais de transição entre o Homo erectus
de forma adequada. Os meus colegas chi- Os cientistas envolvidos no estudo concluíram na e o Homo sapiens. Dados de ADN antigo
neses estão a estudar análises genéticas que sua análise filogenética que o clado de Harbin é sugerem que os denisovanos divergiram da
poderão ser tentadas no futuro. a linhagem irmã do Homo sapiens, mas a genó- linhagem neandertal muito cedo, enquanto
mica indica que a linhagem irmã da nossa espécie a filogenia sugere que o clado de Harbin
Os especialistas chineses envolvidos atribuí- são os neandertais. O que acha dessa contradição? divergiu da linhagem sapiens muito cedo.
ram uma nova espécie ao crânio de Harbin, Qual pensa ser a abordagem correta? Na realidade, essas divergências podem
mas essa questão é problemática, uma vez que Há muito tempo que suspeitava da existência estar próximas de uma tricotomia. Nesse
o espécime Dali já tem a designação de Homo de uma espécie humana diferente no leste asiá- caso, não seria necessário muito fluxo
daliensis. Há base para uma nova espécie? tico, e fiquei encantado por ter sido convidado genético ou homoplasia para produzir os
Homo longi é um ótimo nome, e acho muito a estudar este fóssil maravilhoso que validou diferentes padrões que vemos, dependendo
bom que “homem-dragão” seja usado num essa ideia. Fiquei surpreendido com a filogenia dos dados que estão a ser analisados.

SUPER 61
Descoberta rocambolesca
O crânio do homem-dragão foi encon-
trado em 1933. Naquela época, o
exército japonês ocupava a Manchúria,
um ícone da paleontologia e da pré-história
chinesas. Por isso, decidiu enterrar o crânio
até aoo fim da guerra. Após o estabeleci-
onde fica a cidade de Harbin. Um homem mento da República Popular, dedicou-se
que trabalhava como empreiteiro para os à agricultura e escondeu que tinha colabo-
japoneses descobriu-o quando os seus ope- rado com os japoneses, por medo de repre-
rários estavam a construir a ponte Dong- sálias. Assim, o crânio permaneceu escon-
jiang sobre o rio Songhua, onde passa hoje dido durante muitas décadas. Os netos do
uma linha ferroviária. O empreiteiro, cujo construtor souberam do segredo antes de
nome foi mantido anónimo, percebeu o ele falecer, recuperaram o crânio em 2018
valor potencial da descoberta, pois naquela e doaram-no ao Museu de Geociências da
época o Homem de Pequim já se tornara Universidade de Hebei.

Tudo indica que estes humanos


já produzissem bons agasalhos
Usaram análises não destrutivas de fluorescên- da Universidade de Toronto (Ontário), que não
cia de raios X para descobrir a distribuição dos ele- participou no estudo.
mentos químicos contidos nos fósseis humanos
e mamíferos. Os resultados sugerem uma idade MAPA DE PARENTESCO
mínima de cerca de 146 mil anos e não mais do que Evidentemente, o grupo de Ni embarcou na
309 mil. Da mesma forma, as correlações estra- complexa tarefa de estabelecer as suas relações
tigráficas sugerem que o homem-dragão vem de parentesco. No artigo publicado na The Inno-
da parte superior da Formação Huangshan Superior, vation, incluíram um estudo filogenético completo
que é caracterizada por sedimentos flúvio-lacustres na forma de ramos que se espalham como uma
e abundantes mamíferos fósseis. “Embora os auto- árvore. Para a sua análise, utilizaram um programa
res tenham feito o possível para tentar determinar de computador denominado TNT e inferência
o contexto estratigráfico original do crânio, isso bayesiana (método estatístico para deduzir a pro-
é difícil e as incertezas científicas permanecem”, babilidade de uma hipótese ser verdadeira), com
diz Petraglia. o programa MrBayes 3.2, além de outros procedi-
mentos. É uma nova metodologia muito poderosa
RESULTADOS COERENTES que analisa as características primitivas e moder-
Na verdade, os resultados obtidos não permitem nas de crânios muito diversos (55 no total) para
localizar o hominídeo num local e num nível estra- obter relações evolutivas desde hominídeos tão
tigráfico exatos, mas são coerentes. Podemos remotos como o Homo habilis até neandertais.
aceitar que o homem-dragão vem de sedimentos do Depois de muitas horas de análise computacio-
Pleistoceno Médio da zona geológica de Harbin. nal e de muitos cálculos, o crânio de Harbin formou
Desta forma, o espécime torna-se parte de um um grupo monofilético com os de Dali, Hualong-
notável grupo de crânios deste período geológico dong, Jinniushan e Xiahe. Um grupo monofilético
chinês, pois possui características muito semelhan- possui um único antepassado comum. A árvore
tes aos de Jinniushan, Hualongdong e especial- mostra que a mandíbula de Harbin e Xiahe são espé-
mente Dali. Se excluirmos que este último tem uma cimes irmãos. É fascinante que o hominídeo com
quilha sagital no centro da abóbada craniana que o qual ele está mais intimamente relacionado seja
o de Harbin não tem, que o toro supraorbital de Dali o de Xiahe, um fragmento de mandíbula com dois sovanos não tinham os rostos projetados para
é mais espesso e que o contorno das órbitas de grande molares encontrado por um monge budista a frente. Caberia de alguma forma a mandíbula
Harbin é mais quadrangular, pode dizer-se que na gruta de Baishiya Karst, 3280 metros acima do denisovana de Xiahe no crânio de Harbin? “É difícil
parecem irmãos perdidos num passado distante. nível do mar. provar, pois não partilham qualquer elemento ana-
No entanto, os investigadores ignoraram tómico, mas o rosto relativamente largo de Harbin
que já havia nomes taxonómicos (Homo sapiens CARACTERÍSTICAS DENISOVANAS parece encaixar bem ”, explica Viola.
daliensis, em 1981, e Homo daliensis, em 2006), e Através da análise das proteínas, Frido Welker e Além disso, embora Harbin tenha apenas um
optaram por considerar Harbin uma nova espécie, colaboradores do Museu Dinamarquês de História segundo molar esquerdo, ele é muito grande,
Homo longi. “Eu não teria nomeado uma nova Natural (Copenhaga), mostraram que a mandíbula comparável em tamanho aos dentes denisovanos
espécie. Na maioria das suas análises filogenéticas, pertencia a um denisovano. Xiahe tem uma arcada estudados por Viola, um dos maiores especialistas
Dali é o vizinho mais próximo de Harbin, pelo que dentária ligeiramente alongada semelhante à dos no assunto. “A superfície do esmalte dentário
ficaria muito surpreendido se fossem realmente espécimes arcaicos de Homo do Pleistoceno Médio de Harbin está muito gasta, dificultando o julga-
espécies diferentes ”, diz Bence Viola, professor de Tighenif (Argélia) e do Homo sapiens: os deni- mento da morfologia. No entanto, o tamanho dá

62 SUPER
QIANG JI ET AL.
Filogenia de 55 fósseis do género
Homo, selecionados pela equipa
de investigadores do Homo longi.

uma pista: Harbin é muito grande, comparável HABITANTE DO FRIO algumas adaptações fisiológicas para permitir que
aos restos dentários denisovanos conhecidos. Se Harbin fosse um denisovano, há outro aspeto eles se aquecessem. Além disso, as suas adaptações
Também acho interessante que não haja terceiro muito interessante. Vem de um lugar localizado a 45 culturais teriam sido muito importantes e prova-
molar, o que coincide com duas mandíbulas que graus de latitude norte, muito frio. “A descoberta velmente exigiriam que tivessem roupas e tecno-
poderiam ser denisovanas, os espécimes de Xiahe deste crânio tão a norte é muito reveladora. Não há logias fiáveis”, explica Petraglia.
e Penghu”, afirma. fósseis de hominídeos ou sítios arqueológicos Que ferramentas teria o povo denisovano para
Na verdade, Harbin tem agenesia dos terceiros bem preservados dessa época no norte da China. fazer roupas e agasalhos? “Os sítios arqueológicos
molares. Os últimos dentes posteriores nunca A maioria das descobertas fica a menos de 40 graus no norte da China de idade semelhante a Harbin
se desenvolveram na maxila. A agenesia do ter- norte. A área de Harbin seria fria e muito sazonal. têm principalmente indústrias de lascas de pedra,
ceiro molar é provavelmente um traço denisovano, Isso significa que esses hominídeos fizeram visitas ou seja, pequenas ferramentas afiadas que talvez
e o homem-dragão é provavelmente um deles. curtas às latitudes do norte e evitaram o inverno fossem usadas para várias tarefas, como cortar e
As indicações são eloquentes, embora ainda não mais violento, ou estavam adaptados às condições raspar. Essas indústrias líticas eram obviamente
sejam definitivas. frias. Se isso fosse verdade, seriam necessárias eficientes e sabemos que os conjuntos de ferra-

SUPER 63
Mandíbula de Xiahe, descoberta na gruta
cárstica de Baishiya, no Tibete. A análise
de proteínas revela que os humanos
de Harbin e Denisova eram aparentados.

A investigação levanta inúmeras


questões ainda sem resposta
KAI GENG

Gotas de água mentas foram usados pelos hominídeos há muito outros são considerados sinónimos. Assim, se a

O s crânios de Dali (à esquerda) e


de Harbin assemelham-se como
gémeos em muitas características mor-
tempo, desde há 1,7 milhões de anos, no norte da
China”, diz Petraglia. No entanto, é misterioso
como, com essa tecnologia básica, os denisovanos
comunidade paleoantropológica decidir que Dali
e o homem-dragão são a mesma espécie, o que
parece razoável, e dado que o nome subespecífico
fológicas. Trata-se de dois espécimes do chineses pudessem, hipoteticamente, fazer bons Homo sapiens daliensis é de 1981, Homo daliensis
Pleistoceno Médio (entre 770 e 126 mil agasalhos. deve ser usado para referir ambos. Nesse caso,
anos de idade) cuja semelhança indica Homo longi deixa de ser válido.
parentesco. Apesar disso, o de Harbin MAR DE PERGUNTAS
foi atribuído a uma nova espécie: Homo Tudo isto são incógnitas por esclarecer. Como POLIMORFISMO REVELADOR
longi. Especialistas chineses sugerem é habitual na busca das nossas origens, futuros Também é muito provável que, dentro de
que o de Dali pertence a outro, o Homo achados paleogenómicos, arqueológicos e paleon- algum tempo, os denisovanos sejam atribuídos
daliensis. Por outro lado, se nos basear- tológicos podem lançar luz sobre elas. O que à espécie Homo daliensis, pois tudo sugere que
mos no tamanho do crânio e na espe- parece muito provável é que o Homo longi não per- o homem-dragão é o seu melhor representante,
cificidade de algumas características, dure como nome aceite na taxonomia. As carac- embora seja necessário esperar por mais estudos.
o homem-dragão poderia ser do sexo terísticas morfológicas e a árvore filogenética Seria ótimo se parte do seu ADN ainda estivesse
masculino. Os autores do estudo anató- proposta mostram uma relação de parentesco preservado.
mico estimaram que poderia ter mor- muito clara entre Harbin e Dali e, uma vez que as Caso contrário, os cientistas terão sempre a
rido com 45 a 50 anos. À medida que espécies de Homo daliensis já existiam na literatura, opção de analisar proteínas. Tanto a mandíbula de
envelhecemos, os ossos do neurocrânio o lógico teria sido incluir nelas o homem-dragão. Xiahe quanto a de Denisova 3 (a falange de uma
fundem-se, enquanto os mais jovens Além disso, há um conflito futuro relacionado adolescente cujo ADN revelou a existência dos
mantêm visíveis as linhas de sutura, com os padrões do Código Internacional de denisovanos) contêm um único polimorfismo de
que o homem-dragão quase não possui. Nomenclatura Zoológica (ICZN, na sigla inglesa). É aminoácido, o COL2a1 E583G. Esse polimorfismo
No entanto, o desgaste do esmalte do aconselhável seguir as diretrizes do ICZN cuidado- está ausente no resto das populações humanas,
único dente remanescente sugere que samente ao estabelecer nomes de espécies vivas tanto arcaicas como modernas. Se o crânio de
ele poderia ter sido significativamente e fósseis, para não ter problemas. O ICZN é regido Harbin o apresentasse, a natureza denisovana do
mais jovem. pelo princípio da prioridade. Segundo ele, o nome homem-dragão ficaria fortemente comprovada.
válido de uma espécie é o mais antigo. Todos os M.G.B.

64 SUPER
SUPER 65
Antropologia
GETTY

Recriação de um exemplar
de Homem das Flores
(Homo floresiensis) no Museu
Smithsonian de História Natural
(Washington, D.C.).

66 SUPER
Como se povoou o sueste asiático

A ligação
denisovana
Um dos puzzles da evolução situa-se no extremo
oriental da Ásia e da Oceania. Ali se encontraram
vestígios de várias espécies de homininos
(Homo erectus, Homo floresiensis, Homo
luzonensis), juntamente com vestígios genéticos
dos humanos de Denisova. A ciência rastreia o papel
de todos eles no devir dos seres humanos modernos.

SUPER 67
J
á passaram 130 anos desde que foram
achados os primeiros de fósseis do Pithe-
canthropus em Trinil, na ilha de Java (Indo-
nésia). Tratava-se de uma calote (a parte
superior da abóbada craniana), um fémur e um
terceiro molar, que posteriormente foram atribuí-
dos à espécie Homo erectus. O chamado “Homem
de Java”, primeiro espécime de Homo erectus a
ser descoberto, foi um êxito pessoal do médico
anatomista holandês Eugène Dubois (1858–1940),
que empreendeu uma sensacional aventura para
procurar o elo perdido na evolução humana.
Era esse o nome que se utilizava na altura para
designar o hipotético ser extinto que deveria ligar
linearmente os macacos e os seres humanos.
Apesar de hoje sabermos que esse conceito estava
errado e que a evolução está muito longe de ser
linear, a descoberta do Pithecanthropus erectus
(“homem símio erguido”) deu um impulso gigan-
tesco aos inícios da paleoantropologia moderna.
A verdade é que, naquela altura, a mira estava
apontada para o conjunto de vestígios neandertais
que iam aparecendo pela Europa, e no debate
entre os opositores e os defensores da teoria da
evolução aplicada ao ser humano.

VIAGEM EXTRAORDINÁRIA
Desde então, em diferentes jazidas em Java e
noutras ilhas do sueste asiático, recuperaram-se
fósseis importantes para a compreensão do nosso
caminho. As datações destes achados narram uma
viagem extraordinária dos primeiros humanos,
ao longo de 16 mil quilómetros desde África até

O primeiro fóssil
de Homo erectus
foi descoberto
há 130 anos
àquela região, que pisaram pela primeira vez há
1,5 milhões de anos. Fizeram-no de forma relativa-
mente rápida, deixando na sua expansão um rasto
de vestígios anatómicos e de utensílios líticos em
Dmanisi (Geórgia), há 1,8 milhões de anos, e nou-
tras regiões do interior do continente asiático,
sobretudo na China, em diferentes momentos,
desde há 2,1 até há 1,5 milhões de anos. Os motivos
para esta assombrosa façanha continuam a ser um
mistério, mas entre eles não podemos descartar a
curiosidade. Ao longo de milénios, a transformação
física que acompanhou o aparecimento dos huma-
nos em África implicaria também o aumento de
uma inquietação por explorar, impulsionada por
outras causas como a desertificação dos ecossiste-
mas e o desenvolvimento de uma tecnologia lítica, O anatomista holandês Eugène Dubois
o Modo 2 Acheulense, que transformou para sempre (nas fotos) e os fragmentos da abóboda
o acesso aos recursos alimentares daqueles pri- craniana de Homo erectus que descobriu
na ilha indonésia de Java, em 1891.
meiros exploradores.

68 SUPER
Protodesenhador
E ntre a coleção de milhares de fósseis
de vertebrados que Eugène Dubois
levou consigo de Java para os Países Bai-
Quer dizer que, há meio milhão de anos,
um Homo erectus agarrou firmemente
a concha com a mão esquerda, e com a
xos, surgiu uma grande surpresa. Após um direita traçou a figura de um dente de tuba-
século a apanhar pó no Museu de História rão. Claramente, aquele humano tinha um
Natural de Leiden, em 2014 foi identificada elevado nível cognitivo, de controlo neuro-
uma concha de amêijoa de água doce, que motor e de pensamento simbólico. Trata-se
estava armazenada nessa coleção e continha da gravura mais antiga da humanidade
gravações geométricas em ziguezague. conhecida até ao momento.

Por tudo isto, entender e esclarecer a disper- tiveram encontros com a única espécie humana
são dos homininos pelo sueste asiático continua a sobrevivente hoje em dia, o Homo sapiens.
ter grande importância. Em 2019, conseguiram-se Apesar de este ser um debate apaixonante, o
datar com precisão os restos que indicam a pre- sueste asiático é uma região muitas vezes descar-
sença de Homo erectus em Java, concretamente tada, quando o foco de investigação e a divulgação
no sítio de Ngandong. Ali viveu até há apenas se centram na Europa e em África. Felizmente, o
110 mil anos, uma cronologia muito recente, em estudo da evolução nestes continentes enriquece e
termos de registo geológico, se pensarmos no gera lições que podemos aprender e aplicar naquelas
milhão e meio de anos de existência da espécie. terras mais longínquas. Por exemplo, recentemente,
começámos a compreender o que sucedeu quando
CAMINHOS EVOLUTIVOS DIFERENTES os humanos modernos entraram na Europa Oci-
Nos seus momentos finais, o Homo erectus já dental e se encontraram com os neandertais.
não era um humano solitário naquelas ilhas, já que Longe de ser uma crónica de rivalidade e violên-
pelo menos outros dois homininos coexistiam com cia, as últimas descobertas genómicas narram uma
ele no mesmo período: o Homo floresiensis e o história de mestiçagens frequentes e de possí-
Homo luzonensis. Essas três espécies representam vel assimilação dos neandertais entre os sapiens.
caminhos evolutivos muito diferentes e as três O que terá acontecido quando representantes da
acabaram por se extinguir. Porém, temos de nos nossa espécie pisaram pela primeira vez as ilhas
questionar se, antes do seu desaparecimento, do sueste asiático, há 50 ou 60 mil anos? O mais
AGE

SUPER 69
Osso do pé de Homo luzonensis guardado
na Universidade das Filipinas, em Lungsod
Quezon. Foi encontrado na gruta de Callao,
no norte da ilha de Luzón.
AGE

provável é que se tenham encontrado com uma se encontraram restos humanos indicativos de um relação com os fluxos migratórios dos diferentes
curiosa variedade de homininos. Vejamos quais. tamanho ainda mais pequeno, datados de há cerca grupos humanos que chegaram ao sueste da Ásia
de 700 mil anos, bem como instrumentos líticos durante o Plistocénico? Uma peça chave que não
FORMAS ANÃS que rondam o milhão de anos. conseguimos encaixar neste puzzle é a dos deniso-
Na ilha das Flores (Indonésia), alguns descen- Uma evolução semelhante ocorreu em Luzón, vanos, uma linhagem aparentada com os neander-
dentes de populações super-arcaicas evoluíram a maior das ilhas das Filipinas, que, tal como a das tais. O registo fóssil destes humanos limita-se, até
durante milénios para formas anãs, de apenas um Flores, sempre esteve isolada do continente asiá- ao momento, à Ásia, e é composto por uns poucos
metro de estatura e um cérebro de cerca de 400 tico. Dali provém um pequeno conjunto de fósseis dentes e fragmentos ósseos de há entre 50 e 250
centímetros cúbicos, semelhante ao de um chim- humanos de há entre 50 e 67 mil anos, encontrados mil anos, provenientes da gruta de Denisova, no
panzé adulto ou ao de um australopiteco, mas com na gruta de Callao, no norte da ilha, a partir dos maciço de Altai (Rússia), e uma mandíbula com 160
corpo robusto e molares grandes. As suas origens quais se definiu em 2019 uma nova espécie, o mil anos da gruta cárstica de Bashiya, na meseta
devem ser procuradas numa antiga migração de Homo luzonensis. tibetana.
Homo erectus, ou até de grupos anteriores rela- O tamanho pequeno e a estrutura simples dos Denisova também é conhecida por ser um local
cionados com o Homo habilis. seus dentes recordam os australopitecos. Sur- de ocupação de três espécies humanas diferentes
Para chegar à ilha, tiveram de atravessar neces- preendem os ossos dos pés e das mãos pela sua (neandertais, denisovanos e humanos modernos)
sariamente pelo menos 20 km de mar. O resultado curvatura adaptada à vida arbórea, uma curiosa e pelos tesouros culturais que contém, de autoria
evolutivo deste isolamento foi o Homo floresiensis, retenção dos traços arcaicos dos humanos de que enigmática. O seu complexo nível 11 é um palimp-
uma espécie modelada segundo um processo de descendem. Por vezes, fala-se do Homo luzonensis sesto onde se misturam materiais de diferentes
especiação alopátrica, na qual a seleção natural como uma relíquia da nossa evolução. Por outro épocas, incluindo vários objetos singulares cuja
favorece fenótipos diferentes em regiões extrema- lado, um conjunto de 57 utensílios líticos no vale de associação parcial ou total aos denisovanos não
mente distantes. Assim, surgiram também outros Cagayan, no norte de Luzón, associados a restos pode ser descartada: uma preciosa bracelete
animais únicos, como elefantes anões do tamanho processados de rinoceronte e estogodonte, têm verde de cloritolite, a figurinha zoomórfica de um
de vacas (Stegodon florensis insularis), ratos gigan- uma datação de 709 mil anos. Ainda não sabemos possível leão em marfim, um lápis de hematite e
tes de meio metro (Papagomys armandvillei) ou que homininos comeram estes animais e se tinham pedra mármore com restos de ocre, um diadema
marabus de dois metros de altura (Leptoptilos relação com o luzonensis. em marfim, agulhas, pendentes…
robustus).
O MISTÉRIO DENISOVA APANHADOS PELO GENOMA
MORFOLOGIA INÉDITA Estas espécies das Filipinas continuam a espan- Os denisovanos foram a primeira espécie
A espécie Homo floresiensis foi revelada em 2004, tar os paleoantropólogos e colocam um desafio no humana identificada não pela sua morfologia,
e dela, até ao momento, conhecemos um esqueleto momento de entender a sua origem. Qual é a sua mas sim pelo seu genoma. Além disso, na gruta de
muito completo e restos de outros nove indivíduos, Bashiya encontrou-se ADN denisovano nos sedi-
recuperados na gruta de Liang Bua, com uma mentos, em níveis de há entre 45 e 100 mil anos.
morfologia inédita entre outros grupos humanos. O isolamento O extraordinário avanço da genómica e a sua apli-
Associadas a estes homininos, apareceram fer- cação à paleontologia permite revelar a presença
ramentas líticas, restos de fogo e ossos de esto- produziu de seres numa jazida, sem necessidade de fósseis.
godontes jovens que lhes serviram de alimento. Também é possível detetar grupos fantasma entre
A sua presença no local estimou-se entre há 50 e 200 nanismo em os seus ocupantes: o genoma de um dos espéci-
mil anos. Contudo, em Mata Menge, outro local mes da gruta de Denisova contém vestígios de um
da ilha das Flores, a 125 km de Liang Bua, também algumas espécies humano desconhecido até ao momento, que

70 SUPER
AGE
Ilustração de um homem
de Denisova a partir
de traços dos povoadores
atuais da Oceania.

SUPER 71
divergiu há entre um e quatro milhões de anos do
antepassado comum de neandertais, denisova-
nos e sapiens. Podemos estar perante o primeiro
encontro com restos genéticos de Homo erectus?
O genoma denisovano fornece informação pode-
rosa e diz-nos que essa espécie partilha com os
neandertais um antepassado comum (chamado,
por vezes “neandersovano”), o qual, por sua vez,
tem um antepassado comum com a linhagem de
Homo sapiens.
Além disso, houve diferentes impulsos de mes-
tiçagem entre denisovanos e grupos de sapiens
no leste e no sul da Ásia, que deixaram um rasto
de até cinco por cento no genoma dos humanos
atuais nas ilhas do sueste asiático, da Nova Guiné
e da Austrália. Uma investigação recente liderada
pelo geneticista populacional português João Tei-
xeira, atualmente na Universidade da Austrália, e
dos antropólogos Guy Jacobs, da Universidade de Peças da mandíbula
Cambridge (Inglaterra), e Chris Stringer, do Museu denisovana de Xiahe
Nacional de História Natural (Londres), aborda as (c, d, e) e réplica digital
à qual se acrescentou
causas da chocante ausência de fósseis deniso- a metade que falta
vanos nas ilhas daquela região, dado que há um (a, b, a cinzento.
rasto genómico desta espécie muito disseminado.

METILAÇÃO DO ADN
Uma possibilidade para explicar este facto é que
os denisovanos sejam descendentes de antigos
grupos arcaicos ligados aos Homo floresiensis e

Uma mandíbula
comprovou
as previsões
teóricas
Homo luzonensis. Contudo, apesar de não ter sido
possível recuperar material genético destas duas
espécies, parece descartável o seu parentesco com
os denisovanos, já que a sua morfologia é muito
diferente. Como podemos conhecer as característi-
cas anatómicas dos indivíduos de Denisova com um
registo fóssil tão limitado? De novo, graças à infor-
mação genética.
A metilação do ADN é um processo químico que o côndilo mandibular robusto. A BUSCA CONTINUA
marca que genes se mostram ativos e quais os inati- Curiosamente, pouco depois deste trabalho, Contudo, a avaliação morfológica e filogenética
vos. Em 2019, a comparação do mapa de metilação foi publicada a mandíbula denisovana de Xiahe, dos Homo floresiensis e Homo luzonensis torna
do ADN de um fóssil de denisovano com os de huma- cujas características coincidem com o previsto: complicado trabalhar sobre esta hipótese, devido
nos modernos e neandertais possibilitou identi- é robusta, primitiva e mistura características do ao nanismo pronunciado e aos longos períodos de
ficar 56 traços dos primeiros. Entre esses 56, 21 Homo erectus e dos primeiros neandertais e do evolução isolada. Por outro lado, também não se
são partilhados com os seus parentes mais próximos, Homo sapiens. Outra hipótese poderia ser que encontrou, até agora, vestígios de espécies super-
os neandertais, e coincidem com os atributos mais existisse um parentesco dos Homo floresiensis e -arcaicas tardias no genoma dos humanos atuais
típicos e característicos que temos em mente nesta Homo luzonensis com alguma expansão recente da região, que poderiam indicar algum vínculo com
espécie: crânio achatado e robusto, tórax largo, de uma linhagem ligada aos denisovanos, que essas espécies endémicas. Contudo, aparece um
pélvis grande, fémur robusto e dedos grandes, estaria próxima dos humanos modernos, e muito vestígio daquele antepassado fantasma referido
entre outros. Além disso, outros onze traços são posterior às primeiras ocupações intermitentes anteriormente, que foi detetado no genoma dos
diferentes nos denisovanos em relação aos nean- das ilhas, por parte de outros homininos, desde denisovanos continentais.
dertais. Por exemplo, a expansão dos ossos parie- há um milhão de anos. Quem sabe se um antepassado de Homo flore-
tais e temporais, a arcada dentária alargada e siensis deixou esse rasto fantasma super-arcaico e

72 SUPER
JEAN-JACQUES HUBLIN / MPI-EVA
Linha direta
Ásia-Oceania
N ormalmente, os humanos da
pré-história não precisavam de
navegar para chegar às ilhas do sueste
asiático. Sumatra, Java, Bali e Bornéu
constituem, juntamente com a penín-
sula malaia, a plataforma de Sonda ou
Sunda, uma extensão da plataforma
continental onde a profundidade do
oceano raramente ultrapassa os 50
metros. Durante várias épocas glaciares
do passado, o gelo acumulado provo-
cou descidas de até 120 metros no nível
do mar, e os territórios de Sunda que
hoje são ilhas estavam então unidos ao
continente asiático e podia-se chegar
até eles por terra firme. O mesmo não
acontecia com Sahul, o continente
que englobava as atuais Austrália e
Nova Guiné. Para o alcançar a partir
do sueste asiático, era preciso navegar:
está do outro lado da chamada “Linha
de Wallace”, traçada pelo naturalista e
geógrafo inglês Alfred Russel Wallace
(1823–1913). A linha segue a fossa de
Wallace, um abismo submarino que
separa Sunda de Sahul, ou seja, a Ásia
da Oceania. Este profundo braço oceâ-
nico é uma barreira física e marca o
limite biogeográfico que fez divergir as
histórias evolutivas da fauna e da flora,
de cada lado do mar.

caça de há cerca de 45 mil anos), juntamente com


outros painéis mais recentes, dotam Celebes de
uma atração especial para a investigação. A partir
dali, os humanos continuaram a expandir-se para
leste.
Mediante modelizações matemáticas com parâ-
metros ecológicos, tectónicos, oceanográficos, cli-
máticos e de fertilidade e longevidade, conseguiu-
-se estimar que mais de um milhar de humanos
faria encaixar a peça que falta para vincular a ori- CELEBES E AUSTRÁLIA chegaram à Nova Guiné há cerca de 50 mil anos,
gem do humano relíquia das Flores com um ante- A vizinha Celebes (Sulawesi, em indonésio) provavelmente em várias vagas sucessivas, não
passado erectus ou habilis. Contudo, em paleon- é uma ilha candidata para encontrar pistas que acidentais mas sim intencionais. Contudo, há uma
tologia, as explicações simples não costumam ajudem a esclarecer estes parentescos. Em 2016, presença ainda mais antiga e intrigante naquilo
resultar e, apesar de os fósseis dos homens das apareceu um conjunto de centenas de artefactos que em tempos foi o continente de Sahul, no local
Flores e de Luzón, sem esquecer o Homo erectus, líticos associados a restos de megafauna, com data- de Madjedbebe, situado no norte da Austrália. Há
parecerem estar no tempo e no lugar corretos para ções de há entre 100 e 200 mil anos. Para chegar 65 mil anos, já tinham ali chegado povoadores que
fornecer pistas sobre os denisovanos, pode ser a Celebes a partir de um continente próximo, foi deixaram vestígios de milhares de instrumentos
que nunca tenham tido relação com eles. Os ante- sempre necessária a navegação. A sua localização líticos, o que faz pensar em migrações ainda mais
passados dos primeiros habitavam naquelas ilhas intermédia numa possível rota de norte para Sahul anteriores, seja de homens modernos a partir do
desde há um milhão de anos, enquanto os deniso- (o continente que incluía a Austrália, a Tasmânia, sueste asiático, seja de outros grupos que tivessem
vanos são aparentados com os neandertais e os a Nova Guiné e as ilhas adjacentes), atravessada navegado pelas ilhas, antes deles. Terão os deniso-
homens modernos, que são linhagens posteriores desde há 50 mil anos, e a presença de alguns dos vanos chegado à Austrália? Os paleoantropólogos
a meio milhão de anos. Há que localizar mais evi- exemplos de arte rupestre mais antigos da humani- têm muito que investigar.
dências para encontrar os esquivos denisovanos. dade (representações de javalis da ilha e cenas de R.S.

SUPER 73
História
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1919–1933

A ascensão de Hitler

74 SUPER
Os vienenses que o viram entrar nos refeitórios de beneficência nunca
imaginaram que aquele jovem austríaco iria mandar na poderosa Alemanha
e levaria esse país e meio mundo à mais destrutiva e devastadora loucura.

O talento de Hitler para atrair multidões com


o seu discurso incendiário e a impressionante
gestualidade ficou rapidamente demonstrado.
Aqui, num comício em 1925.

SUPER 75
V
iena, 1909. Um jovem austríaco que ten-
tou a sua sorte, sem sucesso, no meio
artístico da capital, pouco inclinado para
o trabalho físico, prefere deambular
pelos parques, frequentar refeitórios sociais para
conseguir comer uma sopa e dormir nos pórticos ou
nos albergues para indigentes e pedir esmola. Os
transeuntes que lha dão não imaginam, de forma
alguma, que, 24 anos depois, esse indivíduo esfar-
rapado se transformará em nada menos do que o
presidente do país vizinho, o gigante alemão.
A aventura do mendigo que chegou a presi-
dente seria exemplar, não fosse o caso de o seu
protagonista ter levado para a mais alta magistra-
tura de um dos estados mais poderosos da Europa
o rancor e o ódio que lhe foram inculcados nessa
etapa de sofrimento e exclusão social e que o
transformaram num furacão de vingança violenta
contra diversas etnias, ideologias e nações, provo-
cando, dessa forma, o maior desastre da história
contemporânea.

DE INFORMADOR A MILITANTE
Depois de ter estes e outros tropeços juvenis na
vida, Adolf Hitler (1889–1945), que nascera junto à
fronteira austríaca com a Baviera, alistou-se como
voluntário no exército alemão na Primeira Guerra
Mundial. Fê-lo porque considerava a Alemanha
a essência da comunidade cultural germânica, a
sua verdadeira pátria. Teve um comportamento
exemplar e foi, inclusivamente, ferido duas vezes,
a última no final da guerra em França. Ainda con-
valescente das feridas provocadas por cloro, que
quase o deixaram cego, informaram-no da rendi-

Embora fosse
austríaco, Hitler
alistou-se no
exército alemão
ção alemã de 1918, um desfecho que nunca conse-
guiu compreender e que o levou a alimentar um
ódio atroz contra as potências vencedoras, as forças
políticas que considerava responsáveis pela humi-
lhante derrota (comunistas e socialistas) e os
judeus, que identificava com estes partidos.
No início do outono de 1919, o capitão Karl Mayr
tomou uma decisão que, com o tempo, desenca-
dearia uma guerra mundial. O oficial, que pertencia
ao serviço de inteligência do exército alemão, enviou
um dos seus subordinados a uma reunião política
em Munique: o cabo Adolf Hitler, de 30 anos,
recebeu a missão de elaborar um relatório sobre o
recém-criado Partido dos Trabalhadores Alemães
(DAP). Mayr queria averiguar se os seus membros O cabo Adolf Hitler (à direita)
eram socialistas violentos que tinham em mente com dois soldados durante
acabar com a frágil democracia alemã. a sua estada num hospital
militar da Pomerânia, em 1918.
Hitler, depois de recuperar num hospital militar,

76 SUPER
A criação de Hitler
1889 – Adolf Hitler nasce em 20 de
abril, na pousada Gasthof zum Pom-
mer, em Braunau (Áustria).
1907 – A mãe de Hitler, Klara Pölzl,
morre de um cancro na mama. O seu
pai, o funcionário alfandegário Alois
Hitler, morrera quatro anos antes. Aos
18 anos, Hitler deseja ardentemente ser
pintor, mas a Academia de Belas-Artes
de Viena rejeita-o. Não tem meios e
vê-se obrigado a vender nas ruas os pos-
tais que pinta.
1909 – A Academia de Belas-Artes
volta a recusar-lhe o ingresso. Hitler
deixara a herança à irmã e tem de viver
num albergue para sem-abrigo. Durante
os quatro anos seguintes, sobrevive
como pode em Viena.
1913 – Para escapar ao serviço militar,
Hitler muda-se para Munique. A polícia
alemã detém-no e obriga-o a apresen-
tar-se nas instalações de recrutamento.
O médico declara-o inapto para o ser-
viço militar.
1914 – Eclode a Primeira Guerra Mun-
dial. Hitler convence as autoridades da
Baviera a deixarem-no combater nas
fileiras alemãs, onde serve como esta-
feta e recebe a Cruz de Ferro pela sua
valentia.

tinha começado a trabalhar como informador do


exército, para o qual vigiava partidos políticos e
associações extremistas, assim como as nume-
rosas organizações paramilitares formadas por
veteranos de guerra. Em 12 de setembro, entrou,
cansado, na cervejaria Sterneckerbräu de Muni-
que, onde 41 membros do DAP arengavam contra
as duras condições impostas à Alemanha pelo Tra-
tado de Versalhes. Nada de novo: tinha assistido
a dezenas de reuniões semelhantes nas quais eram
lançados discursos parecidos. Já vestira o casaco
para sair quando, de repente, um homem se pôs
de pé e começou a defender, muito entusiasmada-
mente, a secessão da Baviera, que deveria tornar-
-se um estado independente. Pode dizer-se que
essa alocução lançou a carreira política de Hitler.
Como fervoroso nacionalista que era, esqueceu-
-se da tarefa que lhe tinha sido atribuída e embre-
nhou-se numa discussão com aquele indivíduo.
Falou a grande velocidade, agitadamente e ges-
ticulando muito. Com a voz rouca e eloquente,
disparava palavras sobre a traição, a unidade e o
império e inflamava-se na defesa da ideia de um
povo alemão forte e de uma Alemanha livre de raças
estrangeiras. O líder do partido, Anton Drexler
(1884–1942), ali presente, compreendeu imedia-
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tamente o potencial de Hitler (“Valha-me Deus, a

SUPER 77
força deste homem!”, disse à pessoa que estava ao As delegações britânica e francesa,
seu lado), e, nessa mesma noite, convenceu Hitler com os seus líderes em primeiro
plano (o contra-almirante George
a aderir ao DAP, do qual passou a ser o militante Hope e o marechal Ferdinand
número 55 (embora o secretário tenha decidido Foch), posam junto ao “vagão
acrescentar 500 militantes fictícios para que o par- do armistício”, em 11 de novembro
de 1918, depois de nele se ter
tido parecesse mais imponente e lhe tenha colo- assinado a rendição da Alemanha.
cado o número 555 no cartão).

ALEMANHA EM CRISE
À época, a Alemanha era um antigo império em
pleno processo de desintegração e de conversão
numa instável república. Em 1918, tinham voltado
da guerra milhões de soldados desiludidos e res-
sentidos pela derrota. Nos meses seguintes, o país
foi varrido por violentas revoltas lideradas pelos
trabalhadores que queriam estabelecer uma repú-
blica comunista inspirada no modelo da União
Soviética e que obtiveram triunfos momentâneos
em vários estados.
Enfrentavam a primeira força política alemã, o
Partido Social-Democrata (SPD, equivalente ao
nosso PS), que, com o apoio do exército e dos
Freikorps (grupos paramilitares reacionários), não
hesitou em desencadear uma feroz repressão. Em
9 de novembro, receoso de se tornar vítima de uma
revolução sangrenta, o imperador Guilherme II
(1859–1941) abdicou e fugiu para os Países Baixos.

As tropas
alemãs ficaram
desiludidas
com a derrota
Os combates continuaram enquanto, com o
espectro da guerra civil a pairar, a classe política
alemã reunida na cidade de Weimar preparava uma
nova constituição para o país e declarava que a Ale-
manha passava a ser uma república democrática.
Na primavera de 1919, os comunistas foram derrota-
dos, mas ainda faltava dar resposta a uma dificílima
missão: o acordo de paz com os vencedores da
guerra. Os socialistas e o Alto-Comando foram a
Versalhes, em França, negociar a capitulação em
condições de extrema debilidade.
O tratado assinado foi extraordinariamente duro
e caro para a Alemanha, que teve de entregar
importantes territórios a França no oeste e ao
novo estado da Polónia no leste, além de grandes
compensações económicas, o que mergulhou a
população na pobreza. Segundo estimativas do
outono de 1919, um em cada três alemães sofria de
malnutrição. O descontentamento dominava todo
o território.

NASCEM O PARTIDO NAZI E AS SA


Pouco depois de se filiar, Hitler proferiu o seu pri-
meiro discurso. Falou em frente a 111 pessoas numa
cervejaria e descobriu o seu talento para galvanizar

78 SUPER
a multidão. O rumor acerca da presença de um elo-
quente austríaco espalhou-se por Munique, pelo
que cada vez mais gente começou a acorrer às pré-
dicas de Hitler sobre a traição dos judeus, a neces-
sidade de libertação das cadeias do Tratado de
Versalhes e o projeto de uma nova Alemanha.
Em novembro, Hitler convenceu o líder do
partido, Drexler, a gastar o magro orçamento de
que dispunham em anúncios no periódico local,
o Münchener Beobachter (que, no ano seguinte,
seria adquirido pelo partido e transformado no
seu órgão de imprensa oficial, mudando-lhe o
nome para Völkischer Beobachter). A campanha
foi um sucesso: se à reunião realizada em outubro
apenas tinham assistido 130 curiosos, quatro meses
depois, à convocatória para a cervejaria Hofbräu-
haus de Munique, de 24 de fevereiro de 1920,
corresponderam 2000 pessoas. Hitler apresentou
ali a mudança de nome do Partido dos Trabalha-
dores Alemães, que passaria a chamar-se Partido
Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães
(NSDAP), o que conhecemos, abreviadamente,
por “partido nazi”. Também deu a conhecer os
25 pontos do programa que havia preparado com
Drexler.
Estava a meio do discurso quando um grupo
de jovens comunistas irrompeu pela reunião e

Depois, vieram
as sanções que
levaram o povo
à pobreza total
tentou silenciá-lo com as suas vozes. Alguns vete-
ranos de guerra corpulentos acudiram em sua
defesa e começaram a resolver o conflito ao murro,
o que obrigou os comunistas a fugir. Desta forma,
o encontro não só marcou o surgimento do
nazismo, mas também do corpo de guarda-costas
do partido, que decidiram vestir camisas castanhas
como uniforme. Acabaram por adotar o nome
Sturmabteilung (Secção de Assalto), as SA.

CRESCIMENTO E LIDERANÇA
Ainda assim, apesar de o número de militantes
se ter multiplicado por dez em 1920 (de 190 para
2000), o partido continuava a ser uma insignificante
organização local, apenas conhecida em Munique
e arredores. Porém, entre a massa furiosa e ressen-
tida que se filiou nesse ano, começaram a pontuar
algumas pessoas influentes. Embora Drexler con-
tinuasse a ser o presidente do partido, todas elas
viam Hitler como o líder nazi. Este dedicava o seu
tempo a ler jornais e a preparar os seus discursos.
Era o único membro da direção que recebia um
salário. Como tal, foi com toda a naturalidade que,
em 29 de julho de 1921, assumiu o cargo de pre-
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sidente.

SUPER 79
Anton Drexler

ASC
Nazis da primeira hora
Anton Drexler (1884–1942) Alfred Rosenberg (1893–1946)
Serralheiro de profissão, fundou o DAP Este arquiteto aderiu ao partido nacional-
em 1919 para afastar os trabalhadores do -socialista em fevereiro de 1919 e é consi-
socialismo e atraí-los para o nacionalismo. derado o ideólogo das teorias racistas nazis
Dirigiu-o durante anos, até Hitler assumir o e da necessidade do Lebensraum (espaço
poder, e acabou como presidente honorário vital). Foi condenado à morte depois da
sem qualquer influência real. guerra e enforcado.

Dietrich Eckart (1868-1923) Hermann Göring (1893–1946)


Foi fundador e diretor do jornal do partido, Piloto de caças na Primeira Guerra Mun-
o Völkischer Beobachter. Participou no golpe dial, filiou-se no partido nazi em 1922.
Hermann Göring (na foto, em 1920)
de Munique, mas morreu pouco depois, Hitler admirava-o devido à sua inteligência foi um dos pilotos mais destacados
de um enfarte. Hitler dedicou-lhe parte do e confiou-lhe a tarefa de organizar as SA. e condecorados na Primeira Guerra Mundial
Mein Kampf. Depois do golpe de Munique, teve de e era uma figura muito popular na Alemanha
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quando se juntou aos nazis, em 1922.


fugir da Alemanha, aonde regressou em
Wilhelm Frick (1877–1946) 1927, na sequência de uma amnistia. Pos-
O chefe da polícia criminal de Munique teriormente, foi presidente do Reichstag,
simpatizou com os nazis desde o início. primeiro-ministro da Prússia e máximo res- Até aí, a governação do partido tinha sido demo-
Participou no golpe da cervejaria e foi con- ponsável da Luftwaffe. Suicidou-se após ter craticamente repartida entre todos os membros
denado a 15 meses de prisão por alta trai- sido condenado à morte nos Julgamentos da direção, mas Hitler exigiu um controlo absoluto
ção. Depois de ser libertado, tornou-se um de Nuremberga. de todas as decisões, que lhe foi concedido por
dos primeiros deputados nazis no Reichs- uma esmagadora maioria: os nazis passavam a ser
tag. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi Rudolf Hess (1894–1987) dirigidos por um único e obstinado líder. Uma das
nomeado Reichsprotektor da Boémia e da Piloto e herói da Primeira Guerra Mundial, suas primeiras decisões, em 1922, foi que as SA se
Morávia. Foi executado. juntou-se ao partido depois de ouvir um organizassem como um corpo profissional, tarefa
discurso de Hitler em 1920. Após o golpe que atribuiu ao piloto de caças Hermann Göring
Ernst Röhm (1887–1934) de Munique, tornou-se secretário pessoal (1893–1946), que acabara de se juntar ao partido
Capitão do exército, juntou-se ao partido e braço-direita de Hitler, que o nomeou nacional-socialista..
quase ao mesmo tempo que Hitler. Torna- seu herdeiro político. Em 1941, voou para Göring tinha vencido alguns combates aéreos
ram-se bons amigos e estiveram lado a lado a Escócia numa missão secreta, mas o seu arriscados na Primeira Guerra Mundial e era um
no golpe de Munique de 1923. Em 1930, avião teve problemas e foi feito prisioneiro. herói nacional, pelo que a sua inscrição no partido
foi nomeado responsável pelas SA, corpo Foi condenado a prisão perpétua nos Julga- teve eco em toda a Alemanha. Embora só tenha
que se converteu na maior força paramilitar mentos de Nuremberga e encarcerado na dirigido os Camisas Castanhas durante um ano,
da Alemanha. Foi assassinado, a mando de prisão de Spandau, em Berlim, onde mor- Hitler ficou satisfeito. “Gostei dele imediatamente.
Hitler, na Noite das Facas Longas. reu aos 93 anos. Foi o único líder das SA que fez um bom trabalho.
Pegou num grupo de esfarrapados e, pouco depois,

80 SUPER
tínhamos uma divisão de onze mil soldados prepa- O GOLPE DA CERVEJARIA Castanhas marchariam sobre Berlim e exigiriam
rados para a ação”, escreveu. O plano foi posto em marcha em setembro, ins- que Hitler fosse nomeado chanceler.
A ardente mensagem xenófoba de Hitler come- pirado na Marcha sobre Roma de Benito Mussolini. Na noite de 8 de novembro de 1923, os partidá-
çou a atrair poderosamente a atenção daqueles que Hitler tinha o apoio dos Camisas Castanhas, a cum- rios de Hitler, seguindo as suas ordens, começaram
se sentiam empobrecidos e humilhados devido à plicidade de vários oficiais importantes no exér- a semear o caos em Munique. Von Kahr e muitos
paz imposta pelas potências vencedoras da guerra. cito e uma aliança secreta com o comissário-geral simpatizantes nazis estavam na cervejaria Bürger-
A isto somou-se, em 1923, a espantosa crise econó- do estado da Baviera (e antigo primeiro-ministro bräu quando irrompeu um grupo das SA. Pouco
mica resultante da invasão do Ruhr por tropas fran- bávaro), Gustav Ritter von Kahr (1862–1934). depois, entrou Hitler. “Começou a revolução
cesas e a consequente greve mineira, que levou Primeiro, proclamaria uma nova república sujeita nacionalista!”, gritou. Porém, agindo contra o que
à mais vertiginosa inflação da história universal e à à autoridade nazi em Munique. Depois, os Camisas haviam acordado, Von Kahr não se manifestou a
ruína, à fome e à ameaça de novas revoltas. favor de Hitler, que sofreu o ultraje de se ver só com
Deste modo, o partido nazi alcançou nesse o seu ardor revolucionário. Furioso, o líder nazi
ano a cifra de 55 mil filiados; por seu lado, as SA Göring foi arrastou-o para uma sala adjacente e exigiu-lhe o
somaram vinte mil novos membros. Esta impo- seu apoio, prometendo-lhe lugares no novo
nente força de choque e a sensação de crescente o primeiro líder governo. Uma vez mais, o político aceitou apoiar o
poderio conduziram o inquieto Hitler a planear um golpe, embora mais tarde viesse a perceber-se que
golpe de estado para conquistar o controlo do das SA, a guarda tinha os seus próprios planos.
governo regional da Baviera, primeiro, e, poste- O general Erich Ludendorff (1865–1937), herói
riormente, o poder em toda a Alemanha. pessoal de Hitler nacional da Primeira Guerra Mundial, juntou-se

SUPER 81
aos rebeldes à última hora. Na manhã seguinte,
2000 nazis marcharam em direção ao Ministério
da Guerra em Munique, entoando ruidosas can-
ções bélicas. Muitos transeuntes juntaram-se-lhes
espontaneamente. Ao lado de Hitler, iam Luden-
dorff e alguns futuros líderes nazis. Porém, ao
chegarem à rua do ministério, a polícia, cumprindo
ordens de Von Kahr, barrou-lhes o caminho; Hitler
nunca se esqueceu da traição e mandou matá-lo
na Noite das Facas Longas.
De repente, ouviram-se tiros, Hitler atirou-se
para o chão e deslocou o ombro esquerdo. Os
guarda-costas das SA tiraram-no dali e levaram-no
para um local seguro. Göring, apesar de ter sido
atingido numa coxa, conseguiu escapar. Refugiou-
-se na Áustria e só voltou à Alemanha em 1927,
quando foi decretada uma amnistia.
O velho general Ludendorff prosseguiu a marcha
por entre os tiros. Acabou por se render, mas
seria posto em liberdade devido ao respeito que
inspirava. Nunca voltou a dirigir a palavra a Hitler,
a quem, depois da fuga, considerou um cobarde.
O caos durou menos de um minuto, mas, estendidos
na calçada da praça, ficaram quatro polícias e 14
golpistas mortos.

JULGAMENTO BENÉVOLO
Hitler foi encontrado, detido e, em fevereiro de
1924, julgado juntamente com outros nazis. As acu-
sações eram graves (alta traição, a morte de quatro
polícias), mas o juiz Georg Neithardt (1871–1941)
nada fez para dissimular que considerava o golpe de
Munique uma tentativa de “proteger a Alemanha

A certa altura,
Hitler percebeu
Hitler assumiu o cargo de presidente
do NSDAP em 29 de julho de 1921,
graças aos seus dotes de comando

que exercia um e à sua personalidade carismática.


Na foto, rodeado de membros
das SA e outros simpatizantes,
efeito hipnótico em data indeterminada.

da praga do comunismo”. Além disso, os alemães Depois de ser condenado, Hitler chamou Alfred RECUO E RELANÇAMENTO
seguiram maciçamente o processo e o líder nazi Rosenberg (1893–1946) à prisão de Landsberg. Nas eleições de maio de 1924, os nazis tinham sido
aproveitou a oportunidade para se dirigir ao povo. Tinha decidido passar o poder a este leal arquiteto impedidos de concorrer, mas contornaram a proi-
Apresentava-se no tribunal ostentando a Cruz de de 30 anos que se tinha filiado no partido nos seus bição apresentando-se sob outras siglas e em
Ferro, distinção que lhe tinha sido concedida na primeiros tempos. Considerava-o pouco ambicioso coligação e, com a recente abordagem de Hitler,
Primeira Guerra Mundial, e falava do seu amor pela e, inclusivamente, algo preguiçoso; com Rosenberg obtiveram os seus melhores resultados até à data:
pátria. Em poucas semanas, deixou de ser um mero como líder, o seu poder não seria contestado mais de dois milhões de alemães, 6,5 por cento do
rebelde local para passar a ser conhecido em todo durante os cinco anos que, teoricamente, deveria eleitorado, votaram no partido, o que lhes deu 32
o país. permanecer na prisão. dos 472 lugares do Reichstag. Contudo, apenas seis
Em 1 de abril de 1924, Hitler foi condenado a cinco Foi muito menos: seis meses depois, já tinha sido meses mais tarde, em dezembro, obtiveram menos
anos de prisão, uma sentença muito leve e que con- libertado. Não obstante, retirou-se durante algum de um milhão de votos e apenas 14 lugares. A crise
templava uma possível liberdade condicional ante- tempo para a residência de Berghof, nas montanhas tinha abrandado e o partido, sem Hitler à frente,
cipada. Cumpriria a pena na prisão de Landsberg, bávaras, que acabava de alugar (em 1932, com- parecia perder força.
numa cela com todo o tipo de comodidades, prou-a, graças às receitas da venda do livro). Lá, Este recuperou plenamente a liderança em
incluindo as visitas do seu secretário pessoal, concluiu a segunda parte da obra e optou por uma fevereiro de 1926 e procedeu à moderação do
Rudolf Hess (1894–1987), ao qual ditaria no cárcere nova linha de atuação política, que consistia em discurso do partido nazi para atrair, dessa forma,
a primeira parte do seu livro de memórias e ideário esquecer a via revolucionária e consolidar um segmentos maioritários do eleitorado e alcançar
político, o incendiário Mein Kampf/A Minha Luta partido de massas que conquistasse o poder peso parlamentar suficiente, mas, nas eleições
(Editora Guerra & Paz, 2016). ganhando as eleições. de 1928, os nazis elegeram apenas 12 deputados.

82 SUPER
dos e, com eles, a maioria simples no Reichstag.
Porém, o presidente da República, o marechal
Paul von Hindenburg (1847–1934), herói de guerra,
recusou nomear Hitler chefe de governo. Os nazis
dedicaram-se então a obstaculizar ao máximo o
trabalho legislativo. Em muitas ocasiões, todo o
seu grupo parlamentar se ausentava do hemiciclo,
para tornar impossíveis as votações, devido à falta
de quórum.
No final desse ano, para evitar a paralisação do
regime, a Alemanha viu-se condenada a antecipar
as eleições. Nesse sufrágio, o partido nazi perdeu
apoios e baixou a sua representação parlamentar
para 196 deputados, o que parecia indicar que a
estratégia de Hindenburg para debilitar Hitler
tinha funcionado. No entanto, a divisão entre os
partidos da direita dificultava a formação de um
governo, de forma que o até então chanceler
democrata-cristão Franz von Papen (1879–1969)
convenceu Hindenburg a nomear Hitler.

GETTY

A estabilidade prejudicava um partido de extrema- A Alemanha entrou em queda livre. De repente, Este, desejoso de tomar as rédeas como sempre
-direita visto por muitos como violento e radical, uma mensagem subversiva como a que era apre- havia sonhado, aceitou a condição de que o
um perigo para uma sociedade que aspirava progre- sentada por Hitler tornou-se a explicação perfeita governo fosse de coligação. Era um presente enve-
dir pacificamente. Dois anos depois, em 1930, pelo para todos os males. Os estrangeiros eram os nenado com o qual se esperava enfraquecer Hitler,
contrário, as eleições deram aos nazis 6,5 milhões responsáveis pela crise, particularmente os finan- dado que não teria demasiado poder num executivo
de votos (18% do eleitorado) e 107 deputados: mais ceiros judeus que dominavam a economia norte- em que a maior parte dos membros não perten-
95 representantes do que os obtidos em 1928. -americana. O regime parlamentar (a chamada ciam ao partido nazi. Mal sabia quem assim pensava
O que tinha mudado? “República de Weimar”) foi também apontada por até onde estava disposto a chegar o futuro Führer
O fator decisivo para a projeção do partido de Hitler como um obstáculo a derrubar para que a para atingir os seus propósitos.
Hitler foi o crash da Bolsa de Wall Street de 1929, Alemanha pudesse recuperar a riqueza e o poderio Hitler foi nomeado chanceler (primeiro-ministro)
com a terrível crise económica que provocou. que detinha antes da Primeira Guerra Mundial. em 30 de janeiro de 1933 e, a partir desse dia, pôs
O súbito colapso das finanças dos Estados Unidos A solução, segundo ele, passava por enveredar por em marcha a estratégia para que essa liderança
afetou severamente a Alemanha, muito depen- um novo caminho em que a Alemanha fosse autos- pouco alicerçada se transformasse em domínio
dente do dinheiro que vinha daquele país. Todos os suficiente, para não depender do destino de paí- absoluto.
indicadores económicos ficaram no negativo: o ses que a queriam ver pobre e subjugada. J.S.
desemprego aumentou espetacularmente ao
mesmo tempo que, com igual verticalidade mas em POR FIM, O PODER NR – Este texto é uma adaptação de um dos artigos
sentido contrário, caíam a produção industrial e Em julho de 1932, realizaram-se novas eleições da edição especial Nazismo, que pode encontrar
agrícola e os salários. legislativas. O partido nazi conseguiu 230 deputa- numa banca perto de si.

SUPER 83
História

Perdas irreparáveis

Desastres
culturais
Da remota destruição total ou parcial de joias
lendárias da Antiguidade, como as bibliotecas
de Alexandria e Constantinopla, o Templo
de Jerusalém e o Parténon, a terríveis atos
de vandalismo do presente, perpetrados contra
o património mundial pelos talibãs e pelo ISIS.
INCÊNDIO DA BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA QUEIMA DA BIBLIOTECA DE CONSTANTINOPLA
9 de novembro de 48 a.C. 29/30 de maio de 1453
Foi o foco da cultura helénica promovida pela Infelizmente, entre os numerosos atos de terro-
dinastia ptolemaica (os sucessores de Alexandre, rismo cultural, um dos mais habituais tem sido a
o Grande, que governaram o Egito até à sua con- pilhagem, a destruição ou o incêndio de bibliotecas,
quista por Roma). Reunia todo o conhecimento da geralmente promovidos por líderes políticos ou
época; nas palavras de Vitrúvio, era “a maior religiosos exaltados. Assim, quando os turcos do
editora da Antiguidade”. Foi pasto das chamas império otomano tomaram a capital do Império
durante o cerco de Júlio César à cidade, embora a Romano do Oriente, concluíram o seu trabalho de
destruição tenha sido parcial e o incêndio acidental. destruição incendiando a Biblioteca de Constanti-
O mesmo não se pode dizer do que sofreu, no século nopla, mas não eram os primeiros: no século VIII, o Parténon num armazém de armamento. Atin-
VII, às mãos dos muçulmanos, que desferiram o imperador Leão III, o Isauro, mandara queimar gido em cheio por um obus, a explosão destruiu
o golpe fatal. Esta foi a sentença do califa Omar ibn parte dos milhares de rolos da esplêndida coleção o telhado do edifício, trinta colunas e muitas das
al-Jattab para condená-la ao fogo: “Se não contém criada por Constantino. esculturas de Fídias.
mais do que há no Corão, é inútil, sendo preciso
queimá-la; se contém mais, é má, sendo também CANHÕES CONTRA O PARTÉNON BATALHA DE SAGUNTO
preciso queimá-la.” 27 de setembro de 1687 25 de outubro de 1811
A falta de apreço pelo que mais nos enriquece Durante as invasões napoleónicas, esta cidade
DESTRUIÇÃO DO TEMPLO DE JERUSALÉM como espécie, a nossa herança artística e cultural, portuária da província de Valência (Espanha), fun-
Março a setembro de 70 d.C. fez que por vezes se tomasse como reféns tesouros dada pelos gregos sobre a antiga cidade de Arse
A intolerância religiosa, o revanchismo ou a simples do património arqueológico. Talvez o exemplo e aliada de Roma (dispunha, assim, de um grande
demonstração de força estiveram por detrás de mais lamentável de todos seja o ocorrido em património arqueológico), foi cercada pelo mare-
desastres e estragos tão graves como a destruição 1687, com o Parténon de Atenas, que fora trans- chal francês Suchet. À destruição provocada pelos
do segundo Templo de Jerusalém, ordenada pelo formado em paiol pelos turcos e, por conseguinte, canhões durante a batalha, somou-se, após a
futuro imperador romano Tito (na altura, um insensatamente alvo dos tiros de canhão da frota rendição, a demolição de todos os obstáculos
general). Era chover sobre o molhado, pois o pri- veneziana comandada pelo almirante Morosini; as para instalar a artilharia defensiva gaulesa. Para
meiro templo fora arrasado, em 587 a.C., pelos nuvens de pó da destruição deram origem à lama cúmulo, os materiais demolidos foram reciclados
babilónios. A segunda destruição, ocorrida no da sua posterior expoliação. Aconteceu no âmbito da pelos saguntinos para reconstruir os seus velhos
contexto da primeira guerra judaico-romana, é guerra da Liga Santa contra o império otomano: a edifícios. O conflito afetou total ou parcialmente o
anualmente lembrada na festividade judaica do Grécia mantinha-se dentro dos domínios turcos e circo, o teatro e o aqueduto romanos, os restos do
Tisha b’Av e surge recriada no Arco de Tito, em Veneza foi encarregada de “libertar” Atenas, onde Templo de Diana e a muralha medieval, além de
Roma. o inimigo se refugiara na Acrópole e transformara arrasar campanários e torres mais recentes.

84 SUPER
Destruição de Palmira

BOMBARDEAMENTO DE POMPEIA dano colateral: as bombas remexeram o terreno, lógico”. Os talibãs recuperaram o poder, pelo que
24 de agosto a 20 de setembro de 1943 permitindo que as chuvas dos anos seguintes des- poderá haver mais desastres como este.
Todos conhecemos a primeira destruição de Pom- truíssem frescos e paredes que tinham permane-
peia, provocada pela erupção do Vesúvio em 24 de cido resguardados pelas cinzas vulcânicas durante EXPLOSÃO DOS TEMPLOS DE PALMIRA
agosto de 79 d.C. Em contrapartida, poucos sabem quase 2000 anos. 24 a 30 de agosto de 2015
(a história é escrita pelos vencedores) da infligida As ruínas da antiga capital do efémero império
por britânicos e norte-americanos aos restos DEMOLIÇÃO DOS BUDAS DE BAMIYAN de Palmira, governado pela mítica rainha Zenóbia
históricos da cidade italiana, entre 24 de agosto Março de 2001 (século III), foram durante séculos uma das joias
(fatídica data) e 20 de setembro de 1943, no Estas monumentais estátuas (com 55 e 38 metros arqueológicas mais admiradas do mundo; o con-
âmbito da ofensiva sobre Nápoles. Nesse escasso de altura), talhadas na rocha em ambos os lados junto foi declarado Património da Humanidade pela
período, uma chuva de bombas (190 no total) de um desfiladeiro do Afeganistão, datadas dos Unesco em 1980. Todavia, nada detém a destruição
reduziu a pó os arcos do Fórum, a casa de Triptó- séculos V e VI e decoradas com frescos e pinturas, e o ódio. Durante a guerra na Síria, o autoproclamado
lemo, as duas primeiras salas do Museu Pompeiano conseguiram sobreviver a Gengis Khan, a séculos Estado Islâmico (Daesh ou ISIS) ocupou a zona em
(onde se guardavam milhares de objetos desco- de guerras e ao desgaste natural, mas não ao regime 2015 e, no dia 24 de agosto (esta data tem enguiço),
bertos nas escavações iniciadas em 1748), a Porta talibã. Em março de 2001, depois de terem sido depois de ter torturado e executado de forma
Marina, o fresco de Diana e Acteão na casa de condenados pela sua condição de ídolos pre-islâ- macabra o antigo diretor da jazida, Khaled Asaad
Salústio, parte da casa da Diana Arcaizante e o átrio micos, os Budas foram “fuzilados” com dinamite e (entre muitas outras pessoas), iniciou uma semana
da casa de Epídio Rufo, com as suas 16 colunas artilharia antiaérea, perante o espanto horrorizado de destruição com explosivos até arrasar por com-
coríntias, das quais apenas cinco ficaram de pé. do mundo. A essa consternação, somou-se outra: pleto o histórico lugar. Desabaram o templo de
Felizmente, muitas das melhores estátuas e joias uma equipa alemã decidiu reconstruir a mais Bel, o de Baalshamin, o túmulo-torre de Elahbel, o
de Pompeia tinham sido evacuadas de Nápoles pequena das duas estátuas, e o resultado, apre- Arco do Triunfo e grande parte do teatro romano.
perante a iminência do ataque, mas houve outro sentado em 2014, foi considerado “crime arqueo- N.O.

SUPER 85
História

Sinal de declínio do Império Romano

A barbarização
da juventude
No mundo romano, a indumentária indicava a posição social.
Quando os jovens decidiram contrariar essa convenção,
o caso tornou-se assunto de estado, punido com penas graves.

N
os últimos anos do século IV, o orde- sobretudo nas estelas funerárias e nos túmulos, Amiano, o último grande historiador de Roma,
namento jurídico imperial romano em que surgem representadas personagens com relaciona a derrocada do império tanto com os
emitiu três leis que proibiam o uso roupas grosseiras e chapéus estranhos, pouco confrontos com os povos bárbaros como com os
de uma indumentária considerada conformes ao estilo romano, sem qualquer tipo de problemas internos: a caótica situação da admi-
indecorosa e contrária aos costumes da Cidade adorno e com as cabeleiras completamente des- nistração, a opressão económica, o descontenta-
Eterna. Juntamente com compridas e descuidadas cuidadas. Mesmo na escultura oficial, a partir do mento social devido ao empobrecimento da grande
cabeleiras, entre a juventude romana tinha-se popu- século III, o retrato começou uma rápida evolução maioria da população e, por fim, também a dege-
larizado o uso de botas e casacos de couro, assim no sentido do simbolismo, no qual a semelhança neração dos costumes. Aprofunda a questão
como de calças estreitas, às vezes rotas ou esfarra- física deixa de interessar ao artista, que opta por falando da impunidade dos ricos, devido à corrupção
padas. As penas impostas pelo incumprimento des- uma representação simbólica caracterizada pelo e aos seus faustosos modos de vida e indumentária,
tas normas eram muito duras: esta conduta passou hieratismo. Estas formas desleixadas e populares que contrastava com a fome e o descontenta-
a ser punida com o exílio perpétuo da cidade, a foram também utilizadas pelos filósofos, os pri- mento social.
confiscação de bens e até trabalhos forçados. meiros a deixar crescer a barba, particularmente
O fenómeno da barbarização da cultura romana os cínicos, sendo posteriormente adotadas por O VALOR DA IMAGEM
é complexo e o menos importante do mesmo alguns setores da Igreja. No mundo romano, a origem de cada um podia
acaba por ser as próprias invasões. Como é evi- saber-se através da forma como estava vestido.
dente, não se limitou a uma forma de vestir que AUTORES CONTEMPORÂNEOS A sociedade dava um alto valor à indumentária.
denotava a rebeldia da juventude da antiga capital, Possuímos o testemunho de dois grandes A vestimenta clássica assentava no uso de túni-
tendo um grande impacto no contexto ideológico autores contemporâneos dos factos: S. Jerónimo cas, togas e mantos. O uso das bracae, as anteces-
e cultural de um império em plena decadência (c. 347–420 d.C.), um monge de Belém, e Amiano soras das nossas calças, generalizou-se entre os
política e moral. Abandonou-se paulatinamente a Marcelino (c. 325–c. 391 d.C.), militar e historiador legionários que combateram no norte da Europa,
cultura romano-helenística, o latim vulgarizou-se, nascido em Antióquia (atual Antakyia, na Turquia). o que significou também a generalização da camisa
assim como o próprio ordenamento jurídico, O primeiro traça na sua correspondência, enviada para cobrir a parte superior do corpo, mas foi apenas
abandonaram-se, em grande medida, os estudos a pessoas das mais diversas províncias do império, nos séculos IV e V que o habitus barbarus entrou
científicos e as artes plásticas proletarizaram-se. um retrato realista da sociedade romana baixo-im- em voga em amplas camadas da população.
Este fenómeno, que na parte oriental do império perial. Destaca, em primeiro lugar, o escandaloso O calçado era outro elemento, complementar
se traduziu na recuperação dos valores estéticos das luxo em que viviam as mulheres ricas (o uso de da indumentária, que não escapava aos convencio-
antigas e ricas civilizações precedentes, como a joias, maquilhagens caras, roupas de seda e ouro) nalismos. A toga usava-se com calceus, um sapato
egípcia ou as do Médio Oriente, significou na parte e o seu hábito de frequentarem banquetes, assim fechado. As sandálias foram muito utilizadas, mas
ocidental um gradual processo de gosto pelo ple- como a sua ostentação quando realizavam obras apenas em ambiente familiar. Os soldados usavam
beu e popular, também com referências nas antigas de caridade; também estendia este comporta- normalmente a caliga, um calçado fechado com
culturas do continente europeu, que rapidamente se mento reprovável às viúvas. A sua pluma afiada rebites metálicos na sola, e os militares de patente
barbarizou em contacto com os povos germânicos dirige-se ainda à conduta imoral de alguns bispos mais elevada usavam as mullei, botas altas de
que começaram a instalar-se dentro das antigas e de outros membros da Igreja, assim como de couro. Um calçado mais modesto, de couro ou
fronteiras do império. muitos laicos, que S. Jerónimo afirma serem, no esparto, era usado pelas classes populares.
Este novo gosto é visível na própria estatuária, seu entender, apenas cristãos de nome. No que concerne ao cabelo, tanto os retra-

86 SUPER
ASC
Pormenor da Coluna de Trajano
(Roma), com bárbaros e romanos
em pleno combate.

CRINES MAYORES
tos oficiais como os privados, se preocupava muito com forma de vestir, que se revelou obstinada, visto
assim como as moedas, demons- estes hábitos, foi o seu filho que, poucos anos após a sua proibição, foi neces-
tram o uso generalizado do cabelo Honório, imperador do Ocidente, a sário voltar a legislar sobre ela e até acrescentar
curto. É na dinastia dos imperadores tomar severas medidas legais con- penas mais graves. Possivelmente, esta forma
antoninos, de origem ibérica, uma tra eles. Nas três leis promulgadas, de rebeldia estética corresponderia, na verdade,
época considerada por muitos INDUMENTA que foram incluídas no Código a uma maneira de a juventude demonstrar a sua
como a mais feliz da história PELIUM de Teodósio, na rubrica “De extero rejeição de uma sociedade corrompida e de uma
da humanidade, que Adriano usu Romae prohibito”, são des- cultura oficial na qual não se sentia representada.
(76–138 d.C.) surge representado critas as roupas que eram uti-
com barba, uma constante nos lizadas e ficavam proibidas. LEIS DURAS
séculos II e III. Com os imperado- A primeira menção é às botas As penas impostas a este novo delito, nunca antes
res-soldados, a barba não desa- (tzangae), grosseiras e de tipificado, eram, como se referiu, muito graves,
parece, mas torna-se mais curta. couro, que chegavam aos joe- e tiveram como âmbito de aplicação a própria cidade
lhos e que, usadas pelas tropas e, posteriormente, o território envolvente. Devido
HÁBITOS JUVENIS federadas, foram posteriormente à mudança operada no sistema judicial romano na
É o historiador Amiano Marcelino popularizadas pelos legionários época conhecida como “dominato”, os juízes tinham
que nos mostra os comportamentos e a entre a população. Atraía os roma- de aplicar as penas prescritas sem qualquer margem
forma de vestir da grande cidade nos sobretudo a sua cor preta, interpretativa. Para este novo delito, claramente
que foi berço da cultura romana BRACAE muito diferente do branco usado de caráter político, foram estabelecidas as penas
mas já não gozava do estatuto até aí e tido como cor adequada. de exílio perpétuo, de confiscação de todo o
de capital imperial. Embora residisse Como se disse anteriormente, as património e mesmo de condenação a trabalhos
em Constantinopla, capital do Império bracae eram as calças utilizadas forçados
Romano do Oriente desde a divisão em todo o norte do continente Apesar da sua gravidade, talvez não tenham
que se seguiu à morte de Teodósio europeu, pelos sármatas, pelos chegado a ser aplicadas. As leis foram emitidas
(347–395 d.C.), viajava anual- getas e até pelos antigos persas, nos anos 397, 399 e 416 d.C., e há que ter em conta
mente para Roma e deixou rela- pelo que sempre haviam sido vistas que, em 410, seis anos antes de ser decretada a
tos desses comportamentos. pelos romanos como sinal evidente última, Roma foi saqueada pelo rei godo Alarico
Nos seus escritos, retrata a moda do cabelo de barbárie. Na segunda norma, é (c. 370–410 d.C.), a Germânia e a Britânia foram
comprido, das calças apertadas e dos casacos de visada outra peça de roupa, racae, invadidas, enquanto francos e burgúndios cruza-
couro. Também relata que, em certa ocasião, uma discutindo-se se se refere à mesma indu- vam as Gálias e vândalos, suevos e alanos penetra-
cantora cujo nome não regista, infelizmente, che- mentária mas com cortes ou farrapos, ou à raga, vam na Hispânia, sendo combatidos pelos godos
gou a reunir no fórum vinte mil jovens que a acla- uma capa comum nas costas orientais ibéricas. federados. Roma foi novamente saqueada pelo
mavam. Outros autores descrevem também como A última lei inclui também o pellium, o casaco de vândalo Genserico (c. 389–477 d.C.). O Império
os jovens costumavam reunir-se em grupos à noite, couro, proibindo ainda o uso de cabelo comprido Romano do Ocidente desapareceu como entidade
tocando música, normalmente em tambores. a todos os habitantes de Roma. política em 476 d.C.
Embora conste que o imperador Teodósio já Faz sentido perguntar qual seria a razão desta P.D.C.

SUPER 87
História
ALBUM

Roma contra Cartago

Terra desejada
Em 218 a.C., o general Cneu Cornélio Cipião desembarcou com as suas
legiões na costa da atual província espanhola de Girona (Catalunha).
Foi o primeiro contacto de Roma com um território, a Ibéria,
no qual conviviam mais de uma dezena de povos diferentes,
estruturados de forma tribal e com um escasso nível de desenvolvimento,
à exceção da magnífica sociedade de Tartesso, no sul da península.

Recriação da cidadela de Calafell (Tarragona)


com o aspeto que teria no século I a.C.,
baseada nos resultados arqueológicos.

88 SUPER
SUPER 89
O
s gregos chamaram-lhe Ibéria, mas Escavações recentes em Cástulo
o nome da atual Espanha provém de (Jaén) trouxeram à luz importantes
edificações da era dos Barca.
Hispânia, palavra de origem romana Aqui, as termas de cidade.
para distinguir a nossa península dos
restantes territórios mediterrânicos. Contudo, é
curioso que o termo não tenha tido origem no
latim, o que levou à formulação de diversas teorias
a esse respeito. Uma delas defende que provém do
fenício I-spn-ya, termo documentado em inscrições
de pelo menos 2000 a.C. No século XVIII, pensava-
-se que poderia querer dizer “terra do norte”, pois
spn significava “norte” em hebraico e aramaico, e
especulava-se que os fenícios teriam descoberto o
território peninsular contornando a costa africana
(pelo que, desse modo, ficava a norte).
Outra teoria afirma que, quando chegaram às
nossas costas, os fenícios ficaram surpreendidos
com a abundância de coelhos, pelo que batiza-
ram o território com o termo shapán, nome dado
por aqueles comerciantes aos pequenos animais,
muito comuns no norte de África e no Médio
Oriente. É por isso que se diz que os fenícios chama-
ram a esta região I-shepham-im, o que se poderia
traduzir por “costa dos coelhos”. Quando os roma-
nos chegaram, adotaram o termo e interpretaram
o prefixo i (costa) como tendo um significado
mais vasto, passando a designá-la por “região”.
Cícero, Plínio, o Velho, Catão e Tito Lívio referem-se à
Hispânia como “terra abundante em coelhos”, e
foram mesmo cunhadas moedas com divindades
a cujos pés se vê a figura de um coelho, como per-
sonificação da península ibérica.

Já na pré-história
se conheciam
bem as riquezas
minerais ibéricas
SUBSOLO COBIÇADO
Todavia, as teorias atualmente mais aceites
defendem que se traduz I-span-ya por “terra onde
se forjam metais”, pois spy (raiz da palavra span)
significa, em fenício, “bater metais”. A Hispânia
era uma terra única, muito diferente dos restantes
territórios mediterrânicos, e é por isso que iberos,
fenícios, gregos, púnicos e, mais tarde, romanos
fizeram deste território um lugar desejado por
todos, uma terra repleta de minerais e de recursos
naturais inesgotáveis.
Desde a época pré-histórica que circulavam
lendas por todo o Mediterrâneo sobre os navios
fenícios que partiam da península carregados de
prata e ouro. Obviamente, as histórias eram do
conhecimento de outros povos, que mostravam
interesse em conhecer o território. Como a história
está sempre a repetir-se, desde a época pré-ro-
mana que todos os estrangeiros chegados à penín-
ALBUM

sula procuravam metais (sobretudo prata) para

90 SUPER
SUPER 91
poderem financiar as suas guerras e batalhas.
A Ibéria era, sem dúvida, um lugar estratégico:
as suas minas de prata permitiam sufragar uma
economia monetária, e é por isso que as grandes
civilizações mediterrânicas desejavam o nosso
território.

POVOS INDÍGENAS
Desde o final da Idade do Bronze (século VIII a.C.)
que se configurara um mosaico social complexo,
de características diferentes consoante as regiões,
formado pelos chamados “povos pré-romanos”.
Por volta do ano 500 a.C., essas sociedades, que
ocupavam a faixa costeira mediterrânica, estavam
já organizadas, com peculiaridades comuns em
termos do recurso à tecnologia do ferro, dos cos-
tumes funerários, do uso do torno para produzir
cerâmicas, e possuíam uma estrutura linguística
semelhante. A partir do século IV a.C., essa cultura
começa a expandir-se por vastas zonas do inte-
rior peninsular e pela áreas pirenaicas. Essa civi-
lização sobreviverá até meados do século II a.C.
e, embora os romanos já tivessem conquistado
a península, impondo a sua língua e as suas leis,
observa-se a nível arqueológico que a presença e
os costumes dos povos pré-romanos vão perdurar
durante vários séculos após a conquista.

Cartagineses
e romanos
disputaram aqui
o Mediterrâneo
Antes da chegada dos romanos, a Ibéria estava
dividida numa série de áreas com características
socioculturais diferentes. De facto, surgiriam
diversas divisões regionais, mas distinguiam-se
claramente duas grandes áreas, com organizações
políticas, sociais e culturais distintas.

ÁREA IBERA
Ocupava a costa do Mediterrâneo, incluindo
todo o sul peninsular, a zona pirenaica, o vale do
Ebro e o sul das costas francesas. Foi sobretudo
uma cultura mediterrânica, fortemente influen-
ciada por fenícios, gregos e púnicos, em primeiro
lugar, e, por último, pelos romanos, que acabaram
por absorvê-la.
A sua organização social era complexa e hierar-
quizada, de acordo com um modelo aristocrático
regional. Habitavam povoações fortificadas,
situadas em lugares estratégicos que dominavam
vales, zonas férteis, rotas e vias de comunicação,
como, por exemplo, a povoação fortificada (oppi-
dum) de Puente Tablas (Jaén), ou a de Cástulo, em
terras do alto Guadalquivir, que controlava o rio
SHUTTERSTOCK

Guadalimar (o qual era navegável, com várzeas


férteis, minas de prata e cobre na serra Morena e

92 SUPER
Cartagena (Múrcia) foi fundada por Asdrúbal
Barca, por volta de 220 a.C., como Qart
Hadasht e tomada em 209 a.C. por Cipião,
o Africano, que a rebatizou como Cartago
Nova. Na foto, o anfiteatro romano.

SUPER 93
Povos e línguas ibéricos pré-romanos,
LUÍS FRAGA DA SILVA

por volta de 200 a.C. Amílcar Barca


estabeleceu em Gadir (atual Cádis)
a sua base na Segunda Guerra
Púnica, entre cartagineses e romanos.

94 SUPER
Identidades étnico-políticas
em moedas e fontes greco-romanas

POPULUS grandes ou genéricos


GENS ou CIVITAS pequenos ou locais
OPPIDUM (POLIS) Nome pré-romano latinizado
Novo nome romano

Locais pré-romanos, indígenas e coloniais,


que cunharam moeda até 45 a.C.
Língua usada nas moedas

Fenício/púnico
Grego
Ibérico Oriental
Ibérico Meridional
Tartéssico
Latim e outras
Locais relevantes sem moeda

Grupos linguísticos

Área turdetana

Tartéssico (residual)

Celtas

Iberos

Aquitânio (protobasco)

Indoeuropeu, pré-celta

Grandes associações linguísticas

Principais fundações coloniais

Fenícias

Gregas

Cartaginesas

Zona de hegemonia
marítima e comercial
de Gadir (atual Cádis)

Cartagineses (237 a 206 a.C.)

Área de colonização

Domínio militar

Influência geopolítica

Ocupação militar romana


194 a.C.
156 a.C.

Províncias romanas (depois de 7 a.C.)

Nomes

Limites

SUPER 95
Os castros do nordeste peninsular
estão entre os principais vestígios
da vida pré-romana. Na foto, a Cividade
ALBUM

de Terroso (Póvoa de Varzim).

Aníbal Barca imaginado


Família Barca numa litografia do século XIX.
uma via de acesso principal ao interior peninsular).

A família Barca foi uma das mais impor-


tantes da história da Ibéria, caracte-
rizada por ser constituída por autênticos
quer barreira geográfica. Assim foi: até ao
aparecimento de Aníbal, a guerra no Medi-
terrâneo ocidental era resolvida de acordo
Em termos gerais, encontramos nesta área, de
norte para sul, indigetes, laietanos, lacetanos,
ilergetes, edetanos, contestanos, mastienos, ore-
príncipes que dispunham de um elevado com as tradições ou os padrões territoriais, tanos, bastetanos e turdetanos.
grau de fidelidade por parte das suas tropas, e os conflitos armados com confrontos ter- Esta sociedade dedicou-se basicamente à agri-
pois tratava-se um clã cuja base funda- restres em torno de determinada cidade ou cultura, à pecuária e à exploração mineira, pelo que
mental e modelo socioeconómico eram ponto estratégico; porém, Aníbal quebrou estabeleceu fortes relações comerciais com
a milícia e a guerra. Um dos líderes mais todos os esquemas conhecidos ao recorrer outros povos.
importantes da família foi Aníbal, nascido a táticas militares complexas. Os Barca
em Cartago em 247 a.C. Tinha apenas 25 inventaram, inequivocamente, uma forma ÁREA CELTA
anos quando morreu o cunhado, Asdrúbal, de guerra moderna, com a execução de pro- Ocupava a meseta ibérica e o norte e o oeste
e foi eleito general pelas tropas cartagine- jetos estatais em grande escala, o que exigia da península. Tratava-se de uma mistura de povos
sas. Fazendo gala do seu espírito militar e diversas fórmulas de ação e uma relação e tribos que parecem possuir uma origem comum
grande conhecedor das táticas de combate, com os povos envolvidos. Segundo o relato indoeuropeia. Há várias teorias a esse respeito. Por
chegou a tornar-se o inimigo mais temível de Tito Lívio, iniciado o percurso de Aníbal um lado, há a tese de que se produz, desde o pri-
de Roma. Estudioso das táticas militares e das suas tropas rumo à península itálica, meiro milénio da nossa era, um fenómeno migra-
helenísticas, seguia o modelo de Alexan- este teve um célebre sonho quando alcan- tório de povos provenientes do leste da Europa,
dre, o Grande (356–323 a.C.), o melhor çaram o Ebro, sem dúvida fruto da pro- que atravessaram os Pirinéus e se estabeleceram
exemplo de um líder militar e político paganda fomentada pelo seu círculo mais nas férteis terras peninsulares. Outra teoria fala de
dotado de grande carisma pessoal, capaz próximo, para associar o próprio Aníbal aos uma evolução, mediante aculturação e também pela
de enfrentar os maiores perigos e vencer os deuses e situar a guerra contra Roma sob a influência junto das elites celtas propiciada pelo
mais terríveis inimigos, ultrapassando qual- legitimação de um mandato divino. efeito indireto do comércio. Seja como for, não
houve invasões: a arqueologia revela que se tratou

96 SUPER
expandindo os domínios por quase todo o terri-
tório peninsular, graças aos seus hábeis pactos
diplomáticos com as elites locais. Fundou Cartago
Nova (atual Cartagena), nomeando-a capital dos
seus novos domínios. Aníbal (247–183 a.C.), o filho
mais velho de Amílcar, sucedeu-lhe no comando
das tropas e foi rapidamente nomeado general,
chegando a ser um dos homens mais poderosos
de todo o Mediterrâneo.
A atual investigação arqueológica descobriu
numerosos vestígios para estudo nas povoações
fundadas, refundadas ou sob a influência da famí-
lia Barca, vestígios desconhecidos até há apenas
uma década: ruínas com a relevância da sua extraor-
dinária materialidade, com muralhas robustas
como as de Cartagena ou impressionantes cons-
truções como as recentemente localizadas em
Cástulo (Jaén). O urbanismo associado aos carta-
gineses abre uma via de estudo para a compreen-
são do significado do seu projeto ibérico, como
expansão do seu poder como príncipes e líderes
helenísticos.

ROMA ENTRA EM CENA


A conquista ou invasão romana da Ibéria é com-
plexa e abarca, historicamente, vários séculos,
desde o ano 218 a.C. até ao final das guerras can-
tábricas, em 19 a.C. Por volta de 209 a.C., os roma-

Os romanos
tiveram de
aprender a fazer
JOSÉ GONÇALVES

a guerra no mar
de um fenómeno migratório de caráter maciço lugar estratégico, com terras férteis e abundantes nos tomam Cartagena, e dali dirigem-se para a
que persistiu durante séculos, configurando assim minerais, pelo que expandiram, durante várias zona do alto Guadalquivir, rica em minas de prata
a chamada “sociedade celta”. décadas, os seus domínios ao território penin- e dominada pelos cartagineses, que se tinham
Uma terceira teoria, mais recente, defende que sular, através de alianças e pactos com as elites aliado com os povos indígenas ibéricos. Asdrúbal
a origem da cultura celta está na península ibérica. locais, ou mesmo pela força. As constantes lutas procura travar o avanço romano, escolhendo
Com base em estudos de ADN e também linguísti- entre romanos e cartagineses, duas potências que para isso uma colina como ponto defensivo e que
cos, afirma que o substrato celta que encontramos disputavam há séculos o Mediterrâneo, transferi- também permitia a fuga no caso de a situação se
na Europa Central tem origem, no século VII a.C., no ram-se então para território ibérico. Registam-se complicar. Os romanos, liderados pelo general
nosso território, e estende-se ao resto do conti- várias batalhas a partir do século III a.C., no con- Públio Cornélio Cipião (m. 183 a.C.), estabelecem
nente. texto da Segunda Guerra Púnica. o seu acampamento perto desse outeiro e forçam
Generalizando, encontramos nesta área galai- Os Barca foram uma das famílias mais poderosas a batalha.
cos, cantábricos, ástures, belos, titos e pelendões, e importantes da época na história do Mediterrâ- Apesar da desvantagem de não se encontrarem
arévacos, váceos, celtiberos, vetões, carpetanos neo. Graças ao seu poder mercantil, e sendo conhe- numa posição estratégica, dado que os cartagine-
e lusitanos. cedores das táticas militares helenísticas, lutaram ses ocupavam uma posição mais elevada, o fator
A sociedade celta possuía uma economia fun- contra Roma pela conquista e pelo controlo do numérico das tropas romanas era superior, pois
damentalmente baseada na criação de gado e na Mediterrâneo ocidental, numa guerra que durou o historiador romano Tito Lívio (59 a.C.–17 d.C.)
agricultura; todavia, do ponto de vista socioeco- séculos. estimou que somavam 40 mil soldados, perante
nómico, as diferenças entre regiões são conside- O patriarca da família Barca foi Amílcar os 30 mil cartagineses. No entanto, estes números
ráveis, existindo mesmo formas de propriedade (c. 270–228 a.C.), que jurou sobre um altar sagrado parecem exagerados, e os últimos estudos falam
comunitária. “ser inimigo de Roma para sempre” e estendeu num total de 15 mil soldados.
os seus domínios até à Ibéria, onde encontrou Foi assim que se travou, em 208 a.C., a batalha
CHEGADA DOS CARTAGINESES a morte ao atravessar um rio (possivelmente de Bécula, uma das principais no contexto da
Depois da Primeira Guerra Púnica, os cartagi- o Júcar), atingido por um celta. O seu genro, Segunda Guerra Púnica, que opôs as tropas de
neses decidiram que a península ibérica era um Asdrúbal (c. 270–221 a.C.), substituiu-o no cargo, Cartago às legiões romanas de Cipião e aos iberos

SUPER 97
ASC
do alto Guadalquivir. O confronto foi relatado
pelo historiador grego Políbio (c. 200–c. 120 a.C.)
e depois por Tito Lívio, mas a sua localização exata
sempre provocou controvérsia. Através dos recen- Travessia do Ródano por Aníbal Barca (1878), do pintor
e gravador francês Henri-Paul Motte (1846–1922).
tes estudos arqueológicos desenvolvidos pela
Universidade de Jaén, apoiados nas descrições
dos historiadores romanos, sabemos que o campo
de batalha ficava no atual município de Santo Tomé. principais pontos de abastecimento de azeite, mente impondo para permitir o perfeito funcio-
A sua descrição coincide geograficamente com o trigo e minerais do estado romano. namento da grande máquina imperial. É isso que
Cerro de las Albahacas, e escavações arqueológicas O domínio romano da Ibéria materializou-se viria a designar-se, tradicionalmente, por “roma-
permitiram mesmo localizar todos os aconteci- progressivamente. Em alguns casos, os invasores nização”, e sabemos hoje que não acarretou uma
mentos do confronto. encontraram aliados entre a população indígena; rutura drástica com as realidades culturais e polí-
noutros, as lutas e as guerras foram constantes ticas provinciais.
O RASTO DA HISTÓRIA (incluindo as disputas entre romanos, no âmbito Após a conquista definitiva do território penin-
Nos estudos arqueológicos, foram documenta- das guerras civis entre políticos e militares que se sular, Roma obteve, além dos recursos minerais,
dos milhares e milhares de elementos que permi- produziram na península). aquilo que considerava ser as melhores terras de
tiram afirmar que se produziu uma grande batalha É durante o governo de Augusto (63 a.C.–14 d.C.) cultivo de todo o império. Uma vez conquistadas,
naquela colina. Lanças, pontas de flecha, dardos, que se registam os confrontos mais sangrentos e as terras eram distribuídas pelos novos colonos,
tachas das sandálias, projéteis de funda, fivelas ferozes contra povos cantábricos e ástures. Final- com os terrenos organizadas por centuriação: lotes
de cinto, esporas, moedas e estacas para fixar as mente, em 19 a.C, Roma impõe o seu domínio de terra de dimensões determinadas e igualitárias.
tendas são alguns dos materiais que apareceram sobre todo o território, pondo assim fim a longos A conquista da península levou a que grandes
durante as escavações. Graças, sobretudo, às anos de guerras e conquistas. extensões de território passassem a ser proprie-
tachas (clavi caligarii) das sandálias romanas, foi dade do estado romano (ager publicus). Serviam
possível localizar o seu acampamento, assim como TERRITÓRIO FÉRTIL sobretudo para cultivar cereais e oliveiras, pelo
o trajeto de quatro quilómetros que o exército As chaves do êxito de Roma residiram em saber que havia um comércio importante de trigo (ou
percorreu antes de enfrentar os cartagineses e as liderar e aproveitar os organismos políticos e cultu- farinha) e azeite. Existe, em Roma, uma colina
suas posições na batalha. rais conquistados, integrando-os com os seus mil conhecida por Monte Testaccio, surgida em conse-
Essas tachas eram uma espécie de pequenos recursos no poderoso império romano; uma com- quência dos destroços das ânforas (provenientes,
rebites de ferro nas solas de couro do calçado do plexa integração, ou digestão, baseada num equi- na sua maioria, da província hispânica da Bética)
exército romano, destinadas a favorecer o efeito líbrio entre a continuidade das realidades locais que serviam para transportar e conservar o azeite.
antiderrapante e reforçar as solas, embora estas, herdadas e as mudanças que foram progressiva- É, pois, possível deduzir a grande magnitude do
com o desgaste, começassem progressivamente comércio gerado pela cultura do olival na Hispâ-
a soltar-se da sandália, deixando um rasto pelo nia, e o azeite chegou a ser, durante muito tempo,
caminho que permitiu aos investigadores seguir Os arqueólogos o produto estrela do nosso território e aquele que
os movimentos das tropas romanas. mais se impôs. Trata-se, aliás, de um produto que
Após a vitória do exército romano, Asdrúbal diri- encontraram continua a ter grande importância na península
giu-se para norte até alcançar os Pirinéus. Entre- ibérica, mais de 2000 anos depois.
tanto, os romanos garantiram o controlo do curso vestígios sólidos V.B.C.
superior do Guadalquivir, que dava acesso a todo o NR – Este texto é uma adaptação de um dos artigos
vale e às minas de prata e chumbo da serra Morena, da batalha da edição especial Hispânia, que pode encontrar
até então controladas pelos cartagineses. A partir numa banca perto de si ou ler na versão digital (€1,60)
desse momento, a península tornou-se um dos de Bécula em https://bit.ly/3FrXWtv

98 SUPER
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