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A FORÇA VITAL
FONTE DA AUTORREGULAÇÃO, DO AMOR E DO VÍNCULO

AS FUNÇÕES TERAPÊUTICAS QUE ELA SUBENTENDE

Guy TONELLA, PhD


©2019

O NASCIMENTO DA FORÇA

Após o Big Bang nascem os planetas. Dentre eles, o planeta Terra se constitui há 4,6 milhões de
anos. Poeira de estrelas, ela guarda para sempre o traço, essa composição físico-química, que é
lembrada em nosso organismo: minerais provindos de material terrestre constituinte do universo,
gazes de todo tipo (inclusive oxigênio) provenientes da atmosfera, proteínas, glucídios e lipídios
provenientes dos frutos da natureza que se desenvolveu sobre a terra. Nossa fisiologia tubular
(tubo respiratório, digestivo, neural, sanguíneo) é uma arborescência fractal sem fim lembrando a
dos rios, das árvores, das folhas, das raízes telúricas. Nossa anatomia é concebida como uma
bomba que pulsa, à imagem do universo em expansão. Nossa psicologia cria nosso quotidiano
real, assim como o universo criou a Terra ; ela cria fantasmas, como as miragens fotônicas do
deserto ; ela cria as angústias profundas, sem fundo mesmo, como buracos negros galácticos que
absorvem energia e matéria.

O acaso e a contingência podem modificar violentamente o destino dos planetas. Assim foi há 65
milhões de anos, quando um bólido de pedra se chocou com a terra, provocando o
desaparecimento dos dinossauros, favorecendo a aparição dos mamíferos, em seguida a
emergência da humanidade, e, com o homo sapiens há 200.000 anos, a emergência do espírito e
da cultura. A natureza havia encontrado recursos em si mesma para renascer de suas cinzas e da
obscuridade na qual mergulhara. Ela foi capaz, por meio da « emergência » e « auto-organização
» de recriar a aparição do Belo e da Felicidade sobre a terra. Esta natureza carrega em si a Vida,
a inteligência e o poder de auto cura, para si mesma e para as criaturas que ela engendra. A Força
anima o universo, a terra, a natureza, o vivo.

A Força anima o humano. A força vital é seu princípio emergente, irredutível a uma montagem
de átomos de carbono, oxigênio e hidrogênio. Ela permanece um mistério ao nível do explicável,
mas ela é uma realidade ao nível da experiência íntima. Estas experiências íntimas, subjetivas,
intersubjetivas, estão na própria fundamentação de nossa abordagem bioenergética: nós sentimos
a força, o élan vital e seus fluxos energéticos a animar o Vivo em nós. O Belo se impõe por si
mesmo, em seu estado original : energético.
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A REGULAÇÃO DA FORÇA PARA A COMPLEXIFICAÇÃO DO VIVO

Um olhar lançado sobre os últimos 4 milhões de anos nos confirma que a Força, o élan vital, tem
necessidade de ser regulados para gerar evolução. Somente um processo energético,
bioenergético, regulado, pode gerar a formidável complexificação do vivo, da bactéria ao
homem.

As bactérias, que apareceram há 4 milhões de anos, são as mais antigas formas de vida biológica
terrestre. Seu corpo é composto apenas de uma célula mas elas desenvolvem uma dinâmica
social complexa no seio da qual elas cooperam entre si, enfrentam outros grupos para adquirir
território e recursos, guerreiam para defender seus territórios.
Após 100 milhões de anos, os insetos invertebrados como as formigas, as abelhas e os cupins
desenvolvem rotinas sociais complexas, repartem as tarefas inteligentemente a fim de encontrar
recursos vitais, a fim de transformá-los e compartilhá-los dentro da colônia. Em seus ninhos cuja
arquitetura é complexa, as vias de circulação são traçadas, os sistemas de ventilação são
previstos assim como um sistema de remoção dos resíduos. Em torno da rainha, se desenvolve
um sistema de governança e se pratica uma economia organizada.

O vivente, movido pela força vital, nunca cessou de se complexificar. Isto no entanto só pode se
produzir graças a um princípio regulador da força vital: « a homeostase » (Damasio, 20171 ). A
homeostase é um sistema de regulação da força vital que trabalha dentro do organismo:
regulação da circulação dos fluidos, regulação da pressão no interior do organismo, regulação do
grau de tensão dos tecidos, regulação do ritmo dos sistemas evoluídos, como os sistemas
cardíaco e respiratório, etc. A homeostase conecta o comportamento das bactérias à emergência
do comportamento humano.

É como se existisse uma « intenção » no seio de cada célula, e do organismo como um todo, de
alcançar um estado de vida autorregulada. O vivo se comporta como se fosse movido pelo
desejo, não um desejo fruto da reflexão, mas involuntário de mover-se para o futuro. É este
desejo que a homeostase sustenta ao coordenar o conjunto dos processos que mantém a ordem no
interior da célula, mantendo a coerência de suas estruturas e de suas funções, apesar das ameaças
ocasionais. A homeostase no entanto jamais visou um estado econômico perfeitamente estável
entre receitas e gastos energéticos. Ela tem favorecido um estado de superávit energético, este
desequilíbrio positivo permitindo agir, criar e fazer avançar a vida.

Enfim, ao acrescentar a complexidade do vivente à linha de sua evolução, durante 4 milhões de


anos, a força vital regulada pela homeostase engendrou o desenvolvimento sucessivo de 5
funções fundamentais : a função energética, a função sensorial, a função da motricidade, a
função emocional e na sequência a função representacional, especificamente humana, todas
constitutivas do Si Mesmo (Tonella, 20082). Estas funções deram suporte à emergência da
consciência, do espírito, da linguagem verbal e da cultura.

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Esta força regulada anima o organismo humano composto de milhões e milhões de células,
anima seu cérebro composto de milhões de neurônios, anima o espírito que nasce da interação
entre esses milhões de células e esses milhões de neurônios, anima as comunidades de
organismos humanos que constroem a cultura.

Uma dinâmica metabólica regulada, guiada pela homeostase, seria o fator essencial
caracterizando a origem da vida, o processo essencial da manutenção da vida e o princípio
gerador de sua dimensão criativa.

O TERAPEUTA « GUARDIÃO E « REGENERADOR>> DA FORÇA

W. Reich e depois A. Lowen rastrearam a FORÇA em nós : ela se chamou « bioenergia » ,


energia do universo que se tornou biológica. Esta força vital tornou-se o desafio deste formidável
método terapêutico desenvolvido por A. Lowen e que nos reúne aqui.

O terapeuta bioenergético tem então esta primeira função essencial : ajudar seus pacientes a
renovar sem cessar sua vitalidade, animada pela força bioenergética. Porque A. Lowen nos
transmitiu o seguinte paradigma : a complexidade humana não é vívida, amorosa e criativa, a
menos que saiba preservar seu potencial energético, a menos que saiba regenerar esta força vital
que a leva a agir e a interagir.
O terapeuta bioenergético utiliza assim uma variedade de exercícios e de situações de trabalho
«energético » capazes de provocar inveja em outras Escolas.

Duas grandes funções organizam este potencial energético:

1- A função de expansão-contração
Os fluxos energéticos são funcionalmente orientados do centro do organismo em direção à
periferia, ou então, de dentro para fora, criando uma expansão e em seguida a ação adaptativa
ou o ato da comunicação. Isto é verdadeiro ao nível da célula (desde seu núcleo até sua
membrana), isto é verdadeiro ao nível da globalidade do organismo (de seu interior para o
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exterior) (Reich, 19403). Mas a contração muscular pode interromper este fluxo, impedi-lo
de atingir a periferia e inibir a expressividade e a motricidade. A contração muscular crônica
fixa a expressão e a ação.

2- A função pulsátil e ondulatória


Os fluxos energéticos orientados do centro do organismo para a sua periferia são rítmicos : a
alternância de expansões e contrações produz as pulsações. Estas pulsações rítmicas animam
o conjunto do vivente, da ameba ao homem (Reich, 19404). A organização segmentar dos
vertebrados tornou complexa a função pulsativa, à qual se associou uma função ondulatória
(Reich, 19495, p. 314). Mas no momento que os movimentos pulsatórios/ondulatórios são
interrompidos, mais nenhum movimento é gerado : os estados de vitalidade, sensoriais e
emocionais, diminuem consideravelmente, até que não sejam mais percebidos.

O TERAPEUTA :
CO-REGULADOR DA FORÇA E DO SI MESMO

O terapeuta bioenergético tem esta segunda função essencial : ajudar seus pacientes a encontrar
ou reencontrar o sentido da autorregulação homeostática. Como?

1- Pelo movimento pendular co-integrador das experiências opostas :


O processo vital, em todos os estágios do Si Mesmo, oscila como um pêndulo entre os
extremos (Lowen, 19586, p. 68 et p. 81-84), entre o inspirar e o expirar, entre a hiperexcitação
e a hipoexcitação das funções sensoriais, entre a contração e o relaxamento muscular, entre o
amor e o ódio, entre o sim e o não.
Este movimento pendular deve aprender a construir pontes entre os extremos, a co-integrar
os opostos e a inscrever um centro de referência no meio-caminho entre cada um destes
opostos, centro pelo qual o movimento pendular não cessará de passar em suas regulações
incessantes. ...até que ele se torne o centro do Si Mesmo, centro de gravidade de um Si
Mesmo verticalizado.
A teoria Polyvagal de S. Porges (20117) sugere uma nova modelagem do Si Mesmo pós-
traumático, uma vez que este se fixou em uma polaridade extrema de hiperexcitação
simpática crônica ou de hipoexcitação parassimpática dorsal, ou ainda saltos contínuos de um
extremo a outro (Siegel, 19998). O processo terapêutico busca então restabelecer o
<movimento pendular> regulador, dentro de uma zona de excitação fisiológica ótima do
organismo, nem muito, nem pouco.

2- Pelo movimento pendular regulador das bipolaridades funcionais :


o A bipolaridade funcional entre carga energética assegurada pela metade
superior do organismo e descarga energética assegurada pela metade
inferior do organismo, cada uma buscando in fine seu equilíbrio ou « balança
energética » (Lowen, 19729, p. 55). O princípio de « grounding » (princípio
3
REICH W., 1940, The function of the orgasm, Orgone Institute Press, New York, 1952, trad. Fr., La
fonction de l’orgasme, L’Arche, Paris.
4
REICH W., 1940, La fonction de l’orgasme, opus cité.
5
REICH W., 1933, Charakteranalyse, 1949, Caracter Analysis, Wilhelm Reich infant Trust fund., 1971, ,
trad. fr., L'Analyse Caractérielle, Payot, Paris.
6
LOWEN A., 1958, Le Langage du Corps,
7
PORGES S., 2011, The polyvagal theory, W.W. Norton and Company, New York, London.
8
SIEGEL D., 1999, The developing mind, New York: Guilford Press.
9
LOWEN A., 1972, La dépression nerveuse et le corps, opus cité.
5

de se « plantar na terra ») deriva desta « balança energética ». (Lowen,


195810, p. 79).
o A bipolaridade funcional entre expressão sensorial e terna assegurada pela
face anterior do organismo e a expressão motora e agressiva assegurada pela
face posterior do organismo, cada qual procurando seu equilíbrio in fine e
sua união (Lowen, 195811).
o A bipolaridade funcional entre atividades intelectuais e sublimatórias
produzidas pelos fluxos de excitação fisiológica ascendentes e as atividades
motoras e sexuais produzidas pelos fluxos de excitação descendentes, o
organismo buscando in fine equilibrar e co-integrar estes fluxos antitéticos.

A fim de responder às múltiplas necessidades de regulação do organismo, diversos


exercícios / recursos foram inicialmente criados por Alexander Lowen e descritos em suas
obras12, posteriormente enriquecidas pelas novas gerações de terapeutas. Os mais clássicos
implicam em respirar sobre o stool, o “kicking”, o “reaching out”, o “grounding”, a
raquete, etc.

O TERAPEUTA :
É QUEM TRANSMITE AS PROPRIEDADES REGULADORAS DA RELAÇÃO

O Si Mesmo humano teve igualmente que desenvolver um sistema de relações sociais regulado.

Os humanos herdaram competências relacionais e comportamentais das espécies que nos


precederam, notadamente as dos grandes símios com os quais compartilhamos ao menos 95% do
nosso genoma. O vínculo de apego que une o grande macaco aos seus filhotes e a seus
congêneres possui já a maior parte das propriedades que foram fundantes do vínculo de apego
humano e, além disso, de todo tipo de relação social humana.

Nós, analistas bioenergéticos, compreendemos que estas propriedades e estes valores foram
inicialmente inscritos, ao longo de milhões de anos, nas modalidades corporais e interacionais,
assistidas pela complexificação progressiva do cérebro. (Damasio, 2017 13). Nosso sistema
límbico carrega o imprinting do instinto de apego, da tendência de confortar e consolar; a
empatia está inscrita nas estruturas nervosas cerebrais, notadamente nos neurônios espelho.

O terapeuta bioenergético tem esta terceira função essencial : ajudar seus pacientes a
descobrir, redescobrir ou desenvolver as seis propriedades da relação de apego, organizadoras e
reguladoras de todas as futuras relações sociais (Tonella, 201414) :

 A intencionalidade mútua : ela destina a determinação consciente interpessoal a


exprimir suas intenções e interagir com o outro/os outros. Ela está na origem da

10
LOWEN A., 1958, Le Langage du Corps, opus cité.
11
LOWEN A., 1958, Le langage du corps, ¨Paris : Tchou, pp. 80-87.
12
LOWEN A., ver bibliografia final
13
DAMASIO A., 2017, L’ordre étrange des choses. La vie, les sentiments et la fabrique de la culture, Paris :
Odile Jacob.
14
TONELLA G., As propiedades reguladoras da relaçao interpessoal, Revista Latino-Americana de
Psicologia Corporal, Vol. 2, n° 1, 8-21.
6

relação intersubjetiva e do compartilhamento de significados (Trevarthen, 1979 15,


199816).
 A sincronização mútua : ela destina o esforço interpessoal à procura de sincronizar
a ritmicidade das trocas : responder ao outro nem muito cedo nem muito tarde
(Beebe, 200017). Para isso, a ritmicidade fisiológica dos sistemas biológicos, por
exemplo o ritmo respiratório e a ritmicidade relacional dos comportamentos, assim
como o ritmo da linguagem, devem estar igualmente sincronizados. (Reite &
Capitanio, 198518, p. 235).
 O ajuste emocional : trata-se de ajustar aos estados afetivos de seu/sua parceiro/a,
seja no modo não verbal, como os micro-ajustes vocais, mímicos, posturais,
gestuais, táteis, ou seja no modo verbal (Stern, 1985 19). Estes fenômenos de eco,
ressonância, vibração afetiva, participam do sentimento de se sentir « recebido » e
« compreendido ».
 A contenção : um continente oferece por definição um contorno que delimita
reunindo um conteúdo flutuante e não orientado. A musculatura e suas variações de
tonicidade constituem o protótipo que contém os fluxos de excitação a fim de que
sejam metabolizáveis e não tóxicos : não ser submergido e sobrecarregado, nem
submergir ao outro. O outro, por exemplo o terapeuta, pode igualmente tem quando
necessário uma função de continente para seu paciente (Bion, 197720).
 A regulação dos estados de vitalidade e dos estados sensório-emocionais : trata-se
de manter sua homeostase interna, dentro de uma « margem de tolerância
fisiológica” situada entre os dois extremos da hiperativação e da hipoativação
(Siegel, 199921). Os fluxos de excitação assim regulados poderão então ser
contidos, tolerados e orientados para a atenção psíquica, para uma possível
elaboração seguida de ação (Schore, 199422, 200323; Porges, 199724 ; Beebe &
Lachmann, 200225). Os procedimentos de autorregulação neurobiológica envolvem
a respiração, o relaxamento muscular, a expressão emocional, o enraizamento, etc.
 A reparação : ela se segue, dentro de uma relação interpessoal, a uma perda da
sintonia, a uma dessincronização, ou ainda a uma perda de contenção ou de auto
regulação emocional. Ela implica em reconhecer sua própria falha, em transformar
15
TREVARTHEN C., 1979, Communication and cooperation in early infancy. A description of primary
intersubjectivity. In M. BULLOWA (Ed.), Before Speech: The Beginning of Human Communication,
London, Cambridge University Press, 321-347.
16
TREVARTHEN C., 1998, The concept and foundations of infant intersubjectivity. In S. BRÅTEN
(Ed.), Intersubjective Communication and Emotion in Early Ontogeny, Cambridge: Cambridge
University Press, 15-46.
17
BEEBE B., 2000, Co-constructing mother-infant distress: The micro-synchrony of maternal
impingement and infant avoidance in the face-to-face encounter, Psychoanalytic inquiry, 20, p. 421-440.
18
REITE M., CAPITANIO J.P., 1985, On the nature of social separation and attachment, M. Reiteand T.
Field (Eds.), The psychobiology of attachment and separation, pp. 223-255; Orlando, FL: Academic
Press.
19
STERN D., 1985, Le monde interpersonnel du nourrisson, 1989, éd. PUF, Paris.
20
BION W. R., 1977, Seven servants, Ed. New York: Jason Aronson.
21
SIEGEL D., 1999, The developing mind, New York: Guilford Press.
22
SCHORE A.N., 1994, Affect Regulation and the Origin of the Self: The Neurobiology of Emotional
Development. Hillsdale, NJ: Erlbaum.
23
SCHORE ALLAN, 2003, La régulation affective et la réparation du Soi,, éd. du CIG, Montréal, 2008.
24
PORGES S.W., 1997, Emotion: An evolutionary by-product of the neural regulation of the autonomic
nervous system, In C.S. Carter, I.I. Lederhendler, B. Kirkpatrick (Eds.), The Integrative Neurobiology of
Affiliation, (Annals of the New York Academy of Sciences, Vol. 807). New York: New York Academy
of Sciences, 62-78.
25
BEEBE B. & LACHMANN F. M., 2002, Infant research and adult treatment, éd. Hillsdale, NJ:
Analytic Press.
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os sentimentos negativos que ela gerou em sentimentos positivos e em restabelecer


a comunicação mútua acordada (Tronick, 198926). A capacidade de reparar
aumenta sua vitalidade e sua capacidade de apego (Greenspan, 1981, citada por
Schore 200327), assim como sua capacidade de resiliência (Demos, 199128).

Estas propriedades carregam, em germe, valores sociais tais como a justiça, a ética e a paz,
que se encarnam nas manifestações culturais, artísticas, esportivas, científicas. Esta
Conferência Internacional é um exemplo. Diversos exercícios interativos foram criados
(Tonella, 201429) permitindo descobrir / desenvolver cada uma destas seis propriedades.

O TERAPEUTA :
TRANSMISSOR DA NATUREZA E DA CULTURA

Para manter sua homeostase, o organismo vivo deve se inscrever em uma relação estreita com
seu ambiente natural. É a natureza da qual ele se diferenciou e é dela que ele foi feito. Ele
pertence a ela. Ele a consome mas deve restaurá-la. A homeostase de natureza biológica é
intrinsecamente ligada à homeostase da natureza ecológica. É destas regulações bem sucedidas
que a vida emergiu e se complexificou. Da natureza nasceu o humano e depois a cultura.

Nós somos com certeza a única espécie que desenvolveu uma dimensão cultural repousando
sobre processos de simbolização utilizando signos, imagens ou palavras. Mas devemos
reconhecer que as espécies que nos precederam na evolução nos prepararam para desenvolver
estes processos e estes comportamentos que promovem a cultura enquanto cimento da
humanidade (Damasio, 201730).

Nós somos então, mais uma vez, terapeutas bioenergéticos passistas e coreógrafos de uma dança
vital onde se misturam instintos herdados de uma necessidade de adaptação constante ao meio
natural, e desejos de pertencimento a uma cultura que nos modelou desde nosso berço e continua
a estimular nossos desejos. Adultos, reencontramos em nós, ao menos, um estado de harmonia
entre necessidade de natureza e desejo de cultura, por vezes contradições e conflitos resultantes
de rupturas entre instinto e desejos, entre natureza e cultura.

O terapeuta bioenergético tem esta quarta função igualmente essencial : nós somos os
reparadores dos vínculos natureza-cultura, porque trabalhando com os corpos nós desenterramos
os instintos ou as sensações milenares perdidas ou adormecidas, inibidas pela tensão cotidiana, o
stress, a busca de performance ou de imagem social do Eu. Em terapia, despertamos as
constelações sensório-emocionais que, pela respiração, lembram a dança do vento, e que, pelo
movimento, evocam a dança dentro do vento. A análise bioenergética age dentro de uma
dialética constante entre fluxos corporais imemoriais e modelos culturais emergentes. Não
esqueçamos jamais estes princípios e estas técnicas ensinadas por Alexander Lowen desde os
anos 1960, fundadoras de uma prática de inteligência corporal milenar.

26
TRONICK E. Z., 1989, “Emotions and emotional communication in infants”, American Psychologists, 44, 112-
119.
27
SCHORE ALLAN, 2003, La régulation affective et la réparation du Soi, éd. du CIG, Montréal, 2008.
28
DEMOS V., 1991, Resiliency in infancy, T.F. Dugan et R. Coles (Eds.), The child in our times: Studies in
the development of resiliency, New York: Brunner/Mazel, 3-22.
29
TONELLA G., As propiedades reguladoras da relaçao interpessoal, Revista Latino-Americana de
Psicologia Corporal, Vol. 2, n° 1, 8-21.
30
DAMASIO A., 2017, L’ordre étrange des choses. La vie, les sentiments et la fabrique de la culture, Paris :
Odile Jacob.
8

É assim que o trabaho bioenergético nos faz oscilar entre a ancoragem à terra firma (o
« grounding » de Lowen, 195831) e o “sentimento oceânico” de pertencimento ao universo
inteiro. Nós somos pedra e nós somos vento. Nós somos matéria atômica e nós somos espírito
errante. A experiência bioenergética tece esse contínuum entre o átomo e o espírito, esta
complexidade vertiginosa donde emergem a renovação, a criação, o amor e o belo. Ela tem esse
poder extraordinário de fazer viver a união entre o infinitamente pequeno e o infinitamente
grande, entre o sentimento de humildade e o sentimento de exaltação.

Se nossa própria terapia bioenergética foi bem sucedida em fazer germinar em nós estes diversos
níveis de consciência, nós os transmitiremos por nossa vez a nossos pacientes. Nós
transmitiremos estes vínculos de apego que nos unem tanto à humanidade quanto à natureza :
estes vínculos são de natureza sensório-afetiva e são intrinsecamente inteligentes e
profundamente reguladores.

O TERAPEUTA,
PROMOTOR DE FORÇA VITAL, DE AMOR E DE VÍNCULO

O terapeuta bioenergético tem, por fim, esta quinta função imprescritível : a de trabalhar
dentro da dimensão da dignidade humana e de promovê-la. Procuramos semear o amor no
coração de nossos pacientes feridos, mal amados, maltratados, abusados : o amor de si e o amor
pelo outro. « Sem amor ... não somos nada » cantava Edith Piaf. O amor produz o belo e a
clarividência : a beleza das flores, do céu estrelado, o som das ondas, o farfalhar das folhas das
árvores. O amor cuida : de si, dos outros, da natureza.

Eu acredito que o amor, como a empatia, como o tomar conta do outro e da natureza, não é mais
que uma construção psíquica ou uma consciência mental. É antes de mais nada um estado de ser,
sensorial, emocional, que nos habita ao mais profundo e nos é transmitido via os processos de
apego por nossa mãe : nossa mãe biológica e mãe-Natureza. Desta conjunção maternal nasce em
nos uma multitude de constelações sensorio-emocionais sem idade, nascidas poeira de estrelas
que se tornaram átomos, células, coração, ventre, cérebro, memória implícita, braços estendidos
para o outro.

O terapeuta bioenergético, por sua humanidade e sua presença universal, recorda à consciência
física de seus pacientes estes estados de ser sensoriais e emocionais matrizes de vida. Quando o
organismo pulsa, vibra, recupera sua luminosidade, são milhares de fótons que dele são expulsos
e iluminam, por sua vez, os outros atravessando camadas concêntricas, desde a mais próxima na
qual residem os seus, até as mais distantes onde residem os ausentes.

Enquanto analistas bioenergéticos, carregamos um engajamento implícito : o da transmissão da


memória do universo tal como se construiu a Natureza sobre a terra, porque ela está inscrita em
nossas propriedades psico-químicas, nas nossas pulsações vitais, em nossos ritmos corporais, em
nossas interações de apego aos membros da nossa espécie, de outras espécies, às árvores, às
flores, às montanhas e aos rios. Nós temos talvez esta missão particular de transformar esta
memória implícita em memória explícita porque nosso instrumento é o corpo e nossa finalidade
o despertar destas constelações sensório-emocionais tornando-as consciência de si, consciência
da humanidade, consciência da Natureza que a banha e constitui seu berço. A felicidade está
neste Belo preservado que floresce em si e à volta de si.
31
LOWEN A., 1958, Le Langage du Corps, Opus cité.
9

Nós não somos, analistas bioenergéticos, que « transmissores », em múltiplos níveis. Nós somos
transmissores entre o macrosistema que cria o sentimento universal da beleza infinita e o
microssistema que cria a sensação íntima de pulsação celular. Nós somos os transmissores entre
o átomo e o espírito, entre realidade celular e consciência de si. Nós podemos ser também, nestes
tempos de tormenta, os regeneradores de consciência individual e coletiva.

Nós somos a energia das estrelas que se tornou matéria humana e inteligência do corpo. Nós
somos o espirito do universo depositado pelo vento em uma dança, uma poesia, um cando.
Escutem este canto como é bonito (« Casta Diva » tirado de Norma, de Vincenzo Bellini,
cantado por Filippa Giordano).

Esta voz nos convida à espiritualidade, não é? Mas onde está o espírito? A física quântica nos
ensina que ele habita cada um de nossos átomos e cada um dos átomos do universo; ele está fora
do tempo e da espaço, simultaneamente e por toda parte. O espírito não é localizável. Ele é
quanta, ele é propriedade deste vasto sistema ecológico que é o universo ao qual pertencemos. O
espírito é estrela, homem, vento.

Que a força seja convosco !

Eu agradeço.

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