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REI Bérenger 10
Rainha MARGARIDA, primeira esposa do REI Bérenger 10
Rainha MARIA, segunda esposa do REI Bérenger 1°_
,
MEDICO que é também carrasco, bacteriologista e astrólogo
JULIETA, empregada e enfermeira
GUARDA
Cenário
GUARDA anunciando
Sua Majestade, a rainha MARGARIDA, primeira esposa do REI, seguida por JULIETA,
MARGARIDA? seguias por JULIETA? entra pela porta da frente à direita e sai
GUARDA anunciando
Sua Majestade, a rainha MARIA, segunda esposa do REI, primeira em seu coração,
A rainha MARIA, seguida por JULIETA? entra pela porta grande à esquerda e
sai com JULIETA pela porta da frente à direita. MARIA parece mais atraente
GUARDA anunciando
astrólogo da Corte. (O MÉDICO vai até o meio do palco? mas, como se tivesse
esquecido alguma coisa, volta e sai pela mesma porta. O GUARDA fica silencioso
alguns instantes. Está com um ar cansado. Encosta sua alabarda na parede e sopra
nas mãos para squecê-tes.) Contudo, a esta hora já devia estar calor. Funcione,
frio. Não é culpa minha. Ele não me disse que ia retirar de mim a delegação do
fogo! Pelo menos oficialmente. Com eles nunca se sabe. (Bruscamente retoma sua
arma. A rainha MARGARIDA aparece outra vez pela porta do fundo à esquerda. Traz
uma coroa na cabeça e um manto de púrpura não muito novo. Ela não mostra
idade, tem um ar sobretudo severo. Pára à frente? no meio do palco, seguida por
JULIETA) Viva a Rainha!
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MARGARIDA para JULIETA, olhando em volta.
JULIETA
Estou vindo .do estábulo onde fui ordenhar a vaca, Majestade. Ela quase não tem
MARGARIDA
JULIETA
Tudo bem, a sala do trono, se Sua Majestade quiser. Eu não tive tempo de limpar o
living-room.
MARGARIDA
Está frio.
GUARDA
querem saber de nada. O céu está fechado, as nuvens não .parecem querer se
dissipar facilmente. O sol está atrasado. Contudo ouvi o REI ordenar-lhe que
aparecesse.
MARGARIDA
GUARDA
MARGARIDA
Já? Está indo depressa. Não esperava que fosse acontecer de repente.
GUARDA
GUARDA
MARGARIDA
Não vale a pena. É irreversível. (Para JULIETA) Onde está a rainha MARIA?
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JULIETA
Ela deve estar ainda se arrumando.
MARGARIDA
Certamente.
JULIETA
Ela se levantou antes da aurora.
MARGARIDA
Ah! Mesmo assim!
JULIETA
Eu a ouvi chorar no seu quarto
MARGARIDA
Rir ou chorar: é tudo o que ela sabe fazer. (Para JULIETA) Que ela venha já. Vá
buscá-la.
Bem neste momento aparece a rainha MARIA, vestida como já foi dito.
GUARDA um segundo antes da chegada da rainha MARIA. ~
Viva a Rainha!
MARGARIDA para MARIA
Você está com os olhos vermelhos, meu bem. Isso prejudica sua beleza.
MARIA
Sei.
MARGARIDA
Não recomece a soluçar.
MARIA
Não consigo evitar, ai de mim!
MARGARIDA
Não perca a cabeça, principalmente. Isso não adiantaria nada. Está dentro da ordem
das coisas, não é? Você esperava por isso. Você já não estava mais esperando.
MARIA
Você só estava esperando por isso.
MARGARIDA
Ainda bem. Assim está tudo certo. (Para JULIETA) Então dê-lhe um outro lenço.
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MARIA
Eu esperava sempre...
MARGARIDA
É tempo perdido. Esperar, esperar! (Ela dá de ombros) Ela só tem isso a dizer e
lágrimas nos olhos. Que modos!
MARIA
Você viu o MÉDICO? O que foi que ele disse?
MARGARIDA
O que você já sabe.
MARIA
Talvez ele esteja enganado.
MARGARIDA
Você não vai recomeçar com o golpe da esperança. Os sinais não enganam.
MARIA,
Talvez ele não os tenha interpretado bem.
MARGARIDA
Os sinais objetivos não enganam. Você sabe.
MARGARIDA
Você está vendol É isso aí! É culpa sua se ele não está preparado, é culpa sua se
Ah' A alegria de viver. Seus bailes, suas pequenas diversões, seus cortejos; seus
jantares de honra, seus artifícios e seus fogos de artifício; as núpcias e suas viagens
MARIA
Era para celebrar os aniversários de casamento.
MARGARIDA
Vocês celebravam quatro vezes por ano. "É preciso aproveitar a vida", diziam...
MARIA
Ele gosta tanto de festas.
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MARGARIDA
Os homens sabem. Agem como se não soubessem! Sabem e esquecem. Ele é o rei.
Ele não deve esquecer. Ele devia olhar. para frente, conhecer as etapas, conhecer
exatamente a extensão do seu caminho, ver a chegada.
MARIA
Coitado do meu amado, meu querido REI.
influência que você exerceu sobre ele. Aconteceu! Entre nós duas, ele preferiu você,
ai de mim! Eu não fiquei com ciúmes, é claro que não. Apenas percebi que não era
prudente. Agora você nada pode fazer por ele. E aqui está banhada em lágrimas e
não me resiste mais. E seu olhar não mais me desafia. Sua insolência, seu sorriso
irônico, suas gozações onde estão? Vamos, acorde. Assuma seu lugar, trate de ficar
firme. Olhe, você ainda tem seu belo colar. Então venha, assuma seu lugar.
MARIA
Não vou conseguir dizer-lhe.
MARGARIDA
Eu me encarrego disso. Estou acostumada aos trabalhos pesados.
MARIA
Não lhe diga. Não, não, por favor. Não lhe diga nada, eu suplico.
MARGARIDA
Deixe-me fazer do meu jeito, eu suplico. Contudo vamos precisar de você para as
MARIA
Não desta.
MARGARIDA para JULIETA.
Arrume corretamente nossas caudas.
JULIETA
Sim, Majestade.
Julieta executa a ordem.
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MARGARIDA
Menos divertida, é claro, do que seus bailes para crianças, seus bailes para os
velhos, seus bailes para jovens casais, ,s eus .bailes para sãos e salvos, seus bailes
para condecorados, seus bailes para intelectuais, seus bailes para organizadores de
bailes e tantos outros bailes. Este baile vai ser em família, sem dançarino e sem
dança.
MARIA
Não, não lhe" diga nada, É melhor que ele não perceba.
MARGARIDA
...E que ele termine com urna canção. Não dá para ser assim.
MARIA
Você não tem coração.
MARGARIDA
Claro que sim, ele bate.
MARIA
Você é desumana.
MARGARIDA
O que é que isso quer dizer?
MARIA
É terrível, ele não está preparado.
MARGARIDA
É culpa sua se ele não está. Ele era como um desses viajantes que se demoram nos
albergues, esquecendo que o fim da viagem não é o albergue. Quando eu lembrava
que era preciso viver com a consciência do seu destino, vocês diziam que eu era
pedante e que isso era de uma solenidade ultrapassada.
JULIETA à parte
Não deixa de ser de uma solenidade ultrapassada.
MARIA
Se é inevitável, ao menos que lhe seja dito do modo mais suave possível, com sinais
de respeito e consideração, com muitos sinais de respeito e consideração.
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MARGARIDA
Ele deveria ter sido preparado há muito tempo, ele sempre deveria ter sido
preparado. A cada dia, algo deveria ter sido dito. Quanto tempo perdido! (Para
JULIETA) Por que você está olhando para nós com esses olhos esgazeados? Não vá
desabar também. Você pode se retirar; não vá muito longe porque se necessário
será chamada.
JULIETA
Então eu não vou mesmo varrer o living-room?
MARGARIDA
Diga-lhe suavemente, por favor. Sem pressa. Ele poderia ter uma parada cardíaca.
MARGARIDA
Não temos mais tempo para fazer sem pressa. Acabou-se o brincar, acabaram-se as
tease. Tudo acabado. Você deixou as coisas se arrastarem até o último momento,
não temos mais momentos a perder, é claro, pois este é o último. Temos alguns
instantes para fazer o que deveria ter sido feito ao longo de anos, anos, anos.
Quando for preciso me deixar a sós com ele, eu direi. Você ainda tem um papel a
MARIA
MARGARIDA
Tão difícil para mim como para você e para ele. Não choramingue. Eu repito, eu
aconselho, eu ordeno.
MARIA
Ele vai recusar.
MARGARIDA
No começo.
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MARIA
Eu vou apoiá-lo.
MARGARIDA
Que ele não recue ou se abrigue em você. É preciso que tudo aconteça
convenientemente. Que seja uma vitória, um triunfo que há muito tempo ele não tem.
Seu palácio está em ruínas. Suas terras sem cultivo. Suas montanhas sucumbem. O
mar arruinou os diques, inundou o país. Ele não o sustenta mais. Você fez com que
ele se esquecesse de tudo em seus braços com esse perfume detestáveL Que mau
gosto! Enfim, era o dele. Em vez de fortalecer o solo, ele deixa hectares e hectares
abismarem-se -em precipícios sem fundo.
MARIA
Como você repara em tudo! De início não se pode lutar contra os tremores de terra.
MARGARIDA
Como você me irrital., Ele teria podido fortalecer o solo, plantar coníferas na areia,
cimentar os terrenos ameaçados. Mas, não, agora o reino está cheio de buracos
como um imenso queijo gruyêre.
MARIA
Nada podia ter sido feito contra a fatalidade, contra as erosões naturais.
MARGARIDA
Sem falar de todas as guerras desastrosas. Enquanto seus soldados bêbados
dormiam, à noite ou depois das copiosas refeições nas casernas, os vizinhos
MARIA
Eram objeções da consciência.
MARGARIDA
Nós chamávamos de objeções da consciência. Nas armadas dos vencedores, eles
eram chamados de covardes, desertores, e eram fuzilados. Você vê os resultados:
abismos vertiginosos, cidades arrasadas, piscinas incendiadas, botequins. destruídos.
Os jovens saem em massa. No começo do seu reinado havia nove bilhões de
habitantes.
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MARIA
MARGARIDA
Aqueles que não foram aceitos em outro lugar. Aqui também não foram aceitos e
foram mandados pra cá à força. Por outro lado envelhecem rapidamente. Repatriados
com vinte e 'cinco anos, ficam com oitenta em dois dias. Você não vai me dizer que
eles envelhecem normalmente.
MARIA
Mas o próprio REI ainda é muito jovem
MARGARIDA
Era ontem, era essa noite. Você verá logo mais.
GUARDA anunciando
Eis sua Sumidade, O MÉDICO, que volta. Sua Sumidade, Sua Sumidade.
O Médico entra pela grande porta à esquerda que abre e fecha sozinha. Tem
ao mesmo tempo o ar de um astrólogo e de um carrasco. Usa um chapéu
pontudo, estrelas. Está vestido de vermelho, com um capuz preso ao pescoço,
segurando uma grande luneta.
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MARIA
Doutor, alguma novidade? Talvez tudo esteja melhor, não é? Não é? Uma melhora é
impossível?
MÉDICO
É uma situação que não pode mudar.
MARIA
É verdade, sem esperança, sem esperança (Olhando MARGARIDA) Ela não quer que
eu espere, ela me proíbe.
MÉDICO
- Na verdade, há uma novidade se querem saber.
MARIA
Que novidade?
MÉDICO
Novidade que apenas confirma indicações precedentes. Marte e Saturno entraram em
colisão. ~
MARGARIDA
Já era de espera~
MÉDICO
Os dois planetas explodiram.
MARGARIDA
É lógico.
MÉDICO
Cai neve do sol no Pólo Norte. A Via - Láctea parece aglutinar-se. O cometa está
vacas parem duas vezes ao dia. Um bezerro de manhã, um outro à tarde por volta
das cinco horas, cinco horas e um quarto. Por aqui as folhas estão ressecadas,
soltam-se. As árvores suspiram e morrem. A terra racha mais ainda que normalmente.
GUARDA anunciando
O Instituto Meteorológico do reino indica mau tempo.
MARIA
Escuto a terra que racha, escuto, sim, ai de mim, eu escuto.
MARGARIDA
É a rachadura que aumenta e se alastra.
MÉDICO
o raio fica imobilizado no céu, das nuvens chovem rãs, o trovão ribomba. Não o
MARGARIDA
São os sinais.
MÉDICO
Por outro lado ...
MARGARIDA interrompendo-o
Não continue, já basta. É o que sempre acontece em casos semelhantes. Sabemos.
GUARDA anunciando
Sua Majestade, o REI (música) Atenção, sua Majestade. Viva o REI!
O REI entra pela porta do fundo à direita. Está descalço. JULIETA entra atrás
de/e.
MARGARIDA
Onde estão suas pantufas?
JULIETA
Senhor, estão aqui.
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MARGARIDA
Que ele pegue um resfriado ou não, não tem importância. É simplesmente um mau
hábito.
Enquanto JULIETA calça as pantufas nos pés do REI e MARIA vai ao seu
encontro, a música real continua a ser ouvida.
votos.
MARGARIDA
É apenas uma fórmula vazia.
REI à MARIA, · depois à MARGARIDA
Bom dia, MARIA, bom dia, MARGARIDA. Aí como sempre? Quero dizer que você já
está aí! Tudo bem? Comigo, não! Não sei direito o que tenho, meus membros estão
um pouco entorpecidos, sinto dor quando me levanto, tenho dor nos pés! Vou trocar
de pantufas. Talvez eu tenha crescido! Dormi mal, esta terra que estala, estas
fronteiras que recuam, este rebanho que muge, estas sirenes que urram, há de fato
excesso de barulho. É preciso que eu ponha ordem em tudo. Vamos tratar de cuidar
disso. Ai, ai, minhas costas! (Ao doutor) Bom dia, DOUTOR. Trata-se de um lumbago?
(Aos outros) Espero um engenheiro... Um estrangeiro. Os nossos não servem mais.
Isso tanto faz para eles. Por outro lado já não existem. Por que foi fechada a Escola
Politécnica? Ah, ' é claro! Ela caiu no buraco. Por que construir outras se elas caem
todas no buraco. Estou com dor de cabeça, além de tudo. E estas nuvens... Tinha
proibido as nuvens! Nuvensf Chega de chuva. Eu digo: basta. Ah! Não adianta.
Recomeça. Nuvem idiota. Não acaba com seus pingos que não param. Como se
fosse um velho mijão. (para JULIETA) Por que. você está me olhando? Você está bem
corada hoje. Meu quarto está cheio de teias de aranha. Então vá limpá-las.
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JULIETA
Eu tirei todas enquanto Vossa Majestade estava dormindo. Não sei como apareceram.
Não param de surgir.
MÉDICO para MARGARIDA
Como a senhora pode ver, Majestade, tudo se confirma.
REI para MARIA
Que se passa, minha linda?
MARIA balbuciando
Não sei... Nada... Não tenho nada.
REI
Você está com olheiras. Você chorou? Por quê?
MARIA
Ai meu Deus!
REI para MARGARIDA
Proíbo que a façam sofrer. E por que ela diz "Ai meu Deus"?
MARGARIDA
É uma expressão. (para JULIETA) Vá limpar outra vez as teias de aranhas.
REI
Ahl, É claro! Essas teias de aranha são nojentas. Provocam pesadelos.
MARGARIDA para JULIETA
Ande logo, não demore. Você não sabe mais usar uma vassoura?
JULIETA
A minha está gasta. Precisarei de uma nova, precisaria mesmo de uma dúzia.
REI
Por que todos vocês me olham? Há algo anormal? Não há mais nada anormal
porque o anormal tornou-se habitual. Assim, tudo se resolve.
MARIA lançando-se para o Rei.
Meu Rei, você está mancando.
REI dando dois ou três passos, mancando ligeiramente.
Eu manco? Eu não manco. Eu manco um pouco.
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MARIA
Você está com dor, vou ajudá-lo.
REI
Não estou com dor. Por que teria dor? Sim, um pouquinho. Não é nada. Não preciso
MARIA
Não, cale-se.
MARGARIDA para MARIA
Cale-se.
MARIA ao REI
Não é verdade o que ela vai dizer. .
REI
Informar o que? O que não é verdade? Maria, por que este ar desolado? O que se
MÉDICO
Ai, é isso Majestade.
REI
Mas eu sei, é claro. Todos nós sabemos. Vocês vão me lembrar quando for a hora.
Que mania você tem, MARGARIDA, de conversar sobre coisas desagradáveis desde o
nascer do sol.
MARGARIDA
Já é meio dia.
REI
Não é meio dia. Ah, sim, é meio dia. Isso não quer dizer nada. Para mim é manhã.
Eu ainda não comi nada. Tragam-me meu breakfast, não estou com muita fome.
DOUTOR, você precisa receitar pílulas para despertar meu apetite e aliviar meu
fígado. Devo estar com a língua esbranquiçada, não é?
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Ele mostra a língua para o doutor.
MÉDICO
De fato, Majestade.
REI
Meu fígado está mal. Eu não bebi nada ontem à noite, mas estou com um gosto
ruim na boca.
MÉDICO
Majestade, a ' Rainha MARGARIDA disse a verdade, o Senhor vai morrer.
REI
Outra vez? Você me aborrece! Eu vou morrer, sim, vou morrer. Daqui a quarenta
anos, cinquenta anos, trezentos anos. Depois. Quando eu quiser, quando tiver tempo,
sobe os degraus do trono). Ai, aíl Minhas pernas, meus rins. Peguei um resfriado
vento tinha arrancado? Não se trabalha mais. Será preciso que eu mesmo faça. Tive
outras coisas para fazer. Não se pode contar com ninguém. (para MARIA que tenta
ajudá-lo) Não, eu vou 'conseguir. (ele usa seu cetra como uma bengala) Este cetra
'pode ainda servir (ele consegue sentar-se com dificuldade, ajudado pela Rainha
MARIA) Não, não, eu consigo. É isso aí! Ufa! Ficou bem duro este trono. Seria preciso
estofá-lo. Como está o país esta manhã?
MARGARIDA
REI
São ainda belos restos. De todo modo é preciso trabalhar, isso mudará seus
pensamentos. Que venham os ministros. (Aparece Julieta) Vá procurar os ministros,
sem dúvida ainda dormem. Imaginam que não há mais trabalho.
JULIETA
Estão de férias e partiram. Não foram muito longe porque as terras encolheram e
mirraram. Estão no outro lado do reino, quer dizer, a três passos daqui, no canto do
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bosque, à beira do regato. Pescam e esperam conseguir um pouco de peixe para
alimentar a população.
REI
Vá procurá-los no canto do bosque.
JULIETA
Não virão, estão de folga. Vou ver mesmo assim.
MARIA
Tente salvá-los.
JULIETA sai
REI
Se eu tivesse dois outros especialistas do governo no país, eu os substituiria.
MARIA
Outros serão encontrados.
MÉDICO
Não se encontrarão mais, Majestade.
MARGARIDA
Não serão mais encontrados, BÉRENGER.
MARIA
Sim, entre as crianças das escolas quando crescerem. É preciso esperar um pouco.
Desde que sejam salvos, aqueles dois podem gerir questões habituais.
MÉDICO
Na escola só há algumas crianças com papeira, débeis mentais congênitos,
mongolóides, hidrocéfalos.
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REI
De fato, a raça não vai bem. Trate de curá-los, doutor, ou de melhorá-los um pouco.
MÉDICO
Sua Majestade não poderia permitir isso! Não teria mais súditos.
REI
Alguma coisa precisa ser feita!
MARGARIDA
Não se pode melhorar nada, não se pode curar ninguém, o senhor mesmo não pode
MÉDICO
O senhor não pode mais ser curado.
REI
Não estou doente.
MARIA
Ele se sente bem. (ao 'REI) Não é?
REI
Apenas um certo cansaço. Não é nada. Estou bem melhor.
MARIA
Ele diz que está bem, vocês estão vendo, vocês estão vendo.
REI
Está tudo muito bem.
MARGARIDA
Você vai morrer daqui a uma hora e meia, você vai morrer no fim do espetáculo.
REI
O que é que você está dizendo, meu bem? Não tem graça nenhuma.
MARGARIDA
Você vai morrer no fim do espetáculo.
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MARIA
Meu Deus!
MÉDICO
É verdade, o Senhor vai morrer. Não vai tomar o café amanhã de manhã nem jantar
hoje à noite. O cozinheiro desligou o gás. Devolve seu avental. Arruma para a
MARIA
Não fale tão depressa, não fale tão alto.
REI
Quem então deu tais ordens sem meu consentimento? Eu me comporto bem, vocês
estão me gozando. Mentiras. (para MARGARIDA) Você sempre quis minha morte. (para
MARIA) Ela sempre quis minha morte. (para MARGARIDA) Vou morrer quando quiser,
MÉDICO
O Senhor perdeu o poder de decidir sozinho, Majestade.
MARGARIDA
Você não pode nem mesmo impedir sua doença.
REI
Eu não estou doente. (para MARIA) Você não disse que eu não estou doente? Estou
MARGARIDA
E suas dores?
REI
Não tenho mais.
MARGARIDA
Mexa-se um pouco, você vai perceber.
REI que acabou de se sentar, levanta-se
Ai, ai!... Foi porque eu não pensei que não teria dor. Não tive tempo de pensar! Eu
penso e fico curado. O REI cura-se sozinho, mas eu estava muito preocupado com
as questões do reino.
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MARGARIDA
Em que estado está seu reino! Você não pode mais governar, você já percebeu isso
mas não quer confessar. Você não tem mais nenhum poder sobre os elementos.
Você não pode mais impedir as degradações, você não tem mais poder sobre nós.
MARIA
Você terá sempre poder sobre mim.
MARGARIDA
Nem mesmo sobre você.
JULIETA entra.
JULIETA
Não se pode mais repescar os ministros. O regato em que cairam despencou no
REI
Entendo. É um complô. Vocês querem que eu abdique.
MARGARIDA
Isto seria melhor. Abdique voluntariamente.
MÉDICO
Abdique, Sire, é melhor.
REI
Que eu abdique?
MARGARIDA
Sim. Abdique moralmente, administrativamente.
MÉDICO
E fisicamente.
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MARIA para o REI
É preciso prendê-los
REI ao guarda
Prenda-os.
MARIA
Guarda, prenda-os (ao REI) É isto. Dê ordens.
REI ao guarda
Prenda-os. Encerre-os na torre. Não, a torre desmoronou. Leve-os, encerre-os à chave
MARIA ao GUARDA
Prenda-os.
MARIA. ao GUARDA
Então mexa-se.
JULIETA
É ele que está preso.
REI ao GUARDA
Faça-o, faça-o, Guarda.
MARGARIDA
Você está vendo, ele não pode mais se mexer. Ele tem gota. Reumatismo.
MARGARIDA ao REI
São suas próprias ordens, Majestade, você pode constatar, que o paralisam.
MARIA ao REI
Não acredite nela. Ela quer hipnotizá-lo é um problema de vontade. Concentre tudo
em sua vontade.
GUARDA
Eu... em nome do REI... eu os...
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Ele para de falar, a boca entreaberta.
REI ao GUARDA
o que acontece com você? Fale, vá em frente. Você pensa que é uma estátua?
MARIA ao REI
Não lhe faça perguntas. Não discuta. Ordene. Conduza-o com a força de sua
vontade.
MÉDICO
Ele não pode mais se mover, o Senhor está vendo, Majestade. Ele não pode mais
falar, ele está petrificado. Ele não o escuta mais. É um sintoma característico. Do
REI
MARIA ao REI
REI
MARIA
Antes, levante-se.
REI
Eu me levanto.
MARIA
REI
Vocês viram como é simples. Vocês estão vendo como é simples. Vocês são
mentirosos. Conspiradores, bolcheviques (Ele anda. Para MARIA que quer ajudá-lo)
Não, não, sozinho... pois posso fazer isso sozinho. (Ele cai. JULIETA apressa-se em
ajudá-lo a se levantar.) Eu me levanto sozinho.
De fato? ele se levanta sozinho? mas penosamente.
GUARDA
Viva o REI! (O REI volta a cair.) O REI está morrendo.
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MARIA
Viva o REI!
O REI levanta-se penosamente? com a ajuda do seu cetro
GUARDA
Viva o REli (O REI volta a ceir.) O REI está morto.
MARIA
Viva o REli Viva o REI!
MARGARIDA
Que comédia.
O REI levanta-se penosamente. JULIETA? que tinha desaparecido? reãparece.
JULIETA
Viva o REli
GUARDA
Viva o REH
Esta cena deve ser representada como um trágico teatro de fantoches
MARIA
Vocês estão vendo que tudo está melhor.
MARGARIDA
É o melhor do fim, não é doutor?
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MÉDICO para MARGARIDA
É claro, é apenas o melhor do fim.
REI
Eu só tinha escorregado. Isso pode acontecer. Isso acontece. Minha coroa! (a coroa
tinha caído no chão durante a queda. MARIA volta a pôr a coroa na cabeça do REh
É um mau sinal.
MARIA
Não acredite nisso.
REI
É um mau sinal.
MARIA
Não acredite nisso. (ela lhe dá seu cetra) Segure-o firmemente. Cerre o punho.
GUARDA
Viva, viva... (depois fica quieto)
florescente. Em três dias o senhor perdeu as guerras que tinha ganho. As que
perdeu, tornou a perder. Depois que as colheitas apodreceram e que todo o deserto
invadiu nosso continente, a vegetação renasceu nos países vizinhos que eram
desertos na última quinta-feira. Os foguetes que o senhor deseja enviar não vão, ou
melhor, desligam e tornam a cair com um barulho molhado.
REI
Acidente técnico
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MÉDICO
Antes não havia.
MARGARIDA
Acabou-se a vitória. Você deve perceber.
MÉDICO
Suas dores, cansaços...
REI
Nunca tive. É a primeira vez.
MÉDICO
Justamente. É o sinal. Veio de repente, não é?
MARGARIDA
Você devia estar esperando.
MÉDICO
_ _ Veio de _~_~ p e nt e . O Senhor não é mais dono de si mesmo. O Senhor pode constatá-
lo, Sire. Seja lúcido. Vamos lá, um pouco de coragem.
REI
Eu me levantei. O Senhor mente. Eu me levantei.
MÉDICO
O Senhor sente muita dor e não vai poder fazer um novo esforço.
MARGARIDA
Certamente isso não vai durar muito. (para o REI) Você ainda pode fazer alguma
coisa? Pode dar uma ordem que seja seguida? Pode mudar alguma coisa? Então,
tente.
REI
Foi porque eu não empreguei toda a minha vontade que deu errado. Simples
negligência. Tudo vai dar certo. Tudo será corrigido, renovado. Vão ver o que eu
posso fazer. GUARDA, mexa-se, aproxime-se.
MARGARIDA
Ele não pode. Ele só pode obedecer aos outros. GUARDA, dê dois passos. (O
GUARDA avança dois passos) GUARDA, recue. (O GUARDA recua)
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REI
guarda inclina-se um pouco à direita, um pouco à esquerda) Sua cabeça vai cair,
sua cabeça vai cair.
MARGARIDA
REI
Que a cabeça do MÉDICO caia, que ela caia agora! Vamos, vamos.
MARGARIDA
Nunca a cabeça do MÉDICO esteve tão firme em seu tronco, nunca foi tão sólida.
MÉDICO
REI
É a coroa do REI que cai outra vez no chão. MARGARIDA vai pegá-Ia
MARGARIDA
REI
Obrigado. O que significa essa feitiçaria? Como vocês conseguem escapar do meu
poder? Não pensem que isso vai continuar. Vou achar a causa desse desmando.
Diga-me qualquer coisa que eu vou fazer. Dê-me uma ordem. Ordene, Sire, ordene.
Eu obedeço.
Ela pensa que o que ela chama de amor pode vencer o impossível. Superstição
REI
Venha para mim.
MARIA
Eu gostaria. Vou fazê-lo. Vou fazê-lo. Meus braços caem.
REI
Então dance. (MARIA não se mexe) Dance. Então, pelo menos, vire-se, vá até a
MARIA
Não consigo.
REI
Sem dúvida você está com torcicolo, certamente um torcicolo. Chegue-se a mim.
MARIA
Sim, Sire.
REI
Chegue-se a mim sorrindo.
MARIA
Sim, Sire.
REI
Então faça!
MARIA
Não sei como fazer para andar. Esqueci de repente.
MARGARIDA para MARIA
Dê alguns passos em direção a ele.
MARIA anda um pouco em direção ao REI.
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REI
MARGARIDA
MARIA
REI
Ordeno que árvores nasçam do assoalho. (pausa) Ordeno que o teta desapareça.
(pausa) O quê? Nada? Ordeno que chova. (pausa, nada acontece) Ordeno que
venha um raio e que eu o segure com a mão. (pausa) Ordeno que as folhas
reverdeçam. (vai até a janela) O quê? Nada? Ordeno que JULIETA entre pela porta
grande (JULlfTA entra pela portinha do fundo, à direita) Não por essa. Por esta aqui.
Saia por esta porta. (ele mostra a porta grande. Ela sai pela portinha do fundo à
direita. Para JULIETA) Ordeno que fique. (JULIETA sai) Ordeno que se escutem os
clarins. Ordeno que cento e vinte e um tiros de canhão sejam disparados em minha
honra. (ele presta atenção) NadaI... Ah, sirnl Escuto alguma coisa.
MÉDICO
MÉDICO
É isso, Sire. Daqui a uma hora, vinte e quatro minutos e cinqüenta segundos.
REI para MARIA
MARIA!
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MARGARIDA
Daqui a uma hora, vinte e quatro minutos e quarenta e um segundos. (para o REO
Prepare-se.
MARIA
Não ceda.
MARIA
Como há vinte anos.
REI
Como a semana passada.
MARIA
Como ontem à noite. Volte, tempo, volte, tempo. Pare, tempo.
MARGARIDA
Não há mais tempo. O tempo derreteu na sua mão.
MÉDICO para. MARGARIDA, depois de ter olhado pelo telescópio virado para o alto.
Olhando pelo telescópio que vê além das paredes e dos telhados, percebe-se um
vazio no céu, no lugar da constelação real. Nos registras do universo, Sua Majestade
é considerada um defunto.
GUARDA
O REI está morto! Viva o REI!
MARGARIDA para O GUARDA
Idiota, você faria melhor se ficasse quieto.
MÉDICO
De fato, ele está mais morto do que vivo.
29
REI
Não. Não quero morrer. Por favor, não me deixem morrer. Sejam gentis, não me
deixem morrer. Eu não quero.
MARIA
O que fazer. pra lhe dar a força de resistir? Eu .mesma fraquejo. Ele não acredita
mais em mim, ele só acredita neles. (para o REO Apesar de tudo, espere, espere
ainda.
O REI
MÉDICO
GUARDA anunciando
O REI passa!
MÉDICO
Vamos lamentar muito a perda de Vossa Majestade' Isso será dito, está prometido.
REI
MARIA
Ai! Seus cabelos embranqueceram de repente. (de fato, os cabelos do REI ficaram
MARGARIDA
Eles têm uma imortalidade provisória.
30
REI
Prometeram-me que eu só morreria quando eu mesmo decidisse.
MARGARIDA
É porque eles pensavam que você decidiria mais cedo. Você se acostumou com a
autoridade e é preciso que decida à força. Você se enterrou no lodo morno dos
vivos. Agora você vai enregelar.
REI
Enganaram-me. Eu deveria ter sido avisado, enganaram-me.
MARGARIDA
Você foi avisado.
REI
Você me avisou cedo demais. Você me advertiu tarde demais. Eu não quero morrer...
MARGARIDA
Foi culpa sua ter sido apanhado de repente, você deveria estar preparado. Você
nunca teve tempo. Você estava condenado, era preciso pensar nisso desde o
primeiro dia ' e, depois, todos os dias, cinco minutos todos os dias. Depois dez
REI
Pensei nisso.
MARGARIDA
Nunca seriamente, nunca profundamente, nunca completamente.
MARIA
Ele vivia.
MARGARIDA
Muito. (para o REI) Você devia ter guardado isso como um pensamento permanente
no mais íntimo de todos os seus pensamentos.
MÉDICO
Ele nunca foi previdente, viveu o dia-a-dia como qualquer um.
31
MARGARIDA
Você se permitia adiar. Com vinte anos, você dizia que ia esperar ter quarenta anos
para começar a preparação. Com quarenta anos...
REI
Eu tinha tanta saúde, era tão jovem!
MARGARIDA
Com quarenta anos você se dispôs a esperar até cinquenta anos. Com cinquenta
anos...
REI
Eu era cheio de vida, como eu era cheio de vida!
MARGARIDA
Com cinquenta anos você queria atingir os sessenta. Você teve sessenta anos, 90
anos, 125 anos, 200 anos, 400 anos. Você não programava mais os preparativos
para daqui a 10 anos, mas para daqui a 50 anos. Depois você remanejou isso de
século em século.
REI
Eu tinha justamente a intenção de começar. Ai! Se eu pudesse ter um século diante
MÉDICO
Só lhe resta um pouco mais de uma hora, Sire. É preciso fazer tudo em uma hora.
MARIA
Ele não terá tempo, não é possível. É preciso dar-lhe tempo.
MARGARIDA
Isso é que é impossível. Mas durante uma hora todo tempo é dele.
MÉDICO
Uma hora bem ocupada vale mais que séculos e séculos de esquecimento e
negligência. Cinco minutos são suficientes, dez segundos conscientes. Ele tem uma
hora: sessenta minutos, três mil e seiscentos segundos. Ele tem a oportunidade.
MARGARIDA
Ele passeou pelos caminhos.
32
MARIA
Nós reinamos, ele trabalhou.
GUARDA
Trabalhos de Hércules.
MARGARIDA
Passatempos.
JULIETA
Pobre Majestade, pobre Sire, ele fez a escola do recreio.
REI
Sou 'corno um estudante que se apresenta para o exame sem ter feito seus deveres.
Sem ter preparado sua lição ...
MARIA para o REI
Não se aflija.
REI
...Como um comediante que não conhece seu papel na noite de estréia e que tem
brancos, brancos, brancos. Como um orador que é empurrado para a tribuna e que
não conhece a primeira palavra de seu discurso, que não sabe nem mesmo a quem
ele se dirige. Eu não conheço este público. Não quero conhecê-lo, nada tenho a lhe
dizer. Em que estado estoul
GUARDA anunciando
O REI faz alusão a seu estado.
- - -
MARGARIDA
Que ignorâncial
JULIETA
Ele queria continuar fazendo a escola do recreio durante vários séculos.
O REI
Eu gostaria de repetir.
MARGARIDA
Você vai passar no exame. Não há repetentes.
33
MÉDICO
Quanto a isso o senhor não pode fazer nada, Majestade. E nós também. Somos
REI
o povo sabe? Vocês o advertiram? Quero que todo mundo saiba que o REI vai
morrer. (ele vai para a janela, abrindo-a com um grande esforço porque manca um
pouco mais) Valoroso povo, eu vou morrer. Ouçam-me, seu REI vai morrer.
Ele grita
MÉDICO
É um escândalo
REI
Povo, eu devo morrer.
MARGARIDA
Não é mais um REI, é um porco que está sendo degolado.
MARIA
É apenas um REI, é apenas um homem.
MÉDICO
Majestade, pense na morte de Luís XIV, na de Felipe II, na de Carlos V que dormiu
o REI
Morrer dignamente? (na janela) Socorro! Seu REI vai morrer.
MARIA
Pobre REI, meu pobre REI.
JULIETA
Não adianta nada gritar.
Ouve-se um fraco eco ao longe: çÇO REI vai morrer!"
34
REI
Escutaram?
MARIA
Estou escutando, estou escutando.
REI
Respondem-me, talvez me salvem.
JULIETA
Não há ninguém
Ouve-se O »ocorro.ln
eco: «c
MÉDICO
É apenas o eco que responde com atraso.
MARGARIDA
O atraso habitual neste reino onde tudo funciona tão mal.
MARGARIDA
Ele pensa que é o primeiro a morrer.
MARIA
Todo mundo é o primeiro a morrer.
MARGARIDA
É bem doloroso.
JULIETA
Ele chora como qualquer um.
MARGARIDA
Seu terror só lhe inspira banalidades. Eu esperava que ele dissesse belas frases
exemplares. (para o MÉDICO) Eu o encarrego da crônica. Nós emprestaremos a ele
as belas palavras dos outros. Inventaremos se for necessário.
MÉDICO
Nós lhe emprestaremos sentenças edificantes. (para MARGARIDA) Cuidaremos de sua
lenda. (para O REI) Cuidaremos de sua lenda, Majestade.
35
REI na janela
MARGARIDA
Vai acabar com isso, Majestade? Não se canse em vão.
REI na janela
Quem quer me dar sua vida? Quem quer dar sua vida ao REI, sua vida ao bom REI,
MARGARIDA
Indecente!
MARIA
Que ele tente tudo, mesmo o mais improvável.
JULIETA
Ela sai.
MARGARIDA
Há espiõesl
MÉDICO
Há ouvidos inimigos atentos, nas fronteiras.
MARGARIDA
Seu medo vai nos cobrir a todos de vergonha.
MÉDICO
o eco não responde mais. Sua voz não tem mais efeito. Ele pode gritar, sua voz
36
MARIA
Seus membros estão entorpecidos.
MÉDICO
Ele está paralítico pelo reumatismo. (para MARGARIDA) Uma injeção para acalmá-lo?
JULIETA aparece com uma cadeira de rodas para enfermo, o encosto com
coroa e insígnias reais.
REI
Não quero injeção. Sei o que isso significa: já mandei fazer isso. (para JULIETA) Não
lhe disse para trazer esta cadeira. Quero andar, quero tomar ar.
JULIETA deixa a cadeira num canto do palco à direita e sai.
MARGARIDA
Sente-se na cadeira. Você vai cair.
REI
Não aceito. Quero ficar de pé.
JU~/ETA volta com uma coberta.
JULIETA
O Senhor estaria melhor, Sire, mais confortável, com uma coberta nos joelhos e uma
. bolsa de água quente.
Ela sal:
REI
Não, quero ficar de pé, quero urrar. Quero urrar. (ele grita)
GUARDA anunciando
Sua Majestade urra!
MÉDICO pará MARGARIDA
Ele não vai urrar muito tempo. Eu conheço o processo. Ele vai ficar cansado, vai
parar e nos escuta~
37
MARGARIDA
Sente-se logo, sente-se.
REI
Não obedeço. (ele quer subir os degraus do trono mas não consegue. Vai sentar-se,
desabando, no trono da rainha à esquerda) Eu caio, infelizmente.
JULIETA, depois de ter seguido o REI com os objetos indicados, vai colocá-
los na cadeira de rodas.
JULIETA
É uma coroa menos pesada.
REI
Deixe meu cetro.
MARGARIDA
Você não tem mais força para segurá-lo.
MÉDICO
Não vale a pena apoiar-se nele. O Senhor será conduzido na cadeira de rodas.
REI
Quero mantê-lo.
38
REI
Isso não pode ser verdade. Digam-me que isso não é verdade. É um pesadelo.
(silêncio dos outros) Há talvez uma chance em dez, uma chance em mil. (süêncio
dos outros?' o REI soluça) Eu ganhava muitas vezes na loteria.
MÉDICO
Majestade!
REI
Não posso mais escutá-lo, tenho muito medo.
REI
Não quero mais saber de suas palavras. Elas me dão medo. Não quero mais ouvir
falar. (para MARIA que queria aproximar-se dele) Não se aproxime você também, sua
piedade me dá medo.
39
JULIETA
Suas pernas não o aguentam mais.
REI
Sinto dor também quando mexo os braços. Começa tudo de novo? Não. Por que
nasci se não era para sempre? Malditos pais. Que idéia essa, que brincadeira! Vim
ao mundo há cinco minutos, casei-me há três minutos.
MARGARIDA
São duzentos e oitenta e três anos.
REI
Subi ao trono há dois minutos e meio.
MARGARIDA
Há duzentos e setenta e sete anos e três meses.
REI
Não tive tempo de dizer ufl Não tive tempo de conhecer a vida.
MARGARIDA para (;) MÉDICO
Ele não fez nenhum esforço pra isso.
MARIA
Foi apenas um passeio rápido por uma alameda florida, uma promessa não
cumprida, um sorriso que apagou.
MARGARIDA para o MÉDICO
Contudo, ele tinha à disposição os maiores sábios para explicações. E teólogos,
pessoas experientes e livros que nunca leu.
REI
Não tive tempo.
MARGARIDA para o REI
Você dizia que tinha todo o tempo.
REI
Não tive tempo. Não tive tempo, não tive tempo.
JULIETA
Ele repete isso.
40
MARGARIDA para o médico
É sempre a mesma coisa.
MÉDICO
Parece que está melhorando. Ele geme, chora, mas já começa a raciocinar. Queixa-
REI
Nunca vou me resignar.
MÉDICO
Ao dizer que não quer, temos um sinal de que vai se resignar. Questiona a
resignação. Problematiza para -si mesmo.
MARGARIDA
Até que enfim!
MÉDICO
Majestade, o Senhor foi à guerra cento e oitenta vezes. À frente dos seus exércitos,
penacho vermelho e branco muito vistoso e o Senhor não teve medo. Depois,
quando modernizou o exército, de pé sobre um tanque ou nas asas de um avião de
MARIA
Era um herói.
MÉDICO
o Senhor roçou mil vezes a morte.
REI
Eu apenas roçava. Ela não era para mim, eu sentia.
MARIA
Você era um herói, percebe? Lembre-se.
MARGARIDA
Você fez com que esse médico e carrasco aqui presente, assassinasse...
REI
Executasse, não assassinasse.
41
MÉDICO para MARGARIDA
Executasse, Majestade, não assassinasse. Eu obedecia ordens. Era um mero
instrumento, um executante mais que executor e eu usava eutanásia. Apesar disso,
lamento. Perdão.
MARGARIDA para O REI
Eu digo: você massacrou meus pais, seus irmãos rivais, nossos primos e primos em
terceiro grau, suas famílias, seus amigos, seu gado. Você mandou incendiar suas
terras.
MÉDICO
Sua Majestade dizia que de qualquer jeito eles iam morrer um dia.
REI
Era por razões de Estado.
MARGARIDA
Você também está morrendo por razões de Estado.
REI
Mas o Estado sou eu.
JULIETA
Infeliz! Nesse estado!
MARIA
Ele era a lei: acima das leis.
REI
Não sou mais a lei.
MÉDICO -
Ele admite. Está cada vez melhor.
MARGARIDA
Isso facilita as coisas.
REI gemendo
Não estou mais acima das leis, não estou mais acima das leis.
GUARDA anunciando
O Rei não está mais acima das leis!
42
JULIETA
Ele não está mais acima das leis, pobre velho. Ele é como nós. Poderia ser meu avô.
MARIA
Pobre criança, meu pobre filho.
REI
Um filho! Um filho! Então eu recomeço. Eu quero recomeçar. (para MARIA) Eu quero
ser um bebê, você será minha mãe. Então não virão me buscar. Não sei ler, não sei
escrever, não sei contar. Levem-me à escola com os coleguinhas. Quanto é dois
mais dois?
JULIETA
Dois mais dois é igual a quatro.
REI
Foi ela que soprou... Ai, ai, não se pode trapacear. Ai, ai, tanta gente nasce nesse
MARGARIDA
Não em nosso país.
MÉDICO
A natalidade ficou reduzida a zero.
JULIETA
Nenhuma verdura brota, nenhum capim.
MARIA
Não quero que o arruínem.
JULIETA
Talvez tudo volte a brotar.
MARGARIDA
Quando ele tiver concordado. Sem ele.
43
REI
Sem mim, sem mim. Vão rir, vão se regalar, vão dançar sobre meu túmulo. Como se
eu nunca tivesse existido. Ah, não. Lembrem-se de mim, chorem e se desesperem.
Perpetuem minha memória em todos os manuais de história. Que todo mundo
conheça minha vida de cor. Que todos a revivam. Que os estudantes e os sábios
tenham apenas como objeto de estudo minha vida, meu reino, minhas expedições.
Que sejam queimados todos os outros livros, que se destruam todas as estátuas e
que a minha seja colocada em todas as praças públicas. Minha imagem em todos os
ministérios, nos escritórios de todas as subprefeituras e dos controladores fiscais,
nos hospitais. Que meu nome seja dado a todos os aviões, a todos os navios, às
conduções manuais e a vapor. Que todos os outros reis, guerreiros, poetas, cantores,
mim, que eu seja a hóstia. Que todas as janelas iluminadas tenham a cor e a forma
dos meus olhos, que os rios desenhem nas planícies o perfil de meu rosto! Que me
chamem eternamente, supliquem e implorem.
MARIA
Talvez você volte?
REI
Talvez eu volte. Que meu corpo seja conservado intato, sentado no trono num
palácio e que me tragam alimentos. Que músicos toquem para mim e que virgens se
enrosquem nos meus pés frios.
O REI levantou-se para este pronunciamento.
JULIETA para MARGARIDA
É um delírio, madame.
GUARDA anunciando
Sua Majestade, o REI, delira.
44
MARGARIDA
Ainda não. Ainda parece muito sensato. Ao mesmo tempo muito e não o bastante.
MÉDICO para o REI
Se esta é sua vontade, seu corpo será embalsamado, será conservado.
JULIETA
Tanto quanto possível.
REI
Que horror! Eu não quero ser embalsamado. Não quero este tipo de cadáver. Não
quero ser incinerado! Não quero que me enterrem, não quero que me entreguem
aos abutres nem às feras. Eu quero que me conservem em braços quentes, braços
jovens, braços ternos, braços seguros.
JULIETA
Ele não sabe muito bem o que quer.
MARGARIDA
Vamos decidir por ele. (para MARIA) Não desmaie. (JULIETA chora) Você também. É
sempre a mesma coisa.
REI
Por quanto tempo vão' se lembrar de mim? Que se lembrem até o fim dos tempos e
.depois do fim dos tempos, em vinte mil anos, em duzentos e cinqüenta e cinco
bilhões de anos. Não mais alguém por alguém. Esquecerão antes. Egoístas, todos,
todos. Pensam apenas na sua vida, na sua pele. Não na minha. Se toda terra gasta
e acaba, isto vai acontecer. Se todos os universos explodem, eles vão explodir,
amanhã ou daqui a séculos e séculos, tanto faz. O que deve acabar já está
acabado.
MARGARIDA
Tudo é ontem.
JULIETA
Mesmo hoje é ontem.
MÉDICO
Tudo é passado.
45
MARIA
Meu querido, meu REI, não há passado, .não há futuro. Diga você mesmo que há um
presente até o fim, tudo é presente. Fique presente, fique presente.
O REI
Ai de rnirnl Só estou presente no passado.
MARIA
É claro que não.
MARGARIDA para o REI
É isso, seja lúcido, BÉRENGER.
MARIA
Sim, seja lúcido, meu REI, meu querido. Não se atormente mais, existir é uma
palavra, morrer é uma palavra, fórmulas, idéias que temos. Se você entende isso,
nada. poderá destruí-lo. Decida-se, mantenha-se bem, não se perca mais de vista,
mergulhe na ignorância de tudo o mais. Você existe, agora, você é. Não seja apenas
uma interrogação infinita: o que é, o que... A impossibilidade de responder é a
própria resposta, é seu próprio ser que brilha e se distende. Mergulhe no espanto e
na estupefação sem limites e assim você pode ser sem limites e assim pode ser
. infinitamente. Espante-se, fique deslumbrado, tudo é estranho, indefinido. Afaste as
barras da prísão, derrube suas paredes, fuja das definições. Você vai respirar.
MÉDICO
Ele está sufocado.
MARGARIDA
O medo fecha-lhe o horizonte.
MARIA
Deixe-se inundar pela alegria, pela luz, admirado, deslumbrado. O deslumbramento
penetra a carne e os ossos como uma onda, como um rio de luz brilhante. Se você
quiser.
JULIETA
Ele gostaria
46
MARIA unindo as mãos em tom de súplica
REI
Não estou entendendo.
MARIA
Você não se entende mais
MARGARIDA
MARIA
Retome seu poder sobre si mesmo.
REI
Como fazê-lo? Não podem, ou melhor, não querem me ajudar. Eu próprio não posso
me ajudar. Ó sol, ajude-me, sol, expulse a sombra, afaste a noite. Sol, sol ilumine
.todas as tumbas, entre em todos os cantos sombrios, nas tocas e esconderijos,
penetre em mim.Ahl Meus pés começam a esfriar, venha me aquecer, entre em meu
corpo, na minha pele, nos meus olhos, reacendendo o seu brilho desmaiado para
que eu veja, que eu veja, que eu veja. Sol, sol, você vai lamentar a minha perda?
Querido sol; bondoso sol, proteja-me. Resseque e mate o mundo todo se for
REI
Que eu viva, mesmo rangendo os dentes, durante séculos e séculos. Ai, o que deve
MÉDICO
Então, Sire, o que está esperando?
MARGARIDA
Há apenas seu discurso que não acaba (mostrando MARIA e JULIETA) E essas duas
-
mulheres que choram. Enterram-no mais e isso prende-o, segura-o, trava-o.
REI
Não, não é o bastante o choro em torno de mim, não se lamentam suficientemente.
Podiam angustiar-se mais. Não as impeçam de chorar, de gritar, de ter piedade do
REI, do jovem REI, do pobre querido REI, do velho REI. Eu lamento quando penso que
sentirão falta de mim, que não me verão mais, que ficarão abandonadas, que ficarão
sozinhas. Sou ainda eu que penso nos outros, em todos. Penetrem em mim, todos
vocês, sejam eu mesmo, entrem na minha pele. Eu morro, entendem, quero dizer que
morro, não -consigo dizê-lo, faço apenas literatura.
MARGARIDA
Mais isso, ainda!
MÉDICO
Suas palavras não merecem ser guardadas. Nada de novo.
REI
São todos estranhos. Pensei que eram minha família. Tenho medo, desabo, afundo.
Não sei mais nada, não existi. Morro.
MARGARIDA
Isso é literatura.
MÉDICO
Vai ser assim até o último instante. Enquanto se vive tudo é pretexto para a
literatura.
48
MARIA
GUARDA anunciando
A literatura alivia um pouco o REI!
REI
Não, não. Eu sei, nada me alivia. Ela me preenche, ela me esvazia. Ah, la, la, la, la,
la, la, la. (lamentos, depois sem ênfase como se gemesse suavemente) Vocês todos,
incontáveis, que morreram antes de mim, ajudem-me. Digam-me como fizeram para
socorrer. Ajudem-me, vocês, que tiveram medo e não quiseram. Como foi? Quem os
amparou? Quem os conduziu? Quem os empurrou? Vocês tiveram medo até o fim? E
vocês que Toram fortes e corajosos, que aceitaram morrer com ind iferença e
resignação.
JULIETA
MARIA
Ensinem-lhe a serenidade.
GUARDA
Ensinem-lhe a indiferença.
MÉDICO
Ensinem-lhe a resignação.
MARGARIDA
49
REI
Vocês, os suicidas, ensinem-me o que fazer para conseguir aversão pela existência.
MÉDICO
Posso prescrever pílulas eufóricas, tranquilizantes.
MARGARIDA
Ele vomitaria.
JULIETA
Vocês, as lembranças...
GUARDA
JULIETA
GUARDA
MARGARIDA
GUARDA
MARIA
Vocês, as brumas, vocês, os orvalhos...
JULIETA
MARIA
JULIETA
Ajudem-no.
REI
Vocês que morreram com alegria, que encararam, que assistiram seu próprio fim ...
50
JULIETA
Ajudem o Rei.
MARIA
Ajudem-no todos vocês, ajudem-no, eu suplico.
REI
Vocês, mortos felizes, viram algum rosto perto do seu? Que sorriso os acalmou e fez
com que sorrissem? Qual foi a última luz que os iluminou?
JULIETA
Ajudem-no, vocês, bilhões de defuntos.
GUARDA
Ó Grande Nada, ajude o REI.
REI
Bilhões de mortos. Eles multiplicam minha angústia. Sou suas agonias. Minha morte é
incontável. São tantos os universos que se extinguem em mim.
MARGARIDA
A vida é um exílio.
REI
Eu sei, eu sei.
MÉDICO
Enfim, Majestade, o senhor voltará para sua pátria.
MARIA
Você voltará para onde estava antes de nascer. Não tenha medo. Você deve
conhecer o lugar, ainda que de um modo vago.
REI
Amo o exílio. Eu me expatriei. Não quero voltar. Que mundo era aquele?
MARGARIDA
Lembre-se, faça um esforço.
REI
Não vejo nada, não vejo nada.
MARGARIDA
Lembre-se, vamos lá, pense, reflita. Pense, pense então, você nunca pensou.
51
MÉDICO
Ele nunca pensou nisso.
MARIA
Outro mundo, mundo perdido, mundo esquecido, mundo submerso, volte à superfície.
JULIETA
Outra planície, outra montanha, outro vale...
MARIA
Faça-o lembrar-se do seu nome.
REI
Nenhuma lembrança dessa pátria.
JULIETA
Ele não se lembra de sua pátria.
MÉDICO
Ele está muito fraco, não está em condição.
REI
Nenhuma nostalgia por mais tênue e fugitiva que seja.
MARGARIDA
Penetre em suas lembranças, mergulhe na ausência de lembranças, além da
lembrança. (para o MÉDICa Ele só lamenta a perda deste mundo aqui.
MARIA
Lembrança além da lembrança, surja para ele, ajude-o.
MÉDICO
Fazê-lo mergulhar, vejam bem, é uma outra história.
MARGARIDA
Vai ser necessário.
GUARDA
Sua Majestade jamais conheceu um batiscafo.
JULIETA
É pena. Nunca ninguém o levou.
MARGARIDA
É preciso que ele aprenda a fazer isso.
52
REI
Quando está em perigo de morte, a menor das formigas se debate, abandonada,
extingue. Não é natural morrer, desde que não se queira. Eu quero existir.
JULIETA
Ele sempre quer existir, ele só sabe isso.
MARIA
Ele sempre existiu.
MARGARIDA
Será necessário que ele não olhe mais em volta e não se apegue mais às imagens,
é preciso que ele se volte para si mesmo e se tranque. (para o REh Não fale mais,
fique quieto, ·fique dentro de si. Não olhe mais, isso vai fazer bem para você.
REI
Não quero este bem.
MARGARIDA
. Não vai ser fácil, mas temos paciência.
MÉDICO
Estamos seguros quanto ao resultado.
REI
Doutor, Doutor, a agonia já começou? .. Não, o senhor está enganado... ainda não...
ainda não. (espécie de suspiro de alívio) Ainda não começou. Eu existo, estou aqui.
Vejo as paredes, os móveis, há o ar, vejo os olhares, as vozes chegam até mim,
estou vivo, percebo, vejo, escuto, vejo, escuto. A bandal
Espécie de som muito fraco de uma banda. Ele marcha.
GUARDA
O REI marcha, Viva o REli
O REI cai.
53
JULIETA
Ele cai.
GUARDA
O REI cai, o REI morre.
O REI se levanta
MARIA
Ele se levanta.
GUARDA
O REI se levanta. Viva o REli
MARIA
Ele se levanta.
GUARDA
Viva o REI! (o REI cal) O REI está morto.
MARIA
Ele se levanta. (de fato? ele se levanta) Ele está vivo.
GUARDA
Viva o REI!
MARIA
Ele reinal Ele reinal
MÉDICO
E agora é o delírio.
MARIA para o REI que tenta subir os degraus do trono vacilando
Não fraqueje, agarre-se. (para JULIETA que quer ajudar o REO Sozinho, ele pode
fazer isso sozinho.
54
MARIA
Vá em frente.
MARGARIDA
Só restam trinta e dois minutos e trinta segundos.
REI
Eu me levanto.
MÉDICO
É o penúltimo movimento brusco.
Ele falou para MARGARIDA.
O REI cai na cadeira de rodas que JULIETA acaba de trazer. É coberto, é
tmzids uma bolsa quente, ele continua dizendo:
O REI
Eu me levanto.
MARGARIDA
Vai esquecê-la.
JULIETA
Em nada, Majestade.
Tudo o que for dito pelo REI nesta cena deve ser dito em tom mais tolo e
pasmo do que patético
REI
De onde você veio? Qual é -sua família?
MARIA
Ele nunca teve tempo para perguntar.
MÉDICO
Ele quer ganhar tempo. '
JULIETA
Vivo com dificuldade, Senhor.
REI
Não se pode viver com dificuldade. É uma contradição.
JULIETA
A vida não é bela.
REI
A vida é a vida.
Na verdade não há um diálogo, o REI fala sobretudo consigo mesmo.
JULIETA
No inverno quando me levanto ainda é noite. Fico enregelada.
56
REI
JULIETA
JULIETA
Lavo toda a roupa da casa no tanque. Tenho dor nas mãos, minha pele está
rachada.
REI em êxtase
Isso dói. Sente-se a própria pele. Ainda não foi comprada uma máquina de lavar
MARGARIDA
JULIETA
REI
Ela arruma as camasl A gente se deita, dorme, acorda. Você já percebeu que
acordamos todos os dias? Acordar todos os dias ... Nascemos todas as manhãs.
JULIETA
REI em êxtase
Não acaba nuncal
JULIETA
REI
E também rins'
57
JULIETA
Desde que deixamos de ter um jardineiro, eu cavo usando a enxada e o enxadão.
Eu semeio.
REI
As coisas brotam'
- - JULIETA
REI
Você deveria ter dito.
JULIETA
Eu disse.
REI
É verdade. Tantas coisas me escaparam. Nunca soube tudo. Não estive em todos os
lugares. Minha vida poderia ter sido plena.
JULIETA
Meu quarto não tem janela.
REI ainda em êxtase
Sem janela' A gente sai. Busca a luz. Encontra-a. sorri. Para sair você gira a chave
na fechadura, abre a porta, gira outra vez a chave, fecha a porta. Onde você mora?
JULIETA
No celeiro.
O REI
Para descer você vai pela escada, você desce um degrau, depois um degrau, depois
outro degrau, mais um degrau, outro degrau, mais um degrau. Para se vestir você
tinha calçado as meias, os sapatos.
JULIETA
Sapatos gastos'
REI
Um vestido. É extraordinário!...
JULIETA
Um vestido feio, barato.
58
REI
Você não sabe o que diz. É bonito um vestido feio.
JULIETA
Tive um abcesso na boca. Tive um dente arrancado.
REI
Há muito sofrimento. A dor melhora, desaparece. Que alívio! Depois ficamos alegres.
JULIETA
Estou cansada, cansada, cansada.
REI
Depois a gente descansa. É gostoso.
JULIETA
Eu não tenho folga.
REI
Espere e terá ... Você anda, pega uma cesta e vai fazer suas compras. Você diz bom
dia ao merceeiro.
JULIETA
Que é um sujeito obeso, horrível. Tão feio que espanta os gatos e os pássaros.
REI
-Que maravilha! Você pega seu porta-moedas, paga, recebe o troco. No mercado há
alimentos de todas as cores, salada verde, cerejas vermelhas, uva dourada, berinjela
arroxeada... Todo o arco-íris!... Extraordinário, incrível. Um conto de fadas.
JULIETA
Depois eu volto... Pelo mesmo caminho.
REI
Duas vezes por -dia o mesmo caminho! Sob o céu! Você pode achá-lo duas vezes
por dia. Você respira. Você nunca pensa que respira. Pense nisso. Lembre-se. Tenho
certeza de que você não dá atenção a isso. É um milagre.
JULIETA
E depois, e depois, eu lavo a louça da véspera. Pratos cheios de gordura. E depois
ocupo-me da cozinha.
59
REI
Que alegria!
JULIETA
Ao contrário. Isso me aborrece. Não agüento rnaisl
REI
Isso a aborrece. Há seres que a gente não compreende ... É bom aborrecer-se,
também é bom não se aborrecer, encolerizar-se e não se encolerizar, ficar
alguém lhe fala, você toca e alguém a toca. Tudo isso é feérico, é uma festa que
não acaba.
JULIETA
De fato não pára. Depois eu ainda preciso servir como copeira.
REI
Você serve como copeira! Você serve como copeira! O que você serve?
JULIETA
A refeição que preparei.
REI
Por exemplo, o quê?
JULIETA
Não sei, o prato do dia, o cozido.
REI
O cozido!... O cozidol
Sonhador
JULIETA
É uma refeição completa.
REI
Eu gostava tanto de cozido; com legumes, batatas, couves, cenouras que se
misturam com manteiga e que são esmagadas com o garfo para fazer um purê.
JULIETA
Poderíamos trazer pra você.
60
REI
Tragam-me.
MARGARIDA
Não.
JULIETA
Se isso lhe dá prazer.
MÉDICO
É ruim para a saúde. Ele está de regime.
REI
Quero cozido.
MÉDICO
Não é aconselhável para a saúde dos moribundos.
MARIA
É talvez seu último desejo.
MARGARIDA
É preciso que ele o supere.
REI sonhador
A sopa... As batatas quentes... As cenouras bem cozidas.
JULIETA
Ele ainda faz jogo de palavras.
REI cansado
Eu nunca tinha notado que as cenouras eram tão belas. (para JULIETA) Vá logo
matar as duas aranhas do quarto. Não quero que elas sobrevivam a mim. Não, não
as mate. Talvez elas tenham alguma coisa de mim... Ele morreu, o cozido...
temperatura baixou, assim sua pele quase não está mais arrepiada. Seus cabelos que
estavam eriçados, estão ajeitados, arrumados. Ele ainda não se acostumou com o
medo, não mesmo, mas já pode olhá-lo dentro de si, por isso ousa fechar os olhos.
Vai abri-los. Os traços estão alterados, mas olhem como as rugas e a velhice se
instalam no seu rosto. Ele deixa que avancem. Ele ainda vai ficar abalado, as coisas
não acontecem depressa, não terá mais as cólicas do terror. Isso seria desonroso.
Ainda sentirá pavor puro, sem complicação abdominal. Não se pode esperar uma
morte exemplar. Contudo será quase adequada. Vai morrer sua morte e não mais do
seu.. medo. É preciso ajudá-lo, Majestade, é muito necessário ajudá-lo até o último
MARGARIDA
Vou ajudá-lo. Vou fazer com que saia disso e decole. Vou desfazer todos os nós,
MÉDICO
Não vai ser fácil.
MARGARIDA
Onde ele apanhou todas essas ervas daninhas, todas essas ervas loucas?
MÉDICO
Pouco a pouco. Elas cresceram com os anos.
MARGARIDA
Você comporta-se bem, Majestade. Sente-se mais tranqüilo?
MARIA levantando-se, para o REI
Enquanto ela não chegar, você está aqui. Quando ela chegar, você não estará mais,
não a encontrará, não a verá.
62
MARGARIDA·
As mentiras da vida, os velhos sofismas! Nós sabemos. Ela sempre esteve aqui,
presente, desde o primeiro dia, desde a origem. Ela é o broto que se desenvolve, a
flor que desabrocha, o único fruto.
MARGARIDA
É a primeira verdade. E a última. Não é, doutor?
MÉDICO
As duas coisas são verdadeiras. Depende do ponto de vista.
REI
Morro.
MÉDICO
Mudou seu ponto de vista. Ele se deslocou.
MARIA
Se é preciso considerar os dois lados, considere também o meu.
REI
Morro. Não agüento mais. Morro.
MARIA
Ah! Perdi meu poder sobre ele.
MARGARIDA
Ela só pensa em si.
63
JULIETA
É normal.
MARIA
Eu sempre vou amá-lo, eu o amo ainda.
REI
Eu não sei mais, isso não me ajuda.
MÉDICO
O amor é louco.
MARIA para o REI
O amor é louco. Se você tem um louco amor, se você ama insensatamente, se você
REI
Eu estou cheio é de furos. Estou roído. Os furos aumentam, não têm fundo. Sinto
vertigem quando me inclino sobre meus próprios furos, acabo.
MARIA
Não acabou, os outros vão amar por você, os outros verão o céu por você.
REI
Estou morrendo.
MARIA
Entre nos outros, seja os outros. Sempre haverá... isso, isso.
REI
O quê?
MARIA
Tudo que existe e que não perece.
REI
Há ainda... há ainda... há ainda tão pouco.
MARIA
As jovens gerações fazem crescer o universo.
64
REI
Morro.
MARIA
Constelações são conquistadas.
REI
Morro.
MARIA
Os audaciosos forçam as portas dos céus.
MARIA
Novos astros estão aparecendo.
REI
Sinto raiva.
MARIA
São estrelas .novas. Estrelas virgens.
REI
Vão fenecer. Além disso, para mim tanto faz.
GUARDA anunciando
Nem as antigas nem as novas constelações interessam mais Sua Majestade, o REI
BÉRENGER!
MARIA
Forma-se uma nova ciência.
REI
Morro.
MARIA
Um outro saber substitui o antigo, uma loucura maior, uma ignorância maior,
totalmente diferente, totalmente semelhante. Que isso o console, que isso o satisfaça.
65
REI
Tenho medo, morro.
MARIA
Você preparou tudo isso.
REI
MARIA
Você foi uma etapa, um precursor. Está em todas as construções. Tem importância.
REI
Não sou responsável. Morro.
MARIA
Tudo que foi será, tudo que será já é, tudo que será já foi. Você está para sempre
REI
Quem vai consultar os arquivos? Eu morro e que tudo morra, não que tudo reste,
não que tudo morra pois minha morte não pode preencher os mundos! Que tudo
morra. Não, que tudo reste.
GUARDA
REI
GUARDA
Que tudo morra comigo, não, que tudo continue depois de mim. Não, que tudo
morra, que tudo reste, que tudo morra.
MARGARIDA
Ele não sabe o que quer.
66
JULIETA
REI
Quando eu tinha pesadelos e chorava dormindo, você me acordava e me beijava,
você me acalmava.
MARGARIDA ·
Ela não pode mais fazer isso.
mim, na sala do trono, com sua camisola rosa florida e me levava de volta para a
JULIETA
Com meu marido também era assim.
REI
Eu dividia com você meu resfriado, minha gripe.
MARGARIDA
Você não vai mais ficar resfriado.
67
REI
De manhã, abríamos os olhos ao mesmo te~po, vou fechá-los sozinho ou cada um
de nós do seu lado. Pensávamos as mesmas coisas ao mesmo tempo. Você
terminava a frase que eu tinha começado na minha cabeça. Quando tomava banho,
chamava você para me esfregar as costas. Você escolhia minhas gravatas. Nem
sempre eu gostava delas. Discutíamos a respeito disso. Nunca ninguém soube nem
saberá.
MÉDICO
Não era muito importante.
MARGARIDA
Que pequeno burguês! No duro, ninguém precisa saber disso.
JULIETA
Tudo isso é comovente.
MARGARIDA para o REI
Você não vai mais ficar despenteado
JULIETA
Mesmo assim é muito triste.
REI
Você enxugava minha coroa e esfregava as pérolas para que brilhassem.
MARIA para o REI
Você me ama? Você me ama? Eu sempre vou amá-lo. Você ainda me ama? Ele me
ama ainda. Você me ama neste momento? Estou aqui... aqui ... existo ... veja, veja ...
Olhe-me bem... olhe um pouco para mim.
REI
Eu continuo a me amar. Apesar de tudo, eu me amo, eu ainda sinto meu corpo. Eu
me vejo, eu me contemplo.
68
MARGARIDA para MARIA
Chegal (Para o REO Não olhe mais para trás. É uma recomendação. Ou então, ande
logo. Daqui a pouco será uma ordem. (Para AfARIA) Você não pode mais ajudá-lo, eu
já disse.
MARGARIDA
Não é nada. Não se aflija Senhor DOUTOR, Senhor CARRASCO. Essas regressões,
MÉDICO
Com uma boa crise cardíaca não teríamos tanta confusão.
MARGARIDA
Crises cardíacas são para homens de negócios.
MÉDICO
... Ou então uma pneumonia dupla!
MARGARIDA
JULIETA
Vocês estão vendo, ele não está curado.
REI
MARGARIDA
Quem pode dar a vocês a permissão de atingir o REI a não ser o próprio REI?
69
MARGARIDA
A força nos permite, a força das coisas, o Supremo Decreto, as instruções.
MÉDICO para MARGARIDA
Agora nós somos o comando e as instruções.
GUARDA enquanto JULIETA vai empurrando o REI em sua cadeira de rodas para
passear em volta do palco.
Majestade, meu Comandante, foi quem inventou a pólvora. Roubou o fogo dos
deuses, depois ateou fogo na pólvora. Arrebentou tudo. Segurou tudo nas mãos,
reatou tudo. Eu o ajudava e não era fácil. Ele não era fácil. Instalou as primeiras
forjas no mundo. Inventou a fabricação do aço. Das vinte e quatro horas, trabalhava
dezoito. Quanto a nós, ele nos fazia trabalhar mais ainda. Ele era engenheiro chefe.
O Senhor Engenheiro fez o primeiro balão, depois o dirigível. Enfim, construiu com
suas próprias mãos o primeiro aeroplano que não funcionou de imediato. Os
primeiros pilotos de ensaio, ícaro e tantos outros, caíram no mar até o momento em
que ele mesmo resolveu pilotar. Eu era seu mecânico. Bem antes ainda, quando era
um pequeno delfim, ele inventou o carrinho de mão. Eu brincava com ele. Depois os
trilhos, a estrada de ferro, o automóvel. Fez os projetos da Torre Eiffel, sem contar
MÉDICO
Neste caso, de fato, ele era o mais qualificado.
REI
Fiz tudo isso! É verdade? -
GUARDA
Escreveu tragédias, comédias, com o pseudônimo de Shakespeare.
JULIETA
Então ele é Shakespeare?
GUARDA
Era um segredo. Ele me proibiu de contar. Inventou o telefone e o telégrafo,
instalando-os ele mesmo. Fazia tudo com suas próprias mãos.
JULIETA
Não sabia fazer nada com as mãos. Para o mais simples conserto chamava o
encanador.
GUARDA
Meu Comandante, o senhor era tão habilidoso.
MARGARIDA
Ele nem sabe calçar e descalçar os sapatos.
GUARDA
Há pouco tempo descobriu a fissão atômica.
JULIETA
Ele nem sabe acender e apagar uma lâmpada.
71
GUARDA
Majestade, meu Comandante, Mestre, senhor Diretor...
JULIETA
Ele reconhece as paredes.
REI
Fiz coisas. O que dizem que fiz? Não sei mais o que fiz. Esqueço, esqueço.
(Enquanto é empurrado) Eis um trono.
MARIA
Você se lembra de mim? Estou aqui, estou aqui.
REI
Eu estou aqui. Eu existo.
JULIETA
Ele não se lembra nem"mesmo de um cavalo.
REI
Eu me lembro de um gatinho ruço.
MARIA
Ele se lembra de um gato.
REI
Eu tinha um gatinho ruço. Era chamado de gato judeu. Eu o encontrei num campo,
afastado de sua mãe, um verdadeiro selvagem. Tinha quinze dias, talvez mais. Já
sabia unhar e morder. Era feroz. Dei-lhe comida, carinho e levei-o comigo. Tornou-se
o mais meigo dos gatos. Uma vez escondeu-se na manga do casaco de uma visita,
Madame. Era a criatura mais educada, de uma polidez natural, um príncipe. Vinha ao
nosso encontro, com os olhos meio adormecidos, quando chegávamos no meio da
noite. Voltava a deitar cambaleando. De manhã ele nos acordava para deitar na
nossa cama." Um dia deixamos a porta fechada. Ele tentou abri-la com o trazeiro,
72
ficou aborrecido, aprontou uma boa confusão; ficou emburrado uma semana. Tinha
muito medo do aspirador, era um gato medroso, pacato, um gato poeta. A gente
comprou para ele um rato mecânico. Ele ~e pôs a fungar com um ar inquieto.
Quando foi dada a corda e o rato começou a andar, ele cuspiu, fugiu e se
enroscou debaixo do armário. Quando cresceu, gatas andavam em volta da casa,
Quisemos fazê-lo conhecer o mundo. Foi posto na calçada, perto da janela. Ficou
aterrorizado. Foi cercado por pombos e ele tinha medo dos pombos. Ele me chamou
desesperado, gemendo, colado à parede. Os animais, os outros gatos eram para ele
criaturas estranhas que o faziam desconfiar ou inimigos que ele temia. Só se sentia
bem conosco. Éramos sua família. Não tinha medo dos homens. Pulava-lhes nos
ombros sem avisar, lambia seus cabelos. Pensava que éramos gatos e que os gatos
eram outra coisa. Contudo, um belo dia, ele deve ter pensado que devia sair. O
cachorrão dos vizinhos matou-o. Ficou como um gato boneca, uma boneca
palpitante, um olho vazado, uma pata arrancada, assim, como uma ~ boneca
MARGARIDA
Eu detestava aquele bicho sentimental e medroso.
REI
Como lamentei! Ele era bom, bonito, educado, tinha todas as qualidades. Ele me
Essa fala sobre o gato deve ser dita com a menor emoção possível O Rei
deve dizê-Ia mais com um ar de tonto, com uma espécie de
entorpecimento sonhador, exceto talvez a derradeira réplica que exprime
desamparo.
MÉDICO
Eu já disse que ele regride.
MARGARIDA
Estou atenta. Ele está dentro dos prazos regulamentares. Já lhe disse que era
previsível.
73
REI - Sonhava com ele... Que estava na chaminé, deitado sobre a brasa e MARIA
ficava admirada porque ele não se queimava; eu explicava: "os gatos não se
queimam, são ininflarnáveis". Ele saia da chaminé miando, soltando uma fumaça
espessa, não era mais ele, que metamorfose! Era um outro gato, feio, gordo. Uma
imensa gata. : como sua mãe, a gata selvagem. Ele se parecia com MARGARIDA.
JULIETA deixa alguns instantes o REI em sua cadeira de rodas, no meio e
na parte da frente do palco, diante do público.
JULIETA
Apesar de tudo, é um infeliz. É pena, era um REI tão bom.
MÉDICO
Não era fácil. Muito mau. Rancoroso. Cruel.
MARGARIDA
Vaidoso.
JULIETA
Houve outros piores.
MARIA
Ele era doce, era terno.
GUARDA
Nós o amávamos.
MÉDICO para o GUARDA e JULIETA
Contudo ambos se queixavam.
JULIETA
A gente se esquece disso.
MÉDICO
Precisei intervir muitas vezes por vocês junto a ele.
MARGARIDA
Ele só escutava a rainha MARIA.
MÉDICO
Ele era duro, severo, sem ser justo em contrapartida.
JULIETA
Ele era muito pouco visto. Mesmo assim era visto, era visto com freqüência.
74
GUARDA
Ele era forte. É verdade que mandava cortar cabeças.
JULIETA
Nem tanto.
GUARDA
Era para a salvação pública.
MÉDICO
Resultado: estamos cercados de inimigos.
MARGARIDA
Vocês percebem como tudo degringola. Não temos mais fronteiras, um buraco que
aumenta nos separa dos países vizinhos.
JULIETA
É melhor. Eles não podem mais invadir.
MARGARIDA
o abismo cresce. Em baixo o buraco, em cima o buraco.
GUARDA
Nós nos mantemos na superfície.
MARGARIDA
Por bem pouco tempo.
MARIA
É melhor perecer com ele.
MARGARIDA
Somos apenas uma superfície, seremos apenas o abismo.
MÉDICO
Tudo isso é culpa dele. Não quis deixar nada depois dele. Não pensou nos seus
sucessores. Depois dele o dilúvio. Pior que o dilúvio, depois dele, nada. Um ingrato,
um egoísta.
75
JULIETA
De mortui nihil nisi bene. :k
JULIETA
Era a morada.
GUARDA
o reino estendia-se em volta, muito longe, muito longe. Não se viam os limites.
JULIETA
Ilimitado no espaço.
MARGARIDA
Mas limitado na duração. Ao mesmo tempo infinito e efêmero.
JULIETA
Ele era o príncipe, o primeiro de todos, era o pai, o filho. Foi coroado REI no
momento do seu nascimento.
MARIA
MARGARIDA
Desaparecem juntos.
JULIETA
Ele era o REI, mestre de todos os universos.
MÉDICO
Um mestre contestável. Não conhecia o seu reino.
MARGARIDA
Conhecia-o mal.
De mortuis nJ1 nisi bonum - Dos mortos não se fale a não ser bem.
Versão latina correta da sentença do grego Quílon, um dos Sete Sábios da Grécia
s.VI a.C. N. J.
76
MARIA
Era muito extenso.
JULIETA
A terra desmorona com ele. Os astros desfalecem. A água desaparece. Tudo
desaparece: o fogo, o ar, um universo, tantos universos. Em que guarda-móveis, em
que porão, em que quarto de despejo, em que celeiro poderá ser guardado tudo
isso? É preciso espaço.
MÉDICO
Quando os reis morrem, eles se agarram às paredes, às árvores, às fontes, à lua',
eles se agarram...
MARGARIDA
MÉDICO
D.errete, evapora, sem que sobre uma gota, uma poeira, uma sombra.
JULIETA
Tudo é engolfado pelo seu abismo.
MARIA
Ele tinha organizado corretamente seu universo, de que não era inteiramente mestre,
iria tornar-se. Morre muito cedo. Tinha dividido o ano em quatro estações. Estava
bem organizado. Tinha imaginado as árvores, as flores, os odores, as cores.
GUARDA
Um mundo à altura do REI.
MARIA
77
JULIETA
Era astucioso.
MARIA
No primeiro dia de seu nascimento, criou o sol.
JULIETA
E não foi suficiente. Também fez com que se produzisse o fogo.
MARGARIDA
Houve extensões sem limites, houve as estrelas, houve o céu, houve oceanos e
montanhas, houve planícies, houve rostos, houve edifícios, houve quartos, houve
leitos, houve luz, houve noite, houve guerras, houve paz.
GUARDA
Houve um trono,
MARIA
Houve sua mão.
MARGARIDA
Houve um olhar. Houve a respiração ...
JULIETA
Ele continua respirando.
MARIA
Ele ainda respira porque eu estou aqui.
JULIETA
Sim, Majestade. Ele ainda respira porque nós estamos aqui.
MÉDICO examinando o doente
Sim, sim, é evidente. Ele ainda respira. Os rins não funcionam mais, mas o sangue
circula, continua circulando. Ele tem o coração forte.
MARGARIDA
É preciso que ele chegue ao fim. Para que serve um coração que bate sem motivo?
78
MÉDICO
do coração do REI) Vai, vai muito depressa, t~rna-se mais lento, dispara outra vez.
Os batimentos cardíacos do REI abalam a casa. A rachadura da parede aumenta,
outras aparecem. Uma parte pode desabar ou desaparecer.
JULIETA
Meu Deus! Tudo vai desmoronar!
MARGUERIDA
MÉDICO
desaparece.
MARIA
Ele se esquece de mim. Neste instante, está começando a se esquecer de mim. Sinto
que ele me abandona. Nada mais sou se ele me esquecer. Não posso mais viver se
não mais estou no seu coração enlouquecido. Resista, resista. Aperte suas mãos com
JULIETA
Ele não tem mais forças.
MARIA
Agarre-se, não me deixe. Sou eu que o faço viver. Eu o faço viver, você me faz viver.
Entende? Se você me esquece, se você me abandona eu não posso mais existir, não
79
MÉDICO
Ele será uma página num livro de dez mil páginas que será posto numa biblioteca
com um milhão de livros, uma biblioteca. em um milhão de bibliotecas.
JULIETA
Não será fácil encontrar essa página.
MÉDICO
Claro que sim. Será encontrada no catálogo, por ordem alfabética e por ordem de
assuntos... até o dia em que o papel for reduzido a pó... ou então, queimará
certamente antes. Há sempre incêndios nas bibliotecas.
JULIETA
Ele cerra os punhos. De novo ele se agarra, resiste. Ele volta a si.
MARIA
Ele volta para mim.
MÉDICO
É, seu coração ainda se agarra.
MARGARIDA
.Que condição para um agonizante. Numa cerca de espinhos. Ele está numa cerca de
espinhos. Como livrá-lo? (para o REI) Você está sepultado na lama, preso nos
espinheiros.
JULIETA
Quando ele se libertar, seus sapatos vão ficar.
MARIA
Segure-me, eu 6 seguro. Olhe-me, eu estou olhando para você.
O REI olha para ela.
MARGARIDA
Ela o deixa confuso. Não pense mais nela, você vai ficar aliviado.
MÉDICO
Renuncie, Majestade. Abdique, Majestade.
80
JULIETA
Abdique então, porque é preciso.
virado para MARGARIDA) Mulher sem piedade' Por que você continua perto de mim?
Por que se inclina sobre mim? Vá embora, vá embora.
MARIA
Não olhe para ela. Volte seu olhar para mim, fique com os olhos bem abertos.
Espere. Estou aqui. Lembre-se. Sou MARIA.
MARIA
Se você não se lembra, olhe-me, aprenda de novo que eu sou MARIA, conheça meus •
olhos, meu rosto, meus cabelos, meus braços.
MARGARIDA
Você o faz sofrer, ele não pode mais aprender.
,MARIA para o REI
Se não posso conservá-lo, mesmo assim vire-se para mim. Estou aqui. Guarde minha
imagem, leve-a.
MARGARIDA
Ele não poderia levá-la, não tem força para isso, é muito peso para uma sombra e
é preciso que sua sombra não seja esfolada pelas outras sombras. Ele pereceria sob
o peso. Sua. sombra sangraria, não conseguiria prosseguir. É preciso que esteja leve.
(Ao REO Desvencilhe-se, livre-se.
MÉDICO
Ele deve começar a soltar-se do leste. Desligue-se, Majestade.
O Rei levanta-se e tem um outro jeito de andar: gestos descontrolados, um
certo ar de sonâmbulo. O andar de sonâmbulo fica cada vez mais
acentuado.
81
REI
MARIA?
REI - MARIA!
MÉDICO
JULIETA
JULIETA
É com a minha imagem que ele irá. Ela não vai estorvá-lo. Ela vai deixá-lo quando
precisar. Há um dispositivo que lhe permite desligar-se sozinha. Acionando um
MARGARIDA
82
REI
Há ainda... há...
MARGARIDA
Não enxergue mais o que há.
JULIETA
Ele não enxerga mais.
Ele mexeu um dedo ante os olhos do REI,' passou também uma vela
acesa, um isqueiro ou um fósforo ante os olhos de BÉRENGER. Seu olhar
não reagiu.
JULIETA
Ele não enxerga mais. Isso foi constatado oficialmente pelo médico.
GUARDA
Sua Majestade está oficialmente cega.
MARGARIDA
Vai olhar para dentro de si. Verá melhor.
REI
Vejo as coisas, vejo os rostos, as cidades e as florestas, vejo o espaço, vejo o
tempo.
MARGARIDA
Veja mais longe.
REI
Mais longe não consigo.
JULIETA
Está cercado e trancado pelo horizonte.
MARGARIDA
Lance seu olhar além do que você vê. Atrás do caminho, passando a montanha, do
outro lado da floresta que você nunca desbastou.
REI
o oceano. Não posso ir mais longe, não sei nadar.
83
MÉDICO
A falta de exercíciosl
MARGARIDA .
Tenho um espelho nas minhas entranhas, tudo se reflete, vejo cada vez melhor, vejo
MARGARIDA
REI
Eu me vejo. Atrás de tudo, existo. Apenas eu em toda parte. Sou a terra, sou o
céu, sou o vento, sou o fogo. Estou em todos os espelhos ou sou antes o espelho
de tudo?
JULIETA
MÉDICO
Doença psíquica muito conhecida: narcisismo.
MARGARIDA
'Venha, aproxime-se.
REI
Não há passagem.
JULIETA -
Ele escuta. Vira a cabeça quando falamos, presta atenção, estica um braço, estica o
outro.
GUARDA
O que ele quer pegar?
JULIETA
Ele procura um apoio.
Depois de alguns instantes o REI avança às cegas, com passos incertos.
84
REI
Onde estão as paredes? Onde estão os braços? Onde estão as portas? Onde estão
as janelas?
JULIETA
As paredes estão aqui, Majestade, nós todos estamos aqui. Isso é um braço.
Julieta entrega-lhe.
-
JULIETA
Está aqui.
REI
GUARDA
Sempre às suas ordens, Majestade. Sempre às suas ordens. (O REI dá alguns passos
GUARDA
Não vamos abandoná-lo, Majestade, eu juro.
REI
DOUTOR!
85
MÉDICO
desculpe-me.
Sua voz se afasta, o ruído dos seus passos diminui, não está mais aqui.
MARGARIDA
Antes de sair, JULIETA deve ter deixado a cadeira de rodas num canto
para não atrapalhar a representação.
Onde estão ·os outros? (O REI vai até a porta da frente à esquerda, depois até a
MARGARIDA
de você para tudo. Admita que eles o constrangiam. Agora as coisas vão melhorar.
(O REI anda com mais tscilidsde) Você tem ainda um quarto de hora.
REI
MARGARIDA
REI
Eu não dei nenhuma licença. Faça com que retornem, chame-os.
MARGARIDA
Eu não quis.
MARGARIDA
Não teriam podido ir embora se você não quisesse. Você não pode voltar atrás.
86
REI
Que voltem.
MARGARIDA
Você não sabe mais o nome deles. Como se chamavam? (Süéncio do REO Como
eram?
REI
Quem? .. Não gosto que me tranquem. Abra as portas.
MARGARIDA
Aguarde um pouco. Logo mais as portas vão estar escancaradas.
REI depois de um silêncio
As portas... as portas... Que portas?
MARGARIDA
Houve portas, houve um mundo, você viveu?
REI
Existo.
MARGARIDA
Não se movimente mais. Isso o deixa cansado.
Estou surdo.
MARGARIDA
Minha voz você vai escutar, vai escutar melhor. (O REI está de pé, imóvel, calado)
MARGARIDA
Este eu não é você. São objetos estranhos, aderências, parasitas monstruosos. O
visgo crescendo no ramo não é o ramo, a hera trepando no muro não é o muro.
Você se curva sob o peso, suas co~~as estão curvadas, é isso que o envelhece. E
esses grilhões que você arrasta, é isso que entrava seu andar. (MARGARIDA inclina-se,
arranca os grilhões invisíveis dos pés do REI depois se levanta, parecendo fazer um
grande esforço para erguer os grilhões) Toneladas, toneladas, isso pesa toneladas.
(Faz de conta que atira os grilhões na direção da sala e depois endireita o corpo
aliviada) Ufa! Como é que você conseguiu arrastar isso durante toda vida! (O REI
tenta erguer-se) Eu queria saber porque você estava curvado, era por causa desta
mochila (MARGARIDA faz de conta que arranca a mochila das costas do REI,
88
na mão do REI) Você não precisa mais se defender. Só queremos seu bem; espinhos
no seu manto, escamas, cipós, algas, folhas úmidas e pegajosas. Grudam, grudam.
Desgrudo, arranco, deixam manchas, não fica limpo. (Ela faz os gestos de quem
desgruda e arranca) O sonhador sai do seu sonho. Pronto, livrei-o dessas pequenas
misérias, dessas sujeiras. Agora seu manto está mais bonito, você está mais limpo.
Ficou melhor. Agora ande. Dê-me sua mão, dê-me logo a mão, não tenha medo,
tirar isso da sua cabeça. (Depois, para encorajá-lo) Tudo vai ficar guardado numa
memória sem lembranças. A pedrinha de sal que derrete na água não some, pois
deixa a água salgada. Que bornl Você está ereto, não está mais curvado, não tem
mais dor nos rins e cansaços. Não é fato que era tudo muito pesado? Curado, você
está curado. Pode continuar, continue, vamos, me dê a mão. (As costas do REI
curvam-se de novo, ligeiramente) Não curve as costas porque você não está mais
carregando peso... Ai, esses reflexos condicionados são terríveis... Não há mais peso
'nas suas costas, já disse. Endireite. (Ela o ajuda a corrigir a postura) A mãoL.
(Indecisão do REI) Como é desobediente! Não fique com o punho cerrado, afaste os
dedos. O que é que você segura? (Ela o ajuda a afastar os dedos) É todo seu reino
que ele segura na mão. Resumindo: microfilmes... grãos... (Para o Rei) Esses grãos
não vão germinar, a semente está alterada, os grãos estão ruins. Abandone, afaste
os dedos, ordeno que você abra a mão, largue as planícies, largue as montanhas.
Assim. Era apenas pó. (Apesar de haver ainda resistência do REI, ela segura sua mão
para conduzi-lo) Venha. Ainda mostra resistência! Onde consegue encontrá-la? Não,
não tente deitar nem tampouco sentar, não há motivo para vacilar. Vou guiá-lo, não
tenha medo. (Ela o conduz pelo planalto, segurando-lhe a mão) É claro que você
pode, não é fácil? Encontrei uma encosta suave. Depois será mais difícil, mas não
tem importância porque você terá recuperado forças. Não vire a cabeça para olhar o
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que você nunca mais poderá ver, concentre-se, volte-se para o seu coração, entre,
entre, é preciso.
MARGARIDA
Atravesse-os.
REI
Além dos setecentos e setenta e sete pólos.
MARGARIDA
Mais longe, mais longe. Ande depressa, vamos, ande depressa.
REI
Azul, azul.
MARGARIDA
Ele ainda percebe as cores. Lembranças coloridas. Não é uma natureza auditiva. Sua
imaginação é puramente visual... é um pintor... bastante adepto da monocromia. (Para
o REI) Renuncie também a este império. Renuncie também às cores. Isso ainda o
desvia e atrasa. Você não pode mais se atrasar, não pode mais parar, não deve. {Ela
se afasta do REO Ande sozinho, não tenha medo. Vá. (MARGARIDA, num canto do
planalto guia o REI de longe.) Não é mais dia, não é mais noite, não há mais dia,
não há mais noite. Deixe-se guiar por este caminho que dá voltas à sua frente. Não
o perca de vista, siga-o, não muito próximo, ele está escaldando, você poderia se
queimar. Siga em frente, eu afasto as urzes, cuidado, não machuque esta sombra
que está à direita... Mãos pegajosas, mãos que imploram, braços e mãos miseráveis,
não voltem, afastem-se. Não o toquem ou apanham! {Para o REO Não vire a cabeça.
Evite o precipício à sua esquerda, não tema este velho lobo que urra... suas presas
são falsas, ele não existe. (Para o lobo) Lobo, deixe de existir! (Para o REI) Também
não tenha medo dos ratos. Eles não podem mais morder seus arte lhos. Ratos e
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cobras deixem de existir! {Para o REO Não tenha dó do mendigo que lhe estende a
mão... Preste atenção na velha que vem na sua direção... Não aceite o copo de água
que ela oferece. Você não está com sede. {P(lra a velha imaginária} Olhe, dona, ele
não precisa ser saciado, ele não está com sede. Não atrapalhe seu caminho.
Desapareça. {Para o REO Passe a barreira... O pesado caminhão não vai esmagá-lo, é
uma miragem... Você pode passar, passe... É claro que não, as margaridas não
cantam, mesmo se estiverem enlouquecidas. Absorvo suas vozes; quanto a elas,
apago-as!... Não preste atenção ao murmúrio do riacho. Objetivamente, não é
escutado. É também um falso riacho, é uma falsa voz... Falsas vozes, calem-se. (Para
O REI) Ninguém mais o chama. Cheire, uma última vez, esta flor e jogue-a fora.
Esqueça seu perfume. Você não tem mais voz. A quem você falaria? Sim, é isso aí,
dê um passo, outro. Aqui está a passagem, não tema a vertigem. {O REI vai em
direção aos degraus do trono.) Mantenha-se ereto, você não precisa mais do seu
bastão, além do que você não mais o tem. Não se abaixe, principalmente, não caia.
Suba, suba. (O REI começa a subir os três ou quatro degraus do trono.) Mais alto,
mais alto ainda, suba, mais alto ainda, mais alto ainda, mais alto ainda. (O REI está
bem perto do trono) Vire-se para mim. Olhe-me. Olhe através de mim. Olhe este
espelho sem imagem, ' fique ereto... Dê-me suas pernas, a direita, a esquerda. Vi
'medIda que ela lhe dá essas ordens, o REI enrijece seus membros.) Dê-me um dedo,
dê-me dois dedos... três... quatro... cinco...os dez dedos. Entregue-me o braço direito,
o braço esquerdo, o peito, os dois ombros, o ventre. {O REI está imóvel, eruijecido
como uma estátua} É isso aí, percebe, você não tem mais voz, seu coração não
precisa mais bater, não vale mais a pena respirar. Era uma agitação bastante inútil,
não é? Assuma seu lugar.
Fecha-se a cortina
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