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I.

A ESTRUTURA ACUSATÓRIA E OS MODELOS DE PROCESSO PENAL

Sumário: 1. Os modelos de processo penal: acusatório, inquisitório e misto 1.1. O


modelo inquisitório: “juiz acusador” 1.2. O modelo acusatório: “juiz-árbitro” 1.3. O modelo
misto do CPP francês (1808): fase inquisitória/fase acusatória 2. A aproximação actual dos
modelos e o peso das características do modelo acusatório 3. O modelo acolhido no novo CPP:
estrutura basicamente acusatória, completada por um princípio da investigação,
tematicamente limitado 4. Garantias legais da estrutura acusatória 5. O modelo moçambicano
como um modelo misto.
Bibliografia recomendada: AA.VV.: European Criminal Procedures (Mireille Delmas-
Marthy/J. R. Spencer eds.), Cambridge University Press, 2002, disponível em
http://catdir.loc.gov/catdir/samples/cam041/2002073784.pdf; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito
Processual Penal (Lições coligidas por Maria João Antunes), Coimbra, 1988, pp. 35-53; A.
CASTANHEIRA NEVES: Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968; FREDERICO DA COSTA PINTO:
Direito Processual Penal, Lisboa, 2017/2018, pp. 18-23; GERMANO MARQUES DA SILVA: Direito
Penal Processual Português, Vol. I, Universidade Católica, Lisboa, 2017, pp. 65-72.

1. Os modelos de processo penal: acusatório, inquisitório e misto


1.1. O modelo inquisitório: “juiz acusador”

O modelo do processo inquisitório, que vigorou na generalidade das legislações


europeias continentais dos séculos XVII e XVIII, tem a sua origem no Tribunal do Santo
Ofício (séc. XIII), relacionando-se com a aplicação do Direito Canónico. Tem subjacente
o princípio de que a repressão criminal era de indispensável interesse público e
competia em exclusivo ao Estado1.
No seu modelo puro, competia simultaneamente ao juiz inquirir, acusar e
julgar, pertencendo-lhe o domínio discricionário do processo. É o modelo do “juiz
acusador”2. Esta “centralização de competências” tinha como consequência, por um
lado, a perca de imparcialidade do juiz; por outro lado, degradava o arguido a mero
objecto de investigação, com a mais limitada possibilidade de defesa3.

1
A. CASTANHEIRA NEVES: Sumários de Processo Criminal, p. 23.
2
FREDERICO DA COSTA PINTO: Direito Processual Penal, p. 19.
3
A. CASTANHEIRA NEVES: Sumários de Processo Criminal, p. 24. A forma de obter a confissão passava pela
utilização de métodos como a tortura. Havia também uma hierarquia de provas, sendo que a confissão
era a prova com maior valor. O modelo inquisitório era um processo que era, em regra, secreto, escrito
e não contraditório (significando isto que a forma de chegar à verdade não era através do confronto

1
1.2. O modelo acusatório: “juiz-árbitro”

O modelo acusatório nasce, e desenvolve-se em Inglaterra. É um modelo de


processo diferente, que resulta de uma reivindicação aristocrática que tem a sua
concretização na Magna Carta, uma imposição política para limitar o poder real face à
nobreza. O modelo da Magna Carta foi muito importante, porque foi pioneiro em
termos de concretização de algumas garantias processuais penais. Este modelo
acusatório pode ser qualificado como um modelo de “juiz-árbitro, porque o juiz apenas
é o “árbitro” de uma situação que lhe é apresentada.
Caracteriza-se assim pela separação entre a entidade que investiga e acusa e a
entidade que julga: o rei não podia simultaneamente acusar e julgar o caso, pois não
existe concentração de competências. Quem investiga e acusa não julga. Quem julga
não investiga, nem tem intervenção na acusação.
Este modelo vai dar origem à existência do júri, ao julgamento pelos pares. Isto
faz com que o juiz deixe de ser parte acusadora, para passar a ser o tal “juiz-árbitro”,
que decide uma disputa que lhe é apresentada. Isto significa que o processo tem, nas
suas origens, uma forte componente de processo de partes, uma estrutura próxima da
do Processo Civil, no qual não havia necessidade de procedimento criminal público,
valendo aí os princípios do dispositivo, do juiz passivo, da verdade formal, da auto-
responsabilidade probatória das partes e da presunção de inocência.
A ideia de uma justiça penal negociada tem aqui a sua origem. Por outro lado,
se há uma parte acusadora, ela tem de cumprir o ónus da prova. Aqui está implícita a
origem da presunção de inocência: o nobre é um homem livre, e por isso, é o
procurador da coroa que tem de provar a sua culpa.
No modelo acusatório, há uma maior amplitude da negociação entre as partes
(as partes têm mais disponibilidade para recompor o objecto do processo). O processo
é visto como a resolução de um conflito social. A ideia de negociação da culpa vem
desta matriz. Isto difere do processo inquisitório, em que há um modelo mais
autoritário.

entre os depoimentos dos diversos intervenientes processuais). A decisão final do processo no modelo
inquisitório podia ser uma decisão formal, de simples absolvição da instância (e não de absolvição plena
do réu, pois o processo podia ser reaberto). FREDERICO DA COSTA PINTO: Direito Processual Penal, p. 19.

2
Como o processo é visto entre uma parte acusadora e a parte que se defende,
há uma paridade entre as partes, onde não se procura a verdade a todo o custo. O juiz
é convencido acerca da verdade de uma parte ou da verdade de outra. Para este
efeito, há uma grande importância da capacidade da oralidade. É necessário também o
contraditório, para que o tribunal tenha uma certa margem de apreciação da prova.

1.3. O modelo misto do CPP francês (1808): fase inquisitória/fase acusatória

Há ainda que ter em conta um terceiro modelo histórico, que é o modelo do


CPP francês, que irá marcar a evolução do Direito Processual Penal nos séculos XIX e
XX. Este modelo surge com o código napoleónico de 1808.
Este Código assumiu que o Processo Penal deveria ter duas fases: uma primeira
fase de modelo inquisitório, que era uma fase de investigação e de procura da verdade
levada a cabo por um juiz de instrução criminal; e uma segunda fase de julgamento, de
modelo acusatório.
A primeira fase era secreta, não contraditória e escrita. Quando o processo
ultrapassava esta fase, passava para uma segunda de audiência pública, de oralidade e
em que se admitia o contraditório.
A função da primeira fase era apurar os factos e a segunda fase tinha a função
de julgar os factos e aplicar o Direito a esses factos. As garantias do acusatório não têm
de vigorar para todo o processo, mas apenas para o momento em que se julga o caso.
Este modelo napoleónico acabou por ser acolhido pela generalidade dos países
continentais durante o séc. XIX.

2. A aproximação actual dos modelos e o peso das características do modelo


acusatório

Os modelos inquisitórios e acusatórios não vigoram actualmente, em estado


puro, em nenhum dos países da Europa Ocidental, não sendo hoje possível classificar
um processo como totalmente acusatório ou totalmente inquisitório4.

4
Cfr. AA.VV.: European Criminal Procedures (Mireille Delmas-Marthy/J. R. Spencer eds.), Cambridge
University Press, 2002, disponível em http://catdir.loc.gov/catdir/samples/cam041/2002073784.pdf;

3
Significativo é, a este propósito, a evolução havida no Reino Unido, onde a
polícia se substituiu à acusação puramente privada, tendo essa evolução culminado
com a criação do Crown Prosecution Service, em 1985, cujos funcionários agem em
nome da Coroa, constituindo, assim, uma espécie de Ministério Público e aproximando
o sistema da tradição inquisitória5.
Mas a evolução fez-se dos dois lados da Mancha, tendo-se o Continente
aproximado da tradição acusatória, pelo abandono progressivo do juiz de investigação,
e pela independência crescente do Ministério Público em relação ao executivo6.
Os próprios Estados Unidos da América também não ficaram imunes a este
jogo de influências mútuas dos dois modelos, podendo hoje afirmar-se que a clivagem
entre processo acusatório e acusatório se traduz numa “velha querela”, já
ultrapassada7.
Este modelo misto, trouxe a legitimação da ideia de que o processo não tem de
ser todo de um tipo, mas sim uma variação e gradação de características que podem
ser mais ou menos fortes. Por exemplo, os modelos de processo penal português,
francês, alemão, inglês e norte-americano correspondem a modelos acusatórios, mas
com características diferentes. O Processo Penal anglo-americano é um modelo com
mais características acusatórias, enquanto os modelos da Europa continental, tendo
também a componente acusatória, seguem o modelo misto do código francês.

3. O modelo acolhido no novo CPP: um sistema estruturalmente acusatório,


integrado por um princípio de investigação judicial, tematicamente limitado

O código anterior, de 1929, de inspiração marcadamente fascista, consagrava


uma “estrutura inquisitória mitigada”. Ao longo da sua vigência, tinha sido objecto
apenas de “algumas operações cosméticas” (como se diz no preâmbulo do novo

5
ANABELA MIRANDA RODRIGUES: “As relações entre o Ministério Público e o Juiz de Instrução Criminal, ou a
matriz de um processo penal europeu, in Que futuro para o direito processual penal? Simpósio em
homenagem a Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2009, p. 716.
6
Cf. MIREILLE DELMAS-MARTHY: “A caminho de um modelo europeu de processo penal”, RPCC, ano 9, Abril-
Junho 1999, p. 232
7
ANABELA MIRANDA RODRIGUES: “As relações entre o Ministério Público e o Juiz de Instrução Criminal”, p.
715. Cfr. JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES: “A Justiça dos dois lados do Atlântico - II. O processo penal em
Portugal e nos Estados Unidos. Dois sistemas jurídicos em busca da justiça”, Fundação Luso Americana,
Outubro 1998, p. 16.

4
Código), algumas resultantes da intervenção do Concelho Constitucional 8, e por isso
não se ajustava a um conjunto de princípios consagrados na Constituição e na Carta
Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (CADHP). Impunha-se a aprovação de um
novo código (…).
O modelo agora acolhido no novo CPP moçambicano, fortemente “inspirado”
no modelo português no CPP de 1987, não é um modelo acusatório, não é um
processo de partes9. As regras do Processo Penal são, em regra, imperativas. Temos
verdadeiramente um modelo misto de processo que tem a sua influência no CPP
francês de 1808, através do CPP português de 1987.
O Processo Penal moçambicano tem uma estrutura basicamente acusatória.
Significa que há uma separação entre quem acusa e quem julga (neste sentido, não
vigora a figura do juiz-acusador). Isto é, para o Processo Penal, uma garantia de
imparcialidade. Porém, o acusatório entre nós não é um acusatório pleno. O núcleo
essencial é de natureza acusatória, mas não acolhe todas as características deste
modelo.
Entende Figueiredo Dias, face ao CPP português de 1987, que agora inspira o
nosso novo CPP, que este modelo, é basicamente acusatório, mas depois completado
por um princípio de investigação: (1) o tribunal de julgamento não é um mero árbitro
de um litígio entre as partes, tendo poderes de investigação; (2) o tribunal não está
numa posição passiva a assistir a um duelo entre a acusação e a defesa, tendo o
tribunal competências próprias para descobrir a verdade material dentro daquilo que é
apresentado pela acusação. Por exemplo, o juiz pode livremente tomar a iniciativa de
chamar um perito para averiguar uma questão, não estando dependente das partes
para o fazer. Isto significa que o CPP não acolhe a figura do “juiz-árbitro”.
Contudo, os poderes de investigação do tribunal são tematicamente limitados.
Isto quer dizer que o tribunal de julgamento só pode investigar o caso, dentro daquilo
que é apresentado pelo despacho de acusação (ou de pronuncia).

8
Veja-se, sobretudo, os Acórdãos nº 8/CC/2007, de 27 de Dezembro; nº 01/CC/2011, de 01 de Abril; nº
04/CC/2013, de 17 de Setembro; e nº 10/CC/2014, de 24 de Setembro.
9
FREDERICO DA COSTA PINTO: Direito Processual Penal, pp. 20-21.

5
4. Garantias legais da estrutura acusatória

Tendo o nosso processo uma estrutura acusatória (apesar de não ser plena),
porque é que se pode dizer que o novo Código de Processo Penal concretiza uma
estrutura acusatória
Fá-lo de três formas10: (1) separando as fases essenciais do processo; (2)
garantindo que o juiz do julgamento não teve uma participação decisiva no inquérito
anterior; (3) através do princípio da vinculação temática.
Vejamos estes aspectos.

4.1. Separação de fases: instrução/julgamento (art.ºs 307 e 357)

Trata-se de um regime que se traduz em criar duas fases processuais com


titularidade diferente. Basicamente, temos a instrução (art.º 307), e o julgamento
(art.º 357); e cada uma dessas fases tem um titular.
O titular da instrução é o Ministério Público (art.º 308); o do julgamento é o
Tribunal. Na instrução, o Ministério Público é auxiliado pelos órgãos dos serviços de
investigação criminal (SERNIC), e existe intervenção (necessária) do juiz em alguns
actos processuais (art.º 313 e ss). Ainda assim, quem toma a decisão final do processo
(arquivamento, art.º 324, ou acusação, art.º 330) é o Ministério Público, porque é ele o
titular desta fase processual.
O Código concretiza a estrutura acusatória de uma forma até incompleta em
fases processuais e atribui a sua titularidade a diferentes titulares. Por isso, podemos
dizer que a estrutura do modelo é acusatória: quem julga, não acusa e quem acusa,
não julga.
A estrutura acusatória de acordo com a qual o juiz do julgamento não pode
intervir em fases anteriores, não se aplica, em todos os casos, ao Ministério Público.
Nada obsta a que o procurador do MP da instrução possa ter intervenção no
julgamento, sozinho ou conjuntamente com o procurador do julgamento. Isto não
viola a estrutura acusatória porque a forma de a concretizar é através da separação de

10
FREDERICO DA COSTA PINTO: Direito Processual Penal, pp. 21-22.

6
fases atribuída a diferentes titulares. Apesar de o Ministério Público da instrução
poder participar no Julgamento, não é ele o seu titular.

4.2. Regime de impedimentos (art.º 44)

Trata-se de um regime de impedimentos que faz com que se garanta de forma


substancial que o juiz do julgamento não teve uma participação decisiva na instrução
anterior11. Periodicamente, existe um movimento de magistrados, através do qual
estes são colocados em diferentes províncias e funções. Perante isto, pode dar-se o
caso de que quando esteja no Tribunal de Julgamento, o juiz receba um processo em
que teve intervenção na fase anterior noutro tribunal. O que está subjacente a este
regime é que se o Juiz teve uma participação relevante em fase anterior do processo,
já não o pode julgar: fica legalmente impedido. Nestes casos, o juiz deve declarar-se
legalmente impedido e o processo é distribuído novamente (cfr. art.º 45).
Esta é uma garantia intraprocessual da imparcialidade do julgador. Se isto não
acontecesse, o juiz de instrução criminal podia levar convicções já formadas em fases
anteriores para a fase de julgamento. Exemplo: para a prisão preventiva é preciso
“fortes indícios” (cfr. art.º 243). Se o juiz de instrução decretou a prisão preventiva,
então já teve uma convicção de indícios fortes da prática de um crime doloso que irá
levar para o julgamento. Ou seja, se o fosse julgar, já teria esta convicção formada.

4.3. Princípio da vinculação temática (art.ºs 330, 404, e alínea b) do art.º 418/1)

Uma outra garantia, é o princípio da vinculação temática. Significa que os factos


essenciais dos quais pode resultar a responsabilidade do arguido, são os que constam
da acusação (ou pronúncia), que não podem ser substancialmente alterados no
julgamento.
Acontece desta forma porque a estrutura acusatória tem como objectivo
garantir a imparcialidade do julgador, evitando que este forme convicções associadas à

11
“Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão, relativos a uma decisão que
tiver sido proferida por si ou por algum seu parente ou afim em linha recta ou até ao 3.º grau da linha
colateral ou em que qualquer deles tiver participado”.

7
prática do facto. Para o tribunal ser verdadeiramente imparcial não pode investigar e
julgar ao mesmo tempo. Mas isto não basta!
Não basta que o julgador não tenha a iniciativa da investigação, e que a sua
actividade judicativa esteja dependente da dedução de uma acusação por uma
entidade distinta. É preciso mais…
Num modelo de estrutura acusatória a acusação do MP não é um mero
pressuposto, ou factor desencadeante do julgamento, porque isso, não impediria que
depois no julgamento, o juiz investigasse, inquisitoriamente, todos os factos que
viessem a propósito daquela pessoa.
No nosso sistema, o tribunal pode investigar e apreciar, por isso a vinculação
temática é um limite. O que é que isto significa?
Num modelo de estrutura acusatória a acusação tem um papel importante, não
é um mero factor desencadeante do julgamento, ela fornece a baliza temática do
julgamento, e delimita os poderes de cognição do tribunal.
Numa palavra, a acusação fixa e define o objecto do processo, o thema
probandum ou thema decidendum, o juiz não pode julgar mais do que o objecto
proposto pela acusação.
Significa que o tribunal só pode investigar dentro da acusação, isto é, dentro
daquilo que lhe foi apresentado pela acusação. Não pode investigar e decidir para
além disto. Fazê-lo, significaria ir para além da acusação, o que resultaria na nulidade
da sentença. Exemplo: Se o Ministério Público coloca na acusação os factos X e Y, não
se vai poder decidir no julgamento sobre os factos Z e K.
Isto porque, “É nula a sentença (...) que condenar por factos diversos dos descritos
na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos
nos artigos 403 e 404” (alínea b) do art.º 418/1).
Por isso se diz que, num modelo de estrutura acusatória o problema do objecto
do processo tem absoluta centralidade. Porque é uma nota fundante, ou definidora do
modelo.
Veja-se, o n.º 1 do art.º 331: a acusação faz, sob pena de nulidade, uma
“narração discriminada e precisa dos factos que integram a infracção ou infracções,
com inclusão dos que fundamentam a imputação subjectiva, a título de dolo ou de
negligência, e, se possível, o lugar, tempo e motivação da sua prática, o grau de

8
participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a
determinação da gravidade dos factos, da culpa do agente e da sanção que lhe deverá
ser aplicada” (alínea c) do 331/1).
Mesmo assim, a dinâmica das provas pode conduzir a que essa narração, feita
na acusação, possam surgir outros factos, factos instrumentais, factos probatórios mas
ainda relevantes para a decisão da causa. É natural que no julgamento venham a lume
elementos factuais que não estão descritos no despacho da acusação. E se se verificar,
no decurso do julgamento, que há factos novos?
Como é que isto se articula? Veremos esta questão quando tratarmos noutra
fase do programa, o problema do objecto do processo, que tem, como disse já,
absoluta centralidade neste modelo acusatório.

5. O modelo moçambicano como um modelo misto

Chegamos então à conclusão de que o modelo de Processo Penal moçambicano


é um modelo misto, isto é, não é inquisitório, nem acusatório12. Tem características de
ambos os modelos. Por várias razões:
a. Inquisitório/Acusatório: O Processo Penal é misto na linha histórica daquilo
que resultou do CPP. Existe uma fase, da instrução, em que predominam as fases do
inquisitório: fase escrita, organizada com um conjunto de dossiers que vão
incorporando as diligências e as provas, secreta e não contraditória já que o processo
não tem de andar em diálogo com a defesa.
A fase da instrução tem as características do inquisitório, mas há certos actos
que podem/devem ser objecto de contraditório. Por exemplo, se durante a instrução é
requerida a prisão preventiva ao arguido, o Código cria um regime de contraditório
para esse acto processual: o arguido tem de ser ouvido antes, tem de ouvir os factos, o
Ministério Público requer a medida, mas quem a aplica é o juiz de instrução, e dessa
decisão cabe recurso (cfr. art.º 253).
Depois, existe uma fase de julgamento em que predominam as características
do acusatório.

12
FREDERICO DA COSTA PINTO: Direito Processual Penal, pp. 22-23.

9
b. Princípio da investigação do Tribunal de Julgamento (art.º 385): O Tribunal de
julgamento tem poderes autónomos de investigação ao abrigo do art.º 385.
Se o juiz entende, por exemplo, interromper o discurso de uma testemunha e
fazer-lhe perguntas, pode fazê-lo; se quiser ouvir novamente uma testemunha, pode
fazê-lo. Não é necessário o impulso da acusação ou da defesa. O juiz tem poderes
autónomos não condicionados pela promoção dos outros sujeitos processuais. A
investigação não se esgota naquilo que vem da instrução, pode ser completada para
esclarecimento do tribunal com os poderes autónomos do juiz.
c. Transmissibilidade plena da prova não penal (art.º 400/2): O nosso processo é
um processo em que os autos transitam totalmente da fase da instrução para a fase do
julgamento.
Quando se recolhe prova na instrução, a prova pode ser arrumada em duas
categorias: (1) a prova pessoal (testemunhas, depoimentos); e (2) a prova material
(objectos que se apreendam).
Os autos passam integralmente da instrução para o julgamento, toda a prova
que está nos autos passa também para o julgamento, sendo que a prova material não
tem de ser repetida, apenas tem de ser examinada.
Já a prova pessoal, em regra, serve só para sustentar a apreciação do titular da
instrução (para decidir se acusa ou se arquiva) e, por isso, em regra, a prova pessoal
tem de ser repetida em julgamento. Isto é uma garantia do modelo acusatório, pois o
juiz tem de formar a sua própria convicção.
Em todo o caso, subsiste aqui um problema, que será melhor analisado no
próximo capítulo do nosso programa (Tramitação).
Problema que aqui se coloca com este novo Código, tem a ver com o princípio
da imediação, estreitamente ligado ao princípio da oralidade, e que deverá
caracterizar o processo na fase do julgamento.
O que é que diz este princípio?
Este princípio “determina que o juiz deverá tomar contacto imediato com os
elementos de prova, ou seja através de uma percepção directa e pessoal” 13 ,
permitindo ao tribunal a avaliação da credibilidade dos depoimentos e das declarações
bem como ter acesso à personalidade do arguido. Por outras palavras, o juiz deve
13
Eduardo Correia: Processo Criminal, 1965, pp. 87 e ss

10
formar a sua convicção, e decidir com base na prova que é produzida diante dele, com
base na percepção directa que ele tem dessa prova.
À luz deste princípio, exigir-se-ia um contacto directo de quem decide, com os
meios de prova. A prova deverá, por isso, ser examinada ou produzida perante o
tribunal e em audiência de julgamento, o que exige o contacto directo entre o tribunal
e os meios de prova, o que quer dizer que este princípio está ao serviço da estrutura
acusatória, já que o espaço de julgamento será o espaço para apresentar e examinar as
provas. Primeiro, porque é assim que o tribunal pode formar a sua própria convicção.
Segundo, porque o julgamento é o espaço para participação dos sujeitos processuais. E
terceiro, porque é o momento em que se promove o contraditório14.
Por isso, estabelece o art.º 355.º/1 do CPP português: “Não valem em
julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal,
quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”.
O que é que diz a norma do novo CPP? Exactamente o contrário: “Valem em
julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal,
quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência” (art.º
400/1)! Que depois é densificado nos artigos 401 e 402 do CPP.
(…)
Em conferência recente 15 , Paulo Pinto de Albuquerque (…), sustentou
veementemente, que “os artigos 401 e 402 violam de maneira frontal o princípio da
imediação […], porque permitem a leitura de depoimentos do arguido, e das
testemunhas, […] do arguido que estava em fase anterior, [mas] até diante da polícia,
imaginem, até diante do MP, até diante do juiz de instrução (mas este ao menos tem
uma presunção de que é independente) […]. Viola claramente o princípio da
imediação”.
Porque sabemos que a polícia tende a procurar apenas uma das faces da
verdade, que tem sempre duas faces, pelo menos em Processo Penal. A polícia tem,

14
Por isso, estabelece o art.º 355.º do CPP português “(Proibição de valoração de provas) 1 - Não valem
em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas
que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. 2 - Ressalvam-se do disposto no número
anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência
sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes”.
15
Jornadas em Direito Penal e Direito Processual Penal, organizadas pelo Conselho Provincial de Sofala
da Ordem dos Advogados de Moçambique, em parceria com o Departamento de Direito desta
faculdade, que decorreu de 26 a 28 de Abril deste ano.

11
por (de)formação a tendência de tentar buscar a face que é desfavorável ao arguido,
esquecendo a outra. Isto por cultura, dos órgãos de polícia criminal, ou por falta de
(in)formação, ou até por má-fé. Independentemente da razão que possa estar
subjacente, o que interessa é que “as garantias têm de estar lá. E não estão”.
E, portanto, estes artigos 401 e 402, para além de violarem o princípio da
imediação, que decorre da Constituição (do princípio do processo justo, e do princípio
das garantias da defesa), viola as obrigações internacionais contraídas pelo Estado
moçambicano, ao violar o disposto no art.º 7.º da CADHP.
Por caminhos diferentes, a relevância do princípio da imediação tem já, entre
nós, uma jurisprudência já suficientemente firmada. Veja-se o Acórdão do Tribunal
Supremo, de 22 de Dezembro de 2006, no Processo n.º 16/2006-C em relação ao
princípio da imediação da prova. Neste acórdão, em que o Tribunal se pronunciou,
oficiosamente, sobre o problema, retomou uma posição já anteriormente afirmada (v.
Acórdãos de 4 de Setembro de 1992 – Processo n.º 12/91-2ª, e de 17 de Abril de 1998
– Processo n.º 38/95–C):
“só a prova produzida em julgamento – ainda que logicamente relacionada e
conjugada com os elementos recolhidos durante a instrução – pode constituir, nos
termos legais, fundamento da decisão condenatória (...) A prova indiciária, resultante
as mais das vezes da investigação oficiosa e obtida por métodos inquisitórios, tem de
passar pelo crivo dos debates em audiência para se afirmar como verdadeira prova. Se
ela não resiste à publicidade e fiscalização judicial nem à contraditoriedade da
discussão, nenhum efeito de carácter substantivo se lhe pode reconhecer...”16.

16
“O que está aqui em causa, verdadeiramente, é a afirmação do princípio da imediação – um dos mais
elementares princípios sobre a forma de produção de prova em processo penal –, através do qual se
alcança a relação de proximidade que deve existir entre os participantes no processo e o tribunal, de
modo a que este possa obter uma percepção própria dos elementos que servirão de base à decisão.
Por isso se deve, em nosso entendimento, considerar como omissão grave de diligências essenciais para
o descobrimento da verdade a falta de notificação dos declarantes e a sua consequente ausência do
julgamento, impedindo a respectiva audição pelo colectivo de juízes.
Essa omissão constitui nulidade absoluta do processo, tal como estabelecido pelo nº 1 do artigo
98º do Código de Processo Penal. Nulidade que só poderá ser sanada com a repetição do julgamento,
não só para produção integral da prova, mas também para permitir a avaliação da credibilidade das
declarações prestadas pelos participantes processuais, em ordem à formação da convicção do tribunal
sobre a matéria de facto.
Acresce que, como se pode ver na acta de fls. 111, não foi dada oportunidade ao réu de, pela
última vez, se pronunciar quanto aos factos que lhe são imputados, ouvindo-o em tudo o que dissesse a
bem da sua defesa (artigo 468º do Código de Processo Penal). Também aqui se desrespeitou uma
formalidade essencial do processo, com repercussão directa na justa apreciação da causa”.

12
Tendo decidido, “[…] anular o julgamento realizado em primeira instância e a
sentença subsequente, ordenando a baixa dos autos para que se proceda a novo
julgamento, no respeito das normas legais aplicáveis” 17.

d. Conhecimento integral dos autos: O facto de os autos transitarem na integra


para a fase do julgamento oferece ao juiz a possibilidade e ter conhecimento sobre
tudo o que se passou na fase da instrução. Isto é uma vantagem.
Em primeiro lugar porque, sendo a fase da instrução obrigatória, o julgamento
nunca corresponde ao início do processo, corresponde ao início do debate da intenção
acusatória.
Em segundo lugar, isto facilita a descoberta da verdade material (o juiz pode,
por exemplo, perceber se uma testemunha está a mentir na fase de julgamento com
base numa informação da fase da instrução).
Por último, o acesso integral aos autos dá ao juiz uma melhor percepção da
qualidade da acusação (isto é congruente com o facto de o juiz não ter, no nosso
processo, um papel de mero juiz-árbitro). Porém, há quem discorde e entenda que a
possibilidade de o juiz aceder integralmente aos autos produzidos na fase de instrução
é algo que viola, ou pode violar a imparcialidade do processo.
Por fim,

e. Segredo de justiça, só até ao despacho de pronúncia (encerramento do debate


preliminar); ou, caso não haja lugar a audiência preliminar (que é facultativa), até ao
despacho (do art.º 358) que designa dia para a audiência de julgamento; sendo o
julgamento obrigatoriamente público (art.º 96)18.

Por estes cinco motivos o nosso modelo é misto, mas com características que o
afastam de um modelo acusatório puro.

17
Disponível em http://www.saflii.org/mz/cases/MZTS/2006/10.html (acesso em 20.09.2021),
18
Em Portugal, a partir de 2007, o segredo de justiça passou a ser facultativo para a fase de inquérito
(artigo 86º CPP), que corresponde à nossa fase da instrução.

13

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