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Carmen Junqueira, Heloisa Pagliaro

O SABER KAMAIURÁ SOBRE A SAÚDE DO CORPO

DOSSIÊ
Carmen Junqueira*
Heloisa Pagliaro**

Os Kamaiurá são um povo de língua Tupi que, juntamente com povos das famílias linguísticas
Aruak, Karib, Tupi e da língua isolada Trumai, habita o Alto Xingu (MT). A homogeneidade
cultural entre esses povos é evidenciada em múltiplos aspectos, como forma e disposição das
aldeias, tipo de habitação, hábitos alimentares, reclusão pubertária, pinturas e adornos corpo-
rais, uso do uluri pelas mulheres, festas e cerimônias, como o Kwaryp. Esse padrão cultural
comum resulta da longa ocupação de uma mesma área geográfica e da frequência de casamen-
tos interétnicos. O presente trabalho mostra como o saber sobre a saúde do corpo é construído
a partir de elementos que compõem a visão do mundo Kamaiurá, em que observação, experi-
mentação e mitologia se conjugam. Descreve os cuidados dispensados ao corpo e as regras
culturais e espirituais relativos às diferentes etapas do ciclo vital.
PALAVRAS-CHAVE: Kamaiurá, saúde indígena, saúde reprodutiva de povos indígenas.

Os Kamaiurá são um povo de língua Tupi por meio da escarificação, a ingestão de remédios
que, juntamente com outros nove povos das famí- em forma de chá ou infusão de ervas, defumações,
lias linguísticas Aruak, Karib, Tupi e da língua iso- resguardo e recolhimento associados à dieta ali-
lada Trumai, habita a região dos formadores do rio mentar em determinados períodos da vida. As
Xingu, ao norte do estado do Mato Grosso (Brasil ações preventivas iniciam-se na infância e prosse-
Central). A grande homogeneidade cultural entre guem por toda a vida e, se bem observadas, garan-
esses povos é evidenciada em múltiplos aspectos, tirão uma existência tranquila até a velhice. São
como forma e disposição das aldeias, tipo de habi- práticas transmitidas através das gerações, consa-

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tação, hábitos alimentares, reclusão pubertária, gradas pela tradição e que se apoiam nas qualida-
pinturas e adornos corporais, uso do uluri pelas des curativas de plantas, em revelações e interpre-
mulheres, festas e cerimônias, como o Kwaryp. Esse tações xamânicas e no conhecimento registrado nas
padrão cultural comum teria resultado da longa narrativas orais. Para entender o complexo con-
ocupação de uma mesma área geográfica e da junto de concepções que as envolve, é preciso se-
frequência de casamentos interétnicos. guir até o universo imaginário que lhes dá funda-
Os Kamaiurá têm uma preocupação cons- mento, em que são muitos os fenômenos que se
tante com a saúde e desenvolveram uma série de cruzam, sendo difícil estabelecer domínios separa-
procedimentos voltados para a prevenção e a cura dos, limites claramente demarcados para manifesta-
de doenças. São muitas as práticas adotadas, e as ções da prática social, de conhecimentos técnicos,
mais usadas são o vomitório, a sangria realizada de saberes espirituais e de procedimentos mágicos.
* Doutora em Antropologia. Professora titular e emérita do De um modo ou de outro, todos concorrem para ex-
Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências plicar, justificar ou legitimar regras do convívio soci-
Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Rua Monte Alegre, 984 - Perdizes. Cep: 05014-001 - Sao al, desempenhos rituais e intervenções práticas.
Paulo, SP - Brasil. carmen.junqueira@terra.com.br
** Cientista social. Doutora em Saúde Pública pela Uni-
O objetivo deste texto é mostrar como o sa-
versidade de São Paulo. pagliaro@unifesp.br ber sobre a saúde é construído a partir de elemen-

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tos que compõem a visão de mundo kamaiurá, em bastante evidentes, como, por exemplo: a expecta-
que observação, experimentação e mitologia se con- tiva generalizada de que todas as pessoas devem
jugam. Assim, por exemplo, conhecimentos sobre se casar e constituir família; o casamento das mu-
a eficácia de plantas na cura de doenças, aquilo lheres logo após a primeira menstruação; o perío-
que C. Lévi-Strauss denominou de ciência do con- do de luto e abstinência sexual que se segue à morte
creto, coexistem ao lado de terapias xamânicas e do cônjuge; restrições sexuais impostas ao pajé
de narrativas orais que registram a cosmogonia tra- tanto durante sua iniciação como por ocasião de
dicional e também paradigmas comportamentais. rituais de cura; o uso de ervas capazes de evitar a
Todos eles podem ser evocados para conduzir uma concepção ou interrompê-la; os diversos cuidados
cura ou definir os cuidados com a saúde. Essas que cercam a gravidez, a reclusão pubertária, os
três fontes de saber são integradas: várias plantas nascimentos e a doença. Estávamos cientes de que
foram dotadas do poder de cura por agentes mito- informações relevantes e inesperadas poderiam
lógicos; os espíritos observam o comportamento começar a aparecer depois de períodos prolonga-
humano, punem transgressões e podem ajudar a dos de pesquisa, quando o observador passa a ter
curar; a observação é um exercício cotidiano na uma visão mais completa daquilo que Evans-
aldeia, que comanda a maior parte dos modos de Pritchard (1978) sugeriu ser a apreensão da gramá-
aprender. E, finalmente, a experimentação é uma tica mental do povo, isto é, o acesso a ideias-chave
clara explicitação da curiosidade intelectual do raciocínio do povo estudado. Para apreendê-las,
kamaiurá, que se traduz no desejo de conhecer. é necessário dirigir a atenção aos múltiplos aspec-
O modo de pensar kamaiurá é claramente tos que cercam os acontecimentos da vida na al-
racional se conhecermos os fundamentos que o deia, para, aos poucos, compor o mosaico organiza-
sustentam. Maturana enfatiza com bastante pro- do segundo uma lógica a ser também desvendada.
priedade que “todo argumento sem erro lógico é Cada informação é uma nova peça colocada na cons-
obviamente racional para aquele que aceita as pre- trução do compreender que subjaz a organização
missas fundamentais em que ele se baseia” (2005, das ideias e do pensar. Nesse processo, não se pode
p.18). E quais seriam as premissas básicas do pen- trabalhar com definições prematuras, mas seguir
samento kamaiurá? Pensamos ter detectado algu- pacientemente os, às vezes, intrincados processos
mas delas: 1) a vida deve se prolongar do nasci- mentais elaborados pelos intelectuais nativos.
mento à velhice. Para que isso se concretize, é pre- Com isso em mente, retornamos aos princi-
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ciso atenção às regras alimentares e aos rituais, le- pais estudos publicados sobre os Kamaiurá1 e, na
gados pelas gerações passadas; 2) são necessários impossibilidade de passar um único período pro-
cuidados básicos com o corpo, desde a vida longado com eles, realizamos seis viagens à aldeia
intrauterina, pois, da concepção até os 3 ou 4 anos de Ipavu (agosto e setembro de 2003, agosto de
de idade, a saúde do indivíduo é diretamente afe- 2004, julho de 2005, 2006 e 2007), quando coleta-
tada pelo tipo de alimentação que recebe e pela mos dados necessários à análise das questões cen-
alimentação de seus pais; 3) a doença é sempre trais do nosso estudo, aqui apresentadas. Fizemos
fruto de uma ação externa ao corpo, sendo impor- uso da observação participante, com foco dirigido
tante não descuidar das práticas preventivas; 4) a principalmente às questões relativas à saúde, rea-
morte tem apenas duas origens: feitiço e, em casos lizamos entrevistas com pajés e especialistas em
pontuais, atuação de espíritos. ervas curativas, agentes de saúde e outros mem-
Quando iniciamos o estudo sobre os fato- bros da comunidade entre homens e mulheres mais
res culturais que teriam possibilidade de afetar direta velhos. Coletamos mitos e outras narrativas sobre
ou indiretamente os cuidados com a saúde, focali- a constituição do universo imaginário.
zamos regras, prescrições e tabus que ordenavam 1
Galvão (1979), Oberg (1953), Agostinho (1974), Villas
a conduta costumeira e que eram, de certa forma, Boas (2000) e Samain (1980).

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Percebemos, em pouco tempo, que a reali- ao neto, os narradores advertem: “Ele era filho de
dade vivida pelos kamaiurá era mais ampla do que Mavutsinin, mas nós dizemos que era neto”.
a simples percepção da aldeia, das roças, matas e Mavutsinin neto é o criador da humanida-
águas e se estendia a dimensões que iam além do de, obra também realizada em Morená. “Ele reti-
visível. Cada espaço do cenário guardava uma his- rou troncos de árvore, enfeitou-os e, com a ajuda
tória atrás de si que revelava a origem, o sentido de duas cutias que cantavam e tocavam maracás,
das coisas e também nomeava os seres que com- rezou, transformando os troncos em gente”. Daí
partilhavam a existência com os humanos. No em diante, os diversos povos do alto Xingu cria-
universo primordial, diziam os narradores, vivi- ram suas aldeias nas cercanias de Morená. Rece-
am as aves, os peixes, os animais da mata, os espí- beram do criador muitos conhecimentos e, através
ritos e um único ser, com a forma de homem, cha- dos mama’e (espíritos), alguns deles se tornaram
mado Mavutsinin. Os espíritos (mama’e) eram em pajés, aptos a curar doenças.
grande número, pairavam sobre todos os recantos. Dentre os muitos mama’e existentes,2 alguns
A noção de espírito não é de fácil apreensão causam doenças em pessoas que transgridem die-
e se aproxima da ideia de potência, de força que tas alimentares ou normas rituais, enquanto ou-
atua no mundo visível e provoca acontecimentos. tros o fazem de modo aleatório, em especial quan-
É um ser que atua no âmbito do seu domínio, que do se deparam com pessoas fragilizadas, como as
tanto pode ser uma espécie animal, vegetal ou ob- que se acham em estágios liminares da existência
jeto cerimonial, sendo referido como seu dono ou (puberdade, viuvez, resguardo etc). A vítima tanto
protetor. Caso se peça ao Kamaiurá que faça uma pode ficar doente, como ter sua alma capturada, o
representação gráfica do espírito, ela será confor- que pode levá-la a sofrer transtornos mentais ou
me o aspecto físico do animal, do vegetal ou objeto mesmo ser levada à morte. Como já mencionamos,
a que esteja vinculado: uma espécie de peixe, de a morte deve ocorrer apenas nas idades avançadas
planta, de máscara ou outro artefato. Nas narrati- e, se vier antes, busca-se a causa, pois não há mor-
vas mitológicas, os espíritos aparecem tanto com te indeterminada. Nas primeiras semanas após o
essa imagem como na forma humana. Esclarecer nascimento, ela pode ser fruto do descuido dos
tal ambivalência não faz parte da preocupação dos pais que não observaram as regras alimentares; nos
pensadores kamaiurá, mas apenas reafirmar o po- demais períodos da vida, pode ser causada pela
der de que são possuidores. ação intencional dos espíritos ou pelo feitiço (moã).3

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Esclarecida a questão da aparência dos es- Doenças causadas por espíritos podem ser
píritos, é possível compreender melhor os aconte- identificadas e, na maioria dos casos, curadas por
cimentos que ocorreram no começo dos tempos, um pajé competente, exceto quando são fruto de
no que é hoje a região de Morená, na confluência uma transgressão ritual muito grave e cuja puni-
dos rios Ronuro, Batovi e Culuene, morada des- ção lançada pelo espírito é a morte do transgressor.
ses seres primordiais que, assim como Mavutsinin, Outra limitação do pajé é em relação ao feitiço feito
existiram desde sempre, sem nunca terem sido com o propósito de matar e que não pode ser re-
criados. Foi nesse local que certo dia Mavutsinin vertido. Nesses casos, a única função do pajé é,
viu uma concha na beira da água e com ela se ca- em meio a muitas operações, identificar o feiticei-
sou. Da união nasceu uma criança, tendo ro. Um pajé suficientemente poderoso pode matar
Mavutsinin perguntado: é homem ou mulher? É 2
Etienne Samain identificou 32 mama’e e as respectivas
homem, respondeu a concha. Então levo comigo. doenças que causam, mas provavelmente há inúmeros
outros, uma vez que pajés experientes afirmam que exis-
A concha, chorando, fechou-se e voltou para as tem mais mama’e do que gente (1980, p.167-172).
3
águas. O novo ser gerado pelos dois recebeu o Os tipos de morte que não se enquadram nessa explica-
ção são as mortes causadas por embates armados (fre-
mesmo nome do pai. Mas, como na tradição quentes no passado, mas hoje praticamente
inexistentes), as brigas que resultem em óbito e a exe-
kamaiurá é o nome do avô que deve ser passado cução de feiticeiros pela comunidade.

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o feiticeiro por meio de operações mágicas realiza- do. Isso fica evidente quando a cura envolve
das com algum fragmento do corpo da vítima. Se escarificação e aplicação do sumo de raiz ralada,
isso não ocorrer, o feiticeiro pode vir a ser sacrifi- preparada na frente do paciente tão logo o sangue
cado por membros da comunidade.4 A crença na comece a fluir. O raizeiro, além de manipular a
existência do feitiço é tão arraigada que, mesmo no raiz longe do olhar dos outros, procura evitar que
caso de morte causada por acidente, advém a acu- a planta seja identificada, guardando consigo as
sação de feitiçaria. Os Kamaiurá não aceitam a ca- partes descartadas. O pagamento pelo serviço en-
sualidade como fator que explique a cessação volve colares ou valores equivalentes, de acordo
da vida. É imperiosa, em todas as circunstâncias, com as relações de parentesco entre as partes ou
a determinação dos fatores que causaram a morte, as condições materiais da família do enfermo.
sejam eles espíritos ou feiticeiros. Os espíritos atu- Em outras ocasiões, quando as providênci-
am para punir transgressões, e os feiticeiros para as domésticas não surtem efeito, a família do en-
eliminar adversários criados em meio a disputas fermo procura o agente de saúde indígena da pró-
políticas e intrigas familiares. pria aldeia, cujos serviços são gratuitos. As de-
Ao primeiro sinal de que algo perturba o mandas mais frequentes envolvem casos de
funcionamento regular do organismo, recorre-se aos diarreia, gripe, escabiose, desnutrição e doenças
remédios extraídos de plantas. A maioria deles foi venéreas. Doentes com enfermidades mais graves
distribuída à natureza por Mavutsinin, embora uns são encaminhados para o Posto Leonardo, que
poucos tenham sido criados por entidades mito- administra o Alto Xingu, onde ficam sob cuida-
lógicas.5 Várias plantas são conhecidas por prati- dos médicos, sendo eventualmente encaminhados
camente todos os adultos e são eficazes para com- ao hospital da cidade de Canarana (MT) ou de
bater desarranjo intestinal, tosse, dor de ouvido e Brasília.
de dente, dores musculares, irritação da pele, A solicitação dos serviços do pajé depende
ferimentos e outros pequenos desconfortos. Se o do diagnóstico realizado pelos próprios especia-
tratamento não fizer efeito, procura-se o raizeiro listas indígenas, da existência de pajé no círculo
(y’apoajat), que detém conhecimento mais de parentes próximos do enfermo, ou da gravida-
aprofundado do poder curativo das plantas, trans- de do caso. Como o tratamento deve ser pago, pro-
mitido de pai para filho. Ele não só administra cura-se, nas primeiras etapas da doença, o auxílio
poções e adverte sobre os cuidados necessários da medicina convencional, gratuito, deixando a
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para conduzir o tratamento, como testa novas dro- contratação do pajé como último recurso. A
gas, fazendo a combinação de partes de uma mes- sequência de serviços do raizeiro, agente de saúde
ma planta ou de várias delas, acumulando, assim, e pajé nem sempre ocorre nessa ordem. Doenças
fórmulas específicas que são mantidas em segre- que logo de início deixam a pessoa muito debilita-
da, ou em que o paciente não quer deixar a aldeia
4
Para maior detalhamento da relação entre pajé e feiticei- ou ir para o hospital, por não gostar do acolhi-
ro, consultar C. Junqueira (2005, p.147-161).
5
É o caso de uma narrativa mitológica que relata a história
mento oferecido, ou ainda aqueles que depositam
de um homem que tinha uma cabacinha bem guardada mais confiança na cura xamânica, são casos dire-
e sempre alertava a filha para que não tocasse nela. Certo
dia, a moça não resistiu à curiosidade e foi olhar seu tamente levados ao pajé.
conteúdo. Duas pequenas cobras saíram de lá e a mata-
ram. O pai, ao constatar o desastre, fumou, em seguida Os pajés podem ser qualificados em duas
fez com que as pequenas cobras fumassem e soltou-as, categorias: os que foram iniciados por um mama’e
ordenando que matassem todos da aldeia. No decorrer
da destruição que se seguiu, as cobras se tornavam sem- (espírito), através do sonho (Junqueira, 2005), con-
pre maiores. Os homens resolveram matá-las. Puseram
mulheres e crianças no teto das casas e abriram duas siderados os mais potentes, e os instruídos por
grandes covas, uma perto da lagoa Mariwahet e outra na
Iaununu. Atraíram as cobras que foram mortas a outro pajé. Em tempos mais recuados, era comum
flechadas e enterradas nas covas. Nasceram ali dois tipos o pajé cuidar da iniciação do próprio filho e, hoje
de remédio, um que apura a pontaria das pessoas e outro
que as deixa forte na luta huka huka. em dia, pode-se pagar para ter acesso ao

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ensinamento. Além de identificar a procedência morte, a medicina convencional é representada


das doenças (mama’e ou feiticeiro), o pajé exerce como menos exigente do que o modelo indígena,
muitos outros ofícios, como proferir rezas para for- pois é incapaz de apresentar a determinação legíti-
talecer o corpo, afastar ameaças, propiciar bons ma da causa externa que interrompeu a vida.
acontecimentos, neutralizar o poder de feitiços, A crença em espíritos é a grande responsá-
capturar almas raptadas por espíritos etc. Serviços vel pela atribuição de sentido ao mundo kamaiurá,
à comunidade, como pajelanças nas pescarias co- sustentando as práticas que protegem o corpo, num
letivas, não são imediatamente pagos, mas retribu- campo em que descuidos e infrações acarretam
ídos de modo difuso nas atenções e dádivas ofere- doenças, e graves transgressões podem conduzir à
cidas na vida cotidiana. Trata-se de uma forma de morte. Na relação entre humanos e seres sobrena-
reconhecimento que reafirma o poder. Todorov turais, entretanto, existe o diálogo e, se a comuni-
(1996) distingue duas modalidades de reconheci- dade se submeter às regras ditadas pelos espíritos,
mento: de conformidade, que se refere ao cumpri- pode contar com uma existência tranquila. O que
mento do dever das normas apropriadas ao exercí- não é o caso do feiticeiro, que escolhe sua vítima e
cio de uma função, e o de distinção, que atua como sobre ela lança o ataque mortal. A pessoa alvejada
prêmio à excelência pessoal. Um reforça as relações é surpreendida pela força maligna, tornando-se,
comunitárias, e o outro, a competição. O pajé assim, uma presa desarmada sem condições de
kamaiurá é merecedor de ambos: exerce um papel reagir. Diante disso, é fundamental que a causa dos
conservador importante, que reafirma a crença nos desfechos fatais seja explicitada. Pois só assim será
poderes espirituais, e, ao mesmo tempo, estimula possível organizar a defesa da comunidade e, em
uma competição velada entre seus pares, na busca momento posterior, eliminar o autor do crime.
de níveis crescentes do desempenho profissional. O treinamento a que os agentes de saúde do
A saúde é vista como qualidade inerente à Parque Indígena do Xingu se submeteram, sob a
vida. Genitores que seguem corretamente regras direção de profissionais da área médica da
alimentares e procedimentos rituais geram filhos UNFESP,6 poderia ser visto como responsável pela
sadios, aptos a atravessarem as diversas etapas da introdução de inovações no cerne das concepções
existência humana até a velhice. Os males que tradicionais sobre o corpo, a saúde e a doença. Na
podem atingir a pessoa não advêm do mau funci- aldeia kamaiurá de Ipavu, entretanto, os jovens
onamento do organismo, mas decorrem de forças atendentes aceitam visivelmente a supremacia dos

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externas que agridem o corpo. Eliminar a doença poderes xamânicos e dos seus fundamentos. O
e restabelecer a saúde é a grande tarefa dos especi- novo conhecimento que detêm coloca-os mais na
alistas em ervas e pajés que, nos últimos sessenta área de atuação dos raizeiros, pois esboçam uma
anos, aproximadamente, passaram a contar com discreta comparação entre a eficácia dos medica-
outro aliado, os profissionais da área médica. mentos que administram e os remédios naturais.
Embora fazendo uso de outras práticas, eles obtêm Dentre os inúmeros cuidados dispensados
sucesso em boa parte das intervenções, mesmo que ao corpo, selecionamos alguns, comumente usa-
aplicando conceitos diferentes para embasar seu dos nas diferentes etapas que pontuam a vida na
conhecimento sobre a etiologia das doenças. O fato comunidade. Em sua fase de crescimento, as cri-
de o atendimento médico ser aberto a todos os anças são estimuladas a aumentar sua participa-
moradores da aldeia e, além disso, ser gratuito, ção na rotina dos afazeres. A partir dos 5 anos de
favorece sua aceitação. Questionamentos podem idade, são, aos poucos, convocadas para realizar
ocorrer se o paciente vier a morrer, o que geral- pequenos serviços, como dar e levar recados a vi-
mente é atribuído ao descaso ou à incompetência zinhos. À medida que crescem e adquirem mais
profissional. Por não operar com as noções de es- 6
Para uma visão analítica do programa de formação de
pírito e feitiço, responsáveis pela ocorrência da agentes indígenas de saúde, ver: Mendonça (2005).

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desenvoltura, passam a carregar nenês dentro da tivas e para estimular a saúde de um modo geral.
casa, como forma de liberar a mãe. Por volta dos Depois da sangria, as feridas são lavadas com uma
10 anos, as meninas são iniciadas nos trabalhos mistura de água e ervas (timokwit). Durante a re-
domésticos e aprendem a ralar mandioca, acender clusão, ela é feita para fortalecer o corpo, o que,
o fogo e, as mais desenvolvidas, começam a fazer junto com a dieta, visa a preparar o corpo da me-
pequenos beijus. Pouco a pouco, carregam mais e nina para a futura maternidade. Com bastante tem-
mais peso, como feixes de lenha e cestos com pe- po livre durante esse período, a reclusa costuma
quena quantidade de mandioca. Se, quando pe- ser treinada pela mãe em algumas artes femininas,
quenas, são muitas vezes choronas e birrentas, como tecer esteiras e fiar algodão. Mas o objetivo
tornam-se, com o passar do tempo, mais coopera- principal da reclusão é ligado à saúde e ao amadu-
tivas. É a partir dessa idade, antes da menarca, recimento do organismo, procurando-se também
que elas podem vir a ser iniciadas sexualmente, evitar que ela tenha relacionamento sexual. Ainda
“furadas”, como dizem. Não foi possível saber com que a vigilância dos pais seja constante, há relatos
exatidão a faixa etária dos parceiros, mas presu- antigos que registram a ocorrência de encontros
me-se que sejam meninos um pouco mais velhos. secretos, com jovens rapazes se insinuando no
Antes de entrar na reclusão pubertária (myngãu), recinto proibido.
a menina já realiza com destreza muitas das ativi- A reclusão do menino (okipewat) se inicia
dades executadas pela mulher adulta. Quando, fi- quando ele apresenta sinais da puberdade.7 É mais
nalmente, ocorre a primeira menstruação, ela é afas- longa e pode alcançar vários anos, intercalados de
tada do convívio direto com outras pessoas, iso- períodos de liberdade, principalmente se estiver
lando-se num canto da casa vedado por cortinas, sendo preparado para um futuro cargo de chefia.
onde pode permanecer de vários meses a até um Da mesma forma que a menina, ele também se sub-
ano. Nos primeiros dias de reclusão, ela permane- mete a um jejum inicial, que é seguido da ingestão
ce em jejum e só aos poucos começa a comer beiju do vomitório myritwi, responsável pela limpeza
bem fino, mingau (kauin), uma mistura de água e do corpo. Aos poucos, passa a beber kawin e co-
beiju dissolvido e carne de caça. A alimentação é mer beiju fino para, em seguida, passar a receber
servida pela mãe, e, pelo menos durante um mês, peixe cozido sem sal, pimenta ou gordura. Cerca
não lhe é permitido comer peixe. Tal restrição tal- de um mês depois, toma outro remédio de raiz
vez tenha alguma ligação com o saber dos antigos para neutralizar o que foi ingerido nos primeiros
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sobre a origem da menstruação: Mavutsinin, quan- dias, após o que começa, pouco a pouco, a comer
do fez a mulher, deixou dentro dela minúsculas peixe mais saboroso, desde que não-gorduroso.
piranhas que, a cada mês, beliscam suas entranhas, Depois de um último vomitório, ele experimenta
fazendo com que perca sangue. Ainda que atual- peixe assado. O objetivo aqui é torná-lo forte para
mente essa explicação não faça parte do repertório a luta huka-huka e resistente para o desempenho
kamaiurá, é possível que ela, de alguma forma, ori- das funções masculinas, embora, durante o retiro,
ente a exclusão da carne de peixe durante a mens- o pai possa transmitir-lhe técnicas de elaboração
truação (maitsot). Enquanto seu corpo se fortalece, de artefatos. Relações sexuais prematuras podem
ela permanece isolada, sendo-lhe vedado qualquer diminuir seu vigor.8
contato com o sexo oposto. No pequeno recinto onde A saída da reclusão significa uma ruptura
permanece, ela é banhada com a ajuda da mãe, que com o universo infantil e a entrada na vida adulta.
também a conduz à noite, com a cabeça coberta, até Tanto para meninas como meninos, ela marca o
o mato próximo, onde vai evacuar. 7
Vitti relaciona os sinais externos indicadores da puber-
A escarificação feita com o jajap (lê-se iaiap) dade masculina (2005, p.94).
8
é realizada por toda a vida, geralmente nos mem- Para enfoques específicos sobre a reclusão masculina,
consultar Pinto e Baruzzi (2005) e também Tavares
bros superiores e inferiores, com finalidades cura- (1994).

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início de atividade sexual mais regular e, para vá- dirigir a palavra ao sogro e, não sendo possível
rios deles, é também a procura do parceiro para evitar, é sua obrigação manter os olhos na direção
constituir família. A aproximação entre homem e do chão; não pode falar alto estando ele presente e
mulher tem vários caminhos possíveis, e o mais deve ainda evitar cruzar com ele nos caminhos que
comum é que a moça interessada pergunte se ele percorrer. Transgressões fazem recair sobre a pes-
quer beiju ou kauin. Nessa fase preliminar, ela soa o sentimento de vergonha (ontsi).
consulta a mãe, em busca de aprovação. Segundo Consumado o casamento, a expectativa é a
relatam, o rapaz é mais direto e convida a mulher de que a mulher engravide em pouco tempo, mes-
desejada a manterem relações sexuais. O casamen- mo porque o nascimento de uma criança é o elo
to preferencial é entre primos cruzados (‘atywahap), necessário à materialização da aliança, dado que a
mas outros arranjos são possíveis e comuns. Não dissolução da união de casais sem filhos não é
se recomenda o casamento antes de os parceiros incomum. Como a infertilidade é um estigma que
terem tido relações sexuais e estarem seguros de recai primeiramente sobre a mulher, a jovem espo-
sua escolha. Essa fase experimental não deve, en- sa também tem pressa em engravidar, tornando
tretanto, prolongar-se em demasia, principalmente público que não é infértil (memype’ym). Se, com o
se as relações se tornarem muito frequentes. Teme- passar do tempo, isso não ocorrer, ela pede ao
se que a moça engravide e venha a dar à luz a um marido que lhe traga pitang, remédio extraído da
filho sem pai socialmente reconhecido. É da família raiz de um capim, para estimular a fecundidade,
da moça a iniciativa de entrar em contato com a do que deve ser tomado com água em jejum e também
rapaz para a formalização da união, que consiste no friccionado no ventre. Foi surpreendente a resposta
simples ato de transferir sua rede para a casa dela, dada por um informante já idoso e grande conhe-
onde ele deverá prestar serviços aos sogros, como cedor de remédios, quando perguntamos o que
limpar a roça, trazer-lhes peixe, frutas etc. seria possível fazer caso a gravidez não ocorresse
O respeito (ipowe) é um preceito importan- dentro de um tempo razoável: “Quando a mulher
te na cultura kamaiurá, por criar, em graus dife- só tem um homem, pode demorar a engravidar,
renciados, um distanciamento entre as pessoas, mas, tendo dois, pega logo filho”.
de modo a evitar que possíveis oposições se O marido tem igualmente recursos para
avolumem, convertendo-se em conflito aberto. As auxiliá-lo na tarefa de engravidar a esposa, como o
famílias procuram selar alianças, através do casa- chá tatu-pewarakway, retirado de uma hera que

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mento, para se fortalecerem politicamente e ampli- nasce em troncos de árvores, e que pode também
ar o número de aliados tanto na própria aldeia como ser passado sobre o pênis para deixá-lo rijo. Outro
em outras. Se a união ocorrer entre primos cruza- remédio, do qual não foi possível obter o nome, é
dos, a relação entre as famílias tenderá a ser mais o sumo de uma frutinha semelhante à mangaba,
amigável, ao contrário do que acontece quando os usado também para friccionar o pênis. A perda
parceiros estão fora desse circuito, em especial se ocasional da potência sexual (takwen-mano) não é
pertencerem a grupos políticos opostos, o que tor- considerada doença e, segundo os informantes,
na a aliança um empreendimento de maior risco. pode afligir qualquer homem em ocasiões as mais
Ao clima de suspeita de ambos os lados interpõe- inesperadas. Na aldeia, fala-se, de modo um tanto
se a formalização do comportamento, ditada pelo brincalhão, que homens e mulheres que conso-
princípio do respeito, e a proibição de pronunci- mem regularmente o peixe wetsing assado, seme-
ar, em qualquer circunstância, o nome do parente lhante à bicuda, costumam ter muito vigor. Seu
afim. A regra de evitação é mais estrita na relação efeito é ainda mais promissor caso o homem ex-
entre genro e sogro (towajat):9 o genro não deve traia seu óleo e passe sobre o pênis.
9
Segundo Seki. (2000, p. 465), o termo também significa
Informantes mais velhos explicam que a fe-
inimigo. cundação ocorre quando o sêmen se mistura ao

457
O SABER KAMAIURÁ SOBRE A SAÚDE DO CORPO

líquido que lubrifica a vagina. Quando a mulher te o cordão umbilical, todos são enterrados junto
sonha estar fazendo mohete, bebida feita com a com a placenta (wapawet ou aopap) no interior da
água que lavou a mandioca brava, e este ferve, é casa. Nos últimos anos, têm sido registrado casos
sinal de que vai engravidar. Se o mohete seca na de crianças socialmente sem pai, criadas por avós
panela, ela não irá ter filho. Tão logo a mulher ou mesmo pela própria mãe. Dizem os informan-
engravide (eweka), deve seguir uma dieta que in- tes que, de início, essas crianças eram discrimina-
clui peixes, exceto alguns, como o peixe cachorra, das pela comunidade e, apenas mais recentemen-
que dará diarreia na criança, e a piranha vermelha, te, passaram a ser aceitas. Deve-se o gradual
que fará com que ela nasça com os olhos verme- descumprimento dessa regra tradicional aos “bran-
lhos. Pode ainda comer algumas frutas, menos o cos”, sempre contrários à prática, dizem os velhos
abacaxi, nativo da região, que provoca aborto. Al- kamaiurá, acrescentando que há casos dessa vio-
gumas mulheres deixam também de comer bana- lação em quase todas as aldeias da região.
na e mamão pelo mesmo motivo. A partir dos oito Há uma expectativa generalizada de que o
meses de gravidez, quando a criança já está forma- primeiro filho seja homem e, caso a esposa gere
da, a dieta passa a incluir carne de caça. A dieta meninas em gravidezes sucessivas, é comum que
seguida corretamente assegura o desenvolvimento tome peke’yp wa’amykyt, droga indicada para esti-
normal da criança e se estende ao marido, que deve mular o nascimento de menino.
ainda evitar alguns afazeres. De fato, não há um Após o nascimento da criança, a mãe toma
rol prévio de recomendações a serem seguidas, mas o vomitório da raiz moãguê, para tirar o sangue
ilustrações de como certos trabalhos interferem na que ainda esteja em seu corpo, ficando alguns dias
formação do feto. Num dos casos relatados, a cri- em jejum. Em seguida, passa a tomar o mingau
ança nasceu com feição de jacaré, porque, durante kauin e, durante o primeiro mês, só se alimenta
a gravidez, o marido esculpiu um banco em forma de carne de caça e peixe pequeno. Tanto o peixe
de jacaré. Deduz-se que o homem deve se ater ao cachorra como peixe grande de qualquer espécie
trabalho regular de provedor, em atividades roti- fazem com que a criança adoeça. Além das restri-
neiras. Caso haja ameaça de aborto, quando, por ções alimentares, a mulher evita pegar lenha, ir à
exemplo, a mulher come piranha muito pequena, roça e fazer comida por cerca de quatro meses, sem-
recomenda-se a ela adicionar à comida bastante pre em função da saúde da criança. De modo simi-
pimenta do tipo bem pequeno (y’ky’yj). lar, o marido permanece deitado durante cerca de
CADERNO CRH, Salvador, v. 22, n. 57, p. 451-461, Set./Dez. 2009

O parto é realizado na própria casa, com a quatro dias e, quando o umbigo do recém-nascido
ajuda da mãe ou, na sua falta, da irmã ou de pa- cai, toma uma infusão da raiz kawikita para vomi-
rente próxima. Se houver dificuldade no nasci- tar. Passa, então, a receber a mesma alimentação da
mento, chama-se uma mulher com muita experi- esposa, até a criança andar. Tanto a dieta alimentar
ência, uma espécie de parteira (pingamo’ahat), e, como as atividades rotineiras do homem e da mu-
se o quadro se agravar, o pajé. Atualmente, com a lher só retornam ao padrão usual quando a crian-
presença do agente de saúde na aldeia, a parturi- ça completa três ou quatro anos. Se adicionarmos
ente pode vir a ser removida para o hospital da esse espaço de tempo ao da dieta que se inicia no
cidade de Canarana. O recém-nascido é examina- momento em que a gravidez é registrada, um casal
do com cuidado, e seus membros são esticados pode permanecer mais de quatro anos num regi-
para que fiquem retos. Sendo constatada má for- me especial de alimentação. Há, evidentemente,
mação grave, cabeça muito grande, feição de ani- violações, atestadas pelas doenças que atingem
mal etc, ele é sacrificado com veneno. Destino se- crianças novas e que são publicamente apontadas
melhante têm as crianças geradas por mãe solteira por membros da comunidade. Uma forma de con-
ou em relações fora do casamento, ou ainda os tornar o regime alimentar durante o período mar-
gêmeos; logo após o nascimento e sem que se cor- cado por essas regras tornou-se possível com a

458
Carmen Junqueira, Heloisa Pagliaro

introdução de alguns produtos industrializados, são feitas bolinhas, no padrão denominado ‘onça
como o açúcar, que eventualmente pode substituir pequena’ (jawari apinin).
o mel de abelha (apontado como causador de feri- Não se observa, na aldeia de Ipavu, criança
das na cabeça da criança), o macarrão, arroz, feijão engatinhando. A partir dos oitos meses de idade,
etc., mas de aquisição irregular e condicionada à ela é colocada de bruços sobre um pano no chão e
disponibilidade de dinheiro e transporte.10 quando começa a se mover muito, um adulto colo-
Do mesmo modo que observam os cuida- ca-a de pé e, segurando-a pelos braços, faz com
dos tradicionais nos primeiros anos de vida, os que ensaie alguns passos. Espera-se que, ao redor
adultos reconhecem, de modo unânime, a impor- de um ano, ela comece a caminhar e, se isso não
tância da vacinação regular realizada pela equipe acontecer, o remédio akyky-arowai é passado em
médica.11 E uma prática cultural que revela, ainda suas pernas durante quatro dias.
que indiretamente, a melhoria das condições de A maioria das crianças começa a falar com
saúde da criança é a atribuição dos primeiros no- dois anos de idade. Para estimular a fala, costuma-
mes pessoais. De acordo com o costume, os no- se passar a língua do pássaro xexéu (o mesmo que
mes passam dos avôs para os netos e, como não é japim) na língua da criança. Em média, a criança
permitido pronunciar o nome de parentes afins, a mama até dois anos e meio de idade, quando come-
pessoa recebe dois nomes, um dado pela mãe e ça a desmamar espontaneamente. Mas há casos em
outro pelo pai. Em décadas passadas, a criança que ela, embora recebendo outros alimentos, insis-
recebia seus primeiros nomes após seis ou oito te em ter o leite materno. Nessas situações, ela é,
meses de vida, ocasião em que os pais estavam vez por outra, consultada pela mãe se não gostaria
mais seguros de que ela iria sobreviver. Com isso, de parar de mamar. Havendo concordância, a mãe
evitavam a perda do nome, caso o recém-nascido passa em sua língua o y’jaraók, bichinho encontra-
viesse falecer, e asseguravam sua transmissão no do na areia da lagoa, fazendo cessar o desejo. A
futuro. Atualmente, é prática corrente a nominação mulher pode eventualmente fazer uso do remédio
bastante precoce: logo após o nascimento, crian- warutsa para estimular a produção de leite.
ças do sexo masculino são denominadas I’in, e as Como a constituição da prole é uma tarefa
do sexo feminino Pia, ambos os nomes indicando que envolve várias restrições na vida cotidiana, o
o fato de o nenê não ter ainda nomes próprios, casal busca espaçar futuros nascimentos. Tenta-se
que serão recebidos um mês depois.12 interromper a gravidez indesejada com pira’in, re-

CADERNO CRH, Salvador, v. 22, n. 57, p. 451-461, Set./Dez. 2009


Crianças novas costumam ser pintadas para médio feito com a folha amassada e colocada em
ganhar força e vigor. Com a resina yhik e carvão água morna, que deve ser tomado em jejum. Dizem
(ywut) são feitos pequenos traços verticais no seu que, em algumas horas, a mulher começa a perder
corpo com a ajuda de um palito, no padrão sangue, expulsando o feto. Os contraceptivos mais
‘peixinho’ (pykytsiin), ou com a ponta dos dedos comuns são o mangawaru’ijap e o kuranain, usa-
dos mensalmente. Mas caso a mulher não deseje
10
Miriam Coelho de Souza observou, em 2003, o consu- mais ter filho toma o arapawa akawã depois da
mo em duas refeições diárias (manhã e tarde), durante
seis dias, em 17 casas da aldeia de Ipavu, e registrou a menstruação durante três dias. Nos meses seguintes,
presença de alimentos industrializados em 4 casas, num ela continua a tomar a mesma dose, e o sangue mens-
total de 12 refeições. Para a obtenção de dados mais com-
pletos, seria necessária uma observação ao longo dos trual vai diminuindo até que cessa definitivamente.
diferentes meses do ano, durante o dia todo, uma vez
que os Kamaiurá não têm refeições regulares e comem Não há remédio que possa reverter esse efeito.
praticamente o dia todo.
11
A Universidade Federal de São Paulo, via Escola Paulista
A mulher está sempre às voltas com a ques-
de Medicina, atua no Parque Indígena do Xingu desde tão da gravidez, num contexto cultural em que a
1965, com um programa de saúde voltado aos povos da
região. Na região do Alto Xingu, onde vivem os Kamaiurá, relação sexual, inclusive fora do casamento, não é
a UNIFESP deixou de atuar em 2004.
12
alvo de repressão, desde que não envolva eviden-
Agradecemos a Vaneska Taciana Vitti a informação
sobre a atribuição de nomes nos dias atuais em Ipavu. temente determinadas categorias de parentes. Ain-

459
O SABER KAMAIURÁ SOBRE A SAÚDE DO CORPO

da que alimentem um ideal difuso de fidelidade, tais para a preservação da saúde, e, ao mesmo tem-
os Kamaiurá quebram a monotonia conjugal em po, punem os transgressores com doença e mesmo
aventuras amorosas, sendo mesmo possível afir- morte. O sentido maior da sua presença deve-se ao
mar que, para eles, o exercício da sexualidade con- fato de serem eles os grandes protetores da vida,
tribui para a manutenção de um corpo saudável. atuando diretamente na gestação da mulher, no de-
Até mulheres que há muito passaram pela meno- senvolvimento do feto e na defesa da saúde da cri-
pausa (maitsupik) vivem amores secretos, o mes- ança durante os primeiros anos de existência.
mo acontecendo com homens velhos, que contor- A religião kamaiurá protege a produção e a
nam eventuais dificuldades passando sobre o pê- reprodução sociocultural do povo, sem a ideia de
nis os pelos (ta’akawat) do bambu infantil, que um sagrado transcendental; seus heróis e entida-
nascem perto do bulbo; dizem que a coceira esti- des possuem poder superior, mas pertencem ao
mula a ereção. mundo terrestre. Mavutsinin e seus familiares
moram em Morená, a poucas horas da aldeia, e os
*** mama’e se espalham pelas matas, águas e roças;
vários deles vivem dentro das casas, junto aos
Na mitologia kamaiurá, Mavutsinin criou a
objetos cerimoniais de quem são donos. Sua mis-
vida humana, a base cultural da existência social
são é ensinar a manter a saúde e preservar a vida
e, juntamente com seus netos, Kwat e Yai, proveu
cerimonial.
o universo de importantes recursos naturais. Com-
pletadas as obras, deixaram as criaturas livres para
enfrentar o devir, repetindo, assim, o desempe- (Recebido para publicação em julho de 2009)
nho de muitas entidades que povoam o imaginá- (Aceito em setembro de 2009)

rio mundial. Tornaram-se o que Eliade definiu


como “deus otiosus” (1998, p. 46 seq): atuaram
ativamente no princípio primordial, mas, em se- REFERÊNCIAS
guida, retiraram-se para suas moradas,13 onde se
mantêm distanciados do destino humano. Há AGOSTINHO, P. Kwarìp: mito e ritual no Alto Xingu. São
Paulo: EPU/Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.
muitos mitos que relatam seus atos criadores e
ELIADE, M. Tratado de história das religiões. Trad.
aventuras, mas sua influência é pequena no coti- Fernando Tomaz e Natália Nunes. São Paulo: Martins Fon-
tes, 1998.
CADERNO CRH, Salvador, v. 22, n. 57, p. 451-461, Set./Dez. 2009

diano da vida na aldeia. São citados para explicar


EVANS-PRITCHARD, E.E. Bruxaria, oráculos e magia
a origem de vários fenômenos e características da entre os Azande. Trad. Eduardo Batalha Viveiros de Cas-
natureza e, na cerimônia do Kwaryp, são tro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
rememorados os feitos de Mavutsinin quando da GALVÃO, E. (Org.) Encontro de sociedades: índios e bran-
cos no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
criação da humanidade, mas nenhum culto espe- JUNQUEIRA, C. Pajés e feiticeiros. In: BARUZZI, R.G.
cifico lhe é dirigido. Os espíritos (mama’e) têm ______ (Org.) Parque indígena do Xingu. Saúde, cultura
e história. São Paulo: Terra Virgem Editora, 2005. p.147-
presença forte na aldeia, não só porque represen- 161.
tam uma ameaça, mas também por oferecerem so- ______. Os índios do Ipavu: um estudo sobre a vida do
grupo Kamaiurá. 2.ed. São Paulo: Ática, 1978.
lução às necessidades correntes da vida. São eles
MATURANA, H. Emoções e linguagem na educação e na
que instruem os grandes pajés na identificação e política. Trad. José Fernando Campos Fortes. Belo Hori-
zonte: UFMG, [1998] 2005. 4ª Reimpressão.
cura das doenças, definem os cuidados fundamen-
MENDONÇA, S. B. O Agente indígena de saúde no Par-
13
As divindades kamaiurá vivem em Morená, na conflu- que Indígena do Xingu. In: BARUZZI, Roberto G.;
ência dos rios Ronuro, Culuene e Batovi. No dias atuais, JUNQUEIRA, Carmen (Org.) Parque Indígena do Xingu:
é possível registrar a indicação do céu como sua morada, saúde, cultura e história. São Paulo: Terra Virgem Editora,
provavelmente em consequência do contato com o pen- 2005. p.227-244.
samento religioso de moradores da cidade. Mas, segun- OBERG, K. Indian tribes of Northern Mato Grosso, Brazil.
do informantes mais velhos e pajés, o céu pertence ao Washington,DC: Smithsonian institution; Institute of
domínio dos pássaros, onde vivem numa grande aldeia e Social Anthropology. 1953. (Publication, n.15)
de onde avistam suas presas na terra.

460
Carmen Junqueira, Heloisa Pagliaro

PINTO, N.R.S.; BARUZZI, R.G. Reclusão pubertária mas- TODOROV, T. A vida em comum. Ensaio de antropologia
culina em índios do Alto Xingu, Brasil Central. In: geral. Trad. Denise Bottman e Eleonora
BARUZZI, Roberto G.; JUNQUEIRA, Carmen (Org.) Par- Bottman.Campinas,SP: Papirus, 1996.
que Indígena do Xingu: saúde, cultura e história. São
Paulo: Terra Virgem, 2005. p.175-187. VILLAS BÔAS, O. A arte do pajés: impressões sobre o
universo espiritual do índio xinguano. São Paulo: Globo,
SAMAIN, E. De um caminho para outro. Mitos e aspectos 2000.
da realidade social nos índios Kamayrá (Alto Xingu). 1980.
Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Programa de VITTI, Vaneska Taciana. Jovens kamaiurá no século XXI.
Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Fe- 2005. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Progra-
deral do Rio de Janeiro, 1980. ma de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2005.
SEKI, L. Gramática do Kamaiurá: língua Tupi-Guarani do
Alto Xingu. Campinas: Ed. Unicamp; São Paulo, SP: Im-
prensa Oficial, 2000.
TAVARES, S.C. A reclusão pubertária no Kamayurá de
Ipawu. Um enfoque biocultural. 1994. Dissertação
(Mestrado em Educação Física) - Programa de Pós-Gradu-
ação da Faculdade de Educação Física da Universidade
Estadual de Campinas, 1994.

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461
O SABER KAMAIURÁ SOBRE A SAÚDE DO CORPO

THE KAMAIURÁ WISDOM ABOUT BODY LE SAVOIR KAMAIURÁ A PROPOS DE LA


HEALTH SANTE DU CORPS
Carmen Junqueira Carmen Junqueira
Heloisa Pagliaro Heloisa Pagliaro
Kamaiurá are a Tupi language people that, Les Kamaiurá sont un peuple de langue
together with people of the linguistic families Aruak,
Tupi qui, avec les peuples des familles linguistiques
Karib, Tupi and of the isolated language Trumai,
Aruak, Karib, Tupi et de la langue isolée Trumai,
inhabits High Xingu (MT). The cultural habitent le Alto Xingu (MT). L’homogénéité
homogeneity among those peoples is evidenced in
culturelle de ces peuples est mise en évidence sous
multiple aspects, such as shape and disposition
divers aspects, tels que la forme et la disposition
of the villages, type of housing, alimentary habits,
des villages, le type d’habitation, les habitudes
pubertary seclusion, paintings and corporal
alimentaires, la réclusion pubertaire, les peintures
decorations, use of uluri by women, parties and
et les ornements corporels, l’utilisation de l’uluri
ceremonies, such as Kwaryp. This common cultu-
par les femmes, les fêtes et les cérémonies comme
ral pattern results of the long occupation of a same
le Kwaryp. Ces normes culturelles communes
geographical area and of the frequency of interethnic
résultent d’une longue occupation d’un même es-
marriages. The present work shows how the pace géographique et de la fréquence des mariages
knowledge about body health is built from elements
interethniques. Cette étude montre comment le
that compose the Kamaiurá world vision, in which
savoir concernant la santé du corps est construit à
observation, experimentation and mythology unite.
partir d’éléments qui composent la manière de voir
The paper describes the cares given to the body
du monde Kamaiurá où l’observation, les
and the cultural and spiritual rules regarding the
expériences et la mythologie se mélangent. On y
different stages of the vital cycle. décrit les soins donnés au corps et les règles
culturelles et spirituelles relatives aux différentes
étapes du cycle vital.
K EYWORDS : Kamaiurá, indigenous health, MOTS-CLÉS: Kamaiurá, santé indigène, santé de la
reproductive health of indigenous people. reproduction des peuples indigènes.
CADERNO CRH, Salvador, v. 22, n. 57, p. 451-461, Set./Dez. 2009

Carmen Junqueira - Etnóloga, doutora em Antropologia pela UNICAMP e professora titular e emérita do
Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. Estuda povos indígenas dos estados de São Paulo, Acre, Rondônia e Mato Grosso. Pesquisa os
Kamaiurá (MT) desde 1965. Além de inúmeros artigos em periódicos nacionais e estrangeiros, publicou
diversos livros, como “Os Índios do Ipavu” (1979), “Sexo e Desigualdade entre os Kamaiurá e os Cinta
Larga” (2002) e “Parque Indígena do Xingu. Saúde, Cultura e História” (2005).
Heloísa Pagliaro - Cientista social, mestre em Demografia pelo Instituto de Demografia da Universidade de
Paris I e doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. É lotada no Centro de Recursos Humanos
da UFBA e está em exercício no Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São
Paulo, onde desenvolve pesquisa demográfica junto a povos indígenas, no âmbito do Programa de Saúde dos
Povos do Parque Indígena do Xingu – Projeto Xingu. É Bolsista de Produtividade de Pesquisa II do CNPq e
integra o GT Demografia dos Povos Indígenas da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Além de
artigos em periódicos nacionais e internacionais e capítulos em livros, publicou “Demografia dos Povos
Indígenas no Brasil” (2005).

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