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DOSSIÊ
Carmen Junqueira*
Heloisa Pagliaro**
Os Kamaiurá são um povo de língua Tupi que, juntamente com povos das famílias linguísticas
Aruak, Karib, Tupi e da língua isolada Trumai, habita o Alto Xingu (MT). A homogeneidade
cultural entre esses povos é evidenciada em múltiplos aspectos, como forma e disposição das
aldeias, tipo de habitação, hábitos alimentares, reclusão pubertária, pinturas e adornos corpo-
rais, uso do uluri pelas mulheres, festas e cerimônias, como o Kwaryp. Esse padrão cultural
comum resulta da longa ocupação de uma mesma área geográfica e da frequência de casamen-
tos interétnicos. O presente trabalho mostra como o saber sobre a saúde do corpo é construído
a partir de elementos que compõem a visão do mundo Kamaiurá, em que observação, experi-
mentação e mitologia se conjugam. Descreve os cuidados dispensados ao corpo e as regras
culturais e espirituais relativos às diferentes etapas do ciclo vital.
PALAVRAS-CHAVE: Kamaiurá, saúde indígena, saúde reprodutiva de povos indígenas.
Os Kamaiurá são um povo de língua Tupi por meio da escarificação, a ingestão de remédios
que, juntamente com outros nove povos das famí- em forma de chá ou infusão de ervas, defumações,
lias linguísticas Aruak, Karib, Tupi e da língua iso- resguardo e recolhimento associados à dieta ali-
lada Trumai, habita a região dos formadores do rio mentar em determinados períodos da vida. As
Xingu, ao norte do estado do Mato Grosso (Brasil ações preventivas iniciam-se na infância e prosse-
Central). A grande homogeneidade cultural entre guem por toda a vida e, se bem observadas, garan-
esses povos é evidenciada em múltiplos aspectos, tirão uma existência tranquila até a velhice. São
como forma e disposição das aldeias, tipo de habi- práticas transmitidas através das gerações, consa-
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tos que compõem a visão de mundo kamaiurá, em bastante evidentes, como, por exemplo: a expecta-
que observação, experimentação e mitologia se con- tiva generalizada de que todas as pessoas devem
jugam. Assim, por exemplo, conhecimentos sobre se casar e constituir família; o casamento das mu-
a eficácia de plantas na cura de doenças, aquilo lheres logo após a primeira menstruação; o perío-
que C. Lévi-Strauss denominou de ciência do con- do de luto e abstinência sexual que se segue à morte
creto, coexistem ao lado de terapias xamânicas e do cônjuge; restrições sexuais impostas ao pajé
de narrativas orais que registram a cosmogonia tra- tanto durante sua iniciação como por ocasião de
dicional e também paradigmas comportamentais. rituais de cura; o uso de ervas capazes de evitar a
Todos eles podem ser evocados para conduzir uma concepção ou interrompê-la; os diversos cuidados
cura ou definir os cuidados com a saúde. Essas que cercam a gravidez, a reclusão pubertária, os
três fontes de saber são integradas: várias plantas nascimentos e a doença. Estávamos cientes de que
foram dotadas do poder de cura por agentes mito- informações relevantes e inesperadas poderiam
lógicos; os espíritos observam o comportamento começar a aparecer depois de períodos prolonga-
humano, punem transgressões e podem ajudar a dos de pesquisa, quando o observador passa a ter
curar; a observação é um exercício cotidiano na uma visão mais completa daquilo que Evans-
aldeia, que comanda a maior parte dos modos de Pritchard (1978) sugeriu ser a apreensão da gramá-
aprender. E, finalmente, a experimentação é uma tica mental do povo, isto é, o acesso a ideias-chave
clara explicitação da curiosidade intelectual do raciocínio do povo estudado. Para apreendê-las,
kamaiurá, que se traduz no desejo de conhecer. é necessário dirigir a atenção aos múltiplos aspec-
O modo de pensar kamaiurá é claramente tos que cercam os acontecimentos da vida na al-
racional se conhecermos os fundamentos que o deia, para, aos poucos, compor o mosaico organiza-
sustentam. Maturana enfatiza com bastante pro- do segundo uma lógica a ser também desvendada.
priedade que “todo argumento sem erro lógico é Cada informação é uma nova peça colocada na cons-
obviamente racional para aquele que aceita as pre- trução do compreender que subjaz a organização
missas fundamentais em que ele se baseia” (2005, das ideias e do pensar. Nesse processo, não se pode
p.18). E quais seriam as premissas básicas do pen- trabalhar com definições prematuras, mas seguir
samento kamaiurá? Pensamos ter detectado algu- pacientemente os, às vezes, intrincados processos
mas delas: 1) a vida deve se prolongar do nasci- mentais elaborados pelos intelectuais nativos.
mento à velhice. Para que isso se concretize, é pre- Com isso em mente, retornamos aos princi-
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ciso atenção às regras alimentares e aos rituais, le- pais estudos publicados sobre os Kamaiurá1 e, na
gados pelas gerações passadas; 2) são necessários impossibilidade de passar um único período pro-
cuidados básicos com o corpo, desde a vida longado com eles, realizamos seis viagens à aldeia
intrauterina, pois, da concepção até os 3 ou 4 anos de Ipavu (agosto e setembro de 2003, agosto de
de idade, a saúde do indivíduo é diretamente afe- 2004, julho de 2005, 2006 e 2007), quando coleta-
tada pelo tipo de alimentação que recebe e pela mos dados necessários à análise das questões cen-
alimentação de seus pais; 3) a doença é sempre trais do nosso estudo, aqui apresentadas. Fizemos
fruto de uma ação externa ao corpo, sendo impor- uso da observação participante, com foco dirigido
tante não descuidar das práticas preventivas; 4) a principalmente às questões relativas à saúde, rea-
morte tem apenas duas origens: feitiço e, em casos lizamos entrevistas com pajés e especialistas em
pontuais, atuação de espíritos. ervas curativas, agentes de saúde e outros mem-
Quando iniciamos o estudo sobre os fato- bros da comunidade entre homens e mulheres mais
res culturais que teriam possibilidade de afetar direta velhos. Coletamos mitos e outras narrativas sobre
ou indiretamente os cuidados com a saúde, focali- a constituição do universo imaginário.
zamos regras, prescrições e tabus que ordenavam 1
Galvão (1979), Oberg (1953), Agostinho (1974), Villas
a conduta costumeira e que eram, de certa forma, Boas (2000) e Samain (1980).
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Percebemos, em pouco tempo, que a reali- ao neto, os narradores advertem: “Ele era filho de
dade vivida pelos kamaiurá era mais ampla do que Mavutsinin, mas nós dizemos que era neto”.
a simples percepção da aldeia, das roças, matas e Mavutsinin neto é o criador da humanida-
águas e se estendia a dimensões que iam além do de, obra também realizada em Morená. “Ele reti-
visível. Cada espaço do cenário guardava uma his- rou troncos de árvore, enfeitou-os e, com a ajuda
tória atrás de si que revelava a origem, o sentido de duas cutias que cantavam e tocavam maracás,
das coisas e também nomeava os seres que com- rezou, transformando os troncos em gente”. Daí
partilhavam a existência com os humanos. No em diante, os diversos povos do alto Xingu cria-
universo primordial, diziam os narradores, vivi- ram suas aldeias nas cercanias de Morená. Rece-
am as aves, os peixes, os animais da mata, os espí- beram do criador muitos conhecimentos e, através
ritos e um único ser, com a forma de homem, cha- dos mama’e (espíritos), alguns deles se tornaram
mado Mavutsinin. Os espíritos (mama’e) eram em pajés, aptos a curar doenças.
grande número, pairavam sobre todos os recantos. Dentre os muitos mama’e existentes,2 alguns
A noção de espírito não é de fácil apreensão causam doenças em pessoas que transgridem die-
e se aproxima da ideia de potência, de força que tas alimentares ou normas rituais, enquanto ou-
atua no mundo visível e provoca acontecimentos. tros o fazem de modo aleatório, em especial quan-
É um ser que atua no âmbito do seu domínio, que do se deparam com pessoas fragilizadas, como as
tanto pode ser uma espécie animal, vegetal ou ob- que se acham em estágios liminares da existência
jeto cerimonial, sendo referido como seu dono ou (puberdade, viuvez, resguardo etc). A vítima tanto
protetor. Caso se peça ao Kamaiurá que faça uma pode ficar doente, como ter sua alma capturada, o
representação gráfica do espírito, ela será confor- que pode levá-la a sofrer transtornos mentais ou
me o aspecto físico do animal, do vegetal ou objeto mesmo ser levada à morte. Como já mencionamos,
a que esteja vinculado: uma espécie de peixe, de a morte deve ocorrer apenas nas idades avançadas
planta, de máscara ou outro artefato. Nas narrati- e, se vier antes, busca-se a causa, pois não há mor-
vas mitológicas, os espíritos aparecem tanto com te indeterminada. Nas primeiras semanas após o
essa imagem como na forma humana. Esclarecer nascimento, ela pode ser fruto do descuido dos
tal ambivalência não faz parte da preocupação dos pais que não observaram as regras alimentares; nos
pensadores kamaiurá, mas apenas reafirmar o po- demais períodos da vida, pode ser causada pela
der de que são possuidores. ação intencional dos espíritos ou pelo feitiço (moã).3
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o feiticeiro por meio de operações mágicas realiza- do. Isso fica evidente quando a cura envolve
das com algum fragmento do corpo da vítima. Se escarificação e aplicação do sumo de raiz ralada,
isso não ocorrer, o feiticeiro pode vir a ser sacrifi- preparada na frente do paciente tão logo o sangue
cado por membros da comunidade.4 A crença na comece a fluir. O raizeiro, além de manipular a
existência do feitiço é tão arraigada que, mesmo no raiz longe do olhar dos outros, procura evitar que
caso de morte causada por acidente, advém a acu- a planta seja identificada, guardando consigo as
sação de feitiçaria. Os Kamaiurá não aceitam a ca- partes descartadas. O pagamento pelo serviço en-
sualidade como fator que explique a cessação volve colares ou valores equivalentes, de acordo
da vida. É imperiosa, em todas as circunstâncias, com as relações de parentesco entre as partes ou
a determinação dos fatores que causaram a morte, as condições materiais da família do enfermo.
sejam eles espíritos ou feiticeiros. Os espíritos atu- Em outras ocasiões, quando as providênci-
am para punir transgressões, e os feiticeiros para as domésticas não surtem efeito, a família do en-
eliminar adversários criados em meio a disputas fermo procura o agente de saúde indígena da pró-
políticas e intrigas familiares. pria aldeia, cujos serviços são gratuitos. As de-
Ao primeiro sinal de que algo perturba o mandas mais frequentes envolvem casos de
funcionamento regular do organismo, recorre-se aos diarreia, gripe, escabiose, desnutrição e doenças
remédios extraídos de plantas. A maioria deles foi venéreas. Doentes com enfermidades mais graves
distribuída à natureza por Mavutsinin, embora uns são encaminhados para o Posto Leonardo, que
poucos tenham sido criados por entidades mito- administra o Alto Xingu, onde ficam sob cuida-
lógicas.5 Várias plantas são conhecidas por prati- dos médicos, sendo eventualmente encaminhados
camente todos os adultos e são eficazes para com- ao hospital da cidade de Canarana (MT) ou de
bater desarranjo intestinal, tosse, dor de ouvido e Brasília.
de dente, dores musculares, irritação da pele, A solicitação dos serviços do pajé depende
ferimentos e outros pequenos desconfortos. Se o do diagnóstico realizado pelos próprios especia-
tratamento não fizer efeito, procura-se o raizeiro listas indígenas, da existência de pajé no círculo
(y’apoajat), que detém conhecimento mais de parentes próximos do enfermo, ou da gravida-
aprofundado do poder curativo das plantas, trans- de do caso. Como o tratamento deve ser pago, pro-
mitido de pai para filho. Ele não só administra cura-se, nas primeiras etapas da doença, o auxílio
poções e adverte sobre os cuidados necessários da medicina convencional, gratuito, deixando a
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para conduzir o tratamento, como testa novas dro- contratação do pajé como último recurso. A
gas, fazendo a combinação de partes de uma mes- sequência de serviços do raizeiro, agente de saúde
ma planta ou de várias delas, acumulando, assim, e pajé nem sempre ocorre nessa ordem. Doenças
fórmulas específicas que são mantidas em segre- que logo de início deixam a pessoa muito debilita-
da, ou em que o paciente não quer deixar a aldeia
4
Para maior detalhamento da relação entre pajé e feiticei- ou ir para o hospital, por não gostar do acolhi-
ro, consultar C. Junqueira (2005, p.147-161).
5
É o caso de uma narrativa mitológica que relata a história
mento oferecido, ou ainda aqueles que depositam
de um homem que tinha uma cabacinha bem guardada mais confiança na cura xamânica, são casos dire-
e sempre alertava a filha para que não tocasse nela. Certo
dia, a moça não resistiu à curiosidade e foi olhar seu tamente levados ao pajé.
conteúdo. Duas pequenas cobras saíram de lá e a mata-
ram. O pai, ao constatar o desastre, fumou, em seguida Os pajés podem ser qualificados em duas
fez com que as pequenas cobras fumassem e soltou-as, categorias: os que foram iniciados por um mama’e
ordenando que matassem todos da aldeia. No decorrer
da destruição que se seguiu, as cobras se tornavam sem- (espírito), através do sonho (Junqueira, 2005), con-
pre maiores. Os homens resolveram matá-las. Puseram
mulheres e crianças no teto das casas e abriram duas siderados os mais potentes, e os instruídos por
grandes covas, uma perto da lagoa Mariwahet e outra na
Iaununu. Atraíram as cobras que foram mortas a outro pajé. Em tempos mais recuados, era comum
flechadas e enterradas nas covas. Nasceram ali dois tipos o pajé cuidar da iniciação do próprio filho e, hoje
de remédio, um que apura a pontaria das pessoas e outro
que as deixa forte na luta huka huka. em dia, pode-se pagar para ter acesso ao
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desenvoltura, passam a carregar nenês dentro da tivas e para estimular a saúde de um modo geral.
casa, como forma de liberar a mãe. Por volta dos Depois da sangria, as feridas são lavadas com uma
10 anos, as meninas são iniciadas nos trabalhos mistura de água e ervas (timokwit). Durante a re-
domésticos e aprendem a ralar mandioca, acender clusão, ela é feita para fortalecer o corpo, o que,
o fogo e, as mais desenvolvidas, começam a fazer junto com a dieta, visa a preparar o corpo da me-
pequenos beijus. Pouco a pouco, carregam mais e nina para a futura maternidade. Com bastante tem-
mais peso, como feixes de lenha e cestos com pe- po livre durante esse período, a reclusa costuma
quena quantidade de mandioca. Se, quando pe- ser treinada pela mãe em algumas artes femininas,
quenas, são muitas vezes choronas e birrentas, como tecer esteiras e fiar algodão. Mas o objetivo
tornam-se, com o passar do tempo, mais coopera- principal da reclusão é ligado à saúde e ao amadu-
tivas. É a partir dessa idade, antes da menarca, recimento do organismo, procurando-se também
que elas podem vir a ser iniciadas sexualmente, evitar que ela tenha relacionamento sexual. Ainda
“furadas”, como dizem. Não foi possível saber com que a vigilância dos pais seja constante, há relatos
exatidão a faixa etária dos parceiros, mas presu- antigos que registram a ocorrência de encontros
me-se que sejam meninos um pouco mais velhos. secretos, com jovens rapazes se insinuando no
Antes de entrar na reclusão pubertária (myngãu), recinto proibido.
a menina já realiza com destreza muitas das ativi- A reclusão do menino (okipewat) se inicia
dades executadas pela mulher adulta. Quando, fi- quando ele apresenta sinais da puberdade.7 É mais
nalmente, ocorre a primeira menstruação, ela é afas- longa e pode alcançar vários anos, intercalados de
tada do convívio direto com outras pessoas, iso- períodos de liberdade, principalmente se estiver
lando-se num canto da casa vedado por cortinas, sendo preparado para um futuro cargo de chefia.
onde pode permanecer de vários meses a até um Da mesma forma que a menina, ele também se sub-
ano. Nos primeiros dias de reclusão, ela permane- mete a um jejum inicial, que é seguido da ingestão
ce em jejum e só aos poucos começa a comer beiju do vomitório myritwi, responsável pela limpeza
bem fino, mingau (kauin), uma mistura de água e do corpo. Aos poucos, passa a beber kawin e co-
beiju dissolvido e carne de caça. A alimentação é mer beiju fino para, em seguida, passar a receber
servida pela mãe, e, pelo menos durante um mês, peixe cozido sem sal, pimenta ou gordura. Cerca
não lhe é permitido comer peixe. Tal restrição tal- de um mês depois, toma outro remédio de raiz
vez tenha alguma ligação com o saber dos antigos para neutralizar o que foi ingerido nos primeiros
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sobre a origem da menstruação: Mavutsinin, quan- dias, após o que começa, pouco a pouco, a comer
do fez a mulher, deixou dentro dela minúsculas peixe mais saboroso, desde que não-gorduroso.
piranhas que, a cada mês, beliscam suas entranhas, Depois de um último vomitório, ele experimenta
fazendo com que perca sangue. Ainda que atual- peixe assado. O objetivo aqui é torná-lo forte para
mente essa explicação não faça parte do repertório a luta huka-huka e resistente para o desempenho
kamaiurá, é possível que ela, de alguma forma, ori- das funções masculinas, embora, durante o retiro,
ente a exclusão da carne de peixe durante a mens- o pai possa transmitir-lhe técnicas de elaboração
truação (maitsot). Enquanto seu corpo se fortalece, de artefatos. Relações sexuais prematuras podem
ela permanece isolada, sendo-lhe vedado qualquer diminuir seu vigor.8
contato com o sexo oposto. No pequeno recinto onde A saída da reclusão significa uma ruptura
permanece, ela é banhada com a ajuda da mãe, que com o universo infantil e a entrada na vida adulta.
também a conduz à noite, com a cabeça coberta, até Tanto para meninas como meninos, ela marca o
o mato próximo, onde vai evacuar. 7
Vitti relaciona os sinais externos indicadores da puber-
A escarificação feita com o jajap (lê-se iaiap) dade masculina (2005, p.94).
8
é realizada por toda a vida, geralmente nos mem- Para enfoques específicos sobre a reclusão masculina,
consultar Pinto e Baruzzi (2005) e também Tavares
bros superiores e inferiores, com finalidades cura- (1994).
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início de atividade sexual mais regular e, para vá- dirigir a palavra ao sogro e, não sendo possível
rios deles, é também a procura do parceiro para evitar, é sua obrigação manter os olhos na direção
constituir família. A aproximação entre homem e do chão; não pode falar alto estando ele presente e
mulher tem vários caminhos possíveis, e o mais deve ainda evitar cruzar com ele nos caminhos que
comum é que a moça interessada pergunte se ele percorrer. Transgressões fazem recair sobre a pes-
quer beiju ou kauin. Nessa fase preliminar, ela soa o sentimento de vergonha (ontsi).
consulta a mãe, em busca de aprovação. Segundo Consumado o casamento, a expectativa é a
relatam, o rapaz é mais direto e convida a mulher de que a mulher engravide em pouco tempo, mes-
desejada a manterem relações sexuais. O casamen- mo porque o nascimento de uma criança é o elo
to preferencial é entre primos cruzados (‘atywahap), necessário à materialização da aliança, dado que a
mas outros arranjos são possíveis e comuns. Não dissolução da união de casais sem filhos não é
se recomenda o casamento antes de os parceiros incomum. Como a infertilidade é um estigma que
terem tido relações sexuais e estarem seguros de recai primeiramente sobre a mulher, a jovem espo-
sua escolha. Essa fase experimental não deve, en- sa também tem pressa em engravidar, tornando
tretanto, prolongar-se em demasia, principalmente público que não é infértil (memype’ym). Se, com o
se as relações se tornarem muito frequentes. Teme- passar do tempo, isso não ocorrer, ela pede ao
se que a moça engravide e venha a dar à luz a um marido que lhe traga pitang, remédio extraído da
filho sem pai socialmente reconhecido. É da família raiz de um capim, para estimular a fecundidade,
da moça a iniciativa de entrar em contato com a do que deve ser tomado com água em jejum e também
rapaz para a formalização da união, que consiste no friccionado no ventre. Foi surpreendente a resposta
simples ato de transferir sua rede para a casa dela, dada por um informante já idoso e grande conhe-
onde ele deverá prestar serviços aos sogros, como cedor de remédios, quando perguntamos o que
limpar a roça, trazer-lhes peixe, frutas etc. seria possível fazer caso a gravidez não ocorresse
O respeito (ipowe) é um preceito importan- dentro de um tempo razoável: “Quando a mulher
te na cultura kamaiurá, por criar, em graus dife- só tem um homem, pode demorar a engravidar,
renciados, um distanciamento entre as pessoas, mas, tendo dois, pega logo filho”.
de modo a evitar que possíveis oposições se O marido tem igualmente recursos para
avolumem, convertendo-se em conflito aberto. As auxiliá-lo na tarefa de engravidar a esposa, como o
famílias procuram selar alianças, através do casa- chá tatu-pewarakway, retirado de uma hera que
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líquido que lubrifica a vagina. Quando a mulher te o cordão umbilical, todos são enterrados junto
sonha estar fazendo mohete, bebida feita com a com a placenta (wapawet ou aopap) no interior da
água que lavou a mandioca brava, e este ferve, é casa. Nos últimos anos, têm sido registrado casos
sinal de que vai engravidar. Se o mohete seca na de crianças socialmente sem pai, criadas por avós
panela, ela não irá ter filho. Tão logo a mulher ou mesmo pela própria mãe. Dizem os informan-
engravide (eweka), deve seguir uma dieta que in- tes que, de início, essas crianças eram discrimina-
clui peixes, exceto alguns, como o peixe cachorra, das pela comunidade e, apenas mais recentemen-
que dará diarreia na criança, e a piranha vermelha, te, passaram a ser aceitas. Deve-se o gradual
que fará com que ela nasça com os olhos verme- descumprimento dessa regra tradicional aos “bran-
lhos. Pode ainda comer algumas frutas, menos o cos”, sempre contrários à prática, dizem os velhos
abacaxi, nativo da região, que provoca aborto. Al- kamaiurá, acrescentando que há casos dessa vio-
gumas mulheres deixam também de comer bana- lação em quase todas as aldeias da região.
na e mamão pelo mesmo motivo. A partir dos oito Há uma expectativa generalizada de que o
meses de gravidez, quando a criança já está forma- primeiro filho seja homem e, caso a esposa gere
da, a dieta passa a incluir carne de caça. A dieta meninas em gravidezes sucessivas, é comum que
seguida corretamente assegura o desenvolvimento tome peke’yp wa’amykyt, droga indicada para esti-
normal da criança e se estende ao marido, que deve mular o nascimento de menino.
ainda evitar alguns afazeres. De fato, não há um Após o nascimento da criança, a mãe toma
rol prévio de recomendações a serem seguidas, mas o vomitório da raiz moãguê, para tirar o sangue
ilustrações de como certos trabalhos interferem na que ainda esteja em seu corpo, ficando alguns dias
formação do feto. Num dos casos relatados, a cri- em jejum. Em seguida, passa a tomar o mingau
ança nasceu com feição de jacaré, porque, durante kauin e, durante o primeiro mês, só se alimenta
a gravidez, o marido esculpiu um banco em forma de carne de caça e peixe pequeno. Tanto o peixe
de jacaré. Deduz-se que o homem deve se ater ao cachorra como peixe grande de qualquer espécie
trabalho regular de provedor, em atividades roti- fazem com que a criança adoeça. Além das restri-
neiras. Caso haja ameaça de aborto, quando, por ções alimentares, a mulher evita pegar lenha, ir à
exemplo, a mulher come piranha muito pequena, roça e fazer comida por cerca de quatro meses, sem-
recomenda-se a ela adicionar à comida bastante pre em função da saúde da criança. De modo simi-
pimenta do tipo bem pequeno (y’ky’yj). lar, o marido permanece deitado durante cerca de
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O parto é realizado na própria casa, com a quatro dias e, quando o umbigo do recém-nascido
ajuda da mãe ou, na sua falta, da irmã ou de pa- cai, toma uma infusão da raiz kawikita para vomi-
rente próxima. Se houver dificuldade no nasci- tar. Passa, então, a receber a mesma alimentação da
mento, chama-se uma mulher com muita experi- esposa, até a criança andar. Tanto a dieta alimentar
ência, uma espécie de parteira (pingamo’ahat), e, como as atividades rotineiras do homem e da mu-
se o quadro se agravar, o pajé. Atualmente, com a lher só retornam ao padrão usual quando a crian-
presença do agente de saúde na aldeia, a parturi- ça completa três ou quatro anos. Se adicionarmos
ente pode vir a ser removida para o hospital da esse espaço de tempo ao da dieta que se inicia no
cidade de Canarana. O recém-nascido é examina- momento em que a gravidez é registrada, um casal
do com cuidado, e seus membros são esticados pode permanecer mais de quatro anos num regi-
para que fiquem retos. Sendo constatada má for- me especial de alimentação. Há, evidentemente,
mação grave, cabeça muito grande, feição de ani- violações, atestadas pelas doenças que atingem
mal etc, ele é sacrificado com veneno. Destino se- crianças novas e que são publicamente apontadas
melhante têm as crianças geradas por mãe solteira por membros da comunidade. Uma forma de con-
ou em relações fora do casamento, ou ainda os tornar o regime alimentar durante o período mar-
gêmeos; logo após o nascimento e sem que se cor- cado por essas regras tornou-se possível com a
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introdução de alguns produtos industrializados, são feitas bolinhas, no padrão denominado ‘onça
como o açúcar, que eventualmente pode substituir pequena’ (jawari apinin).
o mel de abelha (apontado como causador de feri- Não se observa, na aldeia de Ipavu, criança
das na cabeça da criança), o macarrão, arroz, feijão engatinhando. A partir dos oitos meses de idade,
etc., mas de aquisição irregular e condicionada à ela é colocada de bruços sobre um pano no chão e
disponibilidade de dinheiro e transporte.10 quando começa a se mover muito, um adulto colo-
Do mesmo modo que observam os cuida- ca-a de pé e, segurando-a pelos braços, faz com
dos tradicionais nos primeiros anos de vida, os que ensaie alguns passos. Espera-se que, ao redor
adultos reconhecem, de modo unânime, a impor- de um ano, ela comece a caminhar e, se isso não
tância da vacinação regular realizada pela equipe acontecer, o remédio akyky-arowai é passado em
médica.11 E uma prática cultural que revela, ainda suas pernas durante quatro dias.
que indiretamente, a melhoria das condições de A maioria das crianças começa a falar com
saúde da criança é a atribuição dos primeiros no- dois anos de idade. Para estimular a fala, costuma-
mes pessoais. De acordo com o costume, os no- se passar a língua do pássaro xexéu (o mesmo que
mes passam dos avôs para os netos e, como não é japim) na língua da criança. Em média, a criança
permitido pronunciar o nome de parentes afins, a mama até dois anos e meio de idade, quando come-
pessoa recebe dois nomes, um dado pela mãe e ça a desmamar espontaneamente. Mas há casos em
outro pelo pai. Em décadas passadas, a criança que ela, embora recebendo outros alimentos, insis-
recebia seus primeiros nomes após seis ou oito te em ter o leite materno. Nessas situações, ela é,
meses de vida, ocasião em que os pais estavam vez por outra, consultada pela mãe se não gostaria
mais seguros de que ela iria sobreviver. Com isso, de parar de mamar. Havendo concordância, a mãe
evitavam a perda do nome, caso o recém-nascido passa em sua língua o y’jaraók, bichinho encontra-
viesse falecer, e asseguravam sua transmissão no do na areia da lagoa, fazendo cessar o desejo. A
futuro. Atualmente, é prática corrente a nominação mulher pode eventualmente fazer uso do remédio
bastante precoce: logo após o nascimento, crian- warutsa para estimular a produção de leite.
ças do sexo masculino são denominadas I’in, e as Como a constituição da prole é uma tarefa
do sexo feminino Pia, ambos os nomes indicando que envolve várias restrições na vida cotidiana, o
o fato de o nenê não ter ainda nomes próprios, casal busca espaçar futuros nascimentos. Tenta-se
que serão recebidos um mês depois.12 interromper a gravidez indesejada com pira’in, re-
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da que alimentem um ideal difuso de fidelidade, tais para a preservação da saúde, e, ao mesmo tem-
os Kamaiurá quebram a monotonia conjugal em po, punem os transgressores com doença e mesmo
aventuras amorosas, sendo mesmo possível afir- morte. O sentido maior da sua presença deve-se ao
mar que, para eles, o exercício da sexualidade con- fato de serem eles os grandes protetores da vida,
tribui para a manutenção de um corpo saudável. atuando diretamente na gestação da mulher, no de-
Até mulheres que há muito passaram pela meno- senvolvimento do feto e na defesa da saúde da cri-
pausa (maitsupik) vivem amores secretos, o mes- ança durante os primeiros anos de existência.
mo acontecendo com homens velhos, que contor- A religião kamaiurá protege a produção e a
nam eventuais dificuldades passando sobre o pê- reprodução sociocultural do povo, sem a ideia de
nis os pelos (ta’akawat) do bambu infantil, que um sagrado transcendental; seus heróis e entida-
nascem perto do bulbo; dizem que a coceira esti- des possuem poder superior, mas pertencem ao
mula a ereção. mundo terrestre. Mavutsinin e seus familiares
moram em Morená, a poucas horas da aldeia, e os
*** mama’e se espalham pelas matas, águas e roças;
vários deles vivem dentro das casas, junto aos
Na mitologia kamaiurá, Mavutsinin criou a
objetos cerimoniais de quem são donos. Sua mis-
vida humana, a base cultural da existência social
são é ensinar a manter a saúde e preservar a vida
e, juntamente com seus netos, Kwat e Yai, proveu
cerimonial.
o universo de importantes recursos naturais. Com-
pletadas as obras, deixaram as criaturas livres para
enfrentar o devir, repetindo, assim, o desempe- (Recebido para publicação em julho de 2009)
nho de muitas entidades que povoam o imaginá- (Aceito em setembro de 2009)
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Carmen Junqueira, Heloisa Pagliaro
PINTO, N.R.S.; BARUZZI, R.G. Reclusão pubertária mas- TODOROV, T. A vida em comum. Ensaio de antropologia
culina em índios do Alto Xingu, Brasil Central. In: geral. Trad. Denise Bottman e Eleonora
BARUZZI, Roberto G.; JUNQUEIRA, Carmen (Org.) Par- Bottman.Campinas,SP: Papirus, 1996.
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SAMAIN, E. De um caminho para outro. Mitos e aspectos 2000.
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Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Programa de VITTI, Vaneska Taciana. Jovens kamaiurá no século XXI.
Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Fe- 2005. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Progra-
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(Mestrado em Educação Física) - Programa de Pós-Gradu-
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Estadual de Campinas, 1994.
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O SABER KAMAIURÁ SOBRE A SAÚDE DO CORPO
Carmen Junqueira - Etnóloga, doutora em Antropologia pela UNICAMP e professora titular e emérita do
Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. Estuda povos indígenas dos estados de São Paulo, Acre, Rondônia e Mato Grosso. Pesquisa os
Kamaiurá (MT) desde 1965. Além de inúmeros artigos em periódicos nacionais e estrangeiros, publicou
diversos livros, como “Os Índios do Ipavu” (1979), “Sexo e Desigualdade entre os Kamaiurá e os Cinta
Larga” (2002) e “Parque Indígena do Xingu. Saúde, Cultura e História” (2005).
Heloísa Pagliaro - Cientista social, mestre em Demografia pelo Instituto de Demografia da Universidade de
Paris I e doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. É lotada no Centro de Recursos Humanos
da UFBA e está em exercício no Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São
Paulo, onde desenvolve pesquisa demográfica junto a povos indígenas, no âmbito do Programa de Saúde dos
Povos do Parque Indígena do Xingu – Projeto Xingu. É Bolsista de Produtividade de Pesquisa II do CNPq e
integra o GT Demografia dos Povos Indígenas da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Além de
artigos em periódicos nacionais e internacionais e capítulos em livros, publicou “Demografia dos Povos
Indígenas no Brasil” (2005).
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