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Abstract
Theological consideration on the Trinity is currently being undertaken in terms of
“economic Trinity” and “immanent Trinity”. The present article seeks to offer an
alternative to this Trinitarian-theological study schematic. Starting from the rela-
tionship between theologia and dispensatio (economy), explained in accord with the
teaching of St. Thomas Aquinas on the divine processions and missions, the teaching
of Trinitarian theology is proposed in three steps: beginning with economy, one then
progresses to the consideration of the divine Persons in their eternal being and their
relations, which illuminates the creating and salvific action of the Trinity.
Keywords: Trinity, divine missions, theology, dispensatio, revelation, salvation.
1) Publicado originalmente em inglês: Theologia and Dispensatio: The Centrality of the Divine Mis-
sions in St. Thomas’s Trinitarian Theology. The Thomist, v. 74, 2010, p. 515-561. Tradução por
Joshua Alexander Sequeira, EP. A direção de Lumen Veritatis agradece vivamente ao Autor e a Gre-
gory LaNave, editor do The Thomist, pelos direitos de publicação da versão portuguesa deste artigo.
N. do T.: As citações do Aquinate em latim estão como no original e correspondem às referências de no-
ta 3; já as portuguesas são traduções oriundas das citações no artigo em inglês, mas cotejadas com as
traduções portuguesas das obras do Aquinate. O mesmo acontece com citações em outras línguas que
estão em inglês no texto original.
2) O Autor é dominicano, membro da província suíça. Doutor em teologia (1994), e Magister in sacra
theologia (2012), é também Professor ordinário de teologia dogmática na Universidade de Fribourg
(Suíça) desde 1997. Foi membro da Comissão Teológica Internacional (2004-2014). É o editor da re-
vista Nova et Vetera (2012-), editor-associado da edição inglesa de Nova et Vetera (2003-) e membro
do Conselho de Redação da Revue Thomiste (1995-). É membro da Academia Pontifícia de São Tomás
de Aquino (2001-) e da Academia Europeia de Ciências e Artes (2008-). Participa do conselho editorial
da coleção Studia Friburgensia (Fribourg) e da coleção Thomistic Ressourcement (CUA-Washington).
3) As minhas referências aos trabalhos de São Tomás são tomadas das seguintes edições. Summa Theolo-
giae: Cura et studio Instituti Studiorum Medievalium Ottaviensis, Editio altera emendata, 5 vols. (Ot-
tawa: Harpell, 1941-45). Scriptum do Livro I das Sentenças: ed. P. Mandonnet (Paris: Lethielleux, 1929);
Scriptum do Livro IV das Sentenças, d. 23-50: Opera omnia, ed. S. E. Fretté, vol. 11 (Paris: Louis Vi-
vès, 1882). Summa contra Gentiles: ed. P. Marc, C. Pera, et al., 3 vols. (Turim e Roma: Marietti, 1961-
67). Contra doctrinam retrahentium a religione: Edição Leonina, vol. 41 C (Roma: Ad Sanctae Sabinae,
1970). Sententia libri Politicorum: Edição Leonina, vol. 48 A (Roma: Ad Sanctae Sabinae, 1971). Com-
pendium Theologiae: Edição Leonina, vol. 42 (Roma: Editori di San Tommaso, 1979). Quaestiones Dis-
putatae De Veritate: Edição Leonina, vol. 22 (Roma, 1975-76). Quaestiones Disputatae De Potentia:
ed. P. Bazzi et al. (Turim e Roma: Marietti, 1965). Super evangelium S. Ioannis lectura: ed. R. Cai, 5ª
ed. (Turim e Roma: Marietti, 1952). Catena aurea in quatuor evangelia: 2 vols., ed. A. Guarienti (Turim
e Roma: Marietti, 1953). Super Epistolas S. Pauli lectura: ed. R. Cai, 2 vols. (Turim e Roma: Mariet-
ti, 1953). In librum beati Dionysii De Divinis Nominibus: ed. C. Pera (Turim e Roma: Marietti, 1950).
Também faço uso (com algumas modificações) das seguintes traduções inglesas: Commentary on
the Gospel of John, Part I, trad. J. A. Weisheipl e F. R. Larcher (Albany, N. Y.: Magi Books, 1980); Part
II, trad. J. A. Weisheipl e F. R. Larcher (Petersham, Mass.: St. Bede’s Publications, 1999). Summa Theo-
logiae: Latin Text and English Translation, ed. T. Gilby and T. C. O’Brien (London: Eyre and Spottis-
woode; New York: McGraw-Hill, 1964-73). Summa Theologica, trad. Fathers of the English Domini-
can Province, 5 vol. (New York: Benzinger, 1948).
I. Theologia e dispensatio
São Tomás não fala de “teologia” e “economia” tal como nós, hoje em dia.
Ele emprega a palavra theologia para se referir à divindade, ou deidade, das três
Pessoas; este significado da palavra theologia aparece nas citações patrísticas. 5
Ele também emprega a palavra oeconomia, ou yconomia, porém, esta palavra
é encontrada na maioria das vezes em seus comentários a Aristóteles, e signi-
fica o governo do lar. 6 Isto posto, São Tomás tem um atilado entendimento da
realidade que descrevemos, em relação aos Padres Capadócios, como “teolo-
gia” e “economia”. Para theologia usa diversas expressões, como, por exem-
plo, “Deus... secundum quod in se est”. 7 E em relação ao que chamamos “eco-
nomia”, no contexto da teologia trinitária, a sua palavra principal é dispensa-
4) Para uma discussão sobre as missões divinas (especialmente as “missões visíveis”, com ampla biblio-
grafia) em Alexandre de Hales, Santo Alberto, e São Boaventura, cf. Juárez, Guillermo A. Dios Trini-
dad en todas las creaturas y en los santos. Córdoba, Argentina: Ediciones del Copista, 2008, p. 157-186
(Alexandre de Hales), p. 211-36 (Alberto Magno), e p. 259-85 (Boaventura); cf. etiam: p. 77-101 so-
bre as missões divinas em Santo Agostinho. A estreita relação entre as “eternas processões” e “missões”
foi claramente ressaltado por Pedro Lombardo; cf. Schneider, Johannes. Die Lehre vom Dreieinigen
Gott in der Schule des Petrus Lombardus. Munich: Max Hueber, 1961, p. 93-111. Os autores que de fa-
to comentaram as Sentenças de Lombardo dificilmente podiam perder esta relação. A seguinte questão
é especialmente digna de consideração para uma pesquisa futura: como foi que os autores do séc. XIII
e dos séc. XIV e XV integraram o ensinamento da vida íntima da Trindade dentro da doutrina das mis-
sões divinas? Posto de outro modo: até que ponto os teólogos da Idade Média tardia (incluindo os pró-
prios “tomistas”) deram lugar central às missões divinas enquanto portando nelas mesmas o eterno mis-
tério da Trindade?
5) Cf., por exemplo, S. Th., III, q. 2, a. 6, ad 1 (citando São João Damasceno). Catena in Lucae evange-
lium, c. 9, n. 6 (Marietti ed., 2:131) (citando São João Damasceno). Catena in Iohannis evangelium,
prólogo (Marietti ed., 2:323) (citando Eusébio de Cesareia). In librum beati Dionysii De Divinis Nomi-
nibus, c. 2, lect. 2 (Marietti ed., n. 155) (citando Dionísio). Por estas referências, e pelo que segue, fico
agradecido a Sabathé, Martin. La Trinité rédemptrice: Processions et missions trinitaires dans le Com-
mentaire de l’évangile selon saint Jean par saint Thomas d’Aquin. Paris: Vrin, 2011.
6) Cf. I Sent. Politic., lib. I, c. 2 (Leonina ed., 82); In I Epist. ad Tim., c. 2, lect. 2 (Marietti ed., n. 104).
7) S. Th., I, q. 2, prol.
8) Cf., por exemplo, Lectura in Iohannis evangelium 6: 15 (Marietti ed., n. 870): “Dispositio Dei Patris
ab aeterno”. Cf. Lectura in Iohannis evangelium 7: 23 (Marietti ed., n. 1049); S. Th., I, q. 22, a. 1, ad 2.
9) S. Th., II-II, q. 1, a. 7 (com referência explícita à Encarnação e Paixão de Cristo). Ver também Comp.
Theol., I, c. 238: “Foi pela dispensação [dispensationis fuerit] que ele manteve as marcas de suas feri-
das no seu corpo, para que a verdade da ressurreição pudesse ser demonstrada por elas” (Leonina ed.,
185). Cf. João Damasceno, Santo. De Fide Orthodoxa: Versions of Burgundio and Cerbanus, c. 91
(ed. E. M. Buytaert. St. Bonaventure, N. Y.: The Franciscan Institute, 1955, p. 349): “secundum dispen-
sationem”. Para o texto grego de São João Damasceno, cf. Expositio fidei 4.18 em Die Schriften des Jo-
hannes von Damaskos, vol. 2, ed. B. Kotter. Berlin: Walter de Gruyter, 1973, p. 217: “kat’ oikonomian”.
10) S. Th., III, q. 2, a. 6, ad 1: “Et in theologia, idest in deitate personarum, et in dispensatione, idest
in mysterio incarnationis”. Cf. João Damasceno, Santo. De Fide Orthodoxa: Versões de Burgun-
dio and Cerbanus, c. 70, p. 272: “Et in theologia et in dispensatione”. Cf. Expositio fidei 3.26 (Kot-
ter, ed., p. 169).
11) In Epist. ad Colossenses 1:25 (Marietti ed., n. 65): “Verbum Dei, id est, Dei dispensationem, et præor-
dinationem et promissionem de Verbo Dei incarnando”.
12) In Epist. ad Colossenses 2:2 (Marietti ed., n. 80): “Vel mysterii Dei Patris, quod est Christus”.
13) Cf. por exemplo: Lectura in Iohannis evangelium 11:27 (Marietti ed., n. 1520): “Marta confessa a dig-
nidade de Cristo, sua natureza, e a dispensatio, isto é, da encarnação [dispensationem, scilicet incarna-
tionis]”.
é o próprio Cristo, uma vez que Ele, em sua Encarnação, é o Verbo de Deus
feito carne. 14
14) Lectura in Iohannis evangelium 1:1 [Marietti ed., n. 34]: “Invenitur ordo in disciplinis, et hic est du-
plex: secundum naturam, et quoad nos; et utroque modo dicitur principium. Hebr. V: ‘Deberetis esse
magistri propter tempus’. Et hoc modo, secundum naturam quidem, in disciplina christiana initium et
principium sapientiæ nostræ est Christus, inquantum est Sapientia et Verbum Dei, idest secundum divi-
nitatem. Quoad nos vero principium est ipse Christus, inquantum Verbum caro factum est, idest secun-
dum eius incarnationem”.
15) S. Th., prólogo.
16) S. Th., II-II, q. 189, a. 1, ad 4; cf. arg. 4. Cf. etiam: Contra doctrinam retrahentium, c. 7 (Leonina ed.,
50).
única Divindade. 17 Uma vez que estas processões ocorrem dentro da Divin-
dade, e a Pessoa que procede permanece dentro da Pessoa de quem proce-
de, tais processões ou “origens” abarcam tanto a consubstancialidade das três
Pessoas (i.e., elas serem um só Deus) quanto a sua distinção pessoal (em vir-
tude das relações pessoais fundadas nas próprias processões). 18
Quanto às “missões divinas”, seguindo a tradição enraizada em Santo Agos-
tinho, São Tomás distingue entre as missões “visíveis” e as “invisíveis”. Por
“missões visíveis” entende o advento do Filho de Deus feito carne, e a manifes-
tação do Espírito Santo pelos sinais visíveis (no Batismo e na Transfiguração
de Cristo, na Páscoa [Jo 20, 22-23], e em Pentecostes [At 2]). As “missões divi-
nas” reportam aos eventos históricos fundamentais para a salvação, do Natal
até Pentecostes. 19 Por “missões invisíveis” São Tomás entende o envio do Filho
e do Espírito Santo às almas humanas (e aos Anjos): “Deus enviou o Espírito do
seu Filho aos nossos corações, clamando, Abba! Pai!” (Gl 4, 6). Estas missões
são chamadas “invisíveis” porque, apesar dos seus frutos se manifestarem exte-
riormente na prática de uma vida santa, eles se realizam interiormente na alma
dos justos. Na missão invisível, como também na visível, a Pessoa é enviada
por Aquele de quem Ela procede. A eterna relação da origem está incluída na
própria missão; a Pessoa é enviada de acordo com a sua propriedade pessoal.
A) O conceito de missão
A missão de uma Pessoa Divina tem duas características constitutivas: 1) a
eterna processão da Pessoa, e 2) a relação da Pessoa Divina com a criatura à
qual esta se faz presente de um modo novo. Podemos formular os dois aspec-
tos em termos tanto de processão como de relação. Em termos de processão:
a missão consiste na processão da Pessoa em direção à criatura. A missão
inclui em si mesma a eterna processão, à qual se acrescenta um efeito cria-
do que dispõe a criatura a receber a própria Divina Pessoa de um modo novo
(falamos, portanto, da “processão temporal” do Filho e do Espírito Santo). 20
Em termos de relações ou relacionamentos: “O sentido de ‘ser enviado’ inclui
17) I Sent., d. 13, q. 1, a. 1: “Eductio principiati a suo principio”. De Pot., q. 10, a. 1, ad 2: “Secundum
quod importat quemdam emanationis ordinem”.
18) Sobre as “processões”, cf.: Emery, Gilles. The Trinitarian Theology of Saint Thomas Aquinas. Trad.
Francesca A. Murphy. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 51-77.
19) S. Th., I, q. 43, a. 7.
20) S. Th., I, q. 43, a. 2, ad 3; cf. I Sent., d. 14, a. 1-2.
B) As “missões invisíveis”
As “missões invisíveis”, ou seja, o envio do Espírito Santo e do Filho aos
Anjos e às almas humanas, nos dão a estrutura fundamental da divinização.
Aqui a referência, ou paradigma, é a infusão do Espírito Santo que é dado. As
missões invisíveis consistem não somente no dom de um efeito criado, mas
sobretudo na própria Pessoa Divina que é enviada:
21) S. Th., I, q. 43, a. 1: “In ratione missionis duo importantur, quorum unum est habitudo missi ad eum a
quo mittitur; aliud est habitudo missi ad terminum ad quem mittitur”. Cf. I Sent., d.15, q.1, a.1.
22) S. Th., I, q. 43, a. 1; cf. ibid., ad 1: “Em Deus, ‘missão’ significa somente processão de origem [proces-
sio originis], que é de acordo com a igualdade, como explicado acima”.
23) S. Th., I, q. 43, a. 1: “Missio igitur divinæ personæ convenire potest, secundum quod importat ex una
parte processionem originis a mittente; et secundum quod importat ex alia parte novum modum exis-
tendi in aliquo”.
24) Para uma abordagem mais extensa sobre as missões divinas em São Tomás, cf. Emery, Gilles. Mis-
sions invisibles et missions visibles: Le Christ et son Esprit. Revue Thomiste, v. 106, 2006, p. 51-99;
idem. The Trinitarian Theology of Saint Thomas Aquinas, op. cit., p. 360-412.
A ordenação natural entre duas coisas pode ser vista de duas maneiras. 1)
Do lado de quem recebe, a disposição tem prioridade sobre aquilo para o
que dispõe: neste sentido, a recepção dos dons do Espírito Santo tem prio-
ridade sobre a do próprio Espírito Santo em Si mesmo, uma vez que é rece-
bendo esses dons que nós somos conformados com Ele. 2) Mas no lado do
agente e fim, a prioridade pertence ao que está mais próximo do agente e
fim: neste sentido, a recepção do Espírito Santo tem prioridade sobre os
dons, e este tipo de prioridade é absoluto. 28
O efeito temporal, um dom criado, é causado pelo Espírito Santo e nos dis-
põe a recebê-lo. Do ponto de vista da nossa assimilação ao Espírito Santo, o
dom criado da graça santificante é primário: é a prioridade de uma disposi-
ção. Mas do ponto de vista da causa da graça, e do fim para o qual a graça
25) S. Th., I, q. 43, a. 3, corp., ad 1 e ad 2: “In ipso dono gratiæ gratum facientis, Spiritus Sanctus habetur,
et inhabitat hominem. Unde ipsemet Spiritus Sanctus datur et mittitur... Missio invisibilis fit secundum
donum gratiæ gratum facientis, tamen ipsa persona divina datur... Gratia gratum faciens disponit ani-
mam ad habendam divinam personam, et significatur hoc, cum dicitur quod Spiritus Sanctus datur se-
cundum donum gratiæ. Sed tamen ipsum donum gratiæ est a Spiritu Sancto, et hoc significatur, cum di-
citur quod ‘caritas Dei diffunditur in cordibus nostris per Spiritum Sanctum’”.
26) Lectura in Iohannis evangelium 4:10 (Marietti ed., n. 577): “Ita ipsa gratia Spiritus Sancti datur homi-
ni quod tamen ipse fons gratiae datur, scilicet Spiritus Sanctus”.
27) I Sent., d. 16, q. 1, a. 1. Retornarei a este assunto abaixo.
28) I Sent., d. 14, q. 2, a. 1, qcla. 2: “Ordo aliquorum secundum naturam potest dupliciter considerari. Aut
ex parte recipientis vel materiae, et sic dispositio est prior quam id ad quod disponit: et sic per prius re-
cipimus dona Spiritus Sancti quam ipsum Spiritum, quia per ipsa dona recepta Spiritui Sancto assimila-
mur. Aut ex parte agentis et finis; et sic quod propinquius erit fini et agenti, dicitur esse prius: et ita per
prius recipimus Spiritum Sanctum quam dona ejus, quia et Filius per amorem suum alia nobis donavit.
Et hoc est simpliciter esse prius”.
nos dispõe (ou seja, receber o Espírito Santo em Pessoa), a recepção do Espí-
rito Santo tem prioridade sobre os seus dons: neste sentido, o dom do próprio
Espírito Santo é absolutamente primário. Este ensinamento é essencial para a
correta compreensão das missões divinas.
O comentário de São Tomás sobre Romanos 5, 5 é talvez a melhor passa-
gem sobre este tema. Aqui, ele mostra que o Espírito Santo é dado em Pessoa;
e que quando é concedido, Ele nos confere a participação na sua propriedade
pessoal, isto é, a caridade:
29) In Epist. ad Romanos 5:5 (Marietti ed., n. 392): “Charitas Dei autem dupliciter accipi potest. Uno mo-
do pro charitate qua diligit nos Deus, Ier. XXXI: ‘Charitate perpetua dilexi te;’ alio modo potest dici
charitas Dei, qua nos Deum diligimus, infra VIII: ‘Certus sum quod neque mors neque vita separabit
nos a charitate Dei’. Utraque autem charitas Dei in cordibus nostris diffunditur per Spiritum Sanctum
qui datus est nobis. Spiritum enim Sanctum, qui est Amor Patris et Filii, dari nobis, est nos adduci ad
participationem Amoris, qui est Spiritus Sanctus, a qua quidem participatione efficimur Dei amato-
res. Et hoc quod ipsum amamus, signum est, quod ipse nos amet. Prov. VIII: ‘Ego diligentes me dili-
go’. ‘Non quasi nos primo dilexerimus Deum, sed quoniam ipse prior dilexit nos’, ut dicitur I Io. IV. Di-
citur autem charitas, qua nos diligit, in cordibus nostris diffusa esse, quia est in cordibus nostris paten-
ter ostensa per donum Sancti Spiritus nobis impressum. Io. III: ‘In hoc scimus, quoniam manet in no-
bis Deus’, etc. Charitas autem qua nos Deum diligimus, dicitur in cordibus nostris diffusa, id est quia
ad omnes mores et actus animae perficiendos se extendit; nam, ut dicitur I Cor. XIII: ‘Charitas patiens
est, benigna est’, etc”.
A esta altura, alguém poderia levantar a seguinte objeção: para São Tomás,
as relações entre as pessoas divinas e as criaturas são “reais” nas criaturas,
mas em Deus são “relações de razão”. 30 Pode uma relação “de razão” dar con-
ta do dom real da própria Pessoa Divina? Aqui é necessário recordar dois
aspectos do ensinamento de São Tomás sobre as relações. Primeiro, para
que as relações sejam “reais” (relatio realis) em ambos os termos ou extre-
mos correlativos, esses dois termos devem pertencer à mesma ordem (unius
ordinis). Esta é uma das principais condições para a existência das relações
que são bilateralmente reais. 31 Por causa disto, uma vez que “Deus está fora
de toda a ordem das criaturas”, 32 as suas relações com as criaturas são “de
razão” e não “reais”. Atribuir a Deus uma relação “de razão” com as cria-
turas não significa que tal relação é uma mera ficção mental, mas que Deus
ultrapassa a relação que nós temos com Ele, porque Ele é a Causa transcen-
dente. Segundo, São Tomás distingue entre dois tipos de “relações de razão”.
No primeiro tipo, a “ordem” (ordo) dos conceitos é posta pelo nosso intelec-
to (inventus per intellectum). Este é o caso, por exemplo, das relações entre
gênero e espécie (relações lógicas). No segundo tipo, a relação surge do modo
do nosso entender (modus intelligendi), “quando o intelecto entende uma coi-
sa em sua referência [ordo] com outra, apesar dessa relação não ser ‘inven-
tada’ por nosso intelecto, mas segue por uma espécie de necessidade o seu
modo de entender”. 33 Esta distinção (amiúde negligenciada) é importante. As
relações das pessoas divinas com as criaturas pertencem ao segundo tipo de
relações, a saber, aquelas que “estão atribuídas pelo intelecto não àquilo que
está no intelecto, mas àquilo que tem realidade objetiva. Da mesma forma,
nosso intelecto atribui a Deus certos nomes relativos, à medida que conside-
ra a Deus como o termo da relação das criaturas com Ele”. 34 A ação de Deus
em nosso favor é muito real. É real a ponto de ser identificada com a própria
essência de Deus, mas não traz qualquer acréscimo a Ele. É por isto que a
ação de Deus no mundo é “a essência de Deus com uma relação com a criatu-
ra” (uma relação de razão): isso não introduz nenhuma diferença ou alteração
progressiva no próprio Deus. 35
O envio interior do Espírito Santo e do Filho às almas consiste, portanto,
em dois aspectos. O primeiro é o aspecto incriado da própria Pessoa Divina
enviada de acordo com o próprio modo de existência. O Filho é enviado pelo
Pai tal como Ele é gerado pelo Pai; o Espírito Santo é enviado pelo Pai e pelo
Filho enquanto procede do Pai e do Filho. Sob este primeiro aspecto, a mis-
são invisível envolve a processão eterna da Pessoa Divina que é enviada. A
Pessoa enviada é o Filho gerado e o Espírito Santo que procede. O Filho e o
Espírito Santo são enviados aos corações de acordo com o que são.
O segundo aspecto que constitui as missões invisíveis é um dom da gra-
ça santificante que as Pessoas divinas dão às almas, um efeito criado em
razão do qual o Filho e o Espírito Santo estão presentes de uma maneira nova.
Quando o Espírito Santo é enviado, este novo efeito consiste no dom da cari-
dade. A caridade torna as almas conformes ao Espírito Santo, que é Amor em
Pessoa. No envio do Filho, este efeito é o dom do conhecimento santifican-
te de Deus, a saber, a sabedoria (os dons divinizantes que iluminam o inte-
lecto, começando pela fé), que torna as almas conformes com o Filho, o Ver-
bo do Pai. Na exposição das missões divinas, encontramos a mesma doutri-
na do Verbo e do Amor que São Tomás desenvolvera em sua exposição teo-
lógica sobre as propriedades eternas do Filho e do Espírito Santo. O Filho é
enviado invisivelmente às almas quando Ele habita nelas segundo o dom de
sabedoria, ou conhecimento santificante, que desabrocha na afeição do amor
— como o Filho é o Verbo que espira o Amor. E o Espírito Santo é enviado às
almas quando Ele habita nelas de acordo com o dom da caridade — uma vez
que o Espírito Santo é Amor. 36 O dom de sabedoria é a participação na pro-
34) De Pot., q. 7, a. 11: “Et huiusmodi relationes intellectus non attribuit ei quod est in intellectu, sed ei
quod est in re... Et similiter aliqua nomina relativa Deo attribuit intellectus noster, in quantum accipit
Deum ut terminum relationum creaturarum ad ipsum”.
35) S. Th., I, q. 45, a. 3, ad 1: “Creatio active significata significat actionem divinam, quæ est eius essen-
tia cum relatione ad creaturam. Sed relatio in Deo ad creaturam non est realis, sed secundum rationem
tantum. Relatio vero creaturæ ad Deum est relatio realis, ut supra dictum est, cum de divinis nomini-
bus ageretur”.
36) S. Th., I, q. 43, a. 5, ad 2; cf. I Sent., d. 14, q. 2, a. 2, ad 2; I Sent., d. 15, q. 4, a. 1.
C) As missões visíveis
As missões visíveis manifestam as missões invisíveis através de sinais visí-
veis. Na sua exposição sobre as missões visíveis do Espírito Santo, São Tomás
explica que elas contêm três características: 1) o envio do Espírito Santo pelo
Pai e o Filho, donde Ele procede eternamente (a sua eterna processão); 2) a
nova presença da Pessoa Divina (em virtude do dom criado que dispõe a alma
a receber o Espírito Santo em Pessoa); e 3) a revelação, ou manifestação, da
eterna origem e da nova presença do Espírito Santo por um sinal visível. 38
Este ensinamento implica que a missão da Pessoa Divina “não é essencial-
mente diferente da processão eterna, mas apenas acrescenta uma referência a
um efeito temporal”. 39 Em outras palavras, a missão traz em si mesma a eter-
na processão da Pessoa enviada. A missão inclui a Pessoa incriada, de acordo
com a relação que constitui eternamente esta Pessoa.
As missões visíveis são orientadas para as missões invisíveis: elas estão
ordenadas ao dom interior do Filho e do Espírito Santo e à inabitação de toda
a Trindade.
A) Revelação e salvação
O mistério da Trindade em si mesmo, quer dizer, o mistério das Pessoas
na sua comum divindade e nas suas propriedades pessoais, é revelado e feito
presente dentro da própria dispensatio, uma vez que a eterna geração do Filho
e a eterna processão do Espírito Santo estão realmente incluídas em suas mis-
sões. São Tomás sustenta esta verdade sem confundir a economia com a teo-
logia. O mistério eterno da Trindade está presente e revelado no Filho feito
carne, e no próprio Espírito Santo que é dado. Retornarei a este ponto mais
tarde. Por ora, fixarei as explicações de São Tomás a respeito da revelação da
Trindade.
Em sua discussão sobre as missões visíveis, na Summa Theologiae, ele
explica que:
Deus provê todas as coisas de acordo com a natureza de cada uma. Ago-
ra, a natureza do homem requer que ele seja dirigido ao invisível pelas coi-
sas visíveis, como explicado acima. As coisas invisíveis de Deus devem se
manifestar ao homem pelas coisas que são visíveis. Como Deus, por con-
seguinte, de certo modo se mostrou a si mesmo e as suas eternas proces-
sões ao homem através de criaturas visíveis, de acordo com certos sinais;
assim era apropriado que as missões invisíveis das Pessoas divinas tam-
bém deviam ser manifestas por algumas criaturas visíveis. Contudo, este
modo de manifestação aplica-se de forma diferente ao Filho e ao Espíri-
to Santo. Pois pertence ao Espírito Santo, que procede como Amor, ser o
dom da santificação [sanctificationis donum]; e ao Filho, enquanto princí-
pio do Espírito Santo, pertence ser o autor desta santificação [sanctificatio-
nis auctor]. Assim o Filho foi enviado visivelmente como o autor da santifi-
cação; o Espírito Santo como o sinal da santificação. 40
Nesta passagem, São Tomás enfatiza duas funções das missões visíveis: 1)
revelação (demonstrare, manifestare) e 2) santificação (sanctificatio). Com
respeito ao primeiro aspecto (revelação), as missões visíveis do Filho e do
Espírito manifestam as suas missões invisíveis. Isto significa que as missões
visíveis envolvem uma dupla revelação: elas manifestam as eternas proces-
sões do Filho e do Espírito, revelam as próprias Pessoas na sua origem eter-
na, e manifestam a doação dessas três Pessoas por meio da graça. 41 Uma liga-
ção semelhante entre o visível e o invisível é encontrada no ensinamento de
São Tomás sobre os milagres de Cristo: de um lado, “é natural ao homem che-
gar à verdade inteligível através dos efeitos sensíveis”; 42 de outro lado, “Cris-
to não curou o corpo de um homem sem curar a sua alma”, uma vez que o fim
da cura visível operada por Cristo era a cura da alma. 43
O segundo fim das missões, a saber, a santificação, implica uma diferen-
ça entre o Filho e o Espírito Santo. O que os distingue é algo enraizado nas
suas propriedades pessoais (propriedades relativas). Uma Pessoa é enviada
por Aquele de quem procede: a relação eterna de origem está incluída na pró-
pria missão; a Pessoa é enviada de acordo com a sua propriedade pessoal.
Uma vez que o Espírito Santo é propriamente e pessoalmente Amor dentro
da Trindade, Ele é o Dom em Pessoa. Sob este aspecto, o Espírito Santo não
é o Doador, mas é o próprio Dom, o “Dom de santificação” (sanctificationis
donum). Ele é dado interiormente como o Dom que santifica, e os sinais visí-
veis (a pomba, a nuvem luminosa, o sopro, as línguas “como que de fogo”)
manifestam-No enquanto tal. Já o Filho é enviado na carne enquanto Filho e
Verbo, ou seja, conquanto Ele é o princípio do Espírito Santo (ser o princípio
do Espírito Santo pertence propriamente ao Filho, enquanto Filho e Verbo do
Pai), e portanto Ele é enviado como o “autor da santificação” (sanctificationis
auctor): o Filho é o Doador do Espírito Santo. Neste sentido, São Tomás rela-
ciona a encarnação ao fato de que o Filho, porque Ele é o Filho e o Verbo do
Pai, toma uma humanidade pela qual Ele dá o Espírito Santo.
41) Como já foi indicado, as missões visíveis contêm três características: a Pessoa divina enviada de acor-
do com a sua processão Pessoal, a nova presença na graça da Pessoa divina, e a revelação da origem
eterna e da nova presença através de um sinal visível. Cf. acima n. 36. I Sent., d. 16, q. 1, a. 1.
42) S. Th., II-II, q. 178, a. 1. A mesma afirmação é feita sobre a encarnação de Cristo (S. Th., III, q. 1, a. 1,
sc), que é “o milagre dos milagres [miraculum miraculorum]” (De Pot., q. 6, a. 2, ad 9). Cf. Morerod,
Charles. The Senses in the Relationship of Man with God. Nova et Vetera (ed. inglesa), v. 5, 2007, p.
789-816.
43) S. Th., III, q. 44, a. 3, ad 3. Para mais referências sobre isto, cf. Berceville, Gilles. L’étonnante al-
liance: évangile et miracles selon saint Thomas d’Aquin. Revue Thomiste, v. 103, 2003, p. 5-74.
44) S. Th., I, q. 43, a. 7, ad 4: “Personam Filii declarari oportuit ut sanctificationis auctorem, ut dictum est:
et ideo oportuit quod missio visibilis Filii fieret secundum naturam rationalem, cuius est agere, et cui
potest competere sanctificare. Indicium autem sanctificationis esse potuit quæcumque alia creatura. Ne-
que oportuit quod creatura visibilis ad hoc formata, esset assumpta a Spiritu Sancto in unitatem per-
sonæ: cum non assumeretur ad aliquid agendum, sed ad indicandum tantum. Et propter hoc etiam non
oportuit quod duraret, nisi quamdiu perageret officium suum”.
45) Lectura in Iohannis evangelium, 1:32 (ed. Marietti, n. 270). Cf. I Sent., d. 16, q. 1, a. 1, ad 1: “A hu-
manidade (uma ‘criatura visível’) assumida pelo Filho não é somente um sinal da missão do Filho, mas
também o beneficiário da missão [ad quod fit missio], enquanto o Filho assumiu esta humanidade na
unidade da sua própria Pessoa”. Sobre isto, cf. Drilhon, Bruno. Dieu missionnaire: Les missions vi-
sibles des Personnes divines selon saint Thomas d’Aquin. Pref. de Gilles Emery. Paris: Téqui, 2009.
46) ScG, IV, c. 55 (Marietti ed., n. 3935): “Divina sapientia exigit ut rebus singulis secundum earum con-
gruentiam provideatur a Deo”. Cf. S. Th., III, q. 18-19.
47) S. Th., III, q. 3, a. 8: “Habet convenientiam specialiter cum humana natura”.
amor”. 48 Esta é uma razão pela qual era apropriado ao Verbo unir-se à nature-
za humana. Quando São Tomás explica que a missão visível do Filho é efetua-
da “numa natureza racional à qual pertence o agir, e que fosse capaz de santifi-
car”, ele não quer dizer que uma criatura possa ser capaz, por si mesma, de san-
tificar ou dar o Espírito Santo: apenas Deus pode santificar. 49 Pelo contrário,
isso deve ser entendido como a ação de uma criatura (a humanidade de Cris-
to) que é dotada de um poder próprio e livre, e que coopera instrumentalmen-
te com a operação divina no trabalho da salvação. Cristo ensina aos fiéis, inte-
riormente, enviando o Espírito Santo sobre eles: “Cristo deu aos seus discípu-
los um ensinamento completo quando enviou o Espírito Santo sobre eles”. 50
Cristo também alcança a salvação para os seus discípulos enviando sobre eles o
Espírito Santo. Este envio é realizado por Cristo enquanto Deus, mas também
enquanto Homem. 51 “Dar a graça ou o Espírito Santo pertence a Cristo enquan-
to Deus, como autoridade [auctoritative]; mas instrumentalmente [instrumen-
taliter], pertence também a Ele enquanto homem, já que a sua humanidade é o
instrumento da sua Divindade”. 52 Deste modo, no meio de sua exposição sobre
as missões na questão 43 da Prima Pars, São Tomás coloca os fundamentos de
seu ensinamento sobre a ação instrumental da humanidade do Filho. A questão
43 fornece o primeiro tratado ampliado sobre as missões, o qual é continuado e
desenvolvido mais tarde na Summa.
Em relação à missão visível do Espírito Santo, ela está ordenada à santifi-
cação dos seres humanos, mas é realizada de modo diferente da missão santi-
ficadora do Filho. O Espírito Santo internaliza a vida da graça em nós, efetu-
ando a santificação e a inabitação divinas. Ele próprio é o que o Filho comu-
nica aos homens nos mistérios da sua carne. Como já assinalado, o Espíri-
to Santo não é o Doador, mas o Dom em si mesmo, infundido nos corações
humanos. Portanto, os indicadores visíveis do Espírito Santo não O manifes-
48) S. Th., III, q. 4, a. 1, ad 2; cf. ibid., corp.: “Conquanto é dotada de razão e inteligência, a natureza hu-
mana é capaz de algum modo atingir o Verbo através das suas operações de conhecimento e amor”.
49) I Sent., d. 14, q. 3: nenhuma criatura poderia dar o Espírito Santo, a não ser como um ministro ou um
instrumento da ação divina; cf. S. Th., I-II, q. 112, a. 1.
50) Lectura in Iohannis evangelium 13:12 (Marietti ed., n. 1771): “Christus perfectam doctrinam discipu-
lis præbuerit, quando Spiritum Sanctum eis misit”. Lectura in Iohannis evangelium 14:26 (Marietti ed.,
n. 1958): “O próprio Filho, falando em termos de sua natureza humana, não é bem sucedido a não ser
que trabalhe de dentro do Espírito Santo [nisi ipsemet interius operetur per Spiritum Sanctum]”.
51) In Epist. ad Titum 3:7 (Marietti ed., n. 93).
52) S. Th., III, q. 8, a. 1, ad 1: “Dare gratiam aut Spiritum Sanctum convenit Christo secundum quod Deus,
auctoritative: sed instrumentaliter ei convenit secundum quod est homo, inquantum scilicet eius huma-
nitas fuit instrumentum divinitatis eius”.
tam como o Doador, mas como o Dom santificador: Ele está presente como o
“significado está no sinal”. 53 O comentário de São Tomás acerca do capítulo
20 de São João oferece um curto mas luminoso exemplo deste ensinamento:
Pai, como também as suas propriedades pessoais. Além disso, enquanto reve-
lam o mistério trinitário, as missões divinas efetuam a salvação.
Primeiro, a ação e o ensinamento do Filho e a ação do Espírito Santo reve-
lam a sua divindade. “A crença que Cristo era Deus podia ser conhecida de
duas maneiras: pelo seu ensinamento e pelos seus milagres. Nosso Senhor
mostra a sua divindade por essas duas formas”. 58 O papel do ensinamento
de Cristo merece atenção especial (ver abaixo). Por ora é suficiente notar que
as ações de Cristo são uma revelação de sua divindade: “Devemos notar que
Cristo é verdadeiramente divino e verdadeiramente humano. Por isso, nas
suas ações, notamos quase sempre que o divino está misturado com o huma-
no, e o humano com o divino”. 59 Aqui, São Tomás começa pela dispensatio
(ou seja, o que Cristo fez na sua carne humana) e conduz o leitor para a theo-
logia (i.e., a divindade de Cristo):
58) Lectura in Iohannis evangelium 14:10 (Marietti ed., n. 1893): “Fides autem de Christo quod esset
Deus, poterat ex duobus manifestari: scilicet ex eius doctrina, et ex miraculis... Ex his duobus Dominus
divinitatem suam ostendit”.
59) Lectura in Iohannis evangelium 11:33 (Marietti ed., n. 1532): “Notandum est, Christum verum Deum
esse, et verum hominem; et ideo ubique fere in factis suis mixta leguntur humana divinis, et divina hu-
manis”.
60) Lectura in Iohannis evangelium 17:3 (Marietti ed., n. 2187): “Constat enim quod cum volumus sci-
re de re aliqua utrum sit vera, ex duobus scire possumus: scilicet ex natura et ex virtute eius. Verum
enim aurum est quod habet veri auri speciem; quod quidem scimus, si facit veri auri operationem. Si er-
go habemus de Filio quod habeat veram Dei naturam, et hoc per veram operationem divinitatis, quam
exercet, manifestum est quod est verus Deus. Quod autem exerceat Filius vera opera divinitatis, patet
supra V: Quaecumque Pater facit, haec et Filius similiter facit”.
61) Lectura in Iohannis evangelium 5:36 (Marietti ed., n. 817): “Naturale est homini virtutem et naturas
rerum ex earum actionibus cognoscere: et ideo convenienter Dominus per opera quae ipse facit, dicit se
posse cognosci qualis sit”.
62) Lectura in Iohannis evangelium 10:38 (Marietti ed., n. 1466): “Nullum enim tam evidens indicium de
natura alicuius rei esse potest quam illud quod accipitur ex operibus ejus. Evidenter ergo cognosci po-
test de Christo et credi quod sit Deus, per hoc quod facit opera Dei”.
63) Lectura in Iohannis evangelium 2:1 (Marietti ed., n. 335): “Supra Evangelista ostendit dignitatem Ver-
bi incarnati, et evidentiam eius multipliciter; hic consequenter incipit determinare de effectibus et ope-
ribus quibus manifestata est mundo divinitas Verbi incarnati, et primo narrat ea quae Christus fecit
in mundo vivendo, ad manifestationem suae divinitatis; secundo quomodo Christus suam divinitatem
monstravit moriendo; et hoc a XII cap. et ultra” (ênfase acrescentada).
64) Lectura in Iohannis evangelium 12:1 (Marietti ed., n. 1589): “In praecedentibus Evangelista ostendit
divinitatis Christi virtutem per ea quae in vita fecit et docuit; hic autem incipit ostendere virtutem divi-
nitatis ipsius quantum ad passionem et mortem eius”.
65) Lectura in Iohannis evangelium 1:42 (Marietti ed., n. 303): “Ubi Christus, ad fidem divinitatis eum
elevare volens, incipit quae divinitatis sunt opera facere, occulta praedicans” (ênfase acrescentada).
na Páscoa, quer dizer, na sua Morte e Ressurreição. 66 São Tomás não negli-
gencia o mistério da Páscoa como um lugar central da revelação da divinda-
de de Cristo e, por conseguinte, da Trindade. Foi “depois da Ressurreição que
os Apóstolos entenderam claramente que Cristo era Deus, por aquilo que Ele
havia mostrado a respeito da sua Paixão e Ressurreição”. 67 A fé na Ressur-
reição de Cristo fez os Apóstolos crerem firmemente que Ele era verdadeiro
Deus, 68 quando a humanidade de Cristo, por sua exaltação, tornou-se “partí-
cipe da divina imortalidade”, 69 ou seja, plenamente “participante da glória do
Pai”. 70
Mutatis mutandis, o mesmo aplica-se à revelação da divindade do Espíri-
to Santo:
É patente que o Espírito Santo é Deus, pois Ele diz, a não ser que se renas-
ça da água e do Espírito Santo, não se pode entrar no reino de Deus...
Disto podemos formar o seguinte argumento: Aquele de Quem os homens
renascem espiritualmente é Deus, mas os homens renascem espiritualmen-
te do Espírito Santo... portanto, o Espírito Santo é Deus. 71
66) Ao ler o Evangelho de São João, São Tomás vê a Paixão de Cristo como sua exaltação. Ver: Lectura in
Iohannis evangelium 13:1 (Marietti ed., n. 1734): “A paixão de Cristo era uma fonte de benefícios e de
glória [promotiva fuit passio Christi et exaltativa], não uma derrota, pois foi com vistas a que Ele pu-
desse partir deste mundo para o Pai, fazendo a sua natureza humana participante da glória do Pai: ‘Subo
para o meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus’ (Jo 20, 17)”.
67) Lectura in Iohannis evangelium 2:21 (Marietti ed., n. 414): “Sed post resurrectionem, quando iam
plene cognoverant Christum esse Deum, per ea quae circa passionem et resurrectionem ostenderat, et
quando sacramentum resurrectionis ipsius didicerant”.
68) Lectura in Iohannis evangelium 16:25 (Marietti ed., n. 2151): “Durante estes quarenta dias nos quais
Ele apareceu-lhes, ensinou-lhes muitos mistérios e disse-lhes muitas coisas sobre Ele mesmo e o Pai,
uma vez que eles tinham sido elevados a coisas mais altas pela sua fé na Ressurreição, acreditando fir-
memente que Cristo era verdadeiramente Deus”.
69) Lectura in Iohannis evangelium 2:19 (Marietti ed., n. 398): “Humanitas in Christo, post eius resurrec-
tionem, immortalitatis divinae particeps effecta est”.
70) Lectura in Iohannis evangelium 13:1 (Marietti ed., n. 1734): “É dito que Cristo voltou para o Pai en-
quanto, até na sua natureza humana, ele tornou-se compartilhador da glória do Pai [consors paternae
gloriae]”. Ver acima, nota 64.
71) Lectura in Iohannis evangelium 3:5 (Marietti ed., n. 444): “Per hoc autem quod hic dicit ‘Nisi quis re-
natus fuerit ex aqua et Spiritu Sancto’, manifeste apparet Spiritum Sanctum esse Deum. Supra enim I,
dicit: Non ex sanguinibus, neque ex voluntate carnis, neque ex voluntate viri, sed ex Deo nati sunt. Ex
quo sic formatur ratio. Ille ex quo spiritualiter renascuntur homines, est Deus; sed homines renascun-
tur spiritualiter per Spiritum Sanctum, ut hic dicitur: ergo Spiritus Sanctus est Deus”. O mesmo ‘argu-
mento soteriológico’ é dado pela fé na divindade de Cristo. Uma vez que a divinização vem pela parti-
cipação em Cristo, Cristo deve ser Deus pela essência (Lectura in Iohannis evangelium 10:35 [Mariet-
ti ed., n. 1460]): “É claro que uma pessoa participando no Verbo de Deus torna-se ‘deus’ pela participa-
ção. Mas uma coisa não se torna isto ou aquilo pela participação a não ser que participe no que é isto ou
aquilo pela sua essência; por exemplo, uma coisa não se torna fogo pela participação a não ser que par-
ticipe naquilo que é fogo pela sua essência. Portanto, não nos tornamos ‘deuses’ pela participação a não
ser que participemos no que é Deus por essência. Assim, o Verbo de Deus, ou seja o Filho, pela partici-
pação no qual nos tornamos ‘deuses’, é Deus por essência”.
72) Lectura in Iohannis evangelium 5:23 (Marietti ed., n. 769). São Tomás continua (ibid.): “Deste mo-
do, ele menciona a origem das Pessoas quando diz, ‘o Filho não pode fazer nada por Ele mesmo, mas
só o que Ele vê o Pai fazer’ (Jo 5, 19), depois, para não acharmos que isto implica desigualdade, ele
acrescenta: ‘Pois tudo o que o Pai faz, o Filho faz igualmente’. Inversamente, quando afirma a igualda-
de d’Eles ao dizer: ‘Pois tal como o Pai ressuscita os mortos e lhes dá vida, também o Filho dá a vida a
quem Ele quer’ (Jo 5, 21); depois, para não negarmos que o Filho tem uma origem e é gerado, Ele acres-
centa, ‘o Pai não julga ninguém, mas entregou todo o julgamento ao Filho’ (Jo 5, 22). Do mesmo modo,
quando menciona a igualdade das Pessoas, ao dizer, ‘de modo que todo o homem possa honrar o Filho
como eles honram o Pai’ (Jo 5, 23), Ele acrescenta imediatamente algo sobre a missão, que indica uma
origem, dizendo: ‘Aquele que não honra o Filho não honra o Pai que o enviou,’ mas não de tal forma
que envolva uma separação. Cristo menciona tal missão mais abaixo (Jo 8, 29), dizendo: ‘Aquele que
me enviou está comigo, e não me deixou sozinho’”.
73) Ibid.
74) Lectura in Iohannis evangelium 20:22 (Marietti ed., n. 2538). “Unde Augustinus dicit IV De Trinitate:
Flatus ille corporeus substantia Spiritus Sancti non fuit, sed demonstratio per congruam significationem
non tantum a Patre sed etiam a Filio procedere Spiritum Sanctum”. Cf.: Agostinho, Santo. De Trinita-
te 4.20.29. Sancti Aurelii Augustini De Trinitate Libri XV, ed. W. J. Mountain, vol. 1, Corpus Christia-
norum Series Latina, vol. 50. Turnhout: Brepols, 1968, p. 199-200.
sões divinas merecem atenção. Primeiro, a missão do Filho revela o Pai, como
a missão do Espírito Santo manifesta o Filho (e, no Filho, o próprio Pai): “Tudo
que vem de outro manifesta aquilo do qual ele vem. Portanto, o Filho manifesta o
Pai porque ele vem do Pai. E porque o Espírito Santo vem do Filho, é próprio ao
Espírito Santo glorificar o Filho”. 75 Esta é, para São Tomás, a característica cen-
tral das missões divinas: a Pessoa que procede eternamente de Outra manifes-
ta a Outra. Comentando o Batismo de Cristo, dá o seguinte resumo da sua com-
preensão da revelação da Trindade: “Como o Filho, existindo pelo Pai, manifes-
ta o Pai... também o Espírito Santo, existindo pelo Filho, manifesta o Filho”. 76
Esta obra de revelação pertence ao Filho de um modo especial, devido à sua pro-
priedade pessoal: conquanto o Filho é o Verbo do Pai, ele é a expressão perfei-
ta do Pai. O Filho em Pessoa é “a doutrina do Pai”, 77 Ele é a própria “face do
Pai”. 78 Quanto ao Espírito Santo, a sua obra de revelação está arraigada na sua
propriedade de Amor, conquanto o “conhecimento da verdade é dado pelo ardor
do amor”. 79 “Manifestar a verdade convém à propriedade do Espírito Santo, pois
é o amor que leva à revelação dos segredos”. 80 “O Filho, uma vez que é o Ver-
bo, confere-nos ensinamentos, mas só o Espírito Santo nos habilita a compreen-
dê-los”. 81 “Aquele que recebe o Espírito Santo do Pai e do Filho conhece o Pai e
o Filho e vem até Eles. O Espírito faz-nos conhecer todas as coisas, inspirando e
dirigindo-nos por dentro, e elevando-nos às coisas espirituais”. 82
75) Lectura in Iohannis evangelium 16:14 (Marietti ed., n. 2107): “Omne enim quod est ab alio, manifes-
tat id a quo est: Filius enim manifestat Patrem, quia est ab ipso. Quia ergo Spiritus Sanctus est a Filio,
proprium est ut clarificet eum”.
76) Lectura in Iohannis evangelium 1:32 (Marietti ed., n. 268): “Sicut Filius existens a Patre, manifestat
Patrem....ita et Spiritus Sanctus a Filio existens, Filium manifestat”.
77) Lectura in Iohannis evangelium 7:16 (Marietti ed., n. 1037): “Sequitur ergo quod doctrina Patris sit
ipse Filius”.
78) Lectura in Iohannis evangelium 1:4 (Marietti ed., n. 101): “Signatum est super nos lumen vultus tui,
idest Filii tui, qui est facies tua, qua manifestaris”.
79) Lectura in Iohannis evangelium 5:35 (Marietti ed., n. 812): “Quia per ardorem caritatis datur cogni-
tio veritatis”.
80) Lectura in Iohannis evangelium 14:17 (Marietti ed., n. 1916): “Manifestare autem veritatem convenit
proprietati Spiritus Sancti. Est enim amor qui facit secretorum revelationem”.
81) Lectura in Iohannis evangelium 14:26 (Marietti ed., n. 1958): “Filius ergo tradit nobis doctrinam, cum
sit Verbum; sed Spiritus Sanctus doctrinae eius nos capaces facit”.
82) Lectura in Iohannis evangelium 14:26 (Marietti ed., n. 1959): “Ille qui recipit Spiritum Sanctum a Pa-
tre et Filio, ille Patrem cognoscit, et Filium, et ad eos venit. Facit autem nos scire omnia interius inspi-
rando, dirigendo, et ad spiritualia elevando”. Para outras passagens do comentário de São Tomás sobre
São João, cf. Emery, Gilles. Trinity, Church, and the Human Person: Thomistic Essays. Napoli, Fla.:
Sapientia Press, 2007, p. 105-110, numa seção intitulada “The Mode of the Holy Spirit’s Action in Tea-
ching the Truth”.
Segundo, a missão do Espírito Santo não só faz o Filho conhecido pela fé,
mas assimila os seus beneficiários ao Filho: “Uma vez que o Espírito Santo
é da Verdade [o Filho e Verbo], é apropriado que o Espírito ensine a verda-
de, e faça aqueles que ensina como Aquele que O enviou”. 83 “O Espírito San-
to é o Espírito do Filho... Consequentemente, o Espírito Santo faz aqueles,
aos quais Ele é enviado, semelhantes Àquele de cujo espírito Ele é”. 84 Esta
obra de “assemelhação ao Filho” pertence propriamente ao Espírito Santo por
razão da sua propriedade pessoal, conquanto que o Espírito Santo procede do
Filho, e enquanto Ele é o Amor em Pessoa. Ademais, por fazer conhecer o
Filho pela fé, o Espírito Santo manifesta o próprio Pai, pois o Filho é a perfei-
ta “similitude” do Pai.
Em terceiro lugar, ambas as missões, a do Filho e a do Espírito Santo, efe-
tuam a divinização por conduzirem os seus beneficiários para a Pessoa da
qual elas procedem: “Tal como o efeito da missão do Filho era conduzir-nos
para o Pai, também o efeito da missão do Espírito Santo é de guiar os fiéis ao
Filho”. 85 Na dispensatio, a Pessoa que procede eternamente de Outra mani-
festa Aquela, e nos guia a Ela.
Esta compreensão das missões divinas está inteiramente na linha dos ensi-
namentos de vários Padres da Igreja. Em sua Demonstração da pregação
apostólica, Santo Irineu escreveu:
83) Lectura in Iohannis evangelium 16:13 (Marietti ed., n. 2102): “Cum enim sit a veritate, eius est docere
veritatem, et facere similes suo principio” (ênfase na tradução acrescentada).
84) Lectura in Iohannis evangelium 15:26 (Marietti ed., n. 2062): “Sic ergo quod dicit Spiritum veritatis,
idem est ac si diceret Spiritum Filii....Consequens est ut Spiritus Sanctus eos, in quos mittitur, similes
faciat ei cuius est Spiritus” (ênfase na tradução acrescentada). Esta “assemelhação” pertence propria-
mente à relação Espírito-Filho: São Tomás nunca escreve que o Filho assemelharia ou conformaria os
seres humanos ao Pai. Tal “assemelhação ao princípio” é uma característica própria à missão do Espíri-
to Santo em relação com o Filho.
85) Lectura in Iohannis evangelium 14:26 (Marietti ed., n. 1958): “Nam, sicut effectus missionis Filii fuit
ducere ad Patrem, ita effectus missionis Spiritus Sancti est ducere fideles ad Filium”.
86) Irineu de Lyon, Santo. On the Apostolic Preaching 7 (trad. John Behr [Crestwood, N.Y.: St. Vladi-
mir’s Seminary Press, 1997], 44). Cf. Sources chrétiennes 406:92.
Há duas razões pelas quais o conhecimento das Pessoas divinas nos foi
necessário. Primeiro, foi-nos necessário para o correto entendimento da
Criação... Por outro lado, e principalmente, o conhecimento das Pessoas
divinas foi necessário para que pudéssemos pensar corretamente com res-
peito à salvação da raça humana, realizada pelo Filho encarnado e pelo dom
do Espírito Santo. 90
87) Irineu de Lyon, Santo. Adversus haereses 5.36.2 (cf. Sources chrétiennes 153:458-60). Ver também:
Adversus haereses 4.20.5 (cf. Sources chrétiennes 100/2:638-42): “Pois Deus é poderoso em todas as
coisas, tendo sido visto no passado profeticamente pelo Espírito, e depois visto, também, adotivamente
através do Filho; e será visto paternalmente no reino dos Céu, o Espírito verdadeiramente preparando o
homem para o Filho de Deus, e o Filho conduzindo-o ao Pai, enquanto o Pai lhe confere a incorruptibi-
lidade e a vida eterna, que vem a cada um pelo fato de ver a Deus”.
88) Basílio de Cesareia, Santo. On the Holy Spirit 18.47. Crestwood, N. Y.: St. Vladimir’s Seminary
Press, 1980, p. 74-75.
89) Basílio de Cesareia, Santo. Carta 226.3, em Saint Basil, Letters, vol. 2: Letters 186-368, trad. Sister
Agnes Clare Way (Washington, D. C.: The Catholic University of America Press, 1969), 146. Cf. idem,
Lettres, ed. Yves Courtonne, vol. 3. Paris: Les Belles Lettres, 1966, 27.
90) S. Th., I, q. 32, a. 1, ad 3: “Cognitio divinarum Personarum fuit necessaria nobis dupliciter. Uno modo,
ad recte sentiendum de creatione rerum… Alio modo, et principalius, ad recte sentiendum de salute ge-
neris humani, quae perficitur per Filium incarnatum et per donum Spiritus Sancti”. As últimas palavras,
“per donum Spiritus Sancti,” significam: “Pelo Espírito Santo que foi dado”.
91) Lectura in Iohannis evangelium 14:8 (Marietti ed., n. 1883): “Visio Patris est finis omnium desiderio-
rum et actionum nostrarum”.
92) I Sent., d. 15, q. 4, a. 1: “Unde sicut Spiritus Sanctus invisibiliter procedit in mentem per donum amo-
ris, ita Filius per donum sapientiae; in quo est manifestatio ipsius Patris, qui est ultimum ad quod re-
currimus”.
93) Lectura in Iohannis evangelium 16:25 (Marietti ed., n. 2150): “Sed quia in patria videbimus facie ad
faciem, ut dicitur I Cor XIII, 12... quia nullus potest Patrem videre in illa gloria nisi Filio manifestante”.
94) Lectura in Iohannis evangelium 16:28 (Marietti ed., n. 2161-2162): “Exivi a Patre, et veni in mun-
dum... Est autem duplex processio Filii a Patre: una scilicet aeterna, alia temporalis. Aeternam quidem
designat cum dicit exivi a Patre, ab eo aeternaliter genitus... Temporalem autem processionem eius de-
signat dicens et veni in mundum”.
go, ele entende Jo 17, 8 (“Eu dei-lhes as palavras que Vós Me destes, e eles as
receberam e conheceram em verdade que Eu vim [exivi] de Vós, e eles acredi-
taram que Vós Me enviastes [tu me misisti]”) como um ensinamento da eter-
na geração em primeiro lugar e depois da missão temporal do Filho: “Para
Hilário [de Poitiers], como foi dito, ‘sair’ [exire] refere-se à eterna geração do
Filho, e ‘ser enviado’ [mitti] refere-se à Encarnação do Filho”. 95
A verdade revelada pelas palavras de Cristo pertence a ambas, theologia
e dispensatio, de modo que o objeto da fé inclui a própria Trindade e as mis-
sões. Mais uma vez, ao comentar Jo 15, 26 (“Quando vier o Paráclito, que vos
enviarei de junto do Pai, o Espírito da Verdade, que vem do Pai”), São Tomás
explica que a primeira parte do versículo diz respeito à missão do Espíri-
to Santo no tempo, enquanto que a segunda parte do mesmo versículo, que
começa com “o Espírito da Verdade”, ensina a sua eterna processão do Filho
e do Pai. 96 É digno de nota que, seguindo o texto bíblico, a exegese de São
Tomás começa às vezes com as eternas processões das Pessoas (Jo 16, 28; Jo
17, 8), porém em outras passagens começa com as missões temporais das Pes-
soas (Jo 15, 26). De qualquer modo, as palavras de Cristo ensinam-nos tanto a
missão quanto a eterna processão do Filho, como do Espírito Santo.
Um exemplo será ilustrativo: a exegese da lavagem dos pés dos apósto-
los feita por Jesus em Jo 13, 4. No texto bíblico leia-se: “Ele [Jesus] levantou-
-se da ceia, deixou de lado as suas vestes, e se cingiu com uma toalha”. São
Tomás dá duas interpretações “místicas” (mystice) desta ação, ou seja, inter-
pretações que se referem à manifestação do mistério do próprio Cristo. A pri-
meira refere-se à Encarnação (a segunda trata da Paixão de Cristo):
Isto nos diz três coisas a respeito de Cristo. Primeiro, Ele estava desejoso de
ajudar a raça humana, indicado pelo fato de ter se levantado da ceia. Pois
Deus parece estar sentado enquanto permite que estejamos com dificulda-
des; mas quando Ele nos salva destas, Ele parece levantar-se, como o Salmo
(43, 26) diz: “Levantai-vos, vinde em meu auxílio”. Em segundo lugar, indi-
ca que Ele esvaziou-se a si mesmo: não que Ele tenha deixado a sua grande
dignidade, mas escondeu-a assumindo a nossa pequenez: “Verdadeiramen-
95) Lectura in Iohannis evangelium 17:8 (Marietti ed., n. 2204). Cf. Hilário de Poitiers. De Trinitate
6.30 (Sources chrétiennes 448:232).
96) Lectura in Iohannis evangelium 15:26 (Marietti ed., n. 2061-62): “Cum autem venerit Paraclitus quem
ego mittam vobis a Patre, Spiritum veritatis qui a Patre procedit....Tertio ponit processionem Spiritus
Sancti duplicem. Primo quidem temporalem, cum dicit quem ego mittam vobis a Patre....Secundo po-
nit processionem aeternam, ubi similiter Spiritum Sanctum ostendit pertinere ad Filium, cum dicit Spi-
ritum veritatis; ipse enim est veritas”.
te, sois um Deus que se esconde” (Is 45, 15). Isto é indicado pelo fato de Ele
ter deixado de lado as suas vestes: “Ele esvaziou-se a si mesmo, tomando a
forma de servo” (Fl 2, 7). Em terceiro lugar, o fato de Ele se ter cingido com
uma toalha indica que tomou sobre si a nossa mortalidade: “Tomando a for-
ma de escravo, nascendo na condição humana” (Fl 2, 7). 97
97) Lectura in Iohannis evangelium 13:4 (Marietti ed., n. 1746). Para as fontes desta exegese, cf.: Cate-
na in Iohannem XIII, n. 1 (Marietti ed., 2:504). A influência do Tract. 55, 7 super Iohannem de Agos-
tinho (com referência explicita a Fl 2) é óbvia; cf. Agostinho, Santo. In Iohannis Evangelium Tracta-
tus CXXIV (CCL 36, p. 466).
98) Lectura in Iohannis evangelium 9:7 (Marietti ed., n. 1311); cf. Catena in Iohannem IX, n. 1 (Marietti
ed., 2:465); e de Santo Agostinho o Tract. 54, 1-2 super Iohannem (Mayer, ed., 381-82).
Verbo, juntamente com o efeito da ação salvífica que o Verbo encarnado rea-
lizou na carne.
99) Estes são os Padres da Igreja mais citados no comentário de São Tomás sobre São João; cf. Emery, Gil-
les. Trinity in Aquinas. Ypsilanti, Mich.: Sapientia Press, 2003, p. 304. Eles também desempenham um
papel essencial no tratado trinitário da Summa Theologiae. Por exemplo, o artigo sobre a igualdade de
poder do Pai e do Filho (S. Th., I, q. 42, a. 6) está construído sobre Santo Agostinho (Contra Maximi-
num) e Santo Hilário (De Trinitate), com referências implícitas a São João Crisóstomo e Dídimos o Ce-
go (como o comentário de São João mostra). Para as referências cf. Emery, Gilles. Trinity in Aquinas.
Op. cit., p. 305-307. Neste caso, a Summa Theologiae organiza e sumariza o ensinamento patrístico da
Catena aurea que a Lectura de São João (posterior no tempo) apresenta com maior detalhe.
fazem parte do seu fundo de quadro. 100 Santo Irineu de Lyon não é explicitamente
citado, mas muito de seu ensinamento havia sido integrado nas fontes medievais
e patrísticas de São Tomás. Igualmente, a leitura de São Tomás das Escrituras
requer o conhecimento das principais heresias trinitárias: Sabelianismo, Arianis-
mo, bem como a de Eunômio de Cízico e dos “Pneumatomachi” (a heresia atri-
buída a Macedônio). 101 A teologia patrística trinitária é necessária para entender o
fundo de quadro “pro-Niceno” de São Tomás, 102 e para atinar à intenção ou intui-
to da sua leitura trinitária da Escritura. 103
Na segunda etapa, o teólogo propõe uma reflexão especulativa sobre as
Pessoas na sua distinção e unidade, de modo a aclarar o ensinamento da
Escritura — quer dizer, de modo a tornar o ensinamento da Escritura mais
vivo e manifesto às nossas mentes. É aqui onde a doutrina da distinção Pes-
soal através das relações de origem é desenvolvida, bem como a compreen-
são da Pessoa divina como uma relação subsistente, e assim por diante. Esta
segunda etapa pode-se dizer que corresponde ao que São Tomás faz na Sum-
ma Theologiae, Prima Pars, questões 2 a 43, mas é também encontrada nos
100) Por um lado, é requerido o conhecimento dos Padres Capadócios para entender o próprio Santo
Agostinho, a fonte principal de São Tomás. Comparar Santo Agostinho (De Trinitate 5.5.6 - 5.7.8) e
São Basílio (Contra Eunomio 1.10-16) sobre o significado negativo e relacional do termo “ingenitus”
(agennetos). Por outro lado, São Tomás teve algum conhecimento dos ensinamentos Capadócios, espe-
cialmente sobre as propriedades relativas das Pessoas divinas. Por exemplo, o Libellus de fide Trinita-
tis (uma compilação dos textos patrísticos orientais com glosas, que São Tomás examinou a pedido do
Papa Urbano IV) apresentou o pensamento de São Gregório Nazianzeno como segue: “O Pai é chama-
do ‘increado’ e ‘Pai’ não por razão de sua essência, mas de um modo relativo por razão da sua proprie-
dade de paternidade; e o Filho, igualmente, uma vez que ele tem sua origem do Princípio, não é chama-
do assim por sua natureza, mas por razão de sua relação para com Outro” (Libellus de fide Trinitatis §23
[Leonina ed., 40A:127); cf. São Gregório de Nazianzo, Oratio 29.16 (Sources chrétiennes 250: 210-
211); Oratio 31.7 e 31.9 (Sources chrétiennes 250: 286-289 e 290-293); Oratio 42.15 (Sources chré-
tiennes 384: 80-83).
101) Cf. Worrall, Peter. St. Thomas and Arianism. Recherches de théologie ancienne et médiévale, v. 23,
1956, p. 208-259; v. 24, 1957, p. 45-100; Aranda Lomeña, A. Santo Tomás frente a Sabelio: Un mo-
delo de refutación teológica. Studi tomistici, v. 13, 1981, p. 145-152; Riestra, José Antonio. El error
de Macedonio y la doctrina de Santo Tomás. In: Saraiva Martins, J. (ed.). Credo in Spiritum Sanctum,
ed., vol. 1. Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1983, p. 461-471. Para Fotino de Sirmio (e
heresias anteriores), cf. Emery, Gilles. Le photinisme et ses précurseurs chez saint Thomas. Revue Tho-
miste, v. 95, 1995, p. 371-398.
102) Sobre o significado e implicações da teologia trinitária “pro-Nicena”, cf. Ayres, Lewis. Nicaea and
its Legacy: An Approach to Fourth-Century Trinitarian Theology. Oxford: Oxford University Press,
2004.
103) Tentei mostrar alguns aspectos deste propósito no meu Trinity, Church, and the Human Person, 1-72:
“The Purpose of Trinitarian Theology in St. Thomas Aquinas”, e “Trinitarian Theology as Spiritual Ex-
ercise in Augustine and Aquinas”.
104) Cf. Emery, Gilles. Biblical Exegesis and the Speculative Doctrine of the Trinity in St. Thomas Aqui-
nas’s Commentary on St. John. In: Dauphinais, M.; Levering M. Reading John with St. Thomas Aqui-
nas: Theological Exegesis and Speculative Theology. Washington, D.C.: The Catholic University of
America Press, 2005, p. 23-61.
105) Neste ponto, concordo parcialmente com Coffey, David. Deus Trinitas: The Doctrine of the Tri-
une God. New York-Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 14-16. Coffey distingue entre Trindade
“Bíblica”, “Imanente” e “Econômica”. Contudo um discípulo de São Tomás dificilmente pode concor-
dar com Coffey sobre a natureza puramente “funcional” do ensinamento do Novo Testamento (ibid.,
12-14). Para São Tomás, a doutrina metafísica e especulativa da Trindade (e da ação trinitária) move
dentro da Escritura, e não além dela.
de, cada Pessoa opera por virtude do poder e natureza comum aos Três, e cada
Pessoa age de acordo com o modo distinto da sua propriedade. 106
A doutrina de São Tomás das missões divinas também leva em conta o
relacionamento dos fiéis com cada Pessoa divina na sua distinção pessoal:
os dons santificantes da sabedoria e da caridade assimilam ou conformam
os justos ao Filho e ao Espírito Santo, guiando-os assim para o Pai. Aqui é
imprescindível ser preciso. Conquanto os dons da graça sejam efeitos cria-
dos, eles têm a Trindade inteira como sua causa. Sob este aspecto ontológi-
co (como efeitos criados em relação com a sua causa), os dons da graça reme-
tem-nos para toda a Trindade. Mas, debaixo do aspecto “objetivo” ou “inten-
cional”, estes dons da graça (as virtudes teologais, juntamente com os dons do
Espírito Santo) remetem-nos para as três Pessoas divinas tanto quanto essas
Pessoas são conhecidas e amadas não somente como um único Deus, mas
também enquanto distintas entre si na sua singularidade própria, um como o
Pai, o outro como o Filho unigênito, o terceiro como o Espírito Santo que pro-
cede do Pai e do Filho. 107 Pela graça e glória, “nós desfrutamos a proprieda-
de de cada pessoa”. 108
Outra tarefa deste terceiro passo é considerar a unidade da teologia de São
Tomás à luz da fé trinitária. A teologia trinitária deve mostrar como a doutri-
na da Criação, Antropologia teológica, Ética, Cristologia, Eclesiologia e Esca-
tologia estão enraizadas na doutrina trinitária. Mais uma vez, aqui a doutri-
na das missões divinas tem um papel capital a desempenhar no ensaio (uma
necessidade urgente hoje em dia) de “desfragmentar” a teologia cristã. No
que se seguirá, limitar-me-ei a alguns aspetos fundamentais de tal tentativa.
O ensinamento de São Tomás sobre as Pessoas divinas é construído na
doutrina do Verbo e do Amor. A propriedade pessoal do Pai, a Paternidade,
e a propriedade do Filho, a Filiação, são manifestadas pela doutrina do Ver-
bo: é por meio desta doutrina do Verbo que São Tomás explica a proprieda-
de do Pai de Paternidade (o Pai é Aquele que “diz” o Verbo) e a propriedade
do Filho de Filiação (ser o Filho, em Deus, significa ser o Verbo concebido e
nascido d’Aquele que “diz” este Verbo). 109 De modo igual, é por meio da sua
106) Para uma tentativa de consideração deste “modo pessoal de ação” do Pai, Filho e Espírito Santo, cf.
Emery, Gilles. Trinity, Church, and the Human Person. Op. cit., p. 115-53.
107) Cf. ibid., p. 148-152.
108) I Sent., d. 1, q. 2, a. 2, ad 2: “Proprietate uniuscujusque personae fruimur, ut paternitate”.
109) Para referências sobre isto, cf. Emery, Gilles. The Trinitarian Theology of Saint Thomas Aquinas. Op.
cit., p. 185-92.
ção a algum objeto. Logo, também Deus Pai fez as criaturas pelo seu Verbo,
que é o Filho; e pelo seu Amor, que é o Espírito Santo. E assim as proces-
sões das Pessoas são a razão da produção das criaturas na medida em que
elas incluem os atributos essenciais de conhecimento e vontade [inquantum
includunt essentialia attributa, quae sunt scientia et voluntas]. 113
Como o nosso entendimento das Pessoas divinas inclui a natureza divina, 114
a doutrina trinitária inclui os atributos essenciais de Deus. A teologia trini-
tária não é limitada “àquilo que concerne à distinção das Pessoas”, mas tam-
bém inclui “aquilo que concerne à Essência divina”.
O segundo modo consiste em mostrar como as processões divinas ilus-
tram, de uma maneira diferente, a criação e a graça. Este segundo modo não
é essencialmente diferente do primeiro, mas é construído mais claramente no
conceito de “processão” (processões intratrinitárias, e “processões para as
criaturas”), e usa o esquema exitus-reditus. Recebe ênfase especial no Scrip-
tum super Sententiis de São Tomás: a processão do Filho e a do Espírito San-
to são a “razão” da produção das criaturas, ou seja, dos “dons naturais nos
quais nos subsistimos” (exitus: criação). E, em outro nível, as mesmas proces-
sões são a razão para os dons “que nos unem ao fim último, nomeadamente,
graça santificante e glória” (reditus: as missões divinas). 115 De qualquer for-
ma, a centralidade das missões divinas não implica qualquer “sobrenatura-
lismo” na consideração dos seres criados. A consistência da natureza (e da
razão natural), enquanto realmente distinta da graça (e do conhecimento pela
A ênfase que São Tomás confere aos atos assenta-se na mesma base: “Por
esta razão, primeiro e principalmente, a imagem da Trindade pode ser encon-
trada nos atos da alma, ou seja, na medida em que do conhecimento que pos-
suímos, por pensamento atual, nós formamos um verbo interior, e depois
irrompemos no amor”. 119 O teocentrismo da imago Dei em São Tomás está
totalmente de acordo com estas explicações:
da fruição a bondade divina, a fruição tem como seu objeto a Essência divi-
na que é comum às três Pessoas. Mas a essência divina subsiste em cada uma
das Pessoas distintas; então, uma vez que
to conhecimento, pelo qual a missão do Filho ocorre, sempre conduz a amor; portanto, conhecimento e
amor são infundidos simultaneamente”.
126) I Sent., d. 1, q. 2, a. 2, corp. e ad 2: “Qui novit unum relativorum, cognoscit et reliquum; et sic cum
tota fruitio originetur ex visione, ut prius dictum est, qui fruitur uno relativorum inquantum hujusmodi,
fruitur et reliquo... Proprietate uniuscujusque Personae fruimur, ut Paternitate; tamen Paternitas non di-
cit rationem fruitionis: unde fruemur Paternitate, inquantum Paternitas est idem re quod summa boni-
tas, differens tamen ratione”.
127) Lectura in Iohannis evangelium 17:3 (Marietti ed., n. 2188): “In vita aeterna gaudebimus etiam de
humanitate Christi”.
128) IV Sent., d. 49, q. 2, a. 2: “Visus corporalis tantam gloriam Dei inspiciet in corporibus, et praecipue
gloriosis, et maxime in corpore Christi”, Vivès ed., t. 11, p. 488. Esta “visão corpórea” do corpo glori-
ficado de Cristo será a causa da beatitude de nosso próprio corpo: “O nosso corpo gozará uma certa be-
atitude, conquanto ele verá Deus nas criaturas sensíveis, acima de tudo, no corpo de Cristo”. Ibid., ad 6
Vivès ed., t. 11, p. 489.
129) Cf. Rahner, Karl. Remarks on the Dogmatic Treatise “De Trinitate”. In: idem. Theological Investi-
gations. Trad. Kevin Smyth. Baltimore: Helicon Press, 1966, v. 4, p. 87.
130) Cf. Rahner, Karl. The Trinity. Trad. Joseph Donceel. New York: Herder and Herder, 1970, p. 22.
131) Cf. Rahner, Karl. Remarks on the Dogmatic Treatise “De Trinitate”. Op. cit., p. 98.
Padres da Igreja. 132 Outros apontam o risco de arruinar a distinção entre Deus
em si mesmo e a sua ação no tempo, e assim arruinar a distinção essencial
entre Deus e o mundo. Entender este “axioma fundamental” requer de fato
certas precisões. Primeiro, é necessário não deixar confundir a eternidade de
Deus e o tempo da economia. A história da salvação manifesta a Trindade,
mas não é a economia da salvação que dá ao Pai, ao Filho e ao Espírito San-
to as suas personalidades distintas. A economia não constitui a Trindade. Em
segundo lugar, o eterno ser de Deus é “necessário”, já a economia é absoluta-
mente livre, gratuita, e não necessária. Nada obrigou a Deus-Trindade a reve-
lar-se a si mesmo, ou a dar-se a si mesmo na graça: é uma obra inteiramen-
te gratuita. Terceiro, não devemos confundir a realidade da Trindade em si
mesma, no seu mistério transcendental, com o conhecimento e experiência
humana que possamos ter da Trindade. É de fato a Trindade no seu próprio
mistério que se revela a si mesma e comunica-se a si mesma na economia,
mas os homens recebem este conhecimento e experiência de um modo limi-
tado, proporcionado à sua condição de criaturas. Isto leva-nos à quarta clari-
ficação. A participação dos homens na vida trinitária só encontrará a sua ple-
nitude além da história, na visão beatífica da Trindade. Em razão desta espe-
ra, uma certa “distância” permanece. Como São Tomás indica:
A forma dialética do axioma deu origem a uma outra, e talvez mais profun-
da, crítica: devemos ver duas Trindades? “A desvantagem desta terminolo-
gia é que pode dar impressão que há duas trindades, mas obviamente isto não
pode ser assim. Apenas indica as duas perspectivas nas quais a Trindade pode
132) Cf. Sesboüé, Bernard; Rahner, Karl. Initiations aux théologiens. Paris: Cerf, 2001, p. 80: “Os textos
[de Rahner], em sua linguagem bastante formal, simplesmente re-exprimem a convicção da inteira tra-
dição antiga da Igreja: pelo advento de Jesus Cristo e no dom de seu Espírito, Deus Se revelou a nós co-
mo Ele é”. Para uma explicação mais matizada e uma interpretação do axioma de Rahner. In: Ladaria,
Luis F. La Trinità, Mistero di communione. Milano: Paoline, 2004, p. 13-86.
133) In II Epist. ad Corinthios 3:18 (Marietti ed., n. 114). Cf. I Sent., d. 14, q. 2, a. 2, ad 2: Os seres huma-
nos podem “possuir” uma Pessoa divina tanto por comprazimento perfeito (pelo dom da glória), quanto
por comprazimento imperfeito (pelo dom da graça santificante).
ser concebida”. 134 Mas isto levanta a mesma questão: o que estas duas pers-
pectivas significam?
A distinção entre a Trindade “econômica” e “imanente” não é uma inven-
ção da teologia do séc. XX. Já é encontrada na teologia protestante do séc.
XVIII (Trinitas oeconomica e essentialitas), 135 e talvez antes. No séc. XIX,
Schleiermacher escreveu que “não temos uma fórmula para o ser de Deus
em si mesmo enquanto diferente do ser de Deus no mundo”. 136 Qualquer que
sejam as fontes, o esquema atual da Trindade econômica e da Trindade ima-
nente tende a começar com uma distinção formal entre os dois aspectos, e
depois tenta reuni-los. Mas por que deveria a teologia trinitária começar com
esta distinção formal?
Por outro lado, a doutrina sistemática de São Tomás começa com a dou-
trina das processões eternas das Pessoas, e compreende as missões divinas
enquanto incluindo as processões eternas, com a afirmação clara que as pró-
prias Pessoas divinas são dadas. Seu comentário de São João mostra também
que, quando ele trata das missões, ele as considera à luz das eternas proces-
sões das Pessoas divinas. Eu sugeriria que a doutrina de São Tomás das mis-
sões e processões divinas oferece uma poderosa alternativa ao esquema da
“Trindade econômica” e da “Trindade imanente”. Em São Tomás, as missões
não são de nenhum modo separadas das processões. Não há necessidade de
reunir a Trindade econômica e a Trindade imanente (depois de ter começa-
do por distinguir entre elas), pois as missões portam em si mesmas o mistério
eterno das pessoas divinas. Nas próprias palavras de São Tomás: “Processio
temporalis non est alia quam processio æterna essentialiter”. 137 Ao mesmo
tempo, a sua doutrina das missões mantém a diferença essencial entre Deus
e os seus efeitos criados, sem nenhum perigo de confundir a Trindade e os
seus dons criados. O assunto em jogo não é somente a fundação das missões
nas processões eternas, ou as missões como uma manifestação da vida íntima
138) Um impressionante testemunho sobre isto é a obra monumental do Cardeal Charles Journet: The
Church of the Word Incarnate, que é construído sobre a doutrina tomista das missões do Filho e do
Espírito Santo. Esta doutrina é especialmente desenvolvida na primeira parte do segundo livro des-
ta obra: Journet, Charles. L’église du Verbe Incarné, Essai de théologie spéculative: Sa structure in-
terne et son unité catholique (première partie). In: Œuvres complètes, vol. 2, Saint-Maurice: Saint-Au-
gustin, 1999. O papel central das missões divinas na teologia de Journet foi estabelicido por Glasson,
Nicolas. La doctrine de Dieu dans l’œuvre du cardinal Charles Journet: Le traité des missions divines
comme fondement de son ecclésiologie et principe d’unité de sa théologie. S.T.D. diss., University of
Fribourg, 2009.