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Marcia Hespanhol Bernardo

PADILHA, Valquíria (Org.) Antimanual de ges- delos de gestão são ensinados de uma forma
tão: desconstruindo os discursos do manage- impregnada de ideologia, omitindo-se que são
ment. São Paulo: Ideias & Letras, 2015, 415p. uma criação de quem tem o poder em uma so-
ciedade desigual. Durante sua formação, esses
alunos têm pouco acesso a disciplinas críticas
e, para Valquíria Padilha, é importante causar
Marcia Hespanhol Bernardo “angústias, questionamentos, desconfortos”,
no sentido de fazê-los pensar sobre a relação
entre o capital e trabalho, sobre o papel do ad-
ministrador nessa relação e sobre as consequ-
ências da gestão para os trabalhadores, ou seja,
evidenciando o que está por trás do discurso
O título desse livro, bastante provocador do management. Para isso, o livro foi elabora-
e instigante, já indica sua intenção. Como Val- do na forma de uma coletânea, com capítulos
quíria Padilha afirma na apresentação, trata-se escritos por diversos autores de diferentes áre-
de uma proposta ousada de “desconstruir valo- as, como a Sociologia, a Psicologia, o Direito, a
res, conceitos, discursos e ideologias propaga- Economia e, como não poderia deixar de ser, a
dos aos gestores de empresas e aos futuros ges- própria Administração. Cada autor foi chama-
tores como sendo sinônimos de ciência e de téc- do a responder um tipo de afirmação predo-
nica”. Tendo em vista a proliferação de manuais minante no discurso de gestão atual entre as
de gestão tradicionais e a escassez de literatura muitas colecionadas por Padilha ao longo dos
contra-hegemônica, avalio que o livro que ora anos de convivência com seus alunos.
apresento é de extrema importância para des- Diferentemente dos manuais de gestão
velar as artimanhas do capitalismo neoliberal, tradicionais, que, em geral, trazem uma pa-
que busca naturalizar propostas de gestão que dronização que busca dar um caráter técnico a
não têm nada de natural. Os temas abordados seu conteúdo, os capítulos desse “Antimanual”
escancaram o papel normativo do discurso de não têm um padrão específico e são respeita-
gestão, que se apresenta como ciência e, assim, dos os estilos de cada autor. Alguns adotam
legitima os modos de ação e as disposições que uma linguagem mais acadêmica, enquanto
interessam ao capitalismo em cada época. outros apresentam um texto narrativo em pri-

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É interessante destacar que a proposta meira pessoa, por exemplo. Todavia, todos os
de elaboração desse livro surge do incômodo capítulos apresentam uma linguagem de fácil
da organizadora com o discurso de seus pró- compreensão, que possibilita a leitura por um
prios alunos, ao lecionar a disciplina sociolo- público diverso e, especialmente, por estudan-
gia no curso de Administração de Empresas tes de graduação, que constituem o principal
da USP de Ribeirão Preto. Os comentários e os público que se busca alcançar. Outra caracte-
questionamentos apresentados por seus alu- rística compartilhada por grande parte dos au-
nos são, frequentemente, carregados de conte- tores é a referência às suas próprias pesquisas
údo ideológico, que colocam os trabalhadores empíricas para exemplificar e (ou) fundamen-
na posição de uma categoria de humanos dis- tar seus argumentos.
tinta deles próprios. É interessante notar como Pode-se dizer que o livro traz dois gêne-
tal visão é contraditória com o próprio discur- ros de capítulos. O primeiro aborda aspectos
so de gestão predominante, que afirma ser o mais gerais do modelo neoliberal do capita-
trabalho é mais humanizado na atualidade. lismo contemporâneo. Nesse grupo, incluo os
A organizadora do livro ressalta como, capítulos 1, 2, 3, 6 e 7, que tratam de temas
nos próprios cursos de Administração, os mo- como a terceirização, os direitos dos trabalha-

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792016000300014
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RESENHA

dores e a jornada de trabalho, entre outros. Um falácias que ela oculta. A meritocracia, segun-
segundo gênero de capítulos tem foco mais es- do os autores, pode ser definida brevemente
pecífico nos trabalhadores e busca mostrar as como um sistema social de recompensa, que
terríveis consequências da gestão no trabalho parte sempre do falso pressuposto de que há
para a vida, a saúde e o bem estar deles. Nesse igualdade de oportunidades. O capítulo é con-
grupo, estão os capítulos 4, 5, 8, e 9, que tra- cluído com a ressalva de que ela “não seria em
tam do assédio moral, das motivações para o si um problema se reconhecesse as diferenças
trabalho e do sofrimento decorrente das rela- e se estivesse assentada em critérios de justiça
ções hierárquicas. Os dois capítulos finais são coletivamente sancionados” (p. 88).
dedicados a uma espécie de fechamento dos Ainda na discussão de aspectos mais ge-
temas tratados nos capítulos anteriores. Não é rais dos modelos de organização, Paula Marce-
possível, no espaço de uma resenha, apresen- lino assume, no capítulo 3, a discussão crítica
tar detalhadamente todos os 11 capítulos que do tema da terceirização, mostrando como ele
compõem o livro, mas, aqui, busco expor as é tratado na literatura das áreas de Adminis-
ideias centrais apresentadas em cada um, le- tração e do Direito. No Brasil, a terceirização,
vando em conta a lógica acima. apesar de ser apresentada positivamente pelo
Considerando o objetivo do livro, já discurso hegemônico nessas duas áreas, tem,
anunciado na apresentação, não é de estranhar na verdade, implicado primordialmente a pre-
que a temática da ideologia perpasse grande carização das condições de vida dos trabalha-
parte dos capítulos. Todavia é o primeiro, inti- dores. Assim, também nesse capítulo, fica evi-
tulado “O papel da ideologia nas teorias orga- dente o papel do discurso ideológico na defesa
nizacionais”, escrito por Cláudio Gurgel, que da terceirização, ainda que a autora não se re-
focaliza diretamente o uso da ideologia pelas fira a ele diretamente.
diferentes teorias organizacionais, de Taylor O capítulo 6, escrito pelo juiz do traba-
à administração flexível. O capítulo se inicia lho Jorge Souto Maior, rebate a retórica de que
com a resposta de Taylor a um interrogatório o trabalhador brasileiro tem direitos demais. O
referente à possível crueldade com os traba- autor lembra que esse argumento é sempre di-
lhadores presente no seu método, na qual ele recionado aos grupos politicamente fragiliza-
fala de “uma certa filosofia”, que é necessária dos e não a quem tem poder, como, por exem-
para o funcionamento da organização “cientí- plo, parlamentares e juízes. Também busca
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fica” do trabalho. Essa “certa filosofia” é, para demonstrar como, do ponto de vista econômi-
Gurgel, o reconhecimento de que um sistema co, o discurso predominante é absurdamente
de organização do trabalho só funciona se for falso e corresponde a um legado histórico do
acompanhado de ideias que o sustentem e en- Brasil, que vem desde o período da escravidão.
cubram suas verdadeiras intenções. Portanto, Na verdade, a legislação trabalhista, em nos-
conclui: “as teorias organizacionais não são so país, sempre foi favorável ao patronato. Ele
apenas conjuntos de métodos e técnicas” (p. também lembra a “tradição” de as empresas
55); elas são, também e principalmente, ideo- não cumprirem as leis trabalhistas no Brasil e
logias. A leitura desse capítulo é interessante raramente serem punidas por isso. A partir da
para subsidiar uma compreensão mais apro- leitura do capítulo, pode-se concluir que não
fundada do restante do livro. são os trabalhadores que têm direitos demais
Focalizando um aspecto específico da e, sim, o patronato.
ideologia presente no discurso capitalista des- Fechando esse grupo de capítulos, que
de seus primórdios, no capítulo 2, José Henri- tratam de temáticas macrossociais, Cássio
que de Faria e Cinthia Letícia Ramos discutem Calvete busca desmontar os argumentos con-
a ideia da “meritocracia” nas organizações e as trários à redução da jornada do trabalho no

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capítulo 7. O autor demonstra, com dados es- çam a motivação dos trabalhadores, elas não
tatísticos, que tal redução sem a diminuição são efetivas em condições de exploração, pois,
de salários, no Brasil – após a promulgação da nessas situações, os trabalhadores se distan-
Constituição Federal de 1988 – e em outros pa- ciam subjetivamente do trabalho. Conclui que
íses, como a França, não trouxe prejuízos efe- sempre há forças que motivam e que desmo-
tivos para as economias nacionais, tendo até tivam, relacionadas ao contexto de trabalho e
efeitos positivos na competitividade interna- também à trajetória dos próprios trabalhadores
cional. Alinhado ao capítulo anterior, Calvete e que não há como “gerenciar” a motivação.
destaca que, apesar de existir uma limitação No Capítulo 8, o psicólogo Fernando
da jornada na legislação brasileira, não exis- Costa trata da temática do desejo de mandar.
te, de fato, nenhuma penalização efetiva para Esse capítulo tem características diferentes
o empregador que descumprir os limites, evi- dos demais, apresentando-se quase como uma
denciando, também aqui, a diferença de poder crônica. Retomando fatos da sua história e re-
entre o empresariado e os trabalhadores. correndo à ideia de cultura de Geertz, à teoria
No segundo grupo de capítulos, obser- psicanalítica e a Marx, o autor defende que,
va-se um foco mais forte nas vivências dos para processar-se, a ideologia deve atingir tam-
trabalhadores, incluindo o sofrimento causa- bém o nível psicológico e, assim, o desejo de
do pelos modos de organizar o trabalho. Não mandar seria uma construção ao mesmo tem-
é de se estranhar, então, que dois desses capí- po psíquica e social, e as desigualdades que
tulos sejam escritos por psicólogos. No capí- ela sustenta levam ao sofrimento daqueles que
tulo 4, Valquíria Padilha busca mostrar como estão em posições desfavorecidas.
o assédio moral no trabalho é uma estratégia Fechando esse bloco de capítulos, Ange-
de gestão fortemente relacionada ao modelo lo Soares discute o tema da liderança no capí-
de organização do trabalho predominante na tulo 9. Partindo de suas pesquisas no Canadá
atualidade, o toyotismo. Para ela, a competição sobre saúde mental e violência no trabalho, o
exacerbada inerente a esse modelo favorece autor busca mostrar que existe uma “cegueira
expressões de violência psicossocial, como organizacional” para o sofrimento dos traba-
situações de humilhação, especialmente por lhadores e apresenta diversas hipóteses para
parte dos gestores. Pode-se dizer que o obje- tal atitude, encontradas na literatura, sendo a
tivo principal do capítulo é, então, o de mos- maioria fundamentada nas características in-

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trar que o assédio moral não é um problema de dividuais dos gestores (que, normalmente, são
indivíduos com algum defeito de caráter, mas aqueles nos quais é possível observar essa ce-
um comportamento estimulado pelo modelo gueira), e não na organização do trabalho, que,
de gestão toyotista. para o autor, tem um peso importante.
No capítulo 5, Rosemeire Scopinho Os dois últimos capítulos têm caracte-
aborda “o clássico (e difícil) problema da moti- rísticas diferentes daqueles apresentados até
vação para o trabalho” (p. 159). Ela já inicia o aqui. No capítulo 10, Valquiria Padilha e Thia-
texto ressaltando que é um engano pensar que go Martins Jorge discutem a formação dos ad-
esse é um problema exclusivo da gestão, pois ministradores e o papel da sociologia em pro-
os trabalhadores também querem trabalhar vocar um mal-estar na forma tradicional como
com prazer e com o mínimo desgaste. A autora tal formação se dá nas universidades. Para isso,
retoma como essa questão tem sido abordada retomam a origem histórica da administração,
pelo pensamento gerencial e pelo pensamento sua definição e suas funções, concluindo que,
social ao longo da história. Partindo de exem- no contexto capitalista, os administradores são
plos de suas pesquisas, argumenta que, apesar formados para aumentar os lucros dos empre-
da busca da gerência por técnicas que favore- sários, gerindo os recursos (inclusive, huma-

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nos) com eficiência. Mas mostram que, em- Friedrich (O monge à beira mar), o qual tem
bora poucas, também existem teorias críticas um espaço de 4/5 do total ocupado por um
dentro da própria área da administração. céu nublado, que se confunde com o oceano, e
Ao falar do papel da sociologia na for- apenas uma pequena figura de um monge so-
mação de administradores, os autores lem- litário. Andrade anuncia que “o entendimento
bram que também essa disciplina pode tanto do que produz essas nuvens espessas é neces-
reforçar as ideologias dominantes como ten- sário, não apenas para esclarecer porque ainda
sionar o debate. Tudo vai depender “das fontes estamos condenados a este presente sombrio,
onde os professores bebem seu saber socio- mas também para localizar as suas fissuras e
lógico” (p. 339). Partindo de uma perspectiva abrir linhas de fuga para outros horizontes,
dialética fundamentada na Teoria Crítica, os cujos primeiros raios parecem despontar.” (p.
autores defendem a importância da sociologia 358). A partir daí, ele apresenta as fissuras que
no sentido de combater a alienação, ainda que tem identificado no contexto atual e que possi-
esse caminho seja árduo. O capítulo finaliza bilidades elas podem trazer.
com a afirmação de que só causando angús- A amplitude de temáticas abordadas e
tias, questionamentos e desconfortos, se pode a densidade do livro o tornam, sem dúvida,
fazer “uma sociologia crítica de qualidade” (p. uma leitura importante para críticos do mana-
354). E, sem dúvida, esse não é apenas o obje- gement que queiram aprimorar seus argumen-
tivo do capítulo, mas de todo o livro, conforme tos, para profissionais que buscam enfrentar os
já apontei no início desta resenha. efeitos perversos do capitalismo atual em áreas
O título do último capítulo – “As fissuras diversas, especialmente a saúde, para profes-
no horizonte: utopia, a despeito da nebulosa sores que anseiam por ter uma literatura críti-
neoliberal”, escrito por Daniel Andrade – mos- ca para apresentar a seus alunos e, sobretudo,
tra que a organizadora buscou não apenas des- para estudantes que ainda são capazes de se
montar o discurso ideológico da gestão, mas indignar com as injustiças sociais e a explora-
também apontar possibilidades de sua supe- ção do trabalho de muitos por poucos.
ração. Como metáfora do contexto atual, An-
drade se vale de um quadro de Caspar David
Recebido para publicação em 17 de agosto de 2016
Aceito em 27 de outubro de 2016
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 615-618, Set./Dez. 2016

Marcia Hespanhol Bernardo - Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora
do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Psicologia da PUC-Campinas, onde coordena o Grupo
de Pesquisa Trabalho no contexto atual: estudos críticos em Psicologia Social. Suas pesquisas têm como
principais focos a vivência de trabalhadores em diferentes setores; a relação entre trabalho e saúde
mental; a inserção da Psicologia no mundo do trabalho. marciahespanhol@hotmail.com

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