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Soltando a voz
Q uem vê, hoje, o recifense Wellington*, me-
cânico aposentado de 59 anos, cantando em um
para o procedimento. A partir da primeira revisão médica
depois da cirurgia, já começava o processo de reabilitação
coral, não imagina o que ele passou. Diagnosticado, fonoaudiológica, introduzindo aos poucos uma série de
em 2014, com câncer na laringe, Wellington che- exercícios para fazer com que as palavras, a partir de en-
gou a fazer um ano de tratamento com químio e tão, saíssem pelo esôfago.
radioterapia no Hospital de Câncer de Pernambuco O treino de voz esofágica envolve técnicas de aspiração,
(HCP), mas o tumor voltou. A solução foi se deglutição e ejeção do ar no órgão. Esse treino é feito por
submeter a uma laringectomia total, meio de sons facilitadores (inicialmente priorizando os fone-
cirurgia de remoção do órgão. Após mas /p/, /t/ e /k/) e de uma boa articulação, estimulada a partir
o procedimento, além de perder a de palavras monossílabas e dissílabas, e gradativamente, de
voz, o paciente passa a respirar de- sequências e frases coloquiais curtas e longas, até chegar ao
finitivamente por um orifício feito no momento de conversa-
pescoço, chamado traqueostoma. ção com fala es-
A guinada positiva, porém, pontânea.
começou antes mesmo da ope-
ração, quando Wellington conhe-
ceu a equipe de fonoaudiologia
do HCP, que o preparou
Andressa Freitas
com paciente
laringectomizado do INCA
“O sucesso da reabilitação vocal com a téc- informações sobre o processo de reabilitação, além
nica de voz esofágica não é garantido a todos os de atividades com músicas e canto.
pacientes, mas, no nosso serviço, é fato que os Após a cirurgia, o paciente permanece de 15 a
pacientes que se dedicam diariamente em casa e 20 dias se alimentando por sonda. Nesse período,
comparecem à reabilitação duas vezes por semana ele já é acompanhado pela fonoaudióloga. Porém,
têm aumentada a chance de adquirir fluência de só passará por uma avaliação fonoaudiológica da de-
voz e de melhorar seu padrão de comunicação”, glutição, com saliva e alimentos líquidos e pastosos
explica Roberta Borba, coordenadora do Serviço de após a cicatrização da região operada.
Fonoaudiologia do HCP. “Gradativamente vamos progredindo essa
As sessões de reabilitação, segundo a fonoau- consistência para pastoso e sólidos macios. Nesses
dióloga, consistem de exercícios com movimentos casos, não recomendamos a ingestão de alimentos
de relaxamento e alongamento do complexo cervical, sólidos secos”, diz a fonoaudióloga.
que trabalha a musculatura dos ombros e pescoço, Tamanha dedicação, de ambos os lados, rende
e orofacial, que trabalha a tonicidade, mobilidade bons frutos. Wellington, por exemplo, hoje integra o
e sensibilidade dos órgãos fonoarticulatórios (lín- Coral Ressoar, formado por pacientes laringectomi-
gua, lábios, bochechas, palato e véu palatino). zados do HCP. E é dono de uma qualidade vocal em
Os atendimentos são realizados em ambulatório, voz esofágica excelente e completamente fluente,
individualmente, e no Ressoar, grupo de apoio ao segundo Roberta. “O auge de sua reabilitação acon-
paciente laringectomizado, que conta com profissio- tece agora. Ele se alegra e se sente estimulado pelo
nais de diferentes áreas da saúde, sempre levando reconhecimento de quem o vê cantar”, comemora.
Tipos de reabilitação
Como o paciente laringectomizado pode se comunicar oralmente
1 1
O ar é inspirado O paciente pressio-
pela boca e na o aparelho contra
deglutido até a a pele do pescoço
porção superior (ou da bochecha) e
do esôfago aciona um botão
2 2
Ao ser expulso, O dispositivo
o ar faz vibrar emite uma vibração
1 as paredes
3
sonora contínua,
do esôfago, que é transmitida
emitindo som para a cavidade oral
3
3 2 3
Na boca, são Nos órgãos
articuladas as articuladores
palavras (lábios, língua e
2 dentes), a vibração
Entrada e saída de ar 1 é transformada em
Esôfago
Reprodução/J. Gregory & K. Holoski
Entrada e saída de ar
Esôfago
pelo traqueostoma
Traqueia
Traqueia
Cantei, cantei...
portante vertente da atuação fonoaudiológica em
oncologia, mas não a única. De modo bem amplo,
o profissional da área é o responsável pela comu-
nicação humana – tanto a fala quanto a audição – e
CORAIS HUMANIZAM
pela deglutição. Pacientes de câncer podem ter
essas funções comprometidas antes, durante ou AMBIENTE HOSPITALAR
depois do tratamento.
“Procuramos garantir alguma forma de comu- A participação em corais é uma atividade bastan-
nicação e, sempre que possível, o paciente parti- te estimulada nos tratamentos fonoaudiológicos
cipa ativamente dessa escolha, como uma forma para pacientes submetidos à cirurgia de remoção
de valorizar sua autonomia. No que se refere à da laringe. No Hospital de Amor, o nome esco-
deglutição, é feita uma avaliação morfológica e fun- lhido para o grupo evidencia o bom humor dos
cional para averiguar as funções remanescentes e participantes: Papo Furado. “O coral é uma inicia-
as potencialidades que podem ser trabalhadas em tiva do Departamento de Fonoaudiologia a favor
terapia. O retorno total da alimentação por via oral da humanização dos pacientes e desde 2004 é
nem sempre é possível para todos os pacientes on- oferecido àqueles que fizeram laringectomia total.
cológicos. No entanto, a alimentação é muito mais Nas reuniões, os participantes trocam experiên-
do que fonte de nutrição, é garantia de prazer e cias para lidar melhor com o tratamento”, conta
qualidade de vida, até mesmo para o paciente em Gisele Giroldo.
fim de vida”, observa Andressa. Mensalmente, acrescenta a fonoaudióloga, os in-
A maior parte das sequelas que necessitam tegrantes do Papo Furado aprendem a interpretar
do trabalho do fonoaudiólogo oncológico é decor- músicas por meio de voz esofágica ou prótese tra-
rente de cirurgias de tumores de cabeça e pesco- queoesofágica. As apresentações são no próprio
ço. Profissional do Hospital de Amor (HA) – antigo hospital. “O intuito maior desse grupo é mostrar
Hospital de Câncer de Barretos, no Estado de São para os pacientes que eles não estão sozinhos. É
Paulo –, Gisele Giroldo conta que recebe muitos nítida a superação de cada um”, orgulha-se.
pacientes com problemas na fala. “A cirurgia é um