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Camila Maia1
Idilva Germano2
RESUMO:
ABSTRACT:
PALAVRAS-CHAVE:
Os estudos contemporâneos a respeito da resiliência têm se debruçado sobre a
questão da delimitação conceitual deste termo no âmbito da pesquisa psicológica.
Dependendo da orientação teórica das investigações, identificam-se definições cujo foco,
ora está no indivíduo, ora está na sociedade.
Utilizado tradicionalmente pelas ciências naturais como qualidade da resistência de
materiais, o termo resiliência foi adotado no âmbito das ciências psicológicas por
pesquisadores cujo referencial teórico, a Psicologia Positiva (SHELDOM e KING apud
YUNES, 2003), procura enfatizar mais os aspectos salutares dos sujeitos do que os
patológicos. O conceito tem sido empregado, neste contexto, para indicar a capacidade que o
indivíduo tem de enfrentar as adversidades que se lhe impõem, durante o curso de sua vida.
No entanto, as opiniões são díspares no que concerne ao entendimento dos fatores que
possibilitam essa capacidade de enfrentamento, se são atributos do próprio indivíduo ou se
consiste num conjunto de habilidades adquiridas de forma relacional.
Os estudos de biografias têm contribuído de forma importante para ampliar a
compreensão dos fatores que possibilitam uma “trajetória resiliente”. As narrativas de vida
têm mostrado que as estratégias utilizadas pelos indivíduos para ultrapassar obstáculos de
qualquer ordem, são, de certa forma, influenciadas por interações sociais que exercem um
papel de proteção deste sujeito e que oferecem as condições de possibilidade para a
construção de compreensões de si e do mundo capazes de fazer frente aos reveses da vida.
Esta visão contrapõe-se às concepções reducionistas e inatistas de resiliência, segundo as
quais o indivíduo resiste às adversidades pelo fato de ser dotado de características especiais
inatas ou inerentes ao seu desenvolvimento.
A teoria do posicionamento, lançada por Davies e Harré (ANO) e retomada por
Hubert Hermans e a noção de self dialógico, desenvolvida pelo último autor a partir da
1
Mestranda em Psicologia do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. E-
mail: camila_maiapsi@yahoo.com.br
2
Doutora em Sociologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal
do Ceará. E-mail: idilvapg@ufc.br.
interface entre o pensamento de William James e Mikhail Bakhtin, são ferramentas
conceituais interessantes para compreendermos a multiplicidade que deve ser levada em
consideração quando delimitamos o conceito de resiliência no âmbito da psicologia.
(adicionar compreensões sobre a teoria do posicionamento). Ao contrapor as concepções de
self unificado e essencial, Hermans (2008) propõe a ideia de um self multifacetado e
descentralizado, constituído por diversas vozes que são produto das interações sociais
travadas durante a vida dos indivíduos. Essas vozes estão em constante diálogo e se
manifestam de forma contextualizada no tempo e no espaço, de modo que o indivíduo se
posiciona e é posicionado de forma diferenciada em cada relação que estabelece.
O que pretendemos argumentar, neste trabalho, é que um sujeito cuja trajetória de
vida é considerada resiliente, provavelmente, empreendeu relações sociais que lhe
forneceram condições de resistir a dificuldades, ou seja, de se posicionar e ser posicionado
como alguém capaz de obter êxito frente a situações de risco. Essas relações se dão no
âmbito das diversas instituições das quais o sujeito faz parte, na família, na escola, na
comunidade, em instituições religiosas, etc.
Para defendermos nossa posição, lançamos mão da análise de narrativas
autobiográficas de jovens estudantes de escolas públicas de Fortaleza, à luz da psicologia
dialógica de Hermans (2008), a fim de problematizar o conceito de resiliência. Além disso,
temos o objetivo de, através da crítica a concepções de resiliência solipsistas que
culpabilizam os indivíduos pelo seu êxito ou pelo seu fracasso, incitar uma discussão a
respeito da debilidade das políticas públicas voltadas para a promoção de estratégias de
proteção de jovens que estão em estado de vulnerabilidade social.
3
Self-as-knower no original.
4
Self-as-known no original.
pensamentos e intenções, não se colocando, assim, como escravos da vontade de um senhor
onisciente.
O diálogo, para Bakhtin, abre a possibilidade de diferenciação entre o indivíduo e
seu mundo interior, diferenciação esta que ocorre no formato de relação interpessoal.
Quando o sujeito transforma um pensamento íntimo em enunciado, ou seja, quando fala a
partir de determinada posição, automaticamente, instaura um diálogo entre aquilo que disse
e os enunciados dos outros imaginários. Esses outros imaginários, por sua vez, são
construídos a partir das relações que este indivíduo estabeleceu, durante a sua vida, com os
outros reais, mas que, agora, fazem parte do seu self. Assim, ao externalizar um pensamento
interior no formato de um adversário ou interlocutor espacialmente separado, um diálogo
entre duas partes relativamente independentes é criado. Essa ênfase dada ao espaço
demonstra que Bakhtin entende as contradições internas e os estágios de desenvolvimento
de uma única pessoa como dramatizações de diferentes posicionamentos.
Apesar de enfatizar mais a continuidade do que a descontinuidade do self, uma vez
que afirma que o “Eu” organiza os diferentes aspectos do “mim” como parte de um fluxo
contínuo de consciência, James admite uma rivalidade entre os vários selves, uma vez que
não se pode escolher todas as possibilidades de ser. Essa suposição da multiplicidade dos
selves o aproxima do pensamento de Bakhtin. Apesar das semelhanças, há que se dizer
aquilo que os diferencia. Para James, um “Eu” diferenciado e autônomo mantém as partes
que compõem o “mim” juntas , a fim de garantir a sua identidade no tempo e no espaço. Ele
estava atento aos aspectos sociais do self individual. “Um homem tem tantos selves socias
quantos forem os indivíduos com quem se relacione” (JAMES apud HERMANS, 2001 p.
247). Já Bakhtin, por não ser psicólogo e sim crítico literário, não se importava com a
descontitnuidade e afirmava que a polifonia era a assunção de diversas visões de mundo.
Estava mais interessado nas noções de voz e de diálogo, pois isso o permitia tratar das
relações dialógicas internas e externas. Assim, apesar de James ter lançado a possibilidade
da construção social do self e da rivalidade entre seus componentes, somente uma teoria
construída à luz da novela polifônica de Bakhtin oferece elementos para a superação das
noções de unidade, de continuidade e de individualidade do self tradicional.
A partir dos trabalhos dos dois autores citados anteriormente, Hermans constrói o
conceito de self dialógico que se trata de uma multiplicidade de dinâmicas relativamente
autônomas de posições do eu.
Nesta concepção, o “Eu” tem a possibilidade de se mover de uma posição
espacial para outra de acordo com mudanças na situação e no tempo. O “Eu”
flutua entre posições diferentes e, às vezes, opostas e tem a capacidade
imaginativa de dotar cada posição com uma voz, para que as relações dialógicas
entre posições possam ser estabelecidas. (HERMANS, 2001 p. 248).
Aqui trouxe pra vc acompanhar e talvez discutir mais a teoria do posicionamento tal como formulada
por Davies e Harré (1990). O artigo “Posicionamiento: La producción discursiva de la identidad” está
reproduzdio em Athenea Digital - núm. 12: 242-259 (otoño 2007). A teoria teve vários
desdobramentos; Me parece que Hermans a desenvolveu no âmbito dos problemas da
personalidade. O texto mencionado po Hermans em seu The Dialogical Self: Toward a Theory of
Personal and Cultural Positioning (2001) é o de Harré, R., & Van Langenhove, L. (1991). Varieties of
positioning. Journal for theTheory of Social Behaviour, 21, 393–407.
Autobiografia
Ao analisar as obras de Dostoievsky, Bakhtin descreve o personagem Devushkin se
referindo ao momento em que este lê o romance “The Overcout” de Nicolai Gogol e se
identifica com um dos personagens, Akaky Akakievich. Esta identificação se deve às
características de ultraje e delimitação. Para Bakhtin, Devushkin sentia-se incomodado com
o fato de ser entendido pelos outros apenas como sendo um pobre, não lhe restando, assim,
nenhuma outra possibilidade de ser. No entanto, ao mesmo tempo em que sofria com essa
identificação, não acreditava que isso pudesse ser verdade, como se o personagem
percebesse que estas características não podiam lhe definir por completo. (FRANK, 2005).
A partir dessas reflexões, Bakhtin realiza uma crítica às ciências humanas da época,
ao afirmar que elas estavam “devushkinizando” seus sujeitos de pesquisa e que essa atitude
nem era verdadeira nem ética. Isto é, que os pesquisadores não deveriam considerar os
indivíduos respondentes de suas pesquisas como correspondentes às suas análises, como se
estas esgotassem tudo aquilo que eles são. O argumento de Bakhtin é que o pesquisador não
pode “finalizar” seu informante, ou seja, dizer aquilo que ele é ou pode ser, ou ainda, aquilo
que ele não é ou não pode ser. Para ele, esta atitude é o mesmo que considerar que a pessoa
não possui capacidade de mudança e de transformação de sua realidade. “Para Bakhtin, tudo
o que é antiético começa e termina quando um ser humano tenta determinar tudo aquilo que
um outro é e pode ser; quando uma pessoa alega que o outro não pode e não vai mudar, que
ele vai morrer assim como ele sempre foi.” (FRANK, 2005 p. 966).
A pesquisa, para Bakhtin, trata-se, então, de um movimento num diálogo contínuo
através do qual os participantes se constituem, tornando-se aquilo que eles ainda podem ser,
ou ainda, uma relação dialógica que se estabelece quando uma das pessoas considera a outra
como não acabada. Nesta relação, nunca se pode dizer aquilo que a pessoa é e, sim, somente
aquilo que o pesquisador está percebendo que ela é (ou está sendo) naquele momento.
Implica uma abertura para o vir-a-ser e uma crença na capacidade dos indivíduos para se
tornarem outros, independente do que sejam naquele momento.
O pesquisador, portanto, em hipótese alguma, pode dizer a última palavra sobre
determinado sujeito. O discurso que ele constrói sobre os participantes de sua pesquisa é,
somente, mais uma voz que pode ou não ser questionada pelos informantes. Dessa forma, há
um compromisso com a liberdade dos sujeitos de se autodefinirem e uma abertura para
aquilo que eles podem ser. No entanto, esse compromisso com a autodefinição dos sujeitos
não significa que esta seja autogerada, ou seja, que seu substrato seja o próprio sujeito. Para
Bakhtin, o homem não coincide com ele mesmo (GARDINER apud FRANK, 2005). Da
mesma forma, Frank afirma que ele não coincide com os tipos definidos pelo investigador
social e, quando o pesquisador insiste em fazer esta correspondência, esta se configura de
forma inexata, uma vez que aquilo que não coincide é relegado a pano de fundo. O diálogo
não pode ser estabelecido, quando se adota uma visão solipsista da consciência, pois para
que possa ocorrer, são necessárias, no mínimo, duas vozes.
A pesquisa dialógica enfatiza o engajamento dos participantes no esforço de se
tornarem. O discurso dos participantes também não é tratado como uma representação da
vida desses sujeitos e, sim, como atos de engajamento com os pesquisadores, onde estes
oferecem condições, não somente para que o informante conte sua vida assim como ela é,
mas também, para que este a transforme. Segundo Herbert Mead (ano ), enquanto falamos
sobre nós mesmos ou sobre os outros, nosso discurso gera efeitos. O objetivo da pesquisa
deve ser, então, apresentar o caminho que pesquisador e pesquisado atravessam enquanto
geram efeitos um no outro. Dessa forma, adotando tais posturas, podem-se construir teorias
empiricamente corretas e eticamente apropriadas.
A partir do que foi exposto a respeito do formato de pesquisa dialógico, podemos
fazer ligações com a pesquisa biográfica no sentido que percebemos que este método não
concebe os sujeitos pesquisados como acabados e abre a possibilidade para que eles se
apresentem com todas as suas vozes e as contradições existentes entre elas. Uma vez que se
demanda ao indivíduo que ele conte a sua história de vida livremente, da forma como ele
achar melhor, abre-se a possibilidade para que este se apresente na sua multiplicidade e
heterogeneidade. Além disso, a partir do processo de construção de sua história, o sujeito
empreende uma reconstrução de si mesmo, uma vez que a negociação entre suas diversas
posições torna-se presente.
A análise de biografias tem sido utilizada por pesquisadores narrativistas (Bruner,
Gergen, Sarbin, McAdams, dentre outros) segundo os quais o substrato das subjetividades
possui caráter lingüístico e este mundo psíquico se constitui a partir do momento em que
construímos versões narrativas dele. Essa perspectiva acaba por diluir o dualismo entre
interno e externo bem como oferece alternativas à lógica representacionista segundo a qual
aquilo que relatamos a respeito de nossa experiência a retrata de forma realista e a
linguagem, neste sentido, exerce, apenas, o papel de expressão desse mundo interno. Para
estes autores, é através da narrativa que os indivíduos organizam dentro de uma estrutura
coerente os acontecimentos e situações ocorridos durante sua vida. Fazendo um paralelo
com a teoria do self de William James, é como se o “self-conhecedor” organizasse seus
vários “selves-conhecidos” de forma a conferir-lhes unidade, homogeneidade e autonomia,
através da construção de narrativas.
De fato, a interpretação dos muitos episódios que configuram uma vida parece
exigir uma articulação de tipo narrativo nas culturas humanas. “Quem eu sou”
exige que eu construa um enredo dispondo os fragmentos do vivido numa
seqüência temporal e conseqüencial inteligível. (GERMANO, data?)
Como explicitado anteriormente, os estudos de narrativas tem dado mais ênfase aos
aspectos temporais envolvidos nas histórias criadas pelos sujeitos sobre si mesmos. Ao
adotarmos a perspectiva do self dialógico, podemos inserir nestas construções narrativas a
categoria espaço e trabalharmos com a ferramenta teórica do posicionamento. Para além de
colocar os eventos ocorridos numa sequência temporal inteligível, os sujeitos se apresentam
como diversos personagens desta história ora ocupando uma posição ora outra. Inclusive, a
própria relação que se estabelece entre pesquisador e pesquisado incita determinadas
posições no informante e, não, outras.
A adoção de uma metodologia biográfica para trabalhar o conceito de resiliência
reside no fato de acreditarmos que a análise de histórias de vida nos permite visualizar os
diversos posicionamentos dos sujeitos, provenientes das relações estabelecidas por eles ao
longo de suas vidas, frente aos mais variados aspectos, bem como a negociação de sentido
entre as vozes geradas por cada posição. Assim, podemos inferir, que tipos de relações o
sujeito estabelece (na família, na escola, no trabalho, na comunidade e demais instituições
de que participa) que lhe oferecem condições (materiais e reflexivas) para enfrentar as
dificuldades das mais variadas ordens.
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
GERMANO, I. M. P. Aplicações e implicações do método biográfico de Fritz Schütze
em Psicologia Social. Não possui a referência deste seu artigo na versão disponível na
internet
FRANK, Arthur W. What is dialogical research, and why should we do it? Qualitative
Health Research, Estados Unidos, v. 15, n. 7, p. 964-974, 2005. Disponível em:
<http://qhr.sagepub.com/cgi/content/abstract/15/7/964>. Acesso em: 13 Out. 2008.