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Referência:

FONTANA, R. Estágio - Do labirinto aos frágeis fios de Ariadne.


In: GONÇALVES, A.; PINHEIRO, A.; FERRO, M. (Org.).
Estágio Supervisionado e Práticas Educativas: diálogos interdisciplinares.
Dourados: Editora UEMS, 2011.

ESTÁGIO - DO LABIRINTO
AOS FRÁGEIS FIOS DE ARIADNE
Roseli A. Cação Fontana

Introdução – explicitando um ponto de vista


nas considerações sobre o estágio curricular.

O estágio, como parte significativa da preparação profissional do estu-


dante, é uma atividade em que o aprendizado do processo de trabalho desen-
volve-se em duas condições de produção distintas e articuladas: a atividade
da educação formal e a vivência de situações de trabalho.
No caso da formação do professor, a educação formal ancora-se no
ensino dos sistemas explicativos das ciências, da filosofia, da jurisprudência e
das técnicas relativas à docência, apresentados na forma de saberes disciplina-
res sistematizados. A vivência de situações de trabalho, por sua vez, implica
a inserção do estudante na dinâmica da escola e o exercício do papel de pro-
fessor. Nesta instância de aprendizado, o estudante apreende conhecimen-
tos que se elaboram, segundo Schwartz (2000), em estudos desenvolvidos
sobre o trabalho como atividade humana, na negociação entre dois polos de
exigências: o das normas antecedentes, que enquadram o trabalho docente
como “trabalho prescrito”, e o da reconfiguração dessas normas na particula-
ridade das situações, como “trabalho real”, no qual cada professor recria o que
estava supostamente antecipado (SCHWARTZ, 2000). Esses saberes, dife-
rentemente dos disciplinares, organizam-se de modo não linear, não siste-
matizado, estando ancorados nas histórias e situações concretas, e envolvem,
notadamente, a dificuldade de traduzir, em palavras, a experiência.

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Dessa perspectiva, no estágio encontram-se e confrontam-se patrimô- No encontro entre o que se conhece e as “zonas de incultura” atuam
nios de conhecimentos e de valores distintos que, em sua relação, questio- “forças de convocação e de reconvocação”. Schwartz define os saberes disci-
nam-se mutuamente produzindo o “desconforto intelectual”, conceito forja- plinares como “forças de convocação”, no sentido de buscarem trazer para
do por Schwartz (2000) para designar o sentimento de que o conhecimento o escopo de suas referências os eventos do estágio, neutralizando a história
sistematizado é defasado em relação à experiência e de que generalidades e atual e local, dos homens e das atividades. Por sua vez, os saberes do traba-
modelos necessitam ser sempre reapreciados. lho são definidos como “forças de reconvocação” na medida em que testam,
O “desconforto intelectual” experimentado pelo estagiário afeta suas avaliam e invalidam, em parte, os conhecimentos disciplinares, quando os
relações com o professor que o recebe e com seus formadores na Universida- contrapõem ao universo de saberes da experiência.
de, evidenciando que o estágio não é um problema exclusivamente pedagó- Nessas relações, nas dificuldades para trabalharem conjuntamente,
gico, mas social e filosófico, necessitando considerar de outra maneira tanto todos os sujeitos envolvidos incorporam, a si, valores e práticas da docência,
a atividade de ensino do professor, quanto sua formação. E, nesse sentido, é interiorizam tradições escolares, apropriam-se de modos de ação, de dizer e
reducionista a visão de que o estágio possibilitaria ao futuro professor expe-
de valorar a docência, significando-os como adesão ou recusa, produzindo,
rimentar-se naquilo que está estudando. O estudante passa, de fato, por essa
nas réplicas ativas (BAKHTIN, 1986) ao vivido, sua experiência (THOMP-
experiência; entretanto é confrontado a muitas situações não estudadas. Nas
SON, 1979). Nesse sentido, pode-se definir o estágio como uma instância
salas de aula e em outros espaços da escola, ele vive episódios inesperados e
de formação recíproca em que o outro (referindo-me à tríade – estagiário,
vê-se diante de modos de ensinar e de conduzir as relações que evidenciam
formador, professor em atuação) é alguém com quem se vai aprender algo.
escolhas e julgamentos, por parte dos professores, que escapam aos modelos
Algo sobre o outro - o que ele faz, as especificidades da sua experiência - e,
estudados. Muito mais do que experimentar-se naquilo que está estudando,
também, algo sobre si mesmo.
o estágio é um momento em que se cotejam os papéis e responsabilidades
Essa formação envolve as pressuposições sobre o outro, sobre o que
respectivas dos estagiários, dos professores que recebem os estagiários e dos
faz e por que faz, sobre seus valores e como eles têm sido vividos, pressuposi-
formadores na universidade.
Trata-se, então, o estágio de uma atividade intersubjetiva que envol- ções acerca dos próprios saberes e projetos e as surpresas diante desse outro,
ve a proficiência, desconhecimentos e projetos dos estagiários e de seus for- que escapam às pressuposições, na medida em que a docência, como toda
madores, na universidade e na escola básica. Nas relações instauradas pelo atividade de trabalho, envolve escolhas e julgamentos, tomadas de decisão em
estágio, cada um dos sujeitos envolvidos tem sua “zona de cultura e incultu- situações que, a despeito das determinações, escapam às prescrições.
ra” (SCHWARTZ, 2001, p. 12). A aprendizagem dos saberes disciplinares Schwartz refere-se às exigências de contemplar as normas anteceden-
é acompanhada de uma “zona de incultura”, relativa a tudo que a atividade tes e de recriá-las em função daquilo que se apresenta como novidade na situ-
do trabalho recria de saberes, de valores, de histórias particulares de que os ação imediata de trabalho como “uso dramático de si mesmo”. A apreensão e
professores em atuação nas escolas são portadores. Por sua vez, os saberes da a compreensão do “uso dramático de si mesmo” só se tornam possíveis se não
experiência são acompanhados de uma “zona de incultura” relativa a sua con- forem neutralizados os aspectos históricos da situação de trabalho em favor
ceitualização e sistematização. das pressuposições orientadas pelas explicações e modelos sistematizados.

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Ela só se torna possível quando se busca a “sempre-perseguida-embora-ina- relações de formação em abstrato. Os conceitos remetem às formações histó-
tingível-tentativa de adotar o ponto de vista do outro” (EUGÊNIO, 2003, p. ricas em que se constituem e se sustentam, às coordenadas sociais, culturais e
209), em que se evidencia o próprio ponto de vista, uma clássica questão das de subjetivação que atendem a necessidades práticas e a propósitos pragmá-
ciências humanas. ticos específicos. A eles, os formadores e os estudantes concretos - síntese de
Os pressupostos assumidos por Schwartz na produção de conheci- relações sociais múltiplas e diversas - respondem ativamente, elaborando-os a
mentos sobre o trabalho aproximam-se das teses de Bakhtin (1986, 2003) e partir das posições sociais que ocupam, tanto na relação de ensino (sua con-
de Thompson (1979, 1981) acerca da apreensão do ponto de vista do outro dição imediata de produção) quanto nas muitas relações sociais em que se
e de sua experiência. Em seus campos específicos – o dos estudos da lingua- inscrevem e se constituem (relações de parentesco, de trabalho, de gênero, de
gem e o da história - ambos apontam, a exemplo das análises de Schwartz, grupo geracional, etc.).
na direção da superação de análises abstratas e da aproximação das ações dos Nas relações intersubjetivas do processo de formação, os sentidos da
sujeitos e dos modos como significam essas ações a partir de lugares sociais docência e da escolarização produzem-se, reproduzem-se e transformam-
específicos que ocupam. se e a linguagem, como princípio suposto de uma inteligibilidade comum,
reconfigura-se como o lugar onde as dessemelhanças se revelam. Ou seja, os
1-Dialogia e experiência
significados não são apenas refletidos pelos sujeitos, como as imagens em um
espelho, mas também são refratados por eles, em sentidos múltiplos e con-
traditórios que remetem, como assinala Bakhtin, ao confronto de interesses
Bakhtin assume a centralidade da linguagem na constituição dos co-
sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica.
nhecimentos em circulação na vida social e focaliza a apreensão do ponto de
Thompson aborda os processos de formação como formas de interio-
vista do outro e de sua experiência como compreensão dialógica.
rização da experiência, através dos quais tradições culturais são apropriadas
O conceito de diálogo, em Bakhtin, supõe a tensão entre vozes sociais
e significadas, remetendo à singularidade nas condições históricas comuns
em disputa, que modulam os sentidos da linguagem, configurando a com-
da existência. A experiência, como o conjunto das relações sociais vividas
preensão como uma réplica ativa às palavras dos outros. Produzindo-se no
na cultura (THOMPSON, 1981), não se restringe ao âmbito das ideias, do
encontro/confronto entre essas palavras alheias e aquelas de que os sujeitos
pensamento e de seus procedimentos. Ela produz-se e singulariza-se como
já se apropriaram e que os constituem, a compreensão é sempre uma partici-
significação. Na sua raiz estão os signos, que constituem os diversos sistemas
pação no diálogo. Ela passa pelo reconhecimento dos significados e sentidos culturais que fazem parte da genética de todo o processo histórico, tais como
em jogo e vai além dele, implicando uma tomada de posição frente a eles – de os costumes, as regras visíveis e invisíveis de regulação social, hegemonia e
adesão ou de recusa, de acordo ou desacordo, de divergência ou de conver- deferência, formas simbólicas de dominação e de resistência, fé religiosa e im-
gência, de conciliação ou de luta. pulsos milenaristas, maneiras, leis, instituições, ideologias. Signos, que pro-
Nesse sentido, não há significados intrínsecos aos conceitos sistemati- duzidos na relação com o outro, afetam os participantes das relações sociais,
zados que configuram o campo da formação docente, dos quais os estudantes redimensionam e transformam a atividade humana, possibilitam a produção
apenas se apropriam. Do mesmo modo, não há um estudante genérico, nem de sentidos, conforme assinala Bakhtin.

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Longe de essencializar as subjetividades, a experiência traduz uma Embora esse momento e essas dimensões do estágio sejam pouco
busca por apreender indícios de seus processos de constituição - sem esca- abordados, eles mostram-se fundamentais à formação, uma vez que é nessas
motear as ambiguidades neles envolvidas - em meio à participação dos indi- relações e por meio delas que o estagiário observa de perto e de dentro as con-
víduos em diferentes grupos de pertencimento. Assim, no entrecruzamento dições sociais cotidianas de produção da docência, que as interpreta e delas
das condições de produção da vivência imediata com as determinações mais participa em um exercício de caráter iniciático.
amplas da história social, a experiência é vivida como sentimento, como nor-
mas, obrigações e reciprocidades, como valores. Ela é mediada pelas formas 2-O recorte – o processo de inserção do estagiário
elaboradas da arte, das ciências ou das convicções religiosas. Nela o humano na escola.
é concebido como ser inscrito na cultura e na história, não apenas como re-
produção, mas como participação, atualização e reinvenção dos modos de A chegada ao campo de estágio é um momento delicado e decisivo,
ser, sentir e pensar. que implica dificuldades e idiossincrasias, na aproximação do estudante com
Segundo Thompson, a experiência define um lugar a partir do qual, na o complexo de situações e de planos interativos constituídos pela diversidade
análise da realidade social, determinação e agência humana podem ser apre- entre as pessoas que compõem a escola, em termos de classe social, de gera-
endidas em seus nexos relacionais. É na e pela experiência que os sujeitos se ção, de gênero, dos papéis e lugares sociais por elas ocupados, na hierarquia
constituem, como indivíduos e como coletividades. Dessa perspectiva, a es- da própria escola e do sistema de ensino Essas relações geram particularidades
trutura social é transmutada em processo, entendido como prática humana, e
que fornecem uma identidade, uma referência a cada escola e também a seus
os sujeitos são reinseridos na história.
protagonistas, remetendo a diferentes universos de significação e a tipos de
Um conceito fundamental às duas abordagens é o de significação. A
interlocuções distintas que aproximam o estagiário das particularidades do
linguagem é significação e não existe experiência sem significação. Experi-
trabalho docente.
ência e significação constroem-se dentro dos limites possíveis às relações so-
Assim, apesar de as escolas serem muito parecidas em sua organização
ciais e não são observáveis como dados objetivos. Sua apreensão e análise só
e em termos das normas antecedentes que as regulam, as redes de relações
são possíveis através das relações intersubjetivas instauradas e mediadas pela
tecidas entre os papéis que as constituem e as pessoas que os ocupam, consti-
linguagem, nas quais o complexo processo de sua elaboração indicia-se em
tuem uma “zona de incultura” do estagiário.
enunciados concretos. A compreensão e a interpretação desses enunciados
A diferença entre papel e lugar social é interessante para explicitar as
realizam-se em ligação estreita com as condições de produção imediatas e
mais amplas da situação social em que eles se materializam. particularidades da escola. O papel social de professor, por exemplo, é defini-
Assumindo a aproximação histórica dos sujeitos, proposta por essas do de acordo com referências e normas estáveis que permitem seu reconhe-
referências teóricas, proponho-me, neste texto, a analisar o processo de in- cimento e definem um conjunto de comportamentos esperados dos sujeitos
serção do estagiário na escola da perspectiva dos percursos da singularização que os ocupam. No entanto, esse papel é vivido por indivíduos com histórias
da experiência nos processos de formação nas situações de trabalho e na edu- distintas – alguns não dependem de seu salário para viver, outros são arrimo
cação formal. de família; há aqueles que ainda estudam na universidade e aqueles forma-

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dos há 20 anos -, que gozam de status distintos nas relações sociais da escola, O estagiário não. Sua relação com a escola é uma relação deliberada de conhe-
como por exemplo o professor antigo de casa, o professor inexperiente; o cimento. Sua ida à escola é precedida e acompanhada por leituras, conversas,
professor que faz parte das relações pessoais da diretora; o professor presti- orientações e reflexões. O estagiário sabe que se espera dele a discrição do que
giado pelos pais dos alunos, o professor querido pelos alunos, etc.. se vive e se produz na escola.
As diferenças das histórias pessoais e de status entre sujeitos que vivem Nessa condição, ele não tem um lugar definido na escola. É um estran-
o papel de professor conferem sentidos distintos a essa condição profissio- geiro em relação ao grupo do qual se aproxima. Seu lugar dentro da escola
nal. Esses sentidos ganham visibilidade no modo como os sujeitos realizam pode ser definido como um “não-lugar” (AUGÉ, 1994), ou seja, uma posi-
as tarefas diárias pertinentes à docência, reconfigurando-as em alguns de seus ção e um modo de participação nas relações escolares que se caracteriza pela
aspectos, na maneira como esses profissionais se relacionam entre si e como se ausência de vínculos e pela provisoriedade. Os estagiários estão de passagem
posicionam nas relações de poder internas à escola. pela escola e não têm um lugar assegurado nas relações ali produzidas, sendo
Os sentidos produzidos nas relações cotidianas configuram uma espé- seu desafio o de produzir “algum lugar” nessas relações, vivendo-as.
cie de convenção coletiva que, vivida de forma tácita, define o lugar de cada A produção desse lugar não preexiste à presença do estagiário na es-
um e indica a maneira de se comportar nas diferentes relações. cola e para realizá-la não há um roteiro pré-definido de abordagem, ainda
A vida cotidiana das escolas baseia-se nessas relações de convivência que sua ida à escola seja precedida e acompanhada por leituras, conversas,
e de conveniência (MAYOL, 1996), assentadas em relações de poder, que as orientações e reflexões. O estagiário sabe que se espera dele a aproximação da
pessoas e os grupos sociais, que compõem a escola, constroem entre si. Nela escola. Contudo, não sabe de antemão o que vai acontecer estando face a face
as pessoas são chamadas pelo nome e imediatamente localizadas em função com os sujeitos singulares que vivem a escola cotidianamente.
dos papéis e lugares sociais que ocupam nas relações. Como estrangeiro ao grupo, o estagiário sabe-se observado por aque-
Nessas condições, inserir-se significa apreender, compreender e apren- les a quem observa, sabe-se significado por aqueles a quem significa. O grupo
der a lidar com os lugares sociais, as etiquetas e códigos em jogo nas relações observado procura socializá-lo, mobilizando seus sistemas de classificação de
e regras de conveniência, com os sentidos com que a hierarquia, o tempo e a modo a torná-lo socialmente reconhecido, com graus distintos de proximi-
organização do espaço são pensados e vividos pelos grupos que constituem dade. A proximidade e o distanciamento entre o estagiário e os grupos nos
a escola, bem como com os conflitos, negociações e rivalidades que compor- quais se insere se materializam em condições sociais e políticas particulares
tam. Compreendê-las implica compreender o papel de estagiário e o lugar e assimétricas, orientadas pelas relações produzidas entre a escola básica e a
por ele ocupado nas relações da escola. universidade e pelos lugares ocupados historicamente, por ambas, nos siste-
O papel de estagiário não se enquadra nos papéis sociais que compõem mas políticos e culturais.
a escola. Os estagiários não são alunos na escola em que estagiam, tampouco Embora as relações em que o estagiário se insere no processo de forma-
são professores, diretores ou funcionários dessa escola, nem alguém ligado às ção para a docência sejam familiares a ele, em função dos muitos anos vividos
famílias daqueles que ali estudam. As pessoas reunidas na escola vivem o seu na escola, na condição de aluno, ao mesmo tempo elas lhe são estranhas, pois
cotidiano, vivem a produção coletiva de significados, situam-se dentro dela. sua participação inscreve-se em condições de produção distintas daquelas

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que se vive como aluno. Como estagiário, ele vivencia as relações na escola que o estagiário elabora das instruções e orientações recebidas dos formado-
na condição de observador, de interpretador deliberado. Ele experimenta-se res que o supervisionam e das relações vividas na escola.
no “difícil ofício de importunar” (SILVA, 2000, p.21), pois é orientado não Esses sentimentos, juntamente com aquilo que o estagiário significa
só a conviver com o grupo, mas a manter um registro sistemático dessa convi- de suas leituras no processo de formação, com suas vivências na escola, com
vência de modo a que possa descrever suas formas de comunicação, seus cos- sua sensibilidade e intuição mediatizam suas escolhas em relação aos modos
tumes, suas rotinas e hábitos, suas escolhas, os textos, entendidos em sentido de agir e de conduzir as relações com as pessoas e grupos da escola e suas
amplo como qualquer conjunto coerente de signos (BAKHTIN, 2003:307), decisões quanto àquilo que vai registrar (gestos, falas, episódios interativos,
que produzem. Ele é um participante estrangeiro. Ele é aquele que está e não nomes, objetos), quando e de que modo vai fazê-lo.
está presente, porque olha o que acontece ao seu redor para poder anotar, Parafraseando Silva (2000), o estagiário tece, com seus registros, frá-
descrever o acontecido, procurando ver além do visto e descrito. geis fios de Ariadne que o ajudam, precariamente, a não se perder no labirin-
A familiaridade assegura-lhe o conhecimento de vários aspectos e to da experiência do outro, que busca conhecer. Esses registros, mais do que
signos das relações escolares. Ele tem experiências mais ou menos comuns e uma descrição objetiva dos fatos apreendidos na escola, dão visibilidade ao
partilháveis, que lhe permitem um nível de interação com as pessoas da es- próprio estagiário e a sua experiência iniciática, eles evidenciam a presença do
cola em que se insere. No entanto, como estagiário, é chamado a confrontar, estagiário em campo como um dado em si mesmo, que aparece misturado aos
intelectual e emocionalmente, versões e interpretações a respeito de fatos, fatos que ele é orientado, no processo de formação profissional, a observar e
situações e escolhas que constituem o cotidiano escolar. Nessas condições, relatar.
evidencia-se que o familiar não é necessariamente conhecido e tudo aquilo Na descrição e interpretação do outro, de seus gestos, de seus dizeres,
que a situação de estágio dele solicita implica o distanciamento do grupo no de suas práticas, dos valores nelas implicados, esboça-se o próprio estagiário,
qual é chamado a inserir-se. Cada pergunta do estagiário, cada gesto de es- como professor em formação. O relato da relação com o outro é a réplica
crever, mesmo que apressada e brevemente algo, o distancia do grupo com o (BAKHTIN, 1986) do estagiário aos significados e sentidos por ele apreen-
qual se relaciona. didos nesse outro, é a expressão de seus valores, daquilo que privilegia e tam-
Na tensão entre o familiar e o estranho ele experimenta a adequação bém das emoções e sentimentos de temor, curiosidade, fascínio, repugnância
(ou não) de seus gestos e dizeres, a dimensão do poder e da dominação que mobilizadas pela inserção na escola. Os frágeis fios que ele tece, indiciam sua
regem as relações intraescolares e aquelas da escola com a Universidade. apreensão do universo da educação escolar, da docência e de si próprio em
Diante do fluxo ininterrupto de significados e sentidos postos em cir- relação a eles. Esboçando o outro com quem se relaciona e a quem observa na
culação nessas relações, o estagiário caminha pelos corredores familiares da escola, o estagiário encontra-se consigo mesmo, como personagem do estágio
escola como se fossem um labirinto cheio de surpresas e escolhas a cada bi- e como professor em formação.
furcação. O desejo de aprender e de ser bem sucedido em sua empreitada, o Nesse esboço do outro e de si mesmo indiciam-se vozes sociais, acerca
medo de não ser aceito, a repugnância por certas práticas escolares já conhe- de educação escolar, em disputa na formação histórica em que o processo
cidas, a vontade de escapar a elas ou de modificá-las, medeiam a compreensão de formação desses estudantes está inscrito. Em suas elaborações sobre a do-

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cência, produzidas na relação com a escola, encontram-se e confrontam-se a quem nossa atividade se dirige e com quem se realiza, e a construção de um
conceitos e orientações colocados em circulação pelas disciplinas da forma- viver em conjunto as situações de trabalho no cotidiano da escola, inscreven-
ção inicial na universidade; concepções de docência, de ensino, de educação; do a formação no que ela tem de mais amplo, sua dimensão ética e política.
princípios jurídicos que ordenam o funcionamento das escolas e as formas de
sua organização real; os discursos que as configuram nos projetos pedagógi- Referências Bibliográficas
cos, práticas proferidas e observadas, tentativas de exercício do papel de pro-
fessor etc. Essas referências e significados culturais constituem vozes sociais AUGE, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.
Campinas, SP: Papirus, 1994.
que circulam nos processos de formação e de constituição da profissionalida-
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em conflito, a que formadores e estudantes respondem, seja como destinatá- ra Galvão Gomes. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
rios imediatos ou como sobredestinatários de seus discursos. ______. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução: Michel Lahud e Yara Fra-
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do, as orientações teóricas, as tendências filosóficas, as polêmicas políticas,
EUGÊNIO, Fernanda. De como olhar onde não se vê: ser antropóloga e ser tia em
estéticas, pedagógicas, econômicas, que constituem os interlocutores. Eles uma escola especializada para crianças cegas. In: VELHO, Gilberto; KUSCHNIR,
operam o presente (enunciados em circulação), o passado (enunciados lega- Karina (org.). Pesquisas Urbanas: desafios do trabalho antropológico. Rio de Janei-
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que falam dos objetivos e das utopias dessa contemporaneidade) como me- MAYOL, Pierre. A conveniência. In: Certeau, Michel; Giard, Luce; ______. ;
mória de sentidos (passada e futura), como história e cultura. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Tradução: Ephraim Ferreira Alves e
A interação viva dessas vozes sociais e as condições em que é produzi- Lúcia Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
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que não são da ordem do estritamente pessoal. Antes, configuram “um dra- ______. Una entrevista com E. P. Thompson. In: ______. Tradición, revuelta y
mático uso de si”, na medida em que remetem a decisões que afetam o outro, conciencia de classe. Barcelona: Crítica, 1979, p. 294-318.

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