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ARTIGO ACIDENTES DO TRABALHO

Efeito dominó
Embora indiretamente, a sociedade também
arca com os custos dos acidentes de trabalho

O~
uando nos debruçamos sobre o
tema da Segurança e Saúde dos
trabalhadores, analisando os
acidentes e as doenças ocupa-
cionais, deparamo-nos com um
cenário dos mais aflitivos. As ocorrências
nesse campo geram conseqüências traumá-
ticas que levam, muitas vezes, à invalidez
permanente ou até mesmo à morte, com re-
percussões danosas para o trabalhador, sua
família, empresa e sociedade.
O acidente do trabalho mais grave inter-
rompe abruptamente a trajetória profissio-
nal, transforma sonhos em pesadelos e lança
um véu de sofrimento sobre vítimas inocen-
tes, cujos lamentos ecoarão distante dos ouvi-
dos de alguns empresários displicentes, que
jogam com a vida e a saúde dos trabalhado-
res com a mesma frieza com que cuidam das
ferramentas utilizadas na sua atividade.
A gravidade do problema e a necessida-
de premente de soluções não permitem
mais ignorá-lo. É praticamente impossível
“anestesiar” a consciência, comemorar os
avanços tecnológicos e, com indiferença,
desviar o olhar dessa ferida social aberta,
ainda mais com tantos dispositivos consti-
tucionais e princípios jurídicos entronizan-
do a dignificação do trabalho.
A questão f ica ainda mais incômoda
quando já se sabe que a implementação de
medidas preventivas, algumas bastante sim-
ples e de baixo custo, alcança reduções esta-
tísticas significativas, ou seja, economizam
vidas humanas. Muitas inovações, já con-
sagradas na legislação brasileira, não são
aplicadas efetivamente por simples desco-
nhecimento ou por deficiência da inspeção
do trabalho, exigindo de todos um grande
esforço para tornar real aquilo que formal-
mente já é legal.
As estatísticas elevadas dos acidentes do
trabalho levou diversos países, organiza-
ções e, finalmente, a Organização Interna-
cional do Trabalho (OIT), desde 2001, a
instituir o dia 28 de abril de cada ano como
Dia Mundial pela Saúde e Segurança do
Trabalho. Esta data foi adotada primeira-
mente em 1969, para lembrar a explosão da
mina de Farmington, West Virgínia, nos Es- vulgado em 1985, a cada três minutos um rências, resulta a cada ano por volta de dois
tados Unidos, onde morreram 78 trabalhado- trabalhador perdia a vida no mundo em con- milhões de acidentes do trabalho com óbi-
res. O Brasil, desde 2003, também incluiu seqüência de acidente do trabalho ou de to, quase quatro mortes por minuto. Se em
no seu calendário de eventos o dia 28 de doença profissional, e a cada segundo, pelo 1985 a cada três minutos um trabalhador
abril para prestar homenagens às vítimas menos, quatro trabalhadores sofriam algum perdia a vida no mundo, como menciona-
dos acidentes do trabalho. tipo de lesão. do, em 2003, a cada três minutos por volta
Em menos de duas décadas a situação de doze trabalhadores morreram por aciden-
O PROBLEMA NO MUNDO piorou amargamente. Estatísticas da mes- te do trabalho ou situações equiparáveis.
De acordo com levantamento da OIT di- ma OIT divulgadas em 2003 asseveram que Além das perdas humanas e todos os efei-
ocorrem por ano no mundo, 270 milhões tos colaterais dolorosos, há um custo eco-
Sebastião Geraldo de Oliveira de acidentes, representando uma média a- nômico extraordinário que ultrapassa anu-
Juiz do trabalho e mestre em Direito pela UFMG proximada de 740 mil por dia ou nove por almente um trilhão de dólares americanos,
sebastiaooliveira@terra.com.br segundo. Desse elevado número de ocor- por volta de 4% do Produto Interno Bruto
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ARTIGO ACIDENTES DO TRABALHO
global, o que demonstra a necessidade ur- ais para adoção de um enfoque integrado nais. Enquanto nos países industrializados
gente de adoção de políticas efetivas vol- da Segurança e Saúde no Trabalho com os os acidentes fatais se estabilizaram ou até
tadas para a melhoria das condições de se- sistemas de gestão de Segurança e Saúde diminuíram, nos países em desenvolvimen-
gurança e saúde no local de trabalho. ocupacional. Com propósito semelhante, to ou emergentes os índices continuam ele-
O número crescente de acidentes e doen- o Conselho da União Européia adotou uma vados e até crescentes, o que leva à conclu-
ças ocupacionais dos últimos anos, consi- Resolução, no dia 3 de junho de 2002, a são de que o progresso mundial está sendo
derando as estatísticas mundiais, motivou respeito de uma nova estratégia comunitá- alcançado ao preço constrangedor de mui-
a OIT no sentido de adotar estratégias dire- ria de Saúde e Segurança no Trabalho. Nes- tas vidas.
tas para tentar interromper ou reverter este se documento há menção de que “a aplica- Por outro enfoque, os custos dos aciden-
quadro preocupante. São cifras, de certa for- ção da legislação ainda não produziu os tes do trabalho no Brasil são muito eleva-
ma alarmantes, que passaram a exigir me- resultados esperados, tanto que o número dos para os empregadores e indiretamente
didas urgentes de enfrentamento. de acidentes continua elevado em termos para toda a sociedade. O professor José Pas-
Já no ano de 2001, os peritos da OIT ela- absolutos, observando-se um recrudesci- tore assevera que esse custo para as empresas
boraram um documento a respeito das “Di- mento do número de acidentes em certos atinge 12,5 bilhões de reais por ano. Chega-
rectrices relativas a los sistemas de gestión Estados-membros”. se a esse número computando-se os prêmios
de la seguridad y la salud en el trabajo”. Como se verifica, o desconforto causado de seguro, o tempo perdido, as despesas dos
Essas diretrizes não têm força vinculante, pelas estatísticas dos infortúnios trabalhis- primeiros socorros, a destruição de equipa-
nem criam obrigações legais para os Esta- tas já despertou as principais organizações mentos e materiais, a interrupção da produ-
dos-membros. No entanto, indicam as reco- mundiais para tentar deter o avanço do pro- ção, os salários pagos aos empregados afas-
mendações técnicas atualizadas para im- blema e, se possível, reverter sua trajetória. tados, as despesas administrativas etc. Além
plementar na prática uma adequada gestão, desses custos mais visíveis, há, também, o
com o propósito de conseguir a melhoria O PROBLEMA NO BRASIL prejuízo para a imagem da empresa no mer-
contínua da Segurança e Saúde nos locais Desde que o Brasil ostentou o lamentável cado em que atua, as ações postulando repa-
de trabalho. O empresário sintonizado com título de campeão mundial de acidentes do ração de danos pelos acidentes e doenças
a modernidade deve adotar a gestão de Se- trabalho na década de 70 do século passa- profissionais, os gastos dos familiares dos
gurança e Saúde como parte integrante e do, diversas alterações legislativas e puni- acidentados, dentre outros. Somando-se os
estratégica da gestão geral da empresa e não ções mais severas foram adotadas e muitos gastos diretos e indiretos, mais os dispên-
como simples cumprimento de uma obri- esforços estão ocorrendo para melhorar a dios que o Estado suporta para o atendi-
gação legal. Naturalmente que essas diretri- segurança e a qualidade de vida nos locais mento médico dos trabalhadores informais,
zes acabam por influenciar positivamente de trabalho. Apesar do relativo progresso conclui o professor Pastore que os custos
na elaboração de leis e atos normativos pe- obtido, é imperioso registrar que estamos dos acidentes do trabalho no Brasil ultra-
los Estados-membros, colaborando para o longe da situação considerada aceitável, es- passam 20 bilhões de reais por ano.
aperfeiçoamento das norma jurídicas a res- pecialmente quando comparamos os dados É preciso enfatizar que todos perdem
peito. brasileiros com as estatísticas internacio- com o acidente do trabalho: o empregado
No ano de 2003, diante do agravamento
demonstrado pelas estatísticas, a OIT criou Quadro 1 - Dados oficiais sobre acidentes do trabalho no Brasil nos últimos 30 anos
um plano de ação para promover a Segu-
ANOS Trabalhadores Total dos Acidentes Acidentes Doenças Mortes
rança e a Saúde no trabalho, com abran-
formais acidentes típicos de trajeto ocupacionais
gência global, por meio de uma Resolu-
ção. Ficou decidida também a inclusão do 1973 10.956.956 1.632.696 1.602.517 28.395 1.784 3.173
tema na ordem do dia da 93ª reunião ordi- 1974 11.537.024 1.796.761 1.756.649 38.273 1.839 3.833
nária da OIT, que ocorrerá no ano de 2005 1975 12.996.796 1.916.187 1.869.689 44.307 2.191 4.001
com o propósito de adotar um novo ins- 1976 14.945.489 1.743.825 1.692.833 48.394 2.598 3.900
trumento, de grande prestígio e repercus- 1977 16.589.605 1.614.750 1.562.957 48.780 3.013 4.445
são, no campo da Segurança e Saúde no 1978 16.638.799 1.551.501 1.497.974 48.511 5.016 4.342
Trabalho, com segunda discussão já pre- 1979 17.637.127 1.444.627 1.388.525 52.279 3.823 4.673
vista para a reunião ordinária de 2006. 1980 18.686.355 1.464.211 1.404.531 55.967 3.713 4.824
Registra a Resolução mencionada que os 1981 19.188.536 1.270.465 1.215.539 51.722 3.204 4.808
esforços para solucionar os problemas na 1982 19.476.362 1.178.472 1.117.832 57.874 2.766 4.496
área da Segurança e Saúde no Trabalho, tan- 1983 19.671.128 1.003.115 943.110 56.989 3.016 4.214
to em nível nacional quanto internacional, 1984 19.673.915 961.575 901.288 57.054 3.233 4.508
têm sido dispersos e fragmentados e não 1985 21.151.994 1.077.861 1.010.340 63.515 4.006 4.384
possuem a coerência necessária para pro- 1986 22.163.827 1.207.859 1.129.152 72.693 6.014 4.578
duzir um impacto real. Como pilar desta 1987 22.617.787 1.137.124 1.065.912 64.830 6.382 5.738
nova estratégia global, a OIT propõe a ins- 1988 23.661.579 991.581 926.354 60.202 5.025 4.616
tauração de uma cultura efetiva de preven- 1989 24.486.553 888.343 825.081 58.524 4.838 4.554
ção em matéria de Segurança e Saúde no 1990 23.198.656 693.572 632.012 56.343 5.217 5.355
Trabalho, com emprego de todos os meios 1991 23.004.264 632.322 579.362 46.679 6.281 4.527
disponíveis para sensibilização, conheci- 1992 22.272.843 532.514 490.916 33.299 8.299 3.516
mento e a compreensão geral sobre os peri- 1993 23.165.027 412.293 374.167 22.709 15.417 3.110
gos e riscos ocupacionais. Enfatiza que se 1994 23.667.241 388.304 350.210 22.824 15.270 3.129
deve atribuir máxima prioridade ao princí- 1995 23.755.736 424.137 374.700 28.791 20.646 3.967
pio da prevenção. Para atingir tais propósi- 1996 23.830.312 395.455 325.870 34.696 34.889 4.488
tos, a OIT pretende adotar uma campanha 1997 24.104.428 421.343 347.482 37.213 36.648 3.469
internacional de informação e sensibiliza- 1998 24.491.635 414.341 347.738 36.114 30.489 3.793
ção, centrada na promoção do conceito de 1999 24.993.265 387.820 326.404 37.513 23.903 3.896
gestão racional de Segurança e Saúde no
2000 26.228.629 363.868 304.963 39.300 19.605 3.094
Trabalho.
2001 26.966.897 340.251 282.965 38.799 18.487 2.753
No mesmo sentido, na 13ª Reunião do
2002 28.683.913 387.905 320.398 46.621 20.886 2.898
Comitê misto OIT/OMS, decidiu-se conju-
gar esforços das duas organizações mundi- Fonte: Anuário Brasileiro de Proteção- 2004, p. 20.

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acidentado e sua família, a empresa, o go- É importante mencionar que a estatística monstram desconfiança dos índices ofici-
verno e, em última instância, toda a socie- oficial é feita com base nas informações ais e apontam dificuldades crescentes para
dade. Por outro lado, se todos amargam pre- prestadas pelo empregador sobre o aciden- o reconhecimento das doenças ocupacio-
juízos visíveis, é inevitável concluir que in- te. Todavia, é grande a quantidade de ocor- nais pelos empregadores e junto à perícia
vestir em prevenção proporciona diversos rências que não são notificadas, por igno- médica do INSS, tanto que é visível o au-
benefícios: primeiramente, retorno financei- rância dos envolvidos, por receio das con- mento das demandas buscando o enquadra-
ro para o empregador; em segundo lugar, seqüências ou por falta de registro formal mento judicial da patologia como doença
respeitabilidade dos empregados pelo pa- do trabalhador. Avalia-se que os registros ocupacional.
drão ético da empresa; em terceiro, melhoria só atingem 50% dos acidentes efetivamen- Mesmo desconsiderando a subnotifica-
das contas da Previdência Social e finalmen- te ocorridos, principalmente a partir de ção, os números dos acidentes do trabalho
te ganho emocional dos empregados que se 1991, quando o Art. 118 da Lei n. 8.213 deixam à mostra a marca dolorosa do pro-
sentem valorizados e respeitados. instituiu a garantia de emprego por 12 me- blema, mormente nos setores da construção
Todos esses fatores conjugados geram um ses, após a cessação do auxílio-doença, pa- civil, transporte e nas indústrias extrativa e
efeito sinérgico positivo, resultando maior ra o empregado acidentado. de transformação. Basta dizer, com base
produtividade, menor absenteísmo e, con- Um forte sinal da subnotificação pode apenas na estatística oficial de 2002, que
seqüentemente, maior lucratividade. Como ser observado no descompasso estatístico ainda ocorrem no Brasil por volta de oito
se vê, a gestão planejada dos riscos para entre os acidentes registrados e a quantida- mortes a cada dia por acidente do trabalho.
preservação da saúde e integridade dos tra- de de mortes. Enquanto o número de aci- Se somarmos o número de mortes por aci-
balhadores não se resume simplesmente ao dentes teve redução significativa, o volume dente do trabalho (2898) com a quantida-
cumprimento de normas para atender a le- de mortes manteve-se elevado; pode ocor- de daqueles que se aposentaram por incapa-
gislação. Vai muito além disso. Representa rer a ocultação do acidente do trabalho, mas cidade permanente (15029), concluiremos
uma moderna visão estratégica dos negó- é muito difícil omitir um óbito. que, diariamente, 50 pessoas deixam defi-
cios e requisito imprescindível para a sobre- Outro fator que distorce as estatísticas é nitivamente o mundo do trabalho no Bra-
vivência empresarial no longo prazo. que muitas doenças originadas do trabalho, sil. Além disso, pela média, 427 trabalha-
No Brasil, a questão também vem sendo portanto equiparadas legalmente a aciden- dores por dia entram em gozo de auxílio-
intensamente debatida, especialmente a tes do trabalho, são diagnosticadas e trata- doença acidentário com afastamento por
partir de 1975, quando os índices de aci- das como doenças comuns, gerando no período superior a 15 dias. Diante desses
dentes do trabalho atingiram números sur- INSS o auxílio-doença previdenciário (B- fatos, o engenheiro da Fundacentro, Dorival
preendentes, bem superiores à média mun- 31) e não o auxílio-doença por acidente do Barreiros, argumenta que “a problemática
dial. Durante os 20 anos seguintes (1975- trabalho (B-91). Trata-se apenas do pacien- do acidente e da doença do trabalho tem,
1994) ocorreram quedas praticamente su- te e não do paciente-trabalhador. Mesmo no Brasil, as feições de uma guerra civil”.
cessivas e sistemáticas, baixando o volume assim, o número das doenças ocupacionais, Conforme assinalamos, as principais orga-
de acidentes do trabalho da casa dos dois de acordo com as estatísticas do INSS, au- nizações mundiais estão em busca de solu-
milhões anuais para algo próximo de 400 mentou bastante no período de 1993 a ções, pelo menos aceitáveis, para a grave
mil. No entanto, nos últimos oito anos, a 1997, especialmente em razão do aperfeiço- questão dos acidentes do trabalho e das do-
quantidade de acidentes mantém-se pratica- amento da análise dos fatores causais da enças ocupacionais. Com certeza esse movi-
mente no mesmo patamar, o que demonstra relação trabalho-doença, já que os médicos mento também terá que ser implementado
que a política atual sobre o assunto chegou do trabalho estão mais atentos para visua- no Brasil, cujas estatísticas ainda exibem a
no seu limite de resposta, não consegue mais lizar o paciente no seu ambiente laboral e a marca dolorosa da nossa realidade. O esfor-
avançar e precisa ser aprimorada. É certo que legislação ampliou consideravelmente as ço para melhorar a qualidade de vida no
ocorreram algumas melhorias pontuais nos hipóteses das doenças consideradas ocupa- local de trabalho exige a participação de
acidentes fatais e nas doenças ocupacionais, cionais. No período de 1998 a 2000 os da- todos, num grande movimento nacional, pa-
resultantes de medidas específicas, mas lon- dos apontam quedas significativas. Toda- ra afastar o paradoxo da situação atual: o
ge de merecer comemoração. via, nos dois últimos anos (2001 a 2002), local de trabalho, que deveria servir para o
Vale conferir os dados oficiais sobre os já se nota uma estabilização nos registros homem ganhar a vida, está se transforman-
acidentes do trabalho no Brasil nos últimos do adoecimento ocupacional. do, em muitas ocasiões, em lugar sinistro
30 anos (observe Quadro 1, ao lado). Por outro lado, as entidades sindicais de- para encontrar a morte.

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