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O EXPRESSIONISMO E O ESPÍRITO DE SUA ÉPOCA*

Article  in  Revista Mosaico - Revista de História · August 2020


DOI: 10.18224/mos.v13.n0.7544

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2 authors:

Eduardo De Souza Teixeira Robson Correa Camargo


Universidade Federal de Goiás Universidade Federal de Goiás
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O EXPRESSIONISMO E O ESPÍRITO DE SUA ÉPOCA*
Dossiê

Eduardo de Souza Teixeira**, Robson Corrêa de Camargo***

Resumo: este ensaio tem por objetivo considerar a vertente artística conhecida como
Expressionismo, que teve seu auge do final do século XIX ao início do século XX, enquanto
portadora do espírito de sua época. Para tal fim, apoia-se na Psicologia Analítica de Carl
Gustav Jung (1875-1961), com o intuito de perceber elementos arquetípicos nas obras de
arte da vanguarda expressionista.

Palavras-chave: Expressionismo. Arquétipos. Artes. Psicologia. Subjetividade.

EXPRESSIONISM AND THE SPIRIT OF HIS TIME

Abstract: this text aims to consider the artistic expression known as Expressionism,
which had its peak from the end of the nineteenth century to the beginning of the twen-
tieth century, as bearer of the spirit of his time. To this end, it relies on the Analytical
Psychology of Carl Gustav Jung (1875-1961), with the intention of perceiving archetypal
elements in the works of art of the expressionist avant-garde.

Keywords: Expressionism. Archetypes. Arts. Psychology. Subjectivity.

E
ste texto tem por objetivo compreender a vertente artística denominada “expressionismo” a
partir do conceito dos arquétipos da psicologia analítica de Carl G. Jung, com o intuito de en-
tender de que forma as obras dos artistas expressionistas tornaram-se símbolos da expressão
de uma época. O expressionismo foi uma vertente artística que se estendeu do final do século XIX
ao início do século XX. Teve como característica não retratar a realidade objetiva simplesmente, mas
sim plasmar a realidade a partir das emoções e respostas subjetivas que esta suscita no artista, expor
a visão “interior” conflituosa do artista, do homem sobre o mundo à sua volta. Carregou em si, em

* Recebido em: 12.08.2019. Aprovado em: 23.10.2020.


** Mestre em Performances Culturais pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás
(UFG). Ator, pesquisador, iluminador e técnico em iluminação cênica no Teatro do Centro Cultural UFG.
Email: eduardo.goias@hotmail.com
*** Prof. Dr. – Criador do Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais – Universidade Federal de
Goiás (UFG). Coordena a Rede Goiana de Pesquisa em Performances Culturais, financiamentos CNPQ,
FAPEG, CAPES, FUNAPE. Email: robson.correa.camargo@gmail.com

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sua expressão, toda a tensão e angústia que sondou o período de modernização e industrialização
na Europa, como descreve Silvia Fernandes: “A violenta projeção de mundos interiores que deforma
a mimese tensionada pelo trajeto da angústia ao êxtase” (FERNANDES, 2002, p. 223). Esta caracte-
rística de expor a “visão interior”, subjetiva, da arte expressionista tornou-a uma arte extremamente
simbólica, onde os sonhos, os devaneios, a solidão e as angústias do homem moderno eram projetadas
nas telas de pinturas, nos palcos teatrais e nas letras dos poetas.
Diversas linguagens no campo das artes utilizaram-se do expressionismo. Da pintura ao tea-
tro, passando também pelo cinema, onde teve importante destaque, ele surgiu carregado de rupturas
como toda a arte moderna. Não há uma data correta e precisa do seu surgimento, desenvolveu-se na
França e Alemanha através de outras correntes como o impressionismo e o simbolismo. Segundo Fraga
(1998), por se tratar de uma arte onde a expressão da subjetividade e de visão de mundo particular do
artista é manifesta, pode-se encontrar o expressionismo na Grécia antiga, na arte medieval etc. Mas
a nomenclatura “Expressionismo” é “inventada” em um período de grandes transformações sociais
em pleno século XX. O desenvolvimento industrial, que andava a passos largos na Europa, trazia em
seu âmago toda a ideia burguesa de moderno, de consumo e de produção, que passara da manufatura
para a produção industrial em série:

Ao longo do século XIX, desenvolve-se, na Europa, a era industrial. Muito além da mecanização
da produção industrial e da organização do sistema fabril, significava a implantação da economia
moderna, de base capitalista, sustentada pela ascendente burguesia, que transformaria as relações
de produção promovendo um crescente consumo e tornando as relações sociais substancialmente
mais competitivas (BARBOZA, 2009, p. 40).

O desenvolvimento da indústria veio acompanhado de problemas que afetaram diretamente


a vida dos trabalhadores nas grandes cidades europeias. A exploração do operariado, as extensas
horas extenuantes de jornada de trabalho, as condições insalubres das cidades, o crescimento po-
pulacional e o grave e crescente antissemitismo que começara já ao fim das guerras napoleônicas
por volta de 1815. Todas essas questões de ordem política e econômica desembocariam nas duas
Grandes Guerras que assolaram a Europa durante o século XX:

com o triunfo da burguesia após as guerras napoleônicas, o progresso material do ocidente des-
pertou o entusiasmo de linguistas e antropólogos que, pesquisando a origem das línguas e dos
povos, estabeleceram, por diferentes critérios, todos arbitrários e subjetivos, a superioridade da
“raça indo-europeia” sobre a “raça semita” (NAZÁRIO, 2002, p. 13).

O EXPRESSIONISMO

Segundo Luiz Nazário (2002), o movimento surge assim, em uma sociedade que foi se tornando
cada vez mais sectária e hostil, onde o homem, com o aprofundamento do capitalismo, foi apartado,
pela nova ordem socioeconômica, de suas experiências de trabalho e na sociedade, sobrando apenas
um grande vazio.
O isolamento do ser humano no meio da massa disforme criou uma sociedade extremamente
alheia, ansiosa e mecanizada, como é retratado nos olhos do quadro Ansiedade de Edvard Munch
(1863-1944):

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Figura 1: Edvard Munch, Ansiedade, 1894, óleo sobre tela. Munch-museet, Oslo.

Esse isolamento do homem moderno, como descreve Walter Benjamim (1892-1940), já era
tratado anteriormente pelo poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), um dos precursores do
simbolismo na Europa e grande influenciador das artes plásticas do século XIX. Segundo Benjamim
(1989), a figura do flâneur, entendendo a palavra flâneur enquanto um andarilho, vadio, preguiçoso e
desocupado, foi uma alegoria utilizada por Baudelaire. Ele é, ao mesmo tempo, o detetive, é o poeta,
é o “observador” que capta no seio da sociedade moderna todas as mazelas e angústias do mundo
burguês e a expressa em sua arte, vejamos sua descrição:

Desse modo, se o flâneur se torna sem querer detetive, socialmente a transformação lhe assenta
muito bem, pois justifica a sua ociosidade. Sua indolência é apenas aparente. Nela se esconde a
vigilância de um observador que não perde de vista o malfeitor. Assim, o detetive vê abrirem-se
à sua autoestima vastos domínios. Desenvolve formas de reagir convenientes ao ritmo da cidade
grande. Capta as coisas em pleno vôo, podendo assim imaginar-se próximo do artista (BENJA-
MIM, 1989, p. 38).

É o artista a “fazer botânica do asfalto” (BENJAMIM, 1989, p. 34). Essa digressão até Baudelaire,
via Benjamim (1989), tem o intuito de mostrar as bases do desenvolvimento do expressionismo na
Europa. O artista expressionista é, assim como os poetas simbolistas, um meio, uma antena a captar
em meio à sociedade as interferências do mundo moderno nas relações conflituosas que se estabelecem
nas relações humanas partir do desenvolvimento do capitalismo: “Esses poetas falam por milhares
de dezenas de milhares de seres humanos, proclamando de antemão as metamorfoses da consciência
de sua época” (JUNG, 1970, p. 65).
Isolamento, morte, doenças, fome, religiões e conflitos são temas das angustiantes obras
expressionistas em fins do século XIX e início do século XX, como pode ser observado no quadro
“Crucificação” de Emile Nolde (1867-1956), onde as figuras distorcidas e esqueléticas circundam um
cristo faminto. É possível observar ainda no canto inferior direito da tela, uma figura que pode ser de
Judas, ou de um cidadão qualquer que recebe o seu soldo em forma de migalhas daqueles que detêm
a moeda, enquanto as figuras mórbidas aguardam uma “promessa”:

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Figura 2: Emile Nolde, Crucificação, 1912, in:
https://pt.wahooart.com/@@/9H5RPD-Emile-Nolde-Crucificação.

Estes quadros acima, Ansiedade de Edvard Munch e Crucificação de Emile Nolde, são imagens
carregadas de conteúdos que representam algo de simbólico, algo que “pairava no ar” e que ultrapas-
saram, romperam, ou dito de melhor forma, ampliaram-se para além de seus criadores e carregam,
ainda hoje, todo o espírito de sua época.

O EXPRESSIONISMO À LUZ DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

Para ajudar na compreensão do expressionismo, enquanto uma vertente artística que


carrega nas obras dos artistas o “espírito de uma época”, trago aqui o conceito de arquétipo da
psicologia analítica do psiquiatra suíço Carl G. Jung (1875-1961). Para Jung (2000), os arquétipos
são imagens universais. Essas imagens pertencem ao ser humano, são inatas, e o acompanham
desde tempos imemoriais e se manifestam em qualquer época e lugar independente de nossas
vontades: [...] “estamos tratando de tipos arcaicos - ou melhor - primordiais, isto é, de imagens
universais que existiram desde os tempos mais remotos” (JUNG, 2000, p. 16). Essas imagens
pertencem à toda humanidade sendo, assim, coletivas. São imagens primitivas sedimentadas
no inconsciente coletivo e herdadas pela espécie: “O inconsciente coletivo não se desenvolve
individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só se-
cundariamente podem tomar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da
consciência” (JUNG, 2000, p. 54).
O que Jung denomina por “inconsciente coletivo”, é uma camada da psique humana que se
encontra em uma instância muito mais profunda do que a consciência e o inconsciente pessoal (que
é formado pelas experiências individuais do sujeito e que não estão na consciência, mas que formam
a personalidade dos indivíduos). O inconsciente coletivo é inato, composto pela experiência herdada,
inserido na cultura, formado por imagens virtuais comuns a toda a espécie, que formam uma região
com suas próprias leis. Ele influencia a nossa consciência, mas não pode ser dominado ou influenciado
por esta. O inconsciente coletivo ou universal é o laço que une a espécie, vejamos como a define Carl
Jung, distinguindo-o do inconsciente pessoal:

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Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal. Nós a de-
nominamos inconsciente pessoal. Este, porém, repousa sobre uma camada mais profunda, que
já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais
profunda é o que chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo “coletivo” pelo fato de o
inconsciente não ser de natureza individual, mas universal (JUNG, 2000, p. 15).

Os arquétipos são, portanto, imagens que habitam o inconsciente coletivo, formadas a partir
da relação do homem com os fenômenos da natureza e que influenciam a consciência do sujeito,
e mesmo de toda uma sociedade. Na dificuldade do homem primitivo em compreender os fenô-
menos naturais, tais como o dia e a noite, o raio e o trovão, por exemplo, estes foram formando
imagens na tentativa de explicar para si mesmos estes eventos naturais. Para o homem primitivo
não era o sol uma estrela que ocupava o centro do sistema solar, era antes uma carruagem de um
deus que vencia as escuras forças das trevas (noite) e aparecia ao amanhecer trazendo luz e vida à
terra, como descreve Jung:

Para o primitivo não basta ver o Sol nascer e declinar; esta observação exterior deve corresponder
- para ele - a um acontecimento anímico, isto é, o Sol deve representar em sua trajetória o destino
de um deus ou herói que, no fundo, habita unicamente a alma do homem. Todos os acontecimentos
mítologizados da natureza, tais como o verão e o inverno, as fases da lua, as estações chuvosas, etc.
não são de modo algum, alegorias destas experiências objetivas, mas sim, expressões simbólicas
do drama interno e inconsciente da alma, que a consciência humana consegue apreender através
de projeção - isto é, espelhadas nos fenômenos da natureza (JUNG, 2000, p. 18).

Cria-se, dessa forma, a imagem arquetípica do “herói” tal como a conhecemos dos gregos aos
heróis de histórias em quadrinhos contemporâneas.
Para Jung (2000), as formas mais conhecidas de expressão arquetípica são os mitos e os
contos de fadas. As imagens arquetípicas dos mitos e dos contos de fadas são expressas da mesma
forma em diversas culturas, alterando-se apenas para adaptar-se aos processos subjetivos de cada
sociedade, ou dos indivíduos em que se manifestam. A imagem do herói, por exemplo, está presen-
te nos mitos gregos como o de Teseu, Hércules etc. Há nesses mitos o imaginário clássico grego,
mas a estrutura universal da imagem do herói encontra-se também no poema épico sumério de
Gilgamesh, na figura de Jesus Cristo, em Maomé etc. ultrapassando assim, os domínios de uma
cultura específica, sendo, portanto, coletivas. Os arquétipos são dinâmicas propulsoras de culturas.
Para Jung, uma outra forma de expressão cultural humana, com uma capacidade fenomenal de
manifestação arquetípica, é a obra de arte.
Em o Espírito na Arte e na Ciência (2011), nos vários ensaios e palestras que fazem parte do
livro, Jung ocupa-se em fazer um paralelo entre a psicologia e a arte. O autor estabelece os limites da
psicologia na análise das obras de arte, distinguindo o quê a psicologia pode analisar e elucidar e o que
pertence ao campo dos estudos estéticos. Jung estabelece também a diferença entre a análise da obra
e a análise do artista enquanto pessoa. Segundo o autor, essas duas coisas não podem se confundir:

É certo e até mesmo evidente que a psicologia, ciência dos processos anímicos, pode relacionar-se
com o campo da literatura. A alma é ao mesmo tempo mãe de toda ciência e vaso matricial da
criação artística. Assim pois, seria licito esperar das ciências da alma que, por um lado, pudessem
ajudar no tocante ao estudo da estrutura psicológica de uma obra de arte e, por outro, explicar
as circunstâncias psicológicas do homem criador. Notemos, entretanto, que essas duas tarefas
são essencialmente diferentes (JUNG, 2011, p. 56).

Jung faz dessa forma uma crítica à análise freudiana a respeito das obras de artes. Para ele,
Freud confunde o artista com sua obra, tornando esta (a obra), uma extensão neurótica, ou seja, uma
imagem doente expressa pelo homem que a criou. Isto porque, para Freud, segundo Jung, os comple-
xos dos artistas, como o complexo de Édipo, por exemplo, estarão sempre presentes em suas criações.

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O ponto crucial da crítica junguiana a esta concepção está no fato de que, para Jung, esta visão reduz
a obra à uma neurose, ou seja, a obra de arte seria, por assim dizer, doente:

Com efeito, somos levados a supor – especialmente hoje, sob a influência da psicologia freudiana –
que através dessas obscuridades, ora grotescas, ora repletas de pressentimentos profundos, devem
figurar experiências pessoais, a partir das quais seria possível explicar a visão singular do caos do
artista e também através das quais confirmaria a impressão de que o poeta teria tentado dissimular
suas vivências pessoais. Desta tendência explicativa a suposição de que poderia tratar-se de uma
criação mórbida e neurótica não vai um passo (JUNG, 1970, p. 60).

Diante desta distinção entre a obra e o artista, o Jung estabelece duas formas de produção artís-
tica que, para ele, lhe são características da produção de arte: a obra “visionária” e a obra “psicológica”.
A respeito da obra de arte psicológica Jung é categórico ao afirmar que pouco o psicólogo pode fazer
para a sua análise que o autor da obra já não tenha feito. Essas obras possuem como características
intrínsecas às suas produções a linha psicológica bem definida de seus personagens pelo autor, não
cabendo ao psicólogo acrescentar teorizações. Pois que, para Jung, estas obras pertencem à uma ca-
mada psicológica que nos é bastante conhecida. Movem-se, dito de outra maneira, em volta de uma
sabedoria popular, do senso comum:

Se chamo tal criação artística de “psicológica” é pelo fato de ela mover-se sempre nos limites do
que é psicologicamente compreensível e assimilável. [...] O próprio tema psíquico da vivência
nada tem em si de estranho; pelo contrário, é-nos sobejamente conhecido. Trata-se da paixão e
das vicissitudes, dos destinos e de seus sofrimentos, da natureza eterna, seus horrores e belezas
(JUNG, 1970, p. 59).

São obras, portanto, que resumem a si mesmas, muitas vezes, magistralmente delineadas por
seus autores.
Já as obras de artes classificadas por Jung de “visionárias” carregam em si anseios que provém
de uma instância que nos é desconhecida, nos é estranha. Estas obras contêm em si conteúdos arque-
típicos, sendo, portanto, proveitosas para as investigações psicológicas. Paradoxalmente, ao mesmo
tempo em que oferecem um campo riquíssimo de investigações para a psicologia, é onde o psicólogo
mais tem que ter cuidado, segundo Jung. É aqui que o artista não pode ser confundido com sua obra.
São as obras visionárias que carregam em si o espírito de uma época. São as obras visionárias que
têm o poder de tocar nos arquétipos coletivos e expressarem os anseios, as alegrias, as tristezas e as
mazelas de um povo. São as obras visionárias que são lançadas ao ar tornando-se oxigênio para os
indivíduos de uma mesma comunidade, de um país, de um continente, de uma espécie. São as obras
visionárias que anteveem o futuro?

A forma visionária, à qual já nos referimos, rasga de alto a baixo a cortina na qual estão pintadas
as imagens cósmicas, permitindo uma visão das profundezas incompreensíveis daquilo que ain-
da não se formou. Trata-se de outros mundos? Ou de um obscurecimento do espírito? Ou das
fontes originárias da alma humana? Ou ainda do futuro das gerações vindouras? Não podemos
responder a essas questões nem pela afirmativa nem pela negativa (JUNG, 1970, p. 59).

É difícil captar de forma clara e racional todos os pensamentos e conflitos de uma época quando
estes ainda fazem parte do nosso dia-dia, quando estamos ainda no calor de sua vivência. O que nos
vem em imagens, vem envolto em brumas e sombras, por caminhos tortuosamente expressos, vem
por intuição. Por isso as obras tidas como visionárias são carregadas de símbolos. Estas necessitam
serem decifradas. Marcam o tempo sendo intrínsecas a ele:

Nosso ponto de partida é o fato psicológico de que o artista sempre foi o instrumento e o intérprete
do espírito de sua época. Em termos de psicologia pessoal, sua obra só pode ser parcialmente

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compreendida. Consciente ou inconscientemente, o artista dá forma à natureza e aos valores de
sua época que, por sua vez, são responsáveis pela sua formação (JAFFÉ, 2008, p. 336).

É dentro do modo visionário de criação que este texto coloca o expressionismo. Todos os
conflitos ideológicos surgidos com o mundo moderno: o capitalismo, o socialismo, o anarquismo,
os sindicatos criados para a defesa do operariado, a mecanização das relações, a pobreza, a avareza,
a burguesia com sua mania aristocrática que ela mesma derrubou, mas que no fundo almejou, o
antissemitismo, toda essa falta de rumo, todo esse descaminho moderno foi representado pela arte
expressionista em forma do isolamento do homem diante de si mesmo. Era chegada a hora do novo,
do moderno. O homem burguês buscava uma nova forma de arte. Porém, essa arte teria que remetê-lo
ainda ao bojo aristocrata que insistia em dominá-lo. Por este motivo, o expressionismo se torna uma
arte problemática para a sociedade burguesa em seu período, pois que esta representa o oposto, uma
outra face da modernidade. Face esta que se mostra violentamente na Primeira e na Segunda Grande
Guerra, como o descreve Luiz Nazário a vida em Berlim:

As massas tornavam-se cada vez mais visíveis, e a cidade monstruosa passou a obcecar artistas,
poetas e escritores. A Berlim desses “anos loucos” era um mundo de contrastes extremos, de usinas
e quarteirões pobres atravessados por canais escuros que carregavam o lixo dos restaurantes caros.
Contrastando com bairros de luxo e de prazer, nos bairros pobres blocos residenciais compactos,
de dois cômodos, eram ocupados por até dez pessoas, com banheiros que serviam a vinte; seus
interiores cheiravam a mofo devido a vazamentos no teto; o ar era sufocante e das torneiras saía uma
água suja. Em decorrência da falta de higiene e da promiscuidade sexual, muitos pobres morriam
de tuberculose e de sífilis. Com o aumento da prostituição, o número de abortos chegou a ser quase
igual ao de nascimentos: um milhão por ano. Não se confiava nos médicos, pois 50% das operações
cirúrgicas fracassavam. A maioria da população vestia roupas desgastadas: o vestuário ocupava o
último lugar no orçamento das famílias. Poucos podiam dar-se ao luxo de fazer três refeições ao
dia: de 15% a 40% dos escolares apresentavam sintomas de desnutrição. Os preços aumentavam
mais depressa que os salários: em novembro de 1922, o dólar valia nove mil marcos; menos de
um ano depois, 4, 2 bilhões de marcos. [...]. Nesse caos, Hitler sentiu-se à vontade para seguir o
exemplo de Mussolini, marchando com o general Eric Ludendorff para Foldherrnhalle de Muni-
que, seguidos por Julius Streicher, Ernest Ronhm e outros extremistas (NAZÁRIO, 2002, p. 30).

Figura 3: Edvard Munch, O grito, 1893, óleo sobre tela.


Munch-museet, Oslo.

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O quadro O grito de Edvard Munch antecede até mesmo o início da Primeira Grande Guerra.
Porém, em sua forma aterradora, antecipa o desespero de uma sociedade que, de alguma forma se
perdeu pelo caminho. Torna-se assim uma obra arquetípica portadora do espírito de sua época, traduz
em sua expressão o terror que assola seus iguais. Não é O Grito do artista, do homem, mas O Grito
de um povo, de uma nação à beira de um colapso:

Isto, porque a arte, nele, é inata como um instinto que dele se apodera, fazendo-o seu instrumento.
Em última instância, o que nele quer não é ele mesmo enquanto homem pessoal, mas a obra de
arte. Enquanto pessoa, tem seus humores, caprichos e metas egoístas; mas enquanto artista ele
é, no mais alto sentido, “homem”, e homem coletivo, portador e plasmador da alma inconsciente
e ativa da humanidade (JUNG, 1970, p. 66).

Utiliza-se as imagens dos quadros de Edvard Munch e Emile Nolde neste texto, não com o
intuito de se fazer um recorte sobre a obra destes dois artistas que foram grandes expoentes da arte
expressionista, mas antes, com a intenção de reforçar através de imagens o caráter universal e arque-
típico contido nelas. Como eles, existiram uma torrente de outros grandes nomes como, por exemplo,
Wassily Kandinsky (1866-1944), Paul Klee (1879-1940), estes da pintura. Nomes como Max Reinhardt
(1873-1943) e Walter Hasenclever (1890-1940) no teatro, Robert Wiene (1873-1938) no cinema etc,
todos expressando à sua maneira a obscuridade de seu tempo, como descreve Eudinyr Fraga:

O Expressionismo é, da mesma forma, uma particular maneira de ver: a expressão do homem


dilacerado ante o caos universal que o rodeia, manifestando-se em visões subjetivas, frenéticas
e delirantes. É a tomada de consciência do conflito entre as pseudo-realidades do mundo e a
realidade interna de cada um, através da dor e do sofrimento (mesmo quando os dissimula na
ironia e no derrisório). Nessa acepção pode se manifestar em qualquer época ou período histórico
e podemos conotar expressionismo na Antiguidade clássica, na Idade Média, no Barroco, em
todo o desenvolvimento dos séculos XIX e XX (FRAGA, 1998, p. 19).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O antropólogo Victor Turner (1920- 1983), em seu livro Do ritual ao teatro: a seriedade humana
de brincar (2015), expõe uma visão interessante acerca da obra de arte ao abordar o conceito de “expe-
riência” (Erlebnis) de Wilhelm Dilthey (1833-1911) que muito se aproxima dos arquétipos junguianos
e do propósito do presente texto. Segundo Turner (2015), as obras de artes em muito se diferenciam
em suas expressões de outros aspectos da cultura humana, como, por exemplo, a política. Para Tur-
ner, enquanto a política se estabelece sobre o pano de fundo do egoísmo e de questões partidárias, as
obras de arte, os artistas, “não tem motivos para enganar ou esconder, eles buscam encontrar a forma
expressiva perfeita para sua experiência” (p. 18). Isso porque para Turner (2015), durante o decorrer
de um processo de performance:

o que normalmente fica fechado nas profundezas da vida sociocultural, inacessível a


observação e a razão cotidianas, é convocado – Dilthey usa o termo Ausdruck, “uma
expressão”, genitivo de ausdrucken, que ao pé da letra significa “espremer, extrair (TUR-
NER, 2015, p. 16).

O artista não tem motivos para enganar ou esconder porque, em uma obra de arte de gênio,
os motivos e expressões deixam de ser pessoais e tornam-se universais. Falam por toda uma comu-
nidade. Falam pela espécie:

De alguma forma, eles têm uma apreensão inocente desse estranho espaço liminar – presente
em todos nós, mas muito mais eloquente nos artistas – em que, como escreve Dilthey, “a vida se
revela numa profundeza inacessível à observação, à reflexão e à teoria (TURNER, 2015, p. 18).

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Podemos perceber nessa reflexão a proximidade com o conceito de inconsciente coletivo de
Carl Gustav Jung. Turner nos oferece uma imagem que nos possibilita fazer uma aproximação mais
clara. Vejamos de que forma ele descreve uma experiência humana singular:

A crosta geológica da terra, com seus muitos níveis, está “viva” (pensem na erupção do monte
Santa Helena); mais ainda está a “mente” ou a “psique” humana, com seus níveis consciente,
pré-consciente e inconsciente, cada um subdividido em camadas depositadas por repetidas
“experiências traumáticas” ou dramáticas (TURNER, 2016, p. 20).

A vida se revelando em uma profundeza inacessível a reflexão e a teoria, de onde as imagens


surgem em forma de obras artísticas arquetípicas e representando não somente o homem que as criou,
mas ultrapassando-o e atingindo toda a sociedade que se vê representada na obra:

No entanto, uma vez “expressa” como obra de arte, leitores, espectadores e ouvintes podem refletir
sobre as experiências, já que são mensagens confiáveis das profundezas de nossa espécie, vida
humanizada se expondo, por assim dizer (TURNER, 2015, p. 18).

Assim, dentro do grande bojo da arte moderna, o expressionismo ocupa um lugar de grande
importância na história das artes por representar um período histórico que ainda vibra na alma de
toda a humanidade. Ainda suscita observações, reflexões e descobertas não somente do período em que
vigorou na Europa, mas ainda hoje em meio a nossa sociedade. Sentimos ainda de perto os efeitos das
duas Grandes Guerras, o isolamento social ainda é uma realidade em meio a nós. Isso demonstra que
o expressionismo é uma arte atemporal, é vida profunda e humanizada sendo exposta em imagens,
movimentos e experiências profundas. Teve o seu ápice e a sua decadência, mas como afirma Fraga
(1998), da mesma forma que é possível reconhecer expressionismo nas artes antigas, ele vibra ainda
hoje nas artes contemporâneas e em nosso consciente coletivo.

Referências

BARBOZA, Lívia Krassuski. A Santa, a Prostituta e a Amante Infeliz: as imagens simbólicas do femi-
nino de Edvard Munch, sob abordagem da psicologia analítica de C. G. Jung / Lívia Krassuski Barboza.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de São Paulo, São Paulo, 2009.
BENJAMIM, Walter. 1842-1940. Charles Baudelaire Um Lírico no Auge do Capitalismo/Walter Ben-
jamim; tradução José Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.
(Obras escolhidas, v. 3)
FRAGA, Eudinyr. Nelson Rodrigues Expressionista. São Paulo: Editora: Ateliê Editorial, 1998.
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JUNG, Carl Gustav. 1875-1961. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Editora: Ateliê Editorial. Tra-
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Revista Mosaico, v. 13, p. 39-48, 2020. e-ISSN 1983-7801 47


NAZÁRIO, Luiz. Quadro Histórico. In: GUINSBURG, Jacó. O Expressionismo. São Paulo: Editora
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TURNER, Victor W. 1920-1983. Do Ritual ao Teatro: a seriedade humana de brincar. Tradução Michele
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Revista Mosaico, v. 13, p. 39-48, 2020. e-ISSN 1983-7801 48

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