Você está na página 1de 2

Maria Armanda Costa, “Se a língua materna não se pode ensinar, o que se aprende nas aulas

de Português?”. In Maria Raquel Delgado-Martins, Maria Isabel Rocheta, Dília Pereira (org.).
Formar Professores de Português, hoje. Lisboa: Edições Colibri, 1996.
(Excerto, pp. 64-66)

1. Aquisição e aprendizagem da LM
A distinção entre Aquisição e Aprendizagem está seguramente na base de muitos
equívocos que têm surgido no quadro do ensino da LM. A sua aquisição faz-se sem esforço,
naturalmente, com uma velocidade espantosa e uma grande economia de custos. A
habilidade (de usar a linguagem) surge tão naturalmente que nós temos tendência a
esquecermo-nos de quanto é surpreendente (porque difícil de explicar) o processo da sua
aquisição, como refere Steven Pinker no seu último livro The Language Instinct.
A verdade é que se aprende a comunicar através da linguagem rapidamente e com
sucesso. Mas quando as situações comunicativas em que o sujeito participa se desdobram
(contextos escolares, profissionais, sociais), há necessidade de usar novas formas discursivas
adaptadas aos locutores em interacção, aos assuntos em referência. Há que lidar com o
modo oral, mas também com o modo escrito. Agir através da linguagem, conformar o
mundo e os outros à nossa vontade, requer que o uso da linguagem se faça de forma
calculada, que se saiba manipular as formas linguísticas para atingir os objectivos
comunicativos. Escrever, por exemplo, antes de ser uma 'arte' é uma técnica que é preciso
aprender, enquanto que falar para um público alargado requer um treino considerável. Para
uma vida social e profissional bem sucedida, é necessário que o sujeito compreenda e
produza, oralmente e por escrito, urna variedade extraordinária de estilos discursivos:
académicos, burocráticos, jornalísticos, filosóficos, publicitários, políticos, etc. Para além da
capacidade de usar o estilo como uma ferramenta de trabalho ao serviço da comunicação,
torna-se necessária a capacidade de avaliar os vários tipos de discursos, no sentido de se
tomar consciência do seu modo de funcionamento, da sua construção, das suas
particularidades. Que relação há entre o que se passa nas aulas de LM e tais saberes e
capacidades?
A aquisição é um processo inconsciente, por exposição a modelos, um processo de
tentativas e erros; sem que haja um processo formal de ensino. As aquisições são feitas em
contextos funcionais, significativos, e o sujeito sabe naturalmente o que precisa de adquirir
para operar. A aprendizagem, por outro lado, é um processo que envolve conhecimento
consciente ganho através do ensino formal. O ensino requer explicação e análise, i.e.,
desconstrução da coisa a aprender nas suas partes constituintes; implica a aquisição de um
certo grau de capacidades metacognitivas à medida que o objecto de aprendizagem é
dominado. Consequentemente, implica a utilização de metalinguagens para descrever e
analisar os saberes a adquirir.

1
A escola é, por definição, o lugar da aprendizagem. Não quer dizer que certas
capacidades comunicativas e certos saberes linguísticos não se adquiram por exposição
prolongada aos dados, pela persistência, pelos muitos erros que fazemos, pela intervenção
dos conselheiros de imagem a que com sorte poderemos ter direito ao longo da vida, mas,
sendo só assim, aprende-se de forma demasiado lenta e penosa. É função da escola ensinar
o que constitui novidade e acelerar o desenvolvimento, potenciar capacidades.

2. Preparação para hoje, para amanhã.


Os alunos constroem uma representação mental da aula de Português onde lhes é
difícil captar e agarrar um objecto concreto para aprendizagem. 'Passa-se' a Português no
final do ano, e nem sempre são evidentes a mais-valia, o valor residual ou o conhecimento
processual que se ganham. Como se pode alterar este estado de coisas? O que pode
legitimamente ser objecto de ensino na aula de LM? Como poderão os alunos ter
consciência da ampliação dos saberes, das novas capacidades comunicativas?
Conceito de trabalho na aula de LM
Parece urgente a necessidade de incorporar na aula de LM o conceito de trabalho, de
desafio, de obstáculo a transpor, de progressão no conhecimento linguístico e nas
capacidades comunicativas, o que Implica a delimitação precisa do que há a aprender e,
logo, do que há para ensinar. E isso obriga:
— à definição das capacidades de utilização da língua oral e escrita em progressão: a
fluência, as estratégias de processamento da informação oral e escrita, as técnicas de
produção, a compreensão da variação linguística e o domínio dos registos prestigiados
socialmente, o uso correcto das convenções da escrita
— à exercitação de tarefas comunicativas que efectivamente requeiram a
aprendizagem de novas formas discursivas, de inovadoras articulações entre a palavra e
outras linguagens, de aplicações da linguagem a situações criativas, de utilização das novas
tecnologias da informação;
— à explicitação do conhecimento da gramática da língua: categorização dos dados
linguísticos, descrição de regras, reconhecimento de princípios de funcionamento do
sistema;
— à criação de situações que impliquem investimento, esforço, análise, produção e
reprodução; encontrar problemas para resolver onde se possam identificar etapas a
ultrapassar, de tal modo que seja possível encontrar níveis de desempenho qualitativamente
diferentes antes e depois da aprendizagem e da exercitação.
O que há então para fazer na aula de Português?

Você também pode gostar