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Universidade Presbiteriana Mackenzie

Beatriz Balbino
Geovanna Antunes
Jamile Garibe
Luisa Fernandes
Maria Fernanda Doniani
Nataly Ammar
Rafaela Diniz
Raffaella Ferreira
Sofia Picolo

“Cidade de Deus”

São Paulo

2022
Beatriz Balbino - 32088043
Geovanna Antunes - 32089546
Jamile Garibe - 32094981
Luisa Fernandes - 32088221
Maria Fernanda Doniani - 32094493
Nataly Ammar - 32067331
Rafaela Diniz - 32086474
Raffaella Ferreira - 32071191
Sofia Picolo - 32087136

Análise fílmica “Cidade de Deus”

Análise do personagem Zé Pequeno do filme


“Cidade de Deus” da disciplina de Psicopatologia
Psicodinâmica, CCBS, Universidade
Presbiteriana Mackenzie.

Professor: Bartholomeu de Aguiar Vieira

São Paulo

2022
Sumário

1. Introdução 4
2. Histórico de vida e histórico do sofrimento psíquico e descrição psicodinâmica 4
3. Hipótese sobre os fatores desencadeadores do sofrimento psíquico 6
4. Conflito atual 7
5. Hipótese Diagnóstica 7
5.1 Diagnóstico categórico (DSM-V) 7
5.2 Diagnóstico psicodinâmico 9
5.3 Articulação teórica psicodinâmica 11
5.4 Diagnóstico diferencial 11
6. Referências bibliográficas 13
1. Introdução
O trabalho em questão visa a análise da personagem Zé Pequeno, do filme clássico
brasileiro "Cidade de Deus" (2002). A obra é narrada a partir da voz de Buscapé, um jovem
preto e periférico que é apaixonado por fotografia. A trama se passa na Cidade de Deus, favela
carioca conhecida por ser um dos locais mais violentos do Rio de Janeiro, afastada da capital,
um lugar sem luz, sem asfalto e “onde não chega cartão postal”. As histórias das personagens
vão sendo contadas enquanto a realidade dos moradores da favela é mostrada, em um contexto
de violência, pobreza e crime. O protagonista apresenta sua paixão por fotografia e demonstra
o modo como seu talento o tirou do mundo em que estava inserido, iniciando uma carreira de
fotógrafo no jornal. Nessa comunidade, Zé Pequeno é uma figura de destaque por impor medo
e respeito nos moradores a partir da violência e criminalidade.

2. Histórico de vida e histórico do sofrimento psíquico e descrição psicodinâmica


Dadinho, como era conhecido inicialmente, não tem qualquer relação familiar
significativa e apresenta uma infância atípica, já que não frequentava a escola, fumava
maconha, participava de crimes e tinha um forte desejo de protagonizar na criminalidade (e de
ser o “dono da favela”), já que não gostava de ficar na "sombra" do "Trio Ternura" (trio de
jovens assaltantes mais temido da comunidade), formado por Cabeleira, Marreco e Alicate.
Pelo fato de Dadinho ter crescido na ausência de figuras de representação e identificação
adequadas, essas acabam sendo constituídas pelos criminosos do trio, que são vistos por ele
como ídolos e heróis. Dessa forma, o crime passa a designar uma saída para jovens residentes
da comunidade Cidade de Deus, uma vez que são desprovidos de maiores e melhores
perspectivas. Esses fatores geram uma forma cruel de inclusão e valorização pessoal, de “ter”
e “ser”, mesmo que dentro dos limites geográficos da favela.
Um fator importante na história do personagem é seu fascínio por armas de fogo, um
símbolo de poder pessoal, que representa o controle e domínio sobre o outro, já que pode acabar
com uma vida. Desta forma, torna-se uma espécie de “Deus”, que pode escolher quem merece
viver ou quem deve morrer e, portanto, é digno do respeito e reconhecimento dos outros.
O assalto ao motel foi um marco de transição na história de Dadinho. Este foi idealizado
pelo menino, mas não teve sua participação aprovada pelo Trio Ternura, que executou o crime,
enquanto Dadinho ficou encarregado de vigiar, do lado de fora, com a arma que lhe foi dada
(primeira vez que esteve em posse de uma). O menino demonstrou desde o início que gostaria
de participar ativamente do crime e ficou extremamente incomodado por ter sido deixado de
fora.
Enquanto esperava os assaltantes voltarem, decidiu que não era justo que eles se
“divertissem” enquanto ele estava esperando. Portanto, Dadinho sabotou o trio dando um tiro
na vidraça e fingindo que a polícia estava chegando no local, fazendo com que eles fugissem.
Depois disso, o menino entrou e matou várias pessoas que estavam dentro do motel. Neste
momento fica claro que Dadinho não queria apenas roubar, como os outros, seu desejo era
aterrorizar, e ele se divertia muito com isso (dava gargalhadas em meio a tiros). Como disse
Buscapé: “naquela noite, Dadinho matou sua vontade de matar”.
A partir disso, foi dado como desaparecido, fugiu com Bené (seu melhor amigo desde
a infância) e começaram a assaltar (e matar) juntos. “Dadinho escapou da Cidade de Deus para
escapar do castigo”. Tinha disposição para matar qualquer um que estivesse em seu caminho
(inclusive um de seus ídolos, Marreco) e não conhecia regras ou limites. Os dois passaram anos
roubando, matando pessoas e ganhando respeito com isso, já que começaram a ser temidos
dentro da comunidade.
Certo dia, vai a um terreiro onde há um homem incorporando, que dá uma guia para
Dadinho e diz que seu nome deveria mudar para Zé Pequeno, como uma forma de evolução. A
partir daí, o menino Dadinho não existe mais e Zé Pequeno pode finalmente triunfar e
conquistar todo o poder que almeja.
Zé Pequeno sempre demonstrou sua ambição em relação a dinheiro e poder, que não
seriam conquistados apenas por meio dos assaltos. Foi então que começou a observar as
vantagens do tráfico de drogas, já que os traficantes ostentavam o luxo que desejava. A partir
disso, ele convenceu Bené a dominar as bocas da favela. Não existia quem dizia “não” a Zé
Pequeno e quem dissesse pagaria com a vida.
Todas as suas ações indicam que existe uma necessidade intrínseca de ser notado e de
ser maior, qualquer sinal de rejeição ou descaso poderia causar um sofrimento profundo para
sua psique. Um momento crucial para sua história foi a despedida de seu melhor amigo. Bené
reuniu seus diferentes grupos de amigos em uma grande festa na rua. Zé Pequeno quando
chegou sentiu-se deslocado, já que, pela primeira vez depois de muito tempo, não era o centro
das atenções.
O fato de não ser notado e de não pertencer a turma alguma foi perturbador. Quando
conseguiu tomar coragem para convidar uma jovem para dançar, ela disse que estava
acompanhada e Zé Pequeno não conseguiu tolerar. Como resposta à recusa da moça, fez com
que o namorado dela (Mané Galinha) se despisse em frente a todos e o colocou em uma situação
extremamente humilhante. Foi assim que conseguiu se soltar na festa, engrandecendo-se por
meio da humilhação alheia.
Desse momento em diante, as coisas fugiram do controle. Zé pequeno se envolveu em
uma discussão e acabou por causar a morte de seu “braço direito”. Com Bené morto, estava
completamente sozinho, e essa foi a primeira vez que demonstrou sofrimento durante toda a
trama. Tudo isso acarretou uma verdadeira guerra na comunidade. Ao final do filme acaba
morto, baleado em meio a guerra para dominar todas as bocas.

3. Hipótese sobre os fatores desencadeadores do sofrimento psíquico


A ausência de uma família bem estruturada ou de uma rede de apoio pode causar um
impacto avassalador na vida de um indivíduo, especialmente na vida de uma criança, que
precisa ser vista e cuidada. Este pode ser um dos primeiros desencadeadores do sofrimento
psíquico de Zé Pequeno, que se autodenomina “bicho solto”. Com relação a essa primeira
questão, pode-se dizer que ele nunca se sentiu amado ou digno de respeito e afeto e, como
consequência, dificilmente daria ao outro algo que não lhe foi dado, e posteriormente buscaria
atenção de outras formas.
Além disso, vivia em um contexto em que o crime era uma questão de sobrevivência
para muitos e a violência era normal. O local onde morava refletia a importância de sua vida
para a sociedade, já que a região era um lugar para quem não tinha espaço, portanto, não via
valor em vida alguma. Ele via que os mais respeitados na comunidade eram aqueles que
passavam por cima do sistema, e assim enxergava uma perspectiva.
Suas únicas referências, então, eram os amigos mais velhos, que estavam sempre
envolvidos com armas e drogas. A ausência de figuras positivas demonstrava uma única forma
de ser. Ainda assim, não era levado a sério por suas companhias e era motivo de piada. Mesmo
quando idealizou um plano sozinho, não foi incluído na execução, não tinha voz e nem
credibilidade. Quando se afastou do Trio Ternura e conseguiu, sem eles, seus próprios espólios,
foi achado por Marreco, que lhe deu um tapa na cara e arrancou dinheiro de sua mão. Mais
uma vez, sentiu-se humilhado.
Quando seu melhor amigo se apaixona e decide seguir por outro caminho, se vê em
uma situação de abandono. Por ter sido “trocado”, mesmo com anos de amizade, desencadeia-
se mais um sofrimento psíquico, que aos poucos foi tomando conta de si, pois sentia que tinha
alguém com quem podia contar enquanto seu amigo estava por perto. No momento em que seu
aliado partisse, seria apenas ele.
Na festa de Bené, viu-se mais uma vez sozinho. Deparou-se com a própria
vulnerabilidade e voltou, por um momento, a ser só mais um. Não tinha habilidades sociais e
não tinha segurança o suficiente para estar em um lugar onde as pessoas não abrissem o
caminho para ele. Ao convidar a namorada de Galinha para dançar e receber o seu primeiro
“não” (sendo Zé Pequeno), já que ela estava acompanhada, sentiu-se rejeitado e não tinha os
recursos internos necessários para lidar com esse sentimento. O constrangimento foi tanto que
sentiu necessidade de humilhar o namorado da moça. Sobre isso, Buscapé diz: “O problema do
Zé Pequeno com o Mané Galinha era muito simples: o Pequeno era feio, o Galinha bonitão. O
Galinha conquista qualquer mulher, o Zé Pequeno só pagando ou usando a força.”.
Outro fator desencadeador manifesta-se com a morte de Bené, ocasionada pelo caos
que Zé criou na despedida do amigo. Nesse momento ele se dá conta de que nada mais seria
como antes. Tudo foge do controle depois disso e não existe mais quem o aconselhe ou quem
o pare. Um sujeito que já era desenfreado passa a construir um verdadeiro inferno na Cidade
de Deus, refletindo o caos que existe dentro de si.

4. Conflito atual
As relações de Zé se mostram frágeis, afinal ele não tem nada para oferecer ao outro,
que não seja superficial. Todas as suas relações são permeadas pelo poder soberano que o
mesmo busca exercer sob todos a sua volta. Tal atitude se torna uma maneira de mascarar a
sensação de vazio interno vivido pela personagem. Existe uma necessidade de grandeza e
reconhecimento, suas habilidades sociais são restritas pela autoridade.
Zé Pequeno viveu um recorte precário e violento da realidade brasileira, foi abandonado
pelo âmbito familiar e social, e desvalorizado em sua infância, e carrega sequelas do descaso
que viveu, que configuram o conflito atual experimentado por ele.

5. Hipótese Diagnóstica

5.1. Diagnóstico categórico (DSM-V)


Após analisar o caso do personagem Zé Pequeno, acredita-se que ele tenha Transtorno
de Personalidade Antissocial (TPA), segundo o DSM-V. Esse transtorno representa um padrão
generalizado de desconsideração e violação dos direitos das outras pessoas, que surge na
infância ou no início da adolescência e continua na vida adulta. Pessoas com TPA têm muita
dificuldade nas relações interpessoais, falta-lhes empatia ao sofrimento dos outros ou podem
apresentar até mesmo prazer com o sofrimento alheio (elemento do sadismo).
No DSM-V, psicopatia não é caracterizada como um transtorno descrito, é
caracterizada enquanto sinônimo do Transtorno de Personalidade Antissocial, junto à
sociopatia. Para o diagnóstico de TPA, deve apresentar pelo menos três das sete características
determinadas pelo DSM-V:
1. Fracasso em ajustar-se às normas sociais relativas a comportamentos
legais. Repetição de atos que podem constituir motivos de detenção.
2. Tendência à falsidade, a mentir repetidamente, trapacear para ganho pessoal ou
por prazer.
3. Impulsividade e inconstância, pode haver incapacidade de manter
relacionamentos, embora não haja dificuldade em iniciá-los.
4. Irritabilidade e agressividade, envolvimento frequente em brigas, lutas e
agressões verbais e físicas. Hostilidade em muitos contextos. Nesse sentido,
também é comum haver baixa tolerância a frustrações e baixo limiar para
descarga de agressão, inclusive violência.
5. Descaso pela segurança de si e dos outros.
6. Irresponsabilidade reiterada, indicada por falha em manter conduta consistente
no trabalho ou em honrar obrigações financeiras. Irresponsabilidade e
desrespeito por normas, regras e obrigações sociais.
7. Ausência de remorso, verificada pela indiferença ou racionalização em
relação a ter ferido, maltratado, prejudicado gravemente ou roubado
outras pessoas. Assim, verifica-se muitas vezes incapacidade de
experimentar culpa e de aprender com a experiência, particularmente com
a punição.
Diante dessas categorias apresentadas, é possível afirmar que Zé Pequeno apresenta
quatro das sete características, sendo elas 1, 4, 5 e 7 (destacadas em negrito). Deste modo,
explicitam-se exemplos de cenas do filme para uma melhor explicação da hipótese diagnóstica
categórica: (1) fracasso em ajustar-se às normas sociais explícito em seus comportamentos
ilegais como assaltos, assassinatos de inocentes e estupros; (4) irritabilidade, agressividade e
baixa tolerância a frustrações demonstradas na cena em que Zé Pequeno começa a brigar
verbalmente e aponta sua arma na cara de um homem só porque o mesmo trombou nele sem
querer em uma festa; (5) Zé Pequeno está em uma danceteria, onde não consegue se enturmar
com ninguém e se incomoda com o fora que levou de uma mulher, então decide mandar o
namorado da mesma tirar a roupa na frente de todo mundo para estragar a felicidade das pessoas
porque ele mesmo estava infeliz, apresentando seu descaso com a segurança dos outros; (7)
ausência de remorso explícita em sua primeira matança no assalto ao motel em uma das
primeiras cenas do filme, quando ele era ainda conhecido como Dadinho, ao invés de culpa ou
remorso, a personagem sente prazer.
Sabe-se que, de acordo com o DSM-V, o Transtorno da Personalidade Antissocial pode
estar muito relacionado a questões genéticas, é mais comum entre familiares biológicos. Porém,
no filme, não são dadas informações a esse nível sobre a família do personagem em questão.
Contudo, é relacionado às suas questões diagnósticas de acordo com a sua cultura, o ambiente
em que Zé Pequeno vive. Isto pois, o TPA também tem ligação com condições
socioeconômicas baixas e contextos urbanos, por isso, na avaliação de traços antissociais, é útil
para o clínico levar em conta o contexto social e econômico em que ocorrem os
comportamentos. Visto isso, é importante ressaltar que Zé Pequeno veio de uma família com
baixas condições econômicas; sempre se espelhou no Trio Ternura; vivia nas ruas da
comunidade; seus pais não estavam presentes; e faz uso de drogas como maconha desde muito
novo. Ou seja, suas questões psicossociais e socioeconômicas são desfavoráveis para um
desenvolvimento saudável.

5.2 Diagnóstico psicodinâmico


Zé pequeno possui um diagnóstico com forte presença da personalidade narcísica com
comportamentos antissociais e narcisismo maligno, pontos que se encontram no quadro
perverso (estrutural) com a transferência psicopática. Em pacientes de personalidade narcísica,
essencialmente maligna, é notada a presença de uma elevada agressão egossintônica,
tendências antissociais. Aqui, as relações importam e isso pode ser percebido no filme que Zé
Pequeno possui apenas uma relação significativa com seu amigo Bené, um dos únicos por quem
a personagem demonstra ter sentimentos.
Entretanto, as relações do narcisista maligno são frágeis e o indivíduo se vê desprovido
de conteúdos para oferecer ao outro, por exemplo, na situação em que Zé toma iniciativa para
dançar com uma mulher e demonstra estar inseguro, afinal, sua única fonte de autoafirmação é
pelo poder que o mesmo almeja possuir (ou acredita que já obtém) de forma agressiva. Assim,
ele deposita todas suas relações consolidadas apenas pela admiração dele. Isso pode ser
observado em Zé Pequeno, pois este apresenta uma necessidade de grandeza e, principalmente,
reconhecimento, passando a estabelecer relações (estritamente de aliados, sem
aprofundamento) a partir da admiração que o outro expressa por ele. Pode-se considerar que a
personagem se vê vazia do que pode oferecer, e o desejo de grandiosidade mostra-se necessário
para aliviar a angústia do vazio. Já em relação a seus comportamentos antissociais, tem-se
destacado a ausência de preocupação com o outro ou com os conflitos do desejo de conexão,
isso é expresso pela grande agressividade que o personagem aparenta possuir.
Segundo Winnicott, a natureza da tendência antissocial pode ser encontrada tanto em
indivíduos normais quanto naqueles organizados estruturalmente na neurose ou psicose. No
caso de Zé Pequeno é possível relacionar seus comportamentos antissociais em razão dos
quadros mais graves de perversão em psicóticos, sendo que teoricamente esses quadros
abrangem a transferências psicopáticas que, aparecem como formas de defesa contra
experiências paranóides e podem ser caracterizadas como o ataque castrador simbólico,
desesperança e desvalorização. Aqui, o desejo é de eliminação de qualquer ameaça ou objeto
odiado, a ausência de qualquer valor ou esperança, considerando que é nesse contexto em que
a personagem esteve inserida durante toda sua vida.
O ódio possui forte presença em sua psique, afinal, seus reflexos na saúde são: assegurar
autonomia, eliminar obstáculos a fim de alcançar alguma satisfação ou destruir uma fonte
profunda de frustração, fato que se demonstra presente na trajetória da personagem, por
exemplo, em sua necessidade extrema de ser o maior traficante da Cidade de Deus e, a fim de
garantir isso, matar qualquer pessoa que possa se opor ao seu poder. Além de ter demonstrado
eliminar qualquer fonte de frustração, como humilhar Galinha publicamente e depois estuprar
sua mulher, após ser rejeitado por ela.
No campo da Psicopatologia ocorrem infiltrações que intensificam o ódio (como no
caso da vingança), fato que se explicita quando Zé Pequeno inicia uma “guerra” contra Cenoura
(como forma de vingança) após Bené ser morto por um afiliado de seu inimigo. Uma forma
extrema do ódio é a demanda de eliminação física do objeto e pode ser expressa pelo
assassinato, durante o decorrer do filme atitudes mortais de Zé com relação aos outros são
extremamente comuns, é possível também que haja uma desvalorização radical do objeto que
pode generalizar-se pela destruição simbólica de todos os relacionamentos potenciais com
outros significativos, tal fato se mostra presente na cena em que Zé Pequeno foi atingido no
braço, assim como um de seus aliados, que tentava incessantemente se aproximar de seu líder,
dizendo frases que insinuavam que os dois eram “irmãos”, afinal, estavam com o mesmo braço
machucado, Zé se cansa do mesmo e lhe dá um tiro, alegando que ele era “chato”.

Levando em consideração a análise do contexto de ambiente, social, psíquico e


sintomático de Zé Pequeno, pode-se concluir uma hipótese diagnóstica psicodinâmica centrada
na estrutura da perversão, apresentada de transferências psicopáticas com elementos de
personalidade narcísica e comportamentos antissociais.
5.3 Articulação teórica psicodinâmica
Na perversão em quadros psicóticos, os níveis mais graves abrangem transferências
psicopáticas (como ataque castrador simbólico, desesperança e desvalorização) como formas
de defesa contra experiências paranoides, características do quadro. Não é apresentado nesses
casos algo que denuncie algum tipo de desejo de preservar o objeto odiado, pelo contrário, o
ódio primitivo se ajusta como um esforço de destruir o potencial de um relacionamento
gratificante.
No subgrupo dos narcisistas malignos, onde a personalidade é essencialmente feita de
agressão egossintônica (relativo à harmonização do Ego), tendências paranóides e atitudes
antissociais, como citado anteriormente. As transferências são consideradas como
“psicopáticas”, pois o tipo de relação que se constrói é marcado pelo desapontamento, pela
perda de esperança e pelas tentativas de castrar simbolicamente o outro.

Existe um desejo por conexão nas relações para o narcisista maligno, porém, essas
relações são muito frágeis devido ao sentimento de falta do que oferecer que o próprio
indivíduo sente. Configura-se então, um conflito que consiste na vontade de se relacionar, mas
com a necessidade de ser admirado completamente. A narrativa de grandiosidade alivia e
mascara o vazio. Já na perversão de personalidade antissocial não existe preocupação nenhuma
com o outro, nem mesmo conflitos entre o desejo de se conectar e a agressividade humana.

5.4 Diagnóstico diferencial


Zé Pequeno possui possivelmente perversão de personalidade antissocial. Para um
diagnóstico diferencial, é necessário descartar condições associadas como neurológica, quadro
clínico geral, efeito de medicações ou de substâncias psicoativas. Um mesmo sintoma pode
apresentar diferentes possibilidades de diagnósticos, nesse sentido, o diagnóstico diferencial
apresenta todas as possíveis patologias e é definido por eliminação.
O quadro clínico geral de Zé Pequeno é de uma pessoa que cresceu em um ambiente
repleto de violência, faz uso de substâncias ilícitas com muita frequência (maconha e cocaína),
está diretamente ligada ao crime organizado e sem qualquer rede de apoio (familiar, escolar ou
religiosa), além disso apresenta sinais de narcisismo e agressividade.
Os transtornos da personalidade se dividem em três grupos: Grupo A (transtornos da
personalidade paranóide, esquizóide e esquizotípica), onde os indivíduos parecem esquisitos
ou excêntricos, Grupo B (transtornos da personalidade antissocial, borderline, histriônica e
narcisista), onde indivíduos parecem dramáticos, emotivos ou erráticos, e Grupo C (transtornos
da personalidade evitativa, dependente e obsessivo-compulsiva), onde os indivíduos parecem
ansiosos e medrosos.
Zé pequeno possui algumas características de um quadro paranóide, pode-se dar como
exemplo sua desconfiança em relação, até mesmo, a pessoas próximas, não ser capaz de aceitar
criticismo e perdoar quem supostamente lhe causou mal. Porém, não é possível classificá-lo
como paranóico.
O diagnóstico de Zé Pequeno é de Transtorno da Personalidade Antissocial, que está
no Grupo B. Nesse sentido, podemos descartar os diagnósticos de transtornos dos outros
grupos, já que ele não parece esquisito ou excêntrico e nem ansioso ou medroso. Ele se
apresenta como uma pessoa extremamente emotiva, já que não se mostra racional ao tomar
decisões impulsivamente. Um exemplo dessas atitudes é quando, Zé pequeno mata um
companheiro no final do filme apenas por ele estar falando muito e o incomodando.
Segundo o CID-10, o transtorno de Personalidade Dissocial é uma condição
caracterizada principalmente por um desprezo das obrigações sociais e falta de empatia para
com os outros. Existe uma quebra de expectativa entre o comportamento apresentado pelo
indivíduo e as normas sociais estabelecidas. Seu comportamento não sofre impacto ou se vê
facilmente modificado pelas experiências adversas, inclusive pelas punições que esse sofre.
Indivíduos com esse quadro, apresentam uma baixa tolerância à frustração e um baixo limiar
de descarga da agressividade, inclusive da violência. Além disso, existe uma dificuldade de
assumir seu papel em certo problema e, portanto, uma tendência a culpar sempre o outro por
suas atitudes ou coisas ruins que lhe acontecem. A maioria desses comportamentos estão
presentes nas ações de Zé Pequeno ao longo do filme.
Zé Pequeno apresenta os sintomas do Transtorno de Personalidade Limítrofe, por ser
impulsivo, instável e crer que todos são uma ameaça e querem destruí-lo. Um exemplo desse
comportamento é considerar o Galinha seu inimigo por se sentir inseguro perto dele em relação
a certos aspectos como a namorada de Galinha. Nesse sentido, ele sente inveja e se sente
afetado. Ele fica completamente desestabilizado e torna seu grande objetivo matar o Galinha,
o que dá início a uma guerra na qual investe todo seu tempo e dinheiro para ganhar. Porém,
não pode ser considerado Borderline, já que não projeta em outro o aspecto de cuidador, mesmo
possuindo a falta de cuidado dos pais e de algum responsável. Além disso, não se porta como
um “eu da voz passiva”, ou seja, tem vontade própria (por exemplo a vontade de se tornar o
“dono da favela”), toma suas próprias atitudes e não está à mercê de outras pessoas para lhe
dizerem o que fazer.
Conclui-se com isso que, a escolha de diagnóstico por parte do grupo baseada na
personalidade de Zé Pequeno é de que o personagem é perverso, especificamente classificado
como Transtorno da Personalidade Antissocial.

6. Referências bibliográficas

CIDADE DE DEUS. Direção: Fernando Meirelles e Kátia Lund. Produção: Andrea Barata
Ribeiro e Maurício Andrade Ramos. Brasil: O2 Filmes, Globo Filmes e Videofilmes, 2002.

DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais.


Disponível em: Minha Biblioteca, (3ª edição). Grupo A, 2019. p. 283.

DSM-V. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. American Psychiatric


Association (5a edição), p. 659-663, 2013.

EY, Henry; BERNARD, Paul; BRISSET, Charles. Manual de psiquiatria. In: Manual de
psiquiatria. 1981. p. 1257-1257.

FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão: O mal-estar na civilização e outros trabalhos. In:
O futuro de uma ilusão: o mal-estar na civilização e outros trabalhos. 1931. p. 324-324.

MCWILLIAMS, Nancy. Diagnóstico Psicanalítico: Entendendo a Estrutura da


Personalidade no Processo Clínico-2. Artmed Editora, 2014.

MEIRELLES, Fernando. Cidade de Deus–filme. [s.l.]: Globo Filmes, Miramax


International, 2002.

PAJAZCKOWSKA, Claire. Perversão. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Ediouro, 2006.

TRAVERSO-YÉPEZ, Martha; MORAIS, Normanda Araújo de. Reivindicando a


subjetividade dos usuários da Rede Básica de Saúde: para uma humanização do atendimento.
Cadernos de Saúde Pública, v. 20, p. 80-88, 2004.

WINNICOTT, Donald Woods. Privação e Delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

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