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R uth Benedict

O Crisântemo
e a Espada
Padrões da Cultura Japonesa

UNIVERSIDADE DE FORTALEZA

BIBLIOTECA CENTRAL

ditora P ersp ectiv a S ã o P a u lo


UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
- BIBLIOTECA C E N T R A L -
N° JO IS D a ta 4373

T ítu lo do original:
T h e C h r y s a n th e m u m a n d th e S w o r d

C opyright by
H O U G H T O N M IF F L IN & C O M P A N Y

D ireitos p a ra o B rasil reservados à


E D IT O R A P E R S P E C T IV A S. A.
Av. Brig. L uís A ntônio, 3.025
São P au lo - SP
1972
S U M A R IO
A g r a d e c i m e n t o s ....................................................... 7
1. M i s s ã o : J a p ã o ............................................................ 9
2. O s J a p o n e s e s n a G u e r r a . . .......... ............................. 25
3 . A s s u m i n d o a P o s i ç ã o D e v i d q ................................ 43
4 . A R e f o r m a M e i j i ....................................................... 69
5. D e v e d o r d o s S é c u l o s e d o M u n d o .......................... 87
6. S a l d a n d o u m D é c i m o M i l é s i m o ............... ............ 99
7. O P a g a m e n t o ' . ' m a i s D i f í c i l d e S u p o r t a r ” ........... 115
8 . L i m p a n d o o N o m e .................................................... 125
9. O C í r c u l o d o s S e n t i m e n t o s H u m a n o s ................. .. 151
10. O D i l e m a d a V i r t u d e ........................... ................... 167
11. A A u t o d i s c i p l i n a ..................................................... 193
12. A C r ia n ç a A p r e n d e ... ......................................... 213
13. O s J a p o n e s e s d e s d e o D i a d a V i t ó r i a ................... 249
G l o s s á r i o ........................................ ........................... 265
í n d i c e ......................................................................... 269

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A G R A D E C IM E N T O S

Os japoneses, nascidos ou educados no Japão, e que


viviam nos E stados U n idos durante os anos de guerra,
viram -se colocados num a posição b astan te difícil. Foram
alvo da desconfiança de m uitos am ericanos. Tenho,
portanto, grande prazer em dar testem unho de seu auxílio
e am abilidade durante o período em que estive reunindo
material para este livro. Sou-lhes m uito grata, es­
pecialm ente ao m eu colega de tem po de guerra, Robert
H ashim a. N ascido neste país e educado no Japão, decidiu
voltar para os E stados U n idos em 1941. Foi internado
num cam po de recolocação de guerra e eu fiquei
conhecendo-o quando veio trabalhar em W ashin gton nos
órgãos de guerra dos E stados U nidos.

7
A gradeço tam bém ao Serviço d e Inform ação de
G uerra, cujo relatório de que m e incum biu constitui este
livro; particularm ente, o Professor G eorge E. Taylor,
V ice-D iretor para o E xtrem o-O riente, ao C om andante
A lexander H. Leighton, M C -U S N R , que chefiava a D i­
visão d e A nálise M oral Estrangeira.
Q uero agradecer tam bém àqueles que leram este li­
vro total ou parcialm ente: C om andante L eighton, Pro­
fessor Clyde K luckhohn e o Dr. N ath an Leites, tod os
pertencentes ao Serviço d e Inform ação d e G uerra durante
o período em que estive trabalhando n o Japão, tend o me
ajudado d e m uitas m aneiras; Professor Conrad A rens-
berg, D ra. M argaret M ead G regory B ateson e E. H.
N orm an. A gfad eçcT ãT õdõs por su gestões e auxílio.

R U T H B E N E D IC T

A A U T O R A deseja agradecer aos §eguintes editores, que


lhe perm itiram fazer citações extraídas d e suaS pub lica­
ções: D . A ppleton-C entury Com pany, In c., d e B e h i n d t h e
F a c e o f J a p a n , de U p ton Close; Edw ard A rnold and
Com pany, de J a p a n e s e B u d d h i s m , de Sir Charles Eliot;
T he John D ay C om pany, Inc., d e M y N a r r o w I s l e , de
Sum ie M ishim a; J. M . D en t and Sons, L td., de L i f e a n d
T h o u g h t o f J a p a n , de Y oshisabura O kakura; D oubleday
and Com pany, de A D a u g h t e r o f t h e S a m u r a i , de Etsu
Inagaki Sugim oto; Penguin B ooks, Inc., e o I n f a n t r y
J o u r n a l de um artigo pelo Coronel H arold D ou d , em H o w
t h e J a p A r m y F i g h t s ; Jarrolds Publishers (London), Ltd.,
de T r u e F a c e o f J a p a n , d e K. Nohara; T he M acm illan
Com pany, de B u d d h i s t S e c t s o f J a p a n , d e E. O berlin
Steinilber e de J a p a n : A n A t t e m p t a t I n t e r p r e t a t i o n , de
Lafcadio Hearn; R inehart and Com pany, In c., de J a ­
p a n e s e N a t i o n , de John F. E m bree e a U niversity o f
C hicago Press, de S u y e M u r a , de John F. Embree.

8
1. M ISSÃO : JAPÃO

Os japoneses foram os inimigos m ais hostis jamais


enfrentados.pelos Estados Unidos num a guerra total. Em
nenhum a outra guerra travada contra um adversário po­
deroso fora necessário levar em consideração hábitos tão
extrem adam ente diversos de agir e de pensar. Como a
Rússia czarista, que em 1905 nos antecedeu, com ­
batíam os um a nação com pletam ente arm ada e treinada
que não pertencia à tradição cultural ocidental. As
convenções de guerra, que as nações ocidentais aceitaram
como fatos consagrados d a natureza hum ana, obviamente
não existiam p ara os japoneses. A guerra no Pacífico
constituiu-se, por isso mesmo, em algo mais do que um a
série de desem barques em praias de ilhas, em algo mais

9
do que insuperado problem a de logfstica. T ransform ou-se
antes de m ais nada num problem a concernente à própria
natureza do inim igo. T eríam os de en tend er stja conduta,
a fim de poder com batê-lo.
A s d ificuld ades foram grandes. D u ran te os setenta e
cinco anos que se seguiram à abertura d as portas do Ja­
pão, os japoneses vêm sen d o in clu íd os n â m ais fan tástica
série d e “ m as tam bém ” jam ais em pregada com relação a
qualquer nação do m undo. Q uando um observador sério
escreve a respeito de outros povos afora os japoneses,
considerando-os de u m a cortesia nun ca vista, é pouco
provável que acrescente “ mas tam b ém insolentes e
autoritários” . Q uando d isser que o povo de determ inada
nação é de u m a incom parável rigidez de conduta, não há
de acrescentar “ m as tam bém se adaptam prontam ente a
inovações extrem as” . Q uan d o considerar um povo
subm isso; não há de assinalar além disso que não se sujei­
ta facilm ente a um controle de cim a. Q u an d o os declarar
leais e generosos, não advertirá “m as tam bém traiçoeiros
e vingativos” . Q uando disser que são verdadeiram ente
bravos, não discorrerá sobre a sua tim idez. Q uando
afirmar que agem sem atentar para a op in ião alheia, não
observará em seguida que têm um a consciência ver­
dadeiram ente terrificante. Q uando descrever a d isciplina
de robôs do seu exército, não se deterá a seguir sobre a
m aneira com o os soldados tom am os freios n os dentes,
ch egan d o inclusive à insubordinação. Q uando se referir a
um povo que se devota apaixonadam ente à cultura oci­
dental, não se expandirá sobre o seu ardoroso con ser­
vadorism o. Q uando escrever um livro sobre um a nação
onde vigora um culto popular d e esteticism o, que confere
honrarias a atores e artistas, esbanjando arte no cultivo de
crisântem os, tal obra não terá de ser com pletada por um a
outra, dedicada ao cu lto d a espada e à ascendência
m áxim a do guerreiro.
T odas essas contradições con stitu em -se, todavia, na
própria tessitura dos livros sobre o Japão. São ver­
dadeiras. T anto a esp ad a com o o crisântem o fazem parte
do quadro geral. O s japoneses são, no m ais alto grau,
agressivos e amáveis, m ilitaristas e estetas, insolentes e
corteses, rígidos e m aleáveis, subm issos e rancorosos, leais
e traiçoeiros, valentes e tím idos, conservadores e abertos
aos novos costum es. Preocupam -se m uito com o que os

10
outros possam pensar de sua conduta, sendo tam bém
acom etidos de sentim ento de culpa quando os d em ais na­
da sabem do sèu deslize. Seus soldad os são disciplinados
ao extrem o, porém , são igualm en te insubordinados.
Q uando Se to m o u extrem am ente im portante para a
A m érica com preender o Japão, essas contradições e m u i­
tas outras igualm ente clam orosas n ão puderam ser postas
de lado. A s crises se sucediam d ian te de nós. O que fariam
os japoneses? Seria possível cap itu lação sem invasão? D e ­
veríam os bom bardear o P alácio do Im perador? O que p o ­
deríam os esperar d os prisioneiros de guerra japoneses? O
que poderíam os d izer em nossa propaganda para os
soldados japoneses e sua pátria que pudesse salvar as vi­
das de am ericanos e abater a intenção jap on esa de lutar
até o ú ltim o hom em ? V erificaram -se violentos desen­
tendim entos entre os que m elh or conheciam os japoneses.
Q uando viesse a paz, seriam eles u m povo que precisasse
de um a lei marcial perpétua para m antê-los em ordem ?
Teria nosso exército de se preparar para travar d eses­
perados com bates em cad a reduto das m ontanhas do Ja­
pão? Teria de haver um a revolução no Japão do gênero da
Francesa ou da R ussa, antes que fosse possível a paz
internacional? Q uem a com andaria? A alternativa estaria
na erradicação d os japoneses? Faria u m a diferença
enorm e quais fossem n ossos ju lgam entos.
E m junho de 1944, recebi o encargo de estudar o Ja­
pão. Pèdiram -m e que u tilizasse todas as técn icas que
pudesse, com o antropóloga cultural, a fim de decifrar
com o seriam os japoneses. N o inicio daquele verão, nossa
grande ofensiva contra o Japão com eçava a se revelar na
sua verdadeira m agnitude. M u ita gente nos E stados U n i­
dos ainda d izia que a guerra com o Japão duraria mais
três anos, ou talvez dez. N o Japão, falava-se num a centena
de anos. O s am ericanos, d izia-se entre os japoneses,
tinham tido vitórias locais, mas a N ova G uin é e as Ilhas de
Salom ão ficavam a m ilhares de quilôm etros de suas ilhas
n a ta is . S e u s c o m u n ic a d o s o f ic ia is d if ic ilm e n t e
reconheciam derrotas navais e o povo jap on ês ainda se
considerava com o vitorioso.
Em junho, entretanto, a situação com eçou a m udar.
Abrira-se um a segunda frente na Europa e a prioridade
militar que o A lto C om ando concedera ao teatro europeu
durante dois anos e m eio tinha sido resgatada. O fim da

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guerra contra a A lem anha estava próximo. No Pacífico,
nossas forças desem barcaram em Saipan num a grande
operação, prevendo a derrota final ja p o n e sa Dali por
diante, nossos soldados iriam enfrentar o exército japonês
em pontes cada vez m ais próximos. E sabíam os per­
feitam ente, a exemplo dos com bates em Nova Guiné,
G uadalcanal, B urm a, A ttu, Taraw a e Biak, que en ­
frentávam os um adversário formidável.
Em junho de 1944, tratava-se, portanto, de responder
a um a m ultidão de perguntas sobre o nosso inimigo, o J a ­
pão. Q uer o assunto fosse m ilitar ou diplom ático, quer
fosse suscitado por questões de alta política ou de volantes
a serem lançados detrás das linhas de frente japonesas,
todos os dados eram im portantes. Na guerra total em que
se em penhava o Japão, tínham os de saber não apenas os
objetivos e os motivos dos que se achavam no poder em
Tóquio, não apenas a longa história do Japão, não apenas
as estatísticas econômicas e m ilitares; tínham os de saber
com o que o seu governo poderia contar d a parte do povo.
Teríamos de tentar com preender os hábitos japoneses de
pensam ento e emoção e os padrões em que se en­
quadravam tais hábitos. Teríam os de conhecer as sanções
por trás desses atos e opiniões. Teríam os de pôr m o­
m entaneam ente de lado as prem issas sobre as quais
baseávamos nossas ações como americanos e abstermo-
nos o mais possível de chegar à fácil conclusão de que,
ante um a determ inada situação, reagiríamos do mesmo
modo que eles.
M inha missão era difícil. A Am érica e o Japao es­
tavam em guerra e a tendência em tal circunstância é
condenar indiscrim inadam ente, sendo, portanto, ainda
mais difícil descobrir como o inimigo encara a vida. No
entanto, não me restava outra alternativa.fU rgia saber
como os japoneses se com portariam e não como nos
com portaríam os se estivéssemos em seu lugar. P rocuraria
j utilizar a conduta japonesa na guerra como um a base
p ara compreendê-los, e não como um a tendência. T eria
de observar a m aneira como conduziam a guerra, e consi­
derá-la, por ora, não como um problem a m ilitar, e sim
como um problem a cultural./N a guerra, como na paz, os
japoneses revelavam-se ao agir. Que indicadores de sua
m aneira de viver e de pensar deixariam transparecer a tra ­
vés d a m aneira de guerrear? Os m étodos de seus

12
com andantes de atiçar o espírito guerreiro, d e reanimar
os desnorteados, de em pregar os soldados em cam panha
— tudo isso dem onstrava o que eles próprios con si­
deravam com o os pontos fortes de q ue se poderiam valer.
C um pria-m e acom panhar o s porm enores da guerra e
verificar com o os japoneses revelavam -se a cad a instante.
O fato de nossOs d ois p aíses estarem em guerra su sci­
tava, inevitavelm ente, um a séria desvantagem . Sim ­
plesm ente teria eu de abrir m ão da m ais im portante
técnica do antropólogo cultural: o trabalho de cam po.
N ão poderia ir ao Japão, viver nos seus lares e tes­
tem unhar as tensões e esforços da vida diária, ver com os
m eus olhos o que era crucial e o que não era. N ão poderia
segui-los no com plicado processo de chegar a um a
decisão. N ão poderia ver seus filhos sendo educados. A
ú nica pesquisa de cam po antropológica, realizada num a
aldeia japonesa — S u y e M u r a , d e John E m bree — era
valiosíssim a, porém m uitas d as questões acerca d o Japão,
com que nos defrontávam os em 1944, não tinham sido
propostas quando aquele estud o fora preparado.
Com o antropóloga cultural, a d espeito dessas
grandes dificuldades, confiava em certas técnicas e
postulados que poderiam ser usados. Pelo m enos não
estaria obrigada a abster-m e da confiança do antropólogo
no con tato face a face com o povo que se está estudando,
Havia num erosos japoneses neste país que haviam sido
criados no Japão e eu poderia interrogá-los sobre os fatos
concretos de suas experiências, descobrir com o eles se
avaliavam, preenchendo, graças às suas descrições, m ui­
tas lacunas em nosso conhecim ento, o que m e parecia
essencial, com o antropóloga, para a com preensão de
qualquer cultura. O utros cientistas sociais, que e s­
tudavam o Japão, estavam utilizando bibliotecas,
analisando ocorrências passadas ou estatísticas, acom ­
panhando a marcha dos acontecim entos através da p ala­
vra escrita ou falada da propaganda japonesa. Parecia-
m e, no entanto, que m uitas d as respostas que procuravam
estavam contidas nas norm as e n os valores da cu ltu ra ja ­
ponesa e que poderiam ser m ais satisfatoriam ente e n ­
contradas, explorando essa cultura m edian te pessoas que
a tivessem vivido realm ente.
Isto não significa que eu não tivesse realizado lei­
turas, ou m esm o, que não devesse m uito aos ocidentais

13
que viveram no Japão. A extensa literatu ra sobre os ja ­
poneses e o grande núm ero de atentos observadores oci­
dentais que viveram no Japão proporcionaram -m e um a
vantagem não possuída pelo antropólogo que se dirige às
cabeceiras do Am azonas ou às serranias d a Nova Guiné, a
fim de estudar um a tribo iletrada. Sem possuir linguagem
escrita, estas tribos não puderam confiar auto-revelações
ao papel. Os com entários de ocidentais são poucos e
superficiais. Ninguém conhece sua história passada. O
trabalhador de campo precisará descobrir, sem qualquer
auxílio de estudos precedentes, como funciona sua vida
econômica, como se estratifica a sua sociedade, o que é
predom inante na sua vida religiosa. Ao estudar o Japão,
fui a herdeira de muitos estudiosos. Descrições de pe­
quenos detalhes de vida encontravam -se em meio a ano­
tações de antiquários. Homens e m ulheres d a Europa e da
América haviam registrado suas experiências vividas e os
próprios japoneses escreveram au to-revelações re alm ente
extraordinárias. Ao contrário de muitos povos orientais,
m amfelifãm um grande impulso de se expressarem através
da escrita. Escreveram sobre os fatos triviais de suas vi­
das, como tam bém a respeito de seus program as de ex­
pansão m undial. M ostraram -se espantosam ente francos.
Está claro que não apresentaram o quadro completo.
Nenhum povo o faz. Um jap onês que escreve sobre o Ja-
pão deixa passar coisas verdadeiram ente cruciais que lhe
são tão familiares e invisíveis q uanto o ar que respira. O
mesmo sucede com os americanos, quando escrevem' so­
bre a América. A inda assim, porém , os jap oneses am am a
auto-revelação.
Li esta literatura como Darwin diz que leu, quando
se achava elaborando suas teorias acerca d a origem das
espécies, tom ando nota daquilo que não tin h a meios de
compreender. O que precisaria eu saber a fim de entender
a justaposição de idéias num discurso no Congresso?, O
que haveria por trás de sua violenta condenação de algum
ato que parecesse escusável e a sua fácil aceitação de
outro que parecesse ultrajante? Li, form ulando-m e
sempre a seguinte questão: 0 que “ está errado com este
quadro” ? 0 que precisaria eu saber, a fim de com ­
preendê-lo?
Assisti tam bém a filmes que haviam sido escritos e
produzidos no Japão — filmes de propaganda, filmes

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históricos e film es sobre a vida contem porânea em T óquio
e nas aldeias. Comentemos posteriorm ente com japoneses
que haviam visto alguns d esses film es no Japão e que, pelo
m enos, viam o herói, a heroína e o vilão com o os japoneses
o viam e não com o eu os via. Q uando eu m e desorientava,
era claro que o m esm o não acon tecia com eles. O s en re­
dos, as m otivações não eram com o eu os via; seu sig-
ficado estava relacionado com a m aneira com o o film e
fora construído. Q uanto às novelas, havia m u ito m ais d i­
ferença do que poderia parecer entre o que significavam
para m im e o que significavam para os educados no Ja­
pão. A lguns d esses jap on eses rapidam ente acorriam em
d efesa das cpnvenções jap on esas, en q uan to outros od ia­
vam tudo o que fosse japonês. $ difícil d izer de qual dos
dois grupos aprendi m ais. No quadro íntim o que for­
neceram d e com o se levavá a vida no Japão houve
consonância, quer o aceitassem prazerosam ente, quer o
rejeitassem com amargor.
Tão só recorra o antropólogo ao povo d a cultura que
esteja estudando, à cata de seu m aterial e de seus ves­
tígios, estará procedendo d e form a idêntica aos m ais ca ­
pazes observadores ocidentais que viveram no Japão. Se
isto era tudo o que um antropólogo tin h a a oferecer, então
pouco poderia acrtscentar aos valiosos estud os do Japão
feitos por habitantes estrangeiros. O antropólogo cultural,
entretanto, dispõe de certas h abilitações, resultantes de
sua form ação, que o m otivam a acrescentar a sua própria
contribuição num cam po rico em estud iosos e obser­
vadores.
''O antropólogo conhece m uitas culturas da  sia e do
Pacífico. H á m uitas disposições sociais e hábitos d e vida
no Japão com correspondentes próxim os nas tribos prim i­
tivas das ilhas do Pacífico. A lguns destes correspondentes
encontram -se na M alásia, outros na N ova G uiné, outros
na Polinésia. E videntem ente, é interessante verificar se
isto será indício de antigas m igrações ou contatos, mas
este problem a de possível relação histérica n ão constituiu
a razão por que o conhecim ento dessas sim ilaridades
culturais foi valioso para m im . Foi útil conhecê-las porque
eu sab ia com o essas instituições funcionavam nessas
culturas m ais sim ples, e, d essa form a, pude obter in ­
dicações da vidá japonesa através d a sem elhança ou d i­
ferença que encontrava. C onhecia tam bém algo sobre o

15
Siâo, a B irm ânia e a C hina no con tin en te asiático, e pude,
portanto, com parar o Japão com outras nações q ue fazem
parte da sua grande herança cultural. O s antropólogos
dem onstraram de sobejo nos seus estudos de povos prim i­
tivos q uao valiosas podem ser essas com parações cu l­
turais. U m a tribo poderá com partilhar noventa por cento
de seus hábitos form ais com as suas vizinhas e, no en-
Jan to, tê-los readaptado, d e m olde a que se ajustem a um
m odo de vida e um conjunto de valores que não seja
com partilhado com povo algum circunvizinho. D urante
esse processo talvez tenha de rejeitar algum as disposições
fundam entais que, em bora pequenas em proporção ao to ­
do, m udam seu curso de desenvolvim ento futuro em um a
direção específica. N ada é m ais proveitoso para o an ­
tropólogo do que estudar os contrastes que d escobre entre
povos que, de um m odo geral, com partilham de m uitas
características^
T“
Os antropólogos tam bém tiveram de se acostum ar
com as diferenças m áxim as entre sua própria cultura e
um a outra, e as suas técnicas precisaram ser aper­
feiçoadas para enfrentar particularm ente este problem a.
Sabem por experiência própria que existem grandes d i­
ferenças nãs situações que hom ens de diferentes culturas
têm de enfrentar e na m aneira p ela qual diferentes tribos
e nações definem os significados dessas situações. E m
algum a aldeia do à rtico ou em um deserto tropical d e ­
pararam com disposições tribais de responsabilidade de
parentesco ou perm uta financeira que seriam incapazes
de supor nos seus m om entos d e m ais fértil im aginação.
Tiveram de investigar, n ão apenas os d etalh es de
parentesco ou perm uta, m as tam bém as conseqüências de
tais disposições n a conduta da tribo e d e que m odo cada
geração foi condicionada, desde a infância, a conduzir-se
com o os seus ancestrais o haviam feito antes deles.
Esta preocupação profissional com diferenças, seu
condicionam ento e suas con seq ü ên cias, bem poderia ser
em pregada no estudo do Japão. N inguém d escon h ece as
diferenças culturais profundam ente enraizadas entre os
E stados U n idos e o Japão. Corre m esm o entre nós um a
tradição popular afirm ando que tu d o o que fazem os, eles
fazem o contrário. T al convicção de diferença é perigosa
apenas se um estudioso contentar-se em d izer sim ­
plesm ente que essas diferenças são tão fantásticas a ponto

16
de ser impossível com preender esse povo. O antropólogo
dispõe de boa prova em sua experiência de que até mesmo
a conduta estranha não nos impede de compreendê-la.
M ais do que qualquer outro cientista social, ele tem-se
utilizado das diferenças m ais como um a base do que
como um a tendência. N ada o levou a dirigir tan to a
atenção p ara instituições e povos senão o fato de serem
eles fenom enalm ente estranhos. N ada havia que ele
pudesse tom ar como seguro no modo de vida de sua tribo,
sendo levado a exam inar tu d o e nao apenas alguns fatos
selecionados. No estudo de países ocidentais, o leigo em
estudos de culturas com paradas deixa passar setores
inteiros de conduta. Tom a por garantido ta n ta coisa, que
não chega a explorar a gam a de hábitos triviais n a vida
diária, nem as consagradas opiniões sobre assuntos
caseiros que, colocados no panoram a nacional, têm mais
a ver com o futuro do país do que os tratados assinados
por diplom atas.
O antropólogo viu-se obrigado a aperfeiçoar técnicas
para o estudo do lugar-com um, já que os lugares-comuns
na tribo que estudava diferiam em m uito das réplicas dos
mesmos, existentes em sua pátria. Q uando tentou
compreender a m alignidade de um a tribo ou a
pusilanim idade de outra, quando tentou planejar a
m aneira como agiria e se sentiria num a determ inada si­
tuação, verificou que teria de se valer abundantem ente de
observações e detalhes que não se revelam am iúde com
relação a países civilizados. T inha boas razões p ara acre­
ditar que fossem essenciais e sabia do tipo de pesquisa
que iria desencavá-los.
Valia a pena ten tar no caso do Japão. Pois, somente
quando se percebem os lugares-comuns intensam ente
hum anos da existência de qualquer povo é que se pode
avaliar a extrem a im portância d a prem issa do a n ­
tropólogo de que a conduta hum ana é d e s c o b e r ta na vida
diária, seja num a tribo prim itiva ou num a nação na
vanguarda da civilização. Por m ais estranho que seja seu
ato ou opinião, a m aneira como um hom em se sente ou
pensa tem algum a relação com a sua experiência.
Q uanto mais me desconcertei ante determ inada conduta,
tan to mais presum i que existisse em algum setor d a vida
japonesa algum condicionam ento comum de tal es­

17
tranheza. Se a p esq uisa m e levasse a d etalh es triviais da
com unicação diária, tan to m elhor. É aí que se aprende.
f C om o antropóloga cultural, parti igualm ente da
: prem issa de que os aspectos m ais isolados de con d uta têm
entre si algum a relação sistem ática. E studei seriam ente a
m aneira com o centenas de porm enores inscrevem -se em
£ padrões globais. U m a sociedade h um ana precisa preparar
' para si m esm a um projeto de vida, aprovando m odos d e ­
term inados d e enfrentar situações, m od os determ inados
de m ensurá-las. O s com ponentes d essa sociedade con si­
deram essas soluções com o as b ases d o universo. J In ­
tegram -nas, por m aiores que sejam as dificuldades.
/A q u eles que aceitaram um sistem a de valores, através do
» qual vivem, não podem conservar por m u ito tem po um se-
j tor segregado de suas vidas, on de vivam e procedam de
acordo com um conjunto contrário de valores, a m enos
que se exponham à ineficiência e ao caos. Procuram
instilar-se de m aior conform ism o. Investem -se d e algum as
motivações e de algum fu n dam en to lógico que lhes sejam
com uns. A lgum a con sistên cia é necessária, do contrário o
em preendim ento tod o vai por água abaixo.j
/C o n d u ta econôm ica, disposições fam iliares, ritos
religiosos e objetivos políticos en grenam -se, portanto,
entre si. N um a área podem ocorrer m u d anças m ais ra­
pidam ente do que em outras, subm etendo estas outras
áreas a um a grande tensão, que surge d a própria necessi­
dade de consistência. E m sociedades pré-alfabetizadas,
em penhadas na aquisição de poder sobre as dem ais, o
desejo de poder é expresso nas suas práticas religiosas,
não m enos do que nas suas transações econôm icas e nas
suas relações com outras tribos. Em nações civilizadas,
que possuem textos d e antigas escrituras, a Igreja
necessariam ente conserva as frases de séculos passados, o
que não ocorre com as tribos sem lingu agem escrita, mas
abdica da sua autoridade nos setores em que poderia
intervir, com a crescente aprovação p úb lica ao poder
econôm ico e político. As palavras perm anecem , mas o sig­
nificado é alterado. O s dogm as religiosos, as práticas
econôm icas e a p olítica não se m an têm represados em p e­
quenos reservatórios estanques, porém transbordam so­
bre suas supostas fronteiras, m isturando inevitavelm ente
suas águas, um as com as outras. Sendo isto sem pre verda­
deiro, quanto m ais um estudioso estiver aparentem ente

18
dispersando sua investigação entre os fatos da
econom ia, do sexo, da religião e do cu idad o d o bebê, tanto
melhor poderá observar o que está acontecendo na socie­
dade que estuda. Poderá form ular suas h ip óteses e obter
seus dados em qualquer setor d a vida com vantagem . Po­
derá aprender a divisar as exigências que qualquer nação
fizer, quer sejam elaboradas em term os políticos,
econôm icos ou morais, com o expressões de hábitos e
m aneiras de pensar aprendidas na sua experiência social.
Este não é, portanto, um livro esp ecificam ente sobre reli-
gião, vida econôm ica, p olítica ou fam ília japonesas.
E studa, isto sim , enfoques japoneses acerca da condução
da vida. D escreve tais enfoques à m edida que se m an i­
festaram , em qualquer atividade que seja. Seu assunto é o
que faz d o Japão um a nação de japoneses.
/U m a das desvantagens do século X X é que ainda
tem os as noções m ais vagas e bitoladas, não apenas da­
quilo que faz do Japão u m a nação de japoneses, com o do
que faz os E stados U n idos u m a nação de am ericanos, a
França um a nação de franceses, e a R ússia um a nação de
ç russos. Carecendo deste conhecim ento, cada país com ­
preende mal o outro./T em em os diferenças irreconciliáveis
quando o problem a é apenas entre Tw eedledum e Twee-
dledee e falam os em objetivos com uns, quando um a n a­
ção, em virtude de toda a sua experiência e sistem a de
valores, visa a um curso de ação inteiram ente diverso do
que tínham os em m ente. N ão nos d am os um a op or­
tunidade de descobrir quais sejam seus hábitos e valores.
Se assim fizéssem os, haveríam os de perceber que o curso
de uma ação não é necessariam ente falho só por não ser
aquele que conhecem os.
N ão é possível depender inteiram ente do que cada
qação diz de' seus próprios hábitos de pensam ento e ação.
Os escritores de todas as nações tentaram fornecer uma
descrição de si próprios. T odavia, não é fácil. A s lentes
através das quais um a nação olha a vida n ão são as
m esm as que um a outra usa. Ê difícil ser consciente com
os olhos através dos quais olham os. Q ualquer país os
tom a com o certos e os truques de focalização e pers­
pectiva, que conferem a cada povo sua yisão nacional da
vida, apresentam -se a esse povo com o a dádiva divina de
ordenação de um a paisagem . Em questão de óculos, não
esperam os que aqueles que os usam conheçam a fórm ula

19
das len tes, daí tam pou co poderm os esperar que as nações
analisem suas próprias perspectivas d o m undo. Q uando
querem os saber a respeito de óculos, form am os um
oculista e esperam os que esteja h abilitad o a escrever a
fórm ula para qualquer lente que lhe tragam os. A lgum
dia, sem dúvida, reconhecerem os ser esta a tarefa do
cientista social, com relação às n ações do m undo m o ­
derno.
A tarefa requer ta n to um a certa firm eza, quanto um a
certa generosidade. R equer um a firm eza que as pessoas
de b oa vontade têm por vezes con d en ado. T ais pro-
pugnadores de U m Só M undo em penharam suas e s­
peranças em convencer os povos d e tod os os cantos da
terra de que todas as diferenças entre O riente e O cidente,
preto e branco, cristãos e m aom etan os, são superficiais e
que toda a h um anidade é realm ente de m entalidade
sem elhante. E ste p on to d e vista é às vezes conhecido com o
fraternidade hum ana. N ao vejo por que o crédito na fra­
ternidade h um ana deva significar que não possam os dizer
que os japoneses possuem um a versão prójjria de conduta
de vida assim com o-os am ericanos a sua. As vezes, parece
que aos brandos n ão é possível fundar u m a doutrina de
boa vontade, senão sobre um m undo de povos cada um
dos quais constituindo um a cóp ia do m esm o negativo.
Porém, exigir com o condição um a tal uniform idade, com
respeito a um a outra nação, é tã o neurótico quanto exigi-
lo da própria esposa ou dos próprios filhos. O s firmes
com penetram -se de que essas diferenças devem existir.
R espeitam -nas. Sua finalid ade é um m u n do assegurado
para as diferenças, onde os Estados U n idos possam ser
inteiram ente am ericanos sem am eaçar a paz do m undo, a
França possa ser a França e o Japão possa ser o Japão
nessas m esm as condições. Impedir o am adurecim ento de
quaisquer dessas atitudes com relação à vida, através de
interferência externa, parece injustificado a qualquer
estudioso que não esteja convencido de que as diferenças
tenham necessariam ente de ser um a espada de D âm ocles
pendendo sobre o m undo. N ão precisa tam pou co temer
que adotando um a tal p osição esteja contribuindo para
congelar o m undo no s t a t u s q u o . E stim ular as diferenças
culturais n ão produziria um m undo estático. A Inglaterra
não perdeu sua anglicidade devido ao Período de Eliza-
beth ter sido sucedido pelo Período d a R ain ha A n a e a Era
V itoriana. Justam ente pelo fato de os ingleses tanto

20
procurarem ser eles mesmos é que diferentes padrões e di­
ferentes estados de ânim o nacionais puderam se afirm ar
em diferentes gerações.
O estudo sistemático de diferenças nacionais exige
um a certa generosidade como tam b ém u nia certã firm eãà,
O estudo de religiões com paradas somente floresceu
quando os homens estiveram tão seguros de suas con­
vicções, a ponto de se m ostrarem excepcionalmente
generosos. Poderiam ser jesuítas, sábios árabes ou infiéis,
mas nunca fanáticos. O estudo de culturas com paradas
não pode igualmente florescer quando os homens se
mostram tão defensivos quanto ao seu modo de vida, a
ponto de que este lhes pareça ser por definição a única
solução no mundo. Tais homens jam ais conhecerão o
acréscimo de am or pela própria cultura advindo do
conhecimento de outros modos de vida. Privam-se de um a
experiência agradável e enriquecedora. Sendo tão d e­
fensivos, não têm outra alternativa senão exigir que outras
nações adotem suas próprias soluções particulares. Como
americanos, impõem nossos princípiog favoritos a todas as
nações. E as outras nações tanto podem adotar nossos
modos de vida exigidos, quanto poderíam os aprender a
fazer nossos cálculos na unidade 12, ao invés de 10, ou,
apoiarmo-nos só num pé, como certos nativos d a África
Oriental.
Este livro diz respeito, pois, aos hábitos esperados e
tidos como consagrados no Japão. Diz respeito a situações
em que todo japonês pode contar com cortesia e a si­
tuações em que n io pode, tra ta de quando sente ver­
gonha, quando sente em baraço, procura observar o que
ele exige de si próprio. A autoridade ideal p ara qualquer
afirmativa deste livro seria o proverbial homem d a rua.
x , Seria um qualquer. Isto n io significa que este um
qualquer teria sido colocado pessoalmente em cada
^circunstância particular. Não significa tam bém que
qualquer um reconheceria ser assim sob tais condições, 0 _
objetivo de um estudo como este é descrever atitudes pro­
fundam ente im pregnadas de pensam ento e conduta.
Mesmo não o atingindo, este foi, todavia, o seu ideal.
Num estu d a desse tipo, alcança-se rapidam ente o
ponto onde o testem unho de grande núm ero de in­
form antes adicionais não mais proporciona validação. A
questão de quem se curva p a ra quem e quando não

21
necessita de um estudo estatístico de todo o Japão; as
circunstâncias aprovadas e costum eiras podem ser
assinaladas quasé que por qualquer um e após um as
poucas confirmações não é necessário obter a m esm a
informação de um m ilhão de japoneses.
| O estudioso que está tentando desvendar os enfoques
sobre os quais o Japão ergue o seu m odo de vida tem um a
tarefa bem mais difícil do que a validação estatística, A
grande exigência que lhe é feita consiste em relatar como
essas práticas e julgam entos aceitos tornam -se as lentes
através das quais o japonês contem pla a existência. Tem
de expor a m aneira como os seus enfoques afetam a
perspectiva através d a qual vêem a vida. Tem de tentar
tornar isto inteligível a americanos que vêem a existência
sob um prism a m uito diferente. Nesta tarefa de análise, a
autoridade requisitada não será necessariam ente T anaka
San, o japonês “ qualquer” . Isto porque T anaka San não
■ ""explicita seus enfoques, e as interpretações escritas para
os americanos lhe parecerão, sem dúvida, excessivamente
alongadas.^
/ Os estudos americanos de sociedades não têm sido
amiúde elaborados dé m aneira a estudar as premissas so­
bre as quais se construíram as culturas civilizadas. A
m aioria dos estudos pressupõe que tais premissas sejam
evidentes por si mesmas. I Sociólogos e psicólogos
preocupam-se com a “ dissem inação” d a opinião e da
conduta, usando um a técnica básica, estatisticam ente
concebida. Subm etem à análise estatística grande q u an ti­
dade de m aterial censitário, grande núm ero de respostas a
questionários ou a perguntas de entrevistadores, medições
psicólogicas e semelhantes, procurando inferir a in­
dependência ou interdependência de certos fatores.l No
campo da opinião pública, a valiosa técnica de pesquisar
o país, utilizando um a am ostra cientificam ente seleciona­
da da população, tem sido altam ente aperfeiçoada nos
Estados Unidos. É possível descobrir quantas pessoas
apóiam ou se opõem a determ inado candidato a cargo
público ou a determ inada política. I Os partidários e os
adversários podem ser classificados como rurais ou u r­
banos, de rendim entos baixos ou elevados, republicanos
ou dem ocratas. Num país com sufrágio universal, onde as
leis são realmente redigidas e estabelecidas pelos re­
presentantes do povo, tais dados têm im portância prática.

22
| O s am ericanos são capazes d e pesquisar am ericanos
e interpretar os dados, graças a u m a m edid a prévia tão
óbvia que ninguém ch ega a m encioná-la: con h ecem a
conduta de vida nos E stados U n id os e tom am -na por
baseAOs resultados da pesq uisa dizem m ais, a respeito do
que já sab em os.(A o procurar com preender outro país, é
essencial o estudo qualitativo sistem ático dos hábitos e
convicções do seu povo, para que um a p esq uisa possa
realm ente apresentar contribuições. M ediante cuidadosa
am ostragem , um a pesquisa p ode revelar quantos são a fa ­
vor ou contra o govem o.i M as que nos revelará isto a
respeito deles, a m enos que saibam os quais sejam suas
idéias a respeito do E stado? Som ente assim podem os sa ­
ber o que disputam as facções, nas ruas ou no Congresso.
As convicções de u m a nação com relação ao governo são
de im portância m uito m ais geral e perm anente do que as
cifras da força partidária. N os E stados U n id os, o G o­
verno, para republicanos e dem ocratas, é quase um mal
necessário, lim itando a liberdade individual; o em prego
público igualm ente, exceto talvez em tem p o de guerra,
pois não oferece a um h om em a situ ação alcançada num
outro posto equivalente, em um a em presa privada. Esta
versão do E stado está bem longe da japonesa, e m esm o da
de m uitos países eu ro p eu s.\0 que precisam os saber antes
de tudo, sem dúvida, é a sua versão. O seu p onto de vista
está corporificado em seus costum es, em seus com entários
acerca de hom ens vitoriosos, em seus m itos a respeito da
sua história nacional, em seus discursos nas festividades
nacionais e pode, d esta form a, ser estudado através dessas
m anifestações indiretas. E xige, porém , um estudo sis­
tem ático. I
A s convicções básicas que cada nação tem sobre a vi­
da, assim com o as soluções que ela aprovou, podem ser
estudadas com tan ta atenção e particularidade quanto a
que atribuím os à descoberta de qual proporção da po­
pulação votará sim e não num a eleição. O Japão era um
país cujos enfoques fundam entais bem m ereciam ser
explorados. (Cheguei à conclusão de que, um a vez tendo
eu verificado on de m eus enfoques ocidentais não se
enquadravam na sua visão da existência, obtendo assim
algum a idéia das categorias e sím bolos por eles utilizados,
m uitas contradições que os ocidentais acostum aram -se a
ver na conduta japonesa deixaram de ser contradições.
C om ecei a ver com o os próprios japoneses divisavam

23
certas oscilações violentas de conduta, enquanto partes
integrantes de um sistem a cpnsistente em si m esm o. P osso
tentar mostrar o porquê. A m edid a que eu trabalhava
com eles, com eçavam a usar frases e idéias estranhas que
revelaram possuir grandes im plicações e estarem repletas
de em oções seculares. A virtude e o vício, segundo os
com preende o O cidente, haviam passado por um a
transform ação. O sistem a era singular. N ão era budism o,
nem con fucionism o. Era jap on ês — a força e a fraqueza
do Japão. \

24
2. OS JA PO N ESES NA G U E R R A

/E m toda tradição cultural existem ortodoxias da


guerra, algum as das quais com partilhadas por todos os
países ocidentais, não im portando quais as diferenças
específicas.1Certos alardes, con clam an d o para um esforço
total de guerra, certas form as de reestím ulo, em caso de
derrotas locais, certas regularidades na proporção entre
baixas e rendições e certas regras de conduta com relação
a prisioneiros de guerra são previsíveis nas guerras entre
nações ocidentais apenas por terem estas em com um um a
grande tradição cultural, que abrange até m esm o as
operações militares.
Todas as maneiras pelas quais os japoneses afas­
tavam -se d as convençõe'- ocidentais de guerra constituíam

25
dados relativos à sua visão da existência e às suas co n ­
vicções do dever integral do hom em . D entro dos pro-
pósitos de um estudo sistem ático da cultura e con d uta ja ­
ponesas , não im porta se os seus desvios de nossas or-
todoxias seriam ou nao cruciais em sentido m ilitar^
qualquer um deles poderia ser im portan te por su scitar
in dagações acerca do caráter d os jap on eses, cujas res^_
postas necessitávam os. '
I As próprias prem issas u tilizadas pelo Japão para
justificar sua participação na guerra eram opostas às da
A m érica. E sta d efin ia a situação internacional de
m aneira diversa. IA A m érica fez guerra às agressões do
Eixo. O Japão, a Itália e a A lem anha tinham consum ado
um a afronta à paz internacional com os seus atos de
conquista. Q uer tom ando o poder em M anchukuo, na
E tiópia ou na P olônia, o E ixo som ente com provou ter
p a r tic ip a d o d e u m e m p r e e n d im e n to r e p r o v á v e l,
oprim indo povos m ais fracos. Pecara contra o código
internacional do “vive e deixa viver” ou pelo m enos contra
o d as “ portas abertas” à livre em presa. O Japão via a
causa da guerra sob ioutra*luz.i E nquanto cada nação ti­
vesse soberania absoluta, haveria anarquia no mundo; era
necessário que ele lutasse a fim de se estabelecer um a
hierarquia, que, obviam ente, a ele se subordinasse, uma
vez que era o único representante de u m a n ação ver­
dadeiram ente hierárquica de cim a a baixo, co m ­
preendendo portanto a necessidade de ocupar “ o seu d e ­
vido lugar” . T endo alcançado unificação e paz em seu
território, esm agado o banditism o, construído estradas,
consolidado o potencial elétrico e indústria de aço, além
de ter educado 99,5% da sua geração em ascensão nas
escolas públicas, segundo as cifras oficiais, teria, pois, o
dever, de acordo com as prem issas japonesas de
hierarquia, de despertar sua retrógrada irm ã, a China.
Sendo d a m esm a raça d o Poderoso Oriente, deveria
elim inar daquela parte do m undo os E stados U n id os e em
seguida a Inglaterra e a R ússia, assum indo, então, “o seu
devido lugar” . T odas as nações seriam um m undo só,
firm ados num a hierarquia internacional. No próxim o ca ­
pítulo exam inarem os o que significou para a cultura ja ­
ponesa este alto valor atribuído à hierarquia. Era bem
típico do Japão criar tal fantasia. In felizm ente para ele, os
países que ocupava não o enxergavam sob essa m esm a
luz. Entretanto, nem m esm o a derrota extraiu-lhe o re-

26
púdio moral de seus ideais d o Poderoso O riente e m esm o
os seus prisioneiros de guerra m enos jingoístas nun ca esti­
veram a ponto de pôr em dúvida os propósitos do Japão
quanto ao continente e sudoeste d o Pacífico. Por m uito e
muito tem po, o Japão conservará necessariam ente al­
gum as de suas atitudes inatas, das quais um a das mais
im portantes é a sua fé e confiança na hierarquia. Isto
contraria a natureza d os am ericanos voltada para a
igualdade, contudo, é am plam ente necessário que
com preendam os o que significava para o Japão a
hierarquia e que proveitos aprendera a associar-lhe.
D a m esm a form a, ele depositava suas esperanças de
vitória em base diversa da prevalecente para os Estados
U nidos. H averia de vencer, proclamava, seria um a vitória
do espírito sobre a matéria. A A m érica era grande, seus
arm am entos eram superiores, mas o que importava?
T udo isso, alegavam , fora previsto e descontado. “Se ti­
véssem os medo de cifras” , liam os japoneses no seu
grande jornal, o M a i n i c h i S h i m b u n , “ a guerra n ã o teria
principiado. O s grandes recursos do inim igo não foram
criados por esta guerra” .
M esm o quando estava vencendo, os seus estadistas
civis, o seu A lto C om ando e os seus soldados repetiam que
aquilo não se tratava de uma com petição entre ar­
m am entos; era a oposição da nossa fé nas coisas contra a
fé dos outros no espírito. Q uando vencíam os, repetiam
sem cessar que num a tal luta o poder m aterial deveria
necessariam ente fracassar. E ste dogm a tornou-se, sem
dúvida, um alibi conveniente na época das derrotas de
Saipan e Iw o Jima, mas não havia sido preparado com tal
finalidade. V aleu com o um toque de clarim durante os
m eses das vitórias japonesas e constituíra um s lo g a n
aceito m uito antes de Pearl Harbor. N os anos 30, o
G eneral Araki, m ilitarista fanático e certa época M inistro
da Guerra, escreveu num p anfleto dirigido “ A toda a raça
japonesa” que “ a verdadeira m issão” do Japão fora
“ expandir e glorificar a via im perial até o fim d os Q uatro
M ares. Insuficiência de força n io constitui preocupação
para nós. Por que nos preocuparm os com o que é m a­
terial?”
É claro que, com o qualquer nação que se prepara
para a guerra, eles se mostravam preocupados. Por toda a
década de 30, a proporção de sua renda nacional d e ­
dicada aos arm am entos cresceu astronom icam ente. Na

27
ép oca do seu ataque a Pearl Harbor, quase a m etade da
renda nacional bruta destinava-se a fin alid ad es m ilitares
e navais, e som ente 17% da desp esa total do governo eram
disponíveis para financiar o que se relacionasse com a
adm inistração civil. A diferença entre o Japão e as nações
ocidentais não consistia n a d espreocupação jap on esa so­
bre o arm am ento material. Navios e arm as, no entanto,
constituíam sim plesm ente a m an ifestação exterior do
imortal E spírito Japonês. Eram sím b olos, tanto quanto a
espada d os sam urais fora o sím bolo da sua virtude.
T ão coerente era o Japão em aproveitar-se de
recursos n ão m ateriais, quan to os E stad os U n idos em d e ­
votar-se à grandeza. O Japão tinha de em penhar-se num a
cam panha de produção total, do m esm o m odo que os
E stad os U n idos, só que baseado em prem issas próprias. O
espírito, diziam os japoneses, era tu do, era eterno; as
coisas m ateriais eram necessárias, b em en tendido, mas
secundárias e perdiam -se p elo cam inho. “ H á lim ites
para os fecursos m ateriais” , exclam ava o rádio japonês:
“ é evidente que as coisas m ateriais não podem durar mil
anos” . E esta confiança no espírito era observada li­
teralm ente na rotina beligerante; seus catecism os de
guerra utilizavam o s l o g a n tradicional, cuja criação não
visou à operacionalidade nesta guerra — “contrapor o
nosso treinam ento ao núm ero d eles, nossa carne ao seu
aço” . O s m anuais de guerra com eçavam com um a linha
em negrito: “ Leia isto e a guerra está gan h a” . Seus pilotos
que guiavam seus m inúsculos aviões para um choque
suicida contra nossas belonaves ofereciam tem a in es­
gotável para a superioridade d o espiritual sobre o m a­
terial. E ra d enom inados o Corpo dos K am ikazes, pois
k a m i k a z e era o vento divino que salvara o Japão da in ­
vasão de G êngis Cã, no século X III, dispersando e
derrubando os seus transportes.
A té m esm o em situações civis, as autoridades ja ­
ponesas encaravam literalm ente a predom inância do
espírito sobre as circunstâncias m ateriais. E stava o povo
fatigado com doze horas de trabalho nas fábricas e por
b om bardeios a noite inteira? “ Q uanto m ais abatidos os
nossos corpos, m ais alto pairam a nossa vontade e o nosso
ânim o sobre eles.” “Q u an to m ais can sad os estam os, m ais
esplêndido é o treinam ento.” O povo estava sentindo frio
nos abrigos antiaéreos, durante o inverno? A Sociedade

28
de C ultura Física D ai Nippon prescrevia exercícios
calistênicos que seriam não apenas substitutos das ins­
talações de aquecim ento e acomodações p ara dormir,
como tam bém , m elhor ainda, tom ariam lugar do
alimento, não mais disponível, p a ra m anter o vigor
normal das pessoas. “Não h á dúvida, dizem alguns, que
com a atual escassez de alim entos não podemos pensar
em exercícios calistênicos. N ada disso! Q uanto m aior a
escassez de alimentos, tan to mais devemos aum entar
nossa força física por outros meios.” Isto é, devemos
aum entar nossa força física despendendo-a ainda mais. A
idéia am ericana de energia corporal que sem pre leva em
conta quanta força se tem p a ra despender, com oito ou
cinco horas de sono na noite anterior, fazendo re­
gularm ente as refeições, sentindo ou não frio, é aqui posta
em confronto com um cálculo que não se baseia na a r­
mazenagem de energia, o que seria m aterialista.
D urante a guerra, as transm issões japonesas foram
ainda mais longe. Em meio à batalha, o espírito chegava
mesmo a sobrepujar a própria morte. U m heróico piloto e
a sua prodigiosa vitória sobre a m orte foram focalizados
num program a:

T erm in ad o s os co m b ates aéreos, os aviões jap o n eses reg ressara m à


sua b a se em p eq u en a s form ações de três o u q u a tro . N um dos prim eiros
aparelhos, achava-se u m cap itão . A peando-se, ex am in o u o c éu p o r m eio
de binóculo. E n q u a n to seus hom en s re to rn av am , ele contava.
P arecia b a sta n te pálido, po rém , m u ito firm e. Após o regresso do ú ltim o
avião, d irigiu-se ao Q u a rtel G e n era l, on d e 'fe z u m re la tó rio e n ­
c am in h an d o -o a seguir ao O ficial C o m an d a n te. Logo em seguida,
p o rém , to m b o u de sú b ito ao solo. O s oficiais no local aco rre ram -lh e em
auxilio, m as ele se ach av a m o rto . E x am in an d o -lh e o corpo, d escobriu-se
que já estava frio, com u m ferim en to à b a la , de co n seq ü ên cias fatais. É
impossível en co n trar-se frio o c o rp o de u m a pessoa re ce n te m en te m o rta.
E n tre tan to , o corpo d o c ap itão m o rto estava frio com o gelo. H á m u ito
que ele estava m o rto , fo ra o seu esp írito q u e fizera o re la tó rio . U m fa to
tã o m iraculoso deve-se sem dúv id a ao rigo ro so senso de re sp o n sab ilid ad e
do cap itão m orto,

P ara os americanos, é claro, trata-se de um a história


inadmissível, no entanto, os japoneses instruídos não se
riram de tal transm issão. Estavam certos de que não seria
considerada um a fantasia pelos ouvintes no Japão. Em
prim eiro lugar, assinalaram que o locutor verazm ente h a ­
via declarado que a proeza do capitão era “ m iraculosa” .
E por que não? A alm a podia ser treinada e obviamente o

29
capitão era um m estre consum ado da autodisciplina. Se
“ um espírito apaziguado podia d u rar mil anos” , con­
forme o Japão inteiro sabia, não haveria então de per
m anecer por algum as horas no corpo de um capitão da
força aérea, que fizera d a “ responsabilidade” a lei central
de toda a sua existência? Os japoneses acreditavam n a
possibilidade de se utilizar disciplinas técnicas a fim de
perm itir a um homem alcançar a suprem acia do espírito.
O capitão aprendera e beneficiara-se.
Como americanos, podemos, sem dúvida, arrolar tais
excessos japoneses como alibi de um a pobre nação ou
puerilidades de um a nação iludida. Se o fizéssemos, no
entanto, estaríamos ainda menos qualificados a tra tar
com eles na guerra ou na paz. Os japoneses tiveram seus
princípios induzidos através de certos tabus e recusas,
certos métodos de treinam ento e disciplinas que não se
constituíam em m eras singularidades isoladas. Somente
na m edida em que os identificarmos, é que poderemos
perceber o que dizem na derrota, quando reconhecem que
o espírito não foi suficiente e que defender posições “ com
lanças de b am bu” foi um a fantasia. Torna-se ainda mais
im portante p ara nós que sejamos capazes de apreciar o
reconhecim ento por parte deles de que o seu espírito foi
insuficiente, ao com petir nos campos de batalha e nas fá ­
bricas com o espírito do povo am ericano. Conforme
declararam após a derrota: d urante a guerra, “ en­
gajaram -se na subjetividade” .
A m aneira pela qual os japoneses referiram a toda
sorte de coisas durante a guerra, não apenas sobre a
necessidade de hierarquia e a suprem acia do espírito, foi
elucidativa para um estudioso de culturas com paradas.
Referiam-se constantem ente a segurança e moral como
sendo apenas uma questão de estar prevenido. Não
importava qual fosse a catástrofe, bom bardeio civil,
derrota em Saipan ou fracasso em defender as Filipinas, o
refrão japonês repetia ao seu povo que isto já era sabido
de antem ão e que portanto não havia por que se
preocupar. O rádio chegava aos maiores extremos,
contando obviamente com a renovação de confiança que
proporcionava ao povo japonês ao ser informado de que
viviam ainda num m undo perfeitam ente conhecido. “ A
ocupação am ericana de Kiska coloca o Japão dentro do
raio de avão dos bom bardeiros americanos. Estamos,

30
porém, a par desta contingência e efetuam os os p re ­
parativos necessários.” “ O inimigo desencadeará sem
dúvida contra nós um a ofensiva, através de operações
combinadas de terra, m ar e ar, mas isto está previsto em
nossos planos.” Os prisioneiros de guerra, até mesmo
aqueles que ansiavam por um a próxim a derrota do Japão
num a guerra sem esperanças, estavam certos de que os
bombardeios não enfraqueceriam os japoneses na frente
doméstica “ porque eles estavam prevenidos” . Q uando os
americanos começaram a bom bardear as cidades ja ­
ponesas, o Vice-Presidente d a Associação de Construção
Aérea declarou pelo rádio: “ Os aviões inimigos final­
mente estão sobre nossas cabeças. Entretanto, nós que
estamos envolvidos na indústria de produção aeronáutica
e que sempre esperamos que isto acontecesse, ultimamos
completos preparativos p ara enfrentar esta situação.
Portanto, não há por que se preocupar” . Somente com a
garantia de que tudo estava previsto, tudo estava plane­
jado. é que os japoneses poderiam persistir na alegação
que lhes era tão necessária de que tudo fora produto da
determ inação de sua vontade, ninguém predom inara so-
bre eles. “ Nao devemos pensar que tenham os sido passi­
vamente atacados, mas sim que ativam ente atraím os o
inimigo para nós.” “ Inimigo, venha se quiser. Ao invés de
dizer O que tinha que vir finalm ente veio’, afirmarem os
antes ‘Veio aquilo por que esperávamos. Por isso, estamos
satisfeitos’.” O M inistro d a M arinha citou no
Parlam ento os ensinam entos do grande guerreiro dos
anos 70 do século passado, Takam ori Saigo: “ Existem
duas espécies de oportunidades: as que se nos deparam
por acaso e as que criamos. Em época de grandes d i­
ficuldades, não devemos deixar de criar a nossa opor­
tunidade” . E o G eneral Yam ashito, quando as tropas
americanas entraram em M anila, “ observou com um
largo sorriso” , segundo informes do rádio, “ que agora o
inimigo está em nosso seio . . .” “ A rápida queda de
Manila, logo após os desem barques inimigos na baía de
Lingayen, somente foi possível como resultado das táticas
do General Yam ashito e em concordância com os seus
planos. As operações do General Yam ashito realizam, no
momento, progressos contínuos.” Em outras palavras,
nada é tão bem sucedido quanto a derrota.
Os americanos avançaram tan to na direção oposta
quanto os japoneses na sua. Os americanos lançaram -se

31
no esforço de guerra p o r q u e esta luta nos foi im posta.
T ínham os sido atacados, portanto o inim igo que se cuide.
N enhum porta-voz, ao pretender estim ular o povo
am ericano, jam ais d isse de Pearl H arbor ou d e B ataan,
“Faziam parte d os nossos p lan os” . A o invés, nossos
oficiais declararam : “ O inim igo assim quis. Haveremos
de m ostrar-lhes o quan to p odem os” . O s am ericanos
engrenam toda a sua vida para um m u n do continuam ente
desafiador — e estão preparados para enfrentar o desafio.
O s estím ulos japoneses baseiam -se m ais num m odo d e vi­
da planejado e registrado de antem ão, onde a maior
am eaça provém d o im previsto.
O utro tem a constante na m aneira jap on esa de
conduzir a guerra m õstra-sé bastante revelador acerca da
vida japonesa. Falavam con tin uam en te de com o “os olhos
do m undo estavam sobre eles” . Portanto cabia-lhes exibir
com pletam ente o espírito do Japão. O s am ericanos
desem barcaram em G uadalcanal, e as ordens japonesas
aos soldados foram de que agora eles se encontravam sob
observação direta “ do m u n do” e deveriam mostrar qual
era o seu estofo. O s marujos jap on eses eram avisados de
que, no caso de serem torpedeados e receberem ordem de
abandonar o navio, deveriam ocupar os barcos salva-vidas
com o m áxim o de com postura, caso contrário “ o m undo
rirá de vocês. Os am ericanos os film arão e serão vistos em
New Y ork” . V alia m uito o que d essem de si para o
m undo. E a sua preocupação a tal respeito igualm ente
encontrava-se profu ndam ente em bu tid a na cultura ja ­
ponesa.
A m ais fam osa pergunta acerca das atitudes ja ­
ponesas referia-se a Sua M ajestade Im perial, o Im ­
perador. Q ual era o d om ínio que o Im perador tinha sobre
os seus súditos? A lgum as autoridades am ericanas
assinalavam que durante todos os sete séculos feud ais do
Japão o Im perador fora um a som bria figura de proa. Ca­
da hom em devia sua im ediata lealdade ao seu senhor, o
d a i m i o e, além d esde, ao G eneralíssim o M ilitar, o X ó­
gum. A fidelidade ao Im perador n ão chegava a constituir
um assunto. Era m antido segregado n u m a corte isolada,
cujas cerim ônias e atividades os regulam entos d o X ógum
rigorosam ente lim itavam . Era considerado traição até
m esm o para um grande senhor feudal prestar suas
hom enagens ao Imperador, e para o povo do Japão ele
m al existia. Som ente através de sua história é que o Japão

32
poderia ser entendido, insistiam esses analistas am e­
ricanos; como um Im perador trazido d a obscuridade,
conforme estava na m em ória de gente ainda viva, haveria
de ser o verdadeiro foco de um a nação conservadora como
o Japão? Os publicistas japoneses que sempre rea­
firm aram o imorredouro poder do Im perador sobre cs
seus súditos estavam se excedendo, alegavam eles, e a sua
insistência apenas comprovava a fragilidade do seu caso,
Não havia razão, portanto, p a ra que a política am ericana
durante a guerra recorresse às luvas de pelica no trato
com o Im perador. Pelo contrário, havia todos os motivos
para que dirigíssemos nossos mais fortes ataques contra
esse maligno conceito de Fuehrer que o Japão recen­
tem ente m aquinara. Isso constituía o próprio centro de
sua m oderna religião nacionalista Shinto e, se sola­
pássemos e desafiássemos a santidade do Im perador, toda
a estrutura do Japão inimigo tom baria em ruínas.
M uitos americanos competentes que conheciam o Ja ­
pão e que viram os informes das linhas de frente e de
fontes japonesas eram de opinião oposta. Os que viveram
no Japã& sabiam bem que nada feria mais os japoneses e
lhes fustigava a moral do que qualquer palavra d e­
preciativa contra o lm perador ou qualquer ataque direto
a ele, Nao acreditavam que, atacando o Im perador, aos
olhos dos japoneses visássemos ao militarismo. Haviam
observado que a reverência p ara com o Im perador fora
igualmente forte naqueles anos após a Prim eira G uerra
M undial, quando “ de-m ok-ra-sie” era a grande divisa e o
militarismo estava tão desacreditado que os homens do
exército punham -se prudentem ente à paisana antes de
saírem pelas ruas de Tóquio. A reverência dos japoneses
pelo seu chefe imperial não podia ser com parada,
insistiam os habitantes mais antigos, com a veneração do
gênero Heil Hitler, que constituía um barôm etro dos
destinos do partido nazista e inseparável de todos os
males de um program a fascista.
As declarações dos prisioneiros de guerra japoneses
os corroborava. Ao contrário dos soldados ocidentais,
esses prisioneiros não haviam recebido instruções quanto
ao que dizer e o que calar em caso de captura e as suas
respostas em todos os assuntos eram surpreendentem ente
desorganizadas. O fato de não serem doutrinados devia-
se, é claro, à política de não-rendição do Japão. Isto só foi
remediado nos últimos meses de guerra, e mesmo assim

33.
som ente em determ inados exércitos ou unidades locais.
A s declarações d os prisioneiros m ereciam atenção pois re­
presentavam um corte transversal d a op in ião no exército
japonês. N ão se tratava de soldados cujo moral baixo os
levara à rendição — e que portanto poderiam ser atípicos.
Q uase tod os achavam -se feridos e incapazes d e resistir
quando capturados.
O s prisioneiros de guerra jap on eses m ostraram -se
bastante intransigentes e atribuíam seu m ilitarism o
extrem o ao Im perador, estavam “cum prindo a sua vonta­
d e” , “ despreocupando sua m ente” , ' “ m orrendo por or­
dem do Im perador” . “ O Im perador conduziu o povo à
guerra e m eu dever era ob edecer.” M as aqueles que
condenavam a presente guerra e os futuros planos ja ­
poneses de conquista im putavam com regularidade suas
opiniões pacíficas com o sendo as do próprio Imperador.
Para todos ele era tudo. Os fastos da guerra referiam -se a
ele com o “ sua p acífica m ajestade” , frisando que “sem pre
fora liberal e contrário à guerra” . “ E le havia sido e n ­
ganado por Tojo” . “ D urante o Incidente da M anchúria,
ele dem onstrou ser contrário aos m ilitares.” “A guerra te-
Ve início sem o conhecim ento ou a perm issão do Im ­
perador. O Im perador n ão gosta de guerra e não teria
perm itido que o seu povo nela fosse arrastado. E le não sa ­
be o quanto seus soldados são m altratad os.” T ais
declarações não se assem elhavam às de prisioneiros de
guerra alem ães que, conquanto alegassem ter sido Hitler
traído por seus generais, ou por seu alto com ando, atri­
buíam -lh e no entanto o papel de m áxim o instigador da
guerra e seus preparativos. O prisioneiro de guerra ja ­
ponês explicitam ente separava a F am ília Im perial do
m ilitarism o e das agressivas políticas de guerra.
E ntretanto, para eles o Im perador era inseparável do
Japão. “ U m Japão sem o Im perador não é Jap ão.” “O Ja­
pão sem o Imperador não pode ser im agin ad o.” ‘^O
Im perador japonês é o sím b olo do povo japonês, o centro
de sua vida religiosa. É um objeto su per-religioso." Nem
tam pouco seria culpado pela derrota, se o Japão perdesse
a guerra. “ O povo não considera o Im perador responsável
p ela guerra.” “ Em caso de derrota, o m inistério e os
líderes m ilitares é que levariam a culpa, e n ão o Im ­
perador.” “ M esm o se o Japão perdesse a guerra, d ez entre
dez japoneses ainda reverenciariam o Im perador.”

34
Toda essa unanim idade em colocar o Im perador
acima de qualquer crítica parecia postiça aos americanos,
acostumados a não poupar hom em algum de um exame
trio e de um a crítica. M as não havia dúvida de que se tra ­
tava da voz do Japão, mesmo na derrota. Os mais ex­
perim entados no interrogatório de prisioneiros deram
como veredicto ser desnecessário anotar em cada folha de
entrevista: “ Recusa-se a falar contra o Im perador” ; todos
os prisioneiros se recusavam, até mesmo os que coo­
peravam com os aliados e faziam transmissões p ara nós,
dirigidas aos soldados japoneses. D a reunião de todas as
entrevistas de prisioneiros de guerra, apenas três eram,
ainda assim, levemente contrárias ao Im perador, lim i­
tando-se a dizer: “ Seria um erro deixar o Im perador no
trono” . Um a outra afirmava que o Im perador era “ um
fraco, n io passando de um fantoche” . E a terceira não foi
além da suposição de que o Im perador poderia abdicar
em favor de seu filho e que se a m onarquia fosse abolida,
as jovens japonesas esperavam conseguir um a liberdade
que até então invejavam nas m ulheres da América.
Os com andantes japoneses, portanto, apelavam p ara
a quase unânim e veneração japonesa, quando distribuíam
aos soldados cigarros “ oferecidos pelo Im perador" ou
quando os levavam, no aniversário deste, a se curvarem
três vezes na direção do Oriente, gritando “ B anzai” ; o
mesmo acontecia quando cantavam juntam ente com to ­
dos os soldados, pela m anha e à noite, “ em bora a unidade
estivesse sob bom bardeio ininterrupto” , as “palavras sa­
gradas” que o próprio Im perador doara às forças ar­
madas no Edito aos Soldados e M arinheiros, enquanto “ o
som do cântico ecoava através da floresta” . Os m ili­
taristas utilizavam de todas as m aneiras o recurso da
lealdade ao Im perador. Exortavam seus homens a “ sa­
tisfazer os desejos de Sua M ajestade Im perial” , a “dissi­
par todas as ansiedades do seu Im perador” , a
‘dem onstrar respeito por Sua benevolência Im perial” , a
“ m orrer pelo Im perador” . Mas esta obediência à sua
vontade podia ser u m a faca de dois gumes. Como diziam
muitos prisioneiros, os japoneses “ lutarão sem hesitar, até
mesmo com varas de bam bu apenas, se o Im perador
assim ordenar. Haveriam de se deter com igual presteza,
se ele o m andasse” ; “ o Japão jogaria fora as armas
am anhã, se o Im perador emitisse tal ordem ” ; “ Até
mesmo o exército de Kwantung, na M anchúria” — o mais

35
belicoso e jingoísta — “ deporia suas arm as” ; “ somente
suas palavras podem fazer com que o povo japonês aceite
a derrota e se conforme em viver p a ra a reconstrução” .
Esta lealdade incondicional e irrestrita ao Im perador
defrontava-se abertam ente com a crítica de todas as
outras pessoas e grupos. Criticava-se o governo e as
autoridades m ilitares, fosse nos jornais e revistas ja ­
poneses ou nas declarações de prisioneiros de guerra. Os
prisioneiros de guerra não se inibiam em acusar os seus
com andantes locais, especialmente os que não haviam
partilhado os perigos e sofrimentos de seus soldados. Cri­
ticavam especialmente os que haviam sido retirados por
avião, deixando atrás de si seus soldados combatendo.
Geralm ente elogiavam alguns oficiais e criticavam outros
am argam ente; não pareciam prescindir do intuito de
discrim inar o bom do m au, nas coisas japonesas. Até
mesmo nas ilhas do país os jornais e as revistas criticavam
“o governo” . Pediam mais liderança e m aior coordenação
de esforço e observavam não estar obtendo do governo o
que era necessário. Chegavam a criticar as restrições à li­
berdade de palavra. Um relatório sobre um a reunião de
editores, antigos membros do Parlam ento, e diretores do
partido totalitário do Japão, a Associação de Assistência
ao Governo Im perial, publicado num jornal de Tóquio,
em julho de 1944, constitui um bom exemplo. Disse um
dos oradores: “Creio que h á várias m aneiras de despertar
o povo japonês, o mais im portante, porém, é a liberdade
de palavra. Nos últimos anos, o povo não tem podido dizer
francam ente o que pensa. Temem ser incriminados se
falarem sobre determ inados assuntos. H esitaram , ten ­
taram salvar as aparências, o fato é que a opinião pública
realm ente intimidou-se. Jam ais conseguiremos desen­
volver totalm ente o poder do povo desta form a” . Outro
orador discorreu sobre o mesmo tem a: “ Venho or­
ganizando debates quase todas as noites com o povo dos
distritos eleitorais e interroguei-os acerca de m uitas
coisas, mas todos tiveram medo de falar. A liberdade de
palavra lhes tem sido negada. Certam ente, esse não é um
modo adequado de estim ular sua vontade de lutar. O po­
vo está tão fortemente cerceado pela cham ada Lei Penal
Especial de G uerra e pela Lei de Segurança Nacional que
se tornou tão am edrontado como a gente do período
feudal. Por conseguinte, o valor combativo que se poderia
ter desenvolvido perm anece atualm ente atrofiado” .

36
Mesmo durante a guerra, os japoneses criticavam o
governo, o Alto Comando e os seus superiores imediatos.
Não reconheciam de form a incondicional as virtudes de
toda a hierarquia. Mas o Im perador era isentado. Como
poderia ser assim, já que a sua preem inência era tão,
recente? Que nuança do caráter japonês possibilitou-lhe o
alcance de um a posição tão sacrossanta? Estariam certos
os prisioneiros de guerra ao declararem que, assim como o
povo lutaria até a morte “ com lanças de bam b u ” en­
quanto ele assim o ordenasse, aceitariam eles paci­
ficamente a derrota e a ocupação se este fosse o seu
comando? Pretenderiam desorientar-nos com este contra-
senso? Ou se trataria, possivelmente, da verdade?
Todas essas questões cruciais acerca da conduta ja ­
ponesa na guerra, desde sua predisposição anti-
m aterialista às suas atitudes com relação ao Im perador,
diziam respeito tan to à p átria japonesa quanto às frentes
de batalha. Havia outras atitudes mais especificamente
relacionadas com o exército japonês. U m a destas prendia-
se à possibilidade de sacrifício de suas forças de combate.
O rádio japonês salientou bem o contraste com as atitudes
americanas, quando descreveu com acentuada in­
credulidade a condecoração naval do Alm irante George S.
McCain, com andante de um a força-tarefa ao largo de
Formosa.

A razão oficial d a co n d eco ração n ã o foi por te r o c o m a n d a n te John


S. M cCain sido c ap a z de p ô r os jap o n eses em fuga. e m b o ra não com -
p reendam os p o r que. jâ que o c o m u n icad o d e N im itz assim o re ­
velou , . , Pois bem . a razã o d a co n d eco ração d o a lm ira n te M cC ain foi
p or te r ele conseguido salvar dois navios de g u e rra am ericanos, es-
coltando-os a salvo a té a sua base. O que to rn a im p o rta n te este trech o de
inform ação ê que n ão se tr a ta de ficção e sim da v erdade . . . Não es­
tam os, p o rtan to , d iscu tin d o a v e racid ad e d o fa to de o a lm ira n te M cC ain
ter salvo dois navios, o que desejam os q u e no tem é que o salv am en to de
dois navios avariados ê rnotivo p a ra co n d eco ração nos E stados U nidos.

Os americanos emocionam-^e com toda espécie de


salvamento, com todo auxílio-prestado aos que se acham
apertados contra a parede. U m a proeza valorosa é tanto
mais heróica se salvar os “ avariados” . A bravura japonesa
repudia tal salvamento. Até mesmo os dispositivos de se­
gurança instalados nos nossos B-29 e caças mereceram a
pecha de “ covardia” . A im prensa e o rádio repisaram
continuamente o assunto. Somente havia virtude na acei­
tação de riscos m ortais; as precauções eram desprezíveis.
Esta atitude m anifestava-se tam bém no caso dos feridos e
d os pacientes da m alária. E sses soldados eram bens
avariados e os serviços m édicos disponíveis eram de
com pleta ineficiência até m esm o para um eficaz
desem penho das forças d e com bate. Com o correr do
tem po, d ificuld ades de abastecim ento de toda a espécie
agravaram esta falta d e atendim ento m édico, mas esta
ainda não era a história toda. O m enosprezo japonês pelo
m aterialism o desem penhava aí um papeí; ensinavam aos
soldados que a morte constituía um a vitória do espírito e o
nosso tipo de cuidado para com os doentes era um a in-
terfêrencia no heroísm o — com o os dispositivos de s e ­
gurança nos bom bardeiros. N a vida civil os japoneses
tam bém não estão tão habituados quan to os am ericanos a
recorrerem tan to a m édicos e cirurgiões. A tend ên cia à
com paixão pelos prejudicados, m u ito m ais que outras
medidas beneficentes, é particularm ente acentuada nos
E stados U nidos, sendo am iúde observada até m esm o por
visitantes de alguns p aíses europeus em tem po de paz.
T udo isso é, sem dúvida, estranho aos japoneses.
A contecesse o que fosse durante a guerra, o exército ja ­
ponês não dispunha de equip es de salvam ento para a
remoção dos feridos em com bate e para fornecer os
prim eiros socorros; não tinha corpo m édico na linha de
frente, na retaguarda ou m esm o h ospitais de recuperação
m ais afastados. Seu cu idad o com relação às provisões m é­
dicas era lam entável. E m determ inadas em ergências, os
h o s p ita liz a d o s era m s u m a r ia m e n t e m o r to s. E s ­
pecialm ente na N ova G uin é e nas Filipinas, fre­
qüentem ente os japoneses tinham de recuar de um a p osi­
ção onde havia um hospital. N ão existia um projeto de re­
tirada dos doentes e feridos, en q uan to houvesse op or­
tunidade; som ente se fazia algum a coisa quando efe­
tivam ente se realizasse um a “retirada planejada” do b a­
talhão ou uma ocupação inim iga. N essas circunstâncias, o
oficial m édico de serviço costum ava elim inar os in ­
ternados do hospital antes de retirar-se, ou então eles pró­
prios se suicidavam com granadas de mão.
Se esta atitude dos japoneses com relação a bens
avariados era fundam ental no tratam ento de seus com pa­
triotas, revelava-se igualm ente im portante no seu tra­
tam ento dos prisioneiros de guerra am ericanos. Segundo

38
nossos critérios, os japoneses eram culpados de atroci­
dades tan to contra seus próprios hom ens, quanto contra
seus prisioneiros. O antigo chefe dos oficiais-médicos das
Filipinas, Coronel H arold W. Glattly, após seus três anos
de reclusão como prisioneiro de guerra em Formosa,
declarou que “os prisioneiros americanos recebiam
melhor tratam ento médico do que os soldados japoneses.
Os oficiais médicos aliados nos campos de prisioneiros
atendiam os seus homens, enquanto os japoneses não
dispunham de médicos. D urante certo tem po, o seu único
pessoal médico era constituído por um cabo e pos­
teriorm ente por um sargento” . Somente um a ou duas
vezes por ano é que ele viu um oficial-médico japonês.*
O m aior extremo a que poderia ser levada esta teoria
japonesa d a possibilidade de sacrifício de suas forças era a
sua política de não-rendição. Todo exército ocidental que
lutou o m elhor que pôde e encontra-se diante de pers­
pectivas desesperadas rende-se ao inimigo. Considerám-se
ainda seus contingentes dignos soldados, e m ediante
acordo internacional seus nomes são enviados aos países
de origem, para que as famílias saibam que estão vivos.
Não se tornam desacreditados como soldados, cidadãos,
ou mesmo*no seio de suas famílias. Os japoneses, porém,
definiam de m aneira diferente a situação. A honra ligava-
se à luta até a morte: N um a situação desesperada, um
soldado japonês deveria m atar-se com a sua derradeira
granada de mão, ou atacar desarm ado o inimigo, num a
avançada suicida em m asía. Não deveria, porém , render-
se. Mesmo se fosse aprisionado ferido e inconsciente,
nunca mais “poderia andar de cabeça erguida no Japão” ,
estava desonrado, “ m orto” p ara a sua antiga vida.
É óbvio que havia ordens m ilitares nesse sentido,
entretanto, pelo menos m anifestam ente, não houve
necessidade de doutrinação oficial especial na frente de
combate. O exército obedecia de tal modo a este código
que na cam panha do Norte d a B irm ânia a proporção dos
càpturados para os m ortos foi de 142 p ara 17.166, re­
presentando um a proporção de 1:120. E dos 142 em
campos de prisioneiros, com exceção de um a pequena
minoria, todos encontravam-se feridos ou inconscientes
quando capturados; somente muito poucos haviam “ca­
pitulado” sozinhos ou em grupos de dois ou três. Nos

* N oticiado no W a s h i n g t o n P o s t, de 15 de o u tu b ro d e 1945.

39
exércitos das nações ocidentais constitui quase um
truísm o não poderem as tropas suportar a m orte de um
quarto a um terço do seu contigente sem render-se; as
rendições ocorrem cerca de 4:1. E ntretanto, quando peía
prim eira vez em Hollandia rendia-se um núm ero apreciá­
vel de soldados japoneses, a proporção era de 1:5. o que
constituía um considerável aum ento com relação a 1:120
do Norte da Birmânia.
Para os japoneses, portanto, os americanos que se
haviam tornado prisioneiros de guerra estavam desonra­
dos pelo simples fato d a rendição. Constituíam “bens
danificados” , mesmo quando os ferim entos, a m alária ou
a disenteria não os haviam colocado fora da categoria de
“ hom ens completos” . M uitos am ericanos notaram como
era perigoso o riso americano no cam po de prisioneiros,
como m elindrava os guardas. Aos olhos dos japoneses,
eles haviam sofrido ignomínia, sendo penoso p ara os
mesmos que os americanos o ignorassem. Igualm ente,
m uitas das ordens que os prisioneiros americanos tinham
de obedecer eram as que tam bém haviam sido exigidas de
seus guardas japoneses por parte de seus oficiais; as
m archas forçadas e os transbordos apinhados eram
comuns p ara eles. Referem tam bém os americanos de
como as sentinelas exigiam rigorosam ente que os
prisioneiros encobrissem infrações do regulamento: o
grande crime era infringir abertam ente. Nos campos em
que os prisioneiros trabalhavam d urante o dia fora, em
estradas ou instalações, o regulam ento de que não po­
deriam trazer consigo nenhum alimento do campo era às
vezes letra m orta — se as frutas e os vegetais fossem
escondidos. Se estivessem à vista, constituía um evidente
delito, no sentido de que os americanos haviam desres­
peitado a autoridade da sentinela. O desafio aberto da
autoridade acarretava terrível punição, ainda que se tra ­
tasse de um mero “ retrucar” . Mesmo na vida civil, os re­
gulamentos japoneses são muito severos com respeito aos
que viessem a retrucar ordens; nesses casos, as suas
praxes militares puniam duram ente. Não constitui
exoneração das atrocidades e crueldades arbitrárias as
distinções ocorridas, nos campos de prisioneiros, entre
estes atos e aqueles que eram conseqüências de hábitos
culturais.
Especialmente nas fases iniciais do conflito, a ver­
gonha da captura era reforçada por um a convicção muito

40
com um entre os japoneses de que o inim igo torturava e
matava tod os os prisioneiros. O b oato de que haviam
passado tan q ues por cim a d os corpos dos aprisionados em
G uadalcanal espalhou-se por quase todas as zonas. D o
mesm o m odo, alguns japoneses que tentavam entregar-se,
eram encarados com ta n ta reserva por parte de nossos
soldados a ponto de serem m ortos com o precaução, o que
freqüentem ente justificava as suspeitas japonesas. U m ja ­
ponês, para quem nada m ais restava senão a morte, fre­
qüentem ente orgulhava-se de levar consigo um inim igo ao
morrer; poderia fazer isso m esm o depois d e capturado.
D ecididos, conform e expressou um d eles, “ a serem
queim ados no altar da vitória, seria um a desonra morrer
sem consum ar um feito heróico” . T ais p ossib ilid ades
punham de sobreaviso nosso exército e “dim inuíam o
número de rendições.
A vergonha d a rendição ardia profundam ente na
consciência dos japoneses. A ceitavam tranqüilam ente
um a conduta estranha às nossas convenções de guerra. A s
nossas lhes eram do m esm o m odo estranhas. Referiam -se
com indignado desprezo aos prisioneiros d e guerra
americanos que p e d i a m fossem seus nom es levados ao seu
governo, a fim de que suas fam ílias soubessem que e s­
tavam vivos. A soldadesca, pelo m enos, achava-se in ­
teiram ente desprevenida para a rendição das tropas
am ericanas em B ataan, pois supunham que eles iriam
resistir à m aneira japonesa. N ão conseguiam aceitar o fa ­
to de que os am ericanos não tivessem vergonha de serem
prisioneiros de guerra.
A m ais m elodram ática diferença de con d uta entre
soldados ocidentais e japoneses foi sem dúvida a co o ­
peração dada aos aliados por estes ú ltim os com o
prisioneiros de guerra. E les desconheciam quaisquer re­
gras de vida aplicáveis nesta nova situação; achavam-se
desonrados e sua vida com o japoneses findara. Som ente
nos últim os m eses de guerra é que m ais do que um
punhado deles im aginou um retorno à pátria, não im ­
portando com o term inasse a guerra. A lguns pediram para
ser mortos, “ mas, com o os costum es de vocês não per­
m item isto, serei um prisioneiro m odelo” . E les foram
m ais do que prisioneiros m odelos. V eteranos militares,
por m uito tem po nacionalistas extrem ados, localizaram
d e p ó s i t o s s e c r e t o s d e m u n i ç õ e s , r e v e la r a m

41
m inuciosam ente a distribuição das forças japonesas, re­
digiram nossa propaganda e voaram ju n to com os nossos
pilotos bom bardeiros, a fim de gu iá-los para alvos m ili­
tares. E ra com o se houvessem virado um a nova página: o
que estava escrito na nova página era o oposto do que
constava na antiga, m esm o assim, as linhas eram pro­
feridas com a m esm a fidelidade.
N ão é esta, evidentem ente, a descrição de todos os
prisioneiros de guerra. H avia alguns p oucos irrecon-
ciliáveis. D e qualquer m odo, era necessário e s­
tabelecerem -se determ inadas con d ições favoráveis, antes
que tal conduta fosse possível. C om preensivelm ente, os
com andantes m ilitares am ericanos m ostraram -se h esi­
tantes em aceitar n om inalm ente o auxílio japonês, h a­
vendo cam pos em que não se encetava nenhum a tentativa
de utilizar quaisquer serviços que eles pudessem oferecer.
N os cam pos em que assim sucedia, entretanto, a suspeita
primitiva teve de ser retirada e um a dependência cada vez
m ais acentuada foi conferida à b oa fé d os prisioneiros ja ­
poneses.
O s am ericanos não haviam esperado esta reviravolta
por parte dos prisioneiros de guerra. N ão estava de acordo
com os nossos preceitos. M as, os japoneses procediam
com o se, depois de dar tudo de si e falhar na linha de
conduta assum ida, enveredassem naturalm ente por uma
outra. Seria um m od o de agir com o qual poderíam os
contar nos dias de pós-guerra ou seria um a conduta
peculiar a soldados que haviam sido capturados in ­
dividualm ente? A exem plo das d em ais peculiaridades da
conduta japonesa que se nos im puseram durante a
guerra, surgiram indagações a respeito de toda a m aneira
de vivei a que eles estavam condicionados, o m odo pelo
qual funcionavam suas instituições, além d os hábitos de
pensam ento e ação que haviam aprendido.

42
3. A S S U M I N D O A P O S IÇ Ã O D E V ID A

t Q ualquer tentativa de entender os japoneses deverá


começar com a sua versão do que significa “ assum ir a
posição devida” .( A sua confiança na ordem e na
hierarquia e a nossa fé na liberdade e na igualdade si­
tuam -se a pólos de distância, sendo difícil p ara nós atri­
buir à hierarquia seu valor devido como mecanismo
social. A confiança japonesa na hierarquia é básica,
dentro da sua noção global da relação do homem com o
seu semelhante, da relação do homem p ara com o Estado,
sendo que somente através da descrição de algumas de
suas instituições nacionais como a família, o Estado, vida
religiosa e econômica, é que nos será possível entender a
sua visão do mundo.

43
Os japoneses apreciaram tod o o problem a das rela­
ções internacionais em term os da sua versão d a hierar­
quia, assim com o apreciaram seus problem as internos sob
a m esm a luz. D urante a últim a d écad a afiguraram -se
com o atingindo o ápice daquela pirâm ide e agora, que
esta posição pertence às nações ocid en tais, sua visão de
hierarquia certam ente assinala a sua aceitação da atual
d is p o s iç ã o . S e u s d o c u m e n to s in t e r n a c io n a is c o n s ­
tantem ente especificaram o peso que a ela atribuem . O
preâm bulo ao Pacto Tríplice com a A lem anha e a Itália*
que o Japão assinou em 1940, reza:'“ O s governos do Ja­
pão, A lem anha e Itália consideram com o condição prece­
dente a toda paz duradoura que a tod as as nações seja d a ­
da a sua posição devida . . . ” e o E dito Im perial exarado
por ocasião da assinatura do Pacto d izia d e novo a m esm a
coisa: /

/ Prom over a n o ssa in te g rid a d e pela te rra in te ira é fazer d o m u n d o


u m a ú n ica fam ília co n stitu i a g ra n d e in ju n ç ã o que nos leg aram nossos
A ntepassados Im p eriais e nisso nos e m p e n h am o s d ia e noite. N a ex­
tra o rd in á ria crise com q u e se d e fro n ta a tu a lm e n te o m u n d o , segu n d o se
afig u ra, a g u e rra e a co n fu são se rão in term in av elm en te a g rav ad as e a
H u m a n id ad e sofrerá d e sa stres incalculáveis. E sp eram o s fervorosam ente
que os d istú rb io s cessem e a p az seja restab e le c id a o n íais cedo possí­
vel . . . M uito nos alegram os, p o rta n to , q u e este p acto te n h a sido fir­
m ado e n tre os T rês Poderes.
A ta re fa de p e rm itir a c a d a n a ç ã o e n co n tra r o seu devido lugar e to ­
dos os indivíduos viverem em p az e seg u ran ça é d a m aio r m ag n itu d e.
Não tem p aralelo n a h istó ria . E ste objetivo a in d a se e n co n tra bem
d ista n te . . . /

N o próprio dia do ataque a Pearl Harbor, os enviados


extraordinários japoneses entregaram , tam bém , ao Secre­
tário de Estado Cordell H ull um a declaração das m ais
explícitas a este respeito:

C onsiste a im utável política d o governo jap o n ês em p e rm itir a cad a


n ação e n c o n tra r o seu devido lu g ar no m u n d o . O governo jap o n ê s não
pode to le ra r a p e rp e tu id a d e d a p resen te situ ação , j á que ela c o n tra ria
d ireta m e n te a política fu n d a m e n ta l do Jap ã o de p e rm itir a c a d a n ação
d e sfru tar a sua posição dev id a no m undo.

E ste m em orando japonês veio em resposta ao do


Secretário H ull, de alguns dias antes, invocando princí­
pios am ericanos tão básicos e respeitados nos E stados
U n idos quanto a hierarquia no Japão. O Secretário Hull
enum erou quatro: a inviolabilidade d a soberania e da

44
integridade territorial; a não-intervenção nos assuntos
internos das outras nações; a confiança na cooperação
internacional e na conciliação e, finalmente, o princípio
de igualdade. Todos estes são pontos fundam entais da fé
am ericana na igualdade e inviolabilidade dos direitos e
constituem os princípios sobre os quais acreditam os que a
vida diária, não menos do que as relações internacionais,
deva ser baseada. A igualdade é o m aior e mais moral
fundam ento das esperanças am ericanas por um m undo
melhor. Significa p ara nós libertação da tirania, da in­
terferência e das imposições indesejáveis. Significa
igualdade perante a lei e o direito de m elhorar a condição
de cada um n a vida. Ê a base dos direitos do homem
conforme estão organizados no m undo que conhecemos.
Defendemos a virtude da igualdade mesmo quando a
desrespeitamos, ao mesmo tem po que combatemos a
hierarquia com virtuosa indignação.
Tem sido assim desde quando os Estados Unidos
começaram a ser um a nação. Jefferson inscreveu-a na
Declaração da Independência e a C arta de Direitos in­
corporada à Constituição nela se baseia. Essas frases
formais dos documentos públicos de um a nação nova
eram im portantes exatam ente porque elas refletiam um
modo de vida estranho aos europeus que ia tom ando
forma na vida diária de homens e mulheres deste con­
tinente. Um dos grandes documentos da reportagem
internacional é o livro escrito por um jovem francês,
Alexis de Tocqueville, a respeito destes tem as de igual­
dade. depois de ter visitado os Estados Unidos, no início
da terceira década do século passado. Revelou-se ele um
observador inteligente e simpático, capaz de reconhecer o
que havia de bom neste exótico m undo d a América. Pois
exótico, ele realmente o era. O jovem Tocqueville fora
educado na aristocrática sociedade da França, ainda na
lem brança de homens em plena atividade e influência e
depois sacudida e assustada, prim eiro pela Revolução
Francesa, e, em seguida, pelas novas e drásticas leis de
Napoleão. Mostrava-se generoso na sua apreciação de
uma nova e estranha ordem de vida na América, mas
enxergava-a através dos olhos de um aristocrata francês e
o seu livro era um relatório p ara o Velho M undo das
coisas futuras. Os Estados Unidos, segundo acreditava,
constituíam um posto avançado de progressos que
tam bém ocorreriam na Europa, em bora com diferenças.

45
A presentou ele, portanto, m in uciosos inform es
acerca desse m undo n ovo.jA q u i tod os se consideravam
realm ente iguais uns aos outros. A s relações sociais
transcorriam n um a base nova e natural. As conversas
eram de hom em a hom em . O s am ericanos não se
preocupavam com as pequenas atenções da etiq u eta
hierárquica; não as exigiam com o algum a coisa que lhes
fosse devida, nem as ofereciam aos outros. G ostavam de
proclam ar que nada deviam a ninguém . N ão existia ali
um a fam ília no velho sentido aristocrático ou rom ano e a
hierarquia social que dom inara o V elh o M undo não mais
existia. A queles am ericanos confiavam acim a de tudo na
igualdade; na prática, observou ele, até m esm o a li­
berdade deixavam fugir pela janela, enquanto olhavam
para o outro lado. M as viviam em pé de igualdade, t
É anim ador para os am ericanos verem seus an ­
cestrais através dos olhos d este estrangeiro, escrevendo
sobre a nossa m aneira de viver há m ais de um século. T em
havido m uitas m udanças em nosso país, m as as linhas
gerais não foram alteradas. A m edida que lem os, vamos
reconhecendo que a A m érica de 1830 já era a que
conhecem os. E xistiram e ainda existem neste país aqueles
que, com o A lexander H am ilton no tem po de Jefferson,
são a favor de um a ordem m ais aristocrática na sociedade.
M as, até m esm o os H am ilton reconhecem que a nossa
m aneira de viver n este país não é aristocrática.
Q uando, portanto, expressam os ao Japão, pouco
antes de Pearl H arbor, as elevadas b ases morais sobre as
quais os Estados U n idos baseavam sua política no P a­
cífico, estávam os en u ncian d o nossos m ais acreditados
princípios. Cada m edida na direção que assum íam os h a­
veria de melhorar, de acordo com as nossas convicções,
um m undo ainda im perfeito. T am b ém os japoneses,
quando confiam na “devida p osição” , voltavam -se para a
regra de vida que neles fora arraigada pela própria ex­
periência social. A d esigualdade tem sido durante séculos
a regra de sua vida organizada, ju stam ente naqueles
pontos onde é m ais previsível e aceita. Conduta assente
com hierarquia é tão natural para eles com o respirar. Não
se trata, contudo, de um sim ples autoritarism o ocidental.
T anto os que exercem controle, com o os que estão sob o
controle de outros, agem em conform idade com um a tra­
dição diferente da nossa, e agora, que os japoneses acei­

46
taram o elevado plano hierárquico da autoridade
am ericana no seu país, é que se torna ainda mais
necessário para nós adquirir a id éia m ais clara possível de
suas convenções. Som ente assim poderem os imaginar
com o agirão na sua presente situação.
/ O Japão, com toda a sua recente ocidentalização, é
ainda um a sociedade aristocrática. Cada cum prim ento,
cada con tato deve indicar a espécie e grau de distância
social entre os hom ens.fC ada vez que um hom em diz para
outro “C om a” ou “ Sente-se” , u sa palavras diferentes,
conform e esteja se dirigindo fam iliarm ente a alguém ou
falando com um inferior ou superior. E xiste um “você”
diferente que deve ser usado em cada caso e os verbos têm
radicais diferentes. O s japoneses têm , em outras palavras,
o que se ch am a um a “ linguagem de respeito” , tal qual
m uitos outros povos do Pacífico, acom panhada de
m esuras e genuflexões apropriadas. /T o d o esse proce­
d im ento é governado por regras e convenções m eticulosas;
não é apenas necessário saber a quem é feita a mesura,
com o tam bém a sua freqüência. U m a m esura correta e
apropriada para um anfitrião seria considerada com o um
insulto por outro em relação ligeiram ente diversa com o
convidado. E as m esuras classificam -se de várias
maneiras, desde ajoelhar abaixando a testa até as m ãos
espalm adas no solo até o mero inclinar da cabeça e dos
ombros. É preciso aprender, e bem cedo, com o har­
monizar a reverência com cad a caso particular, f
/ N ão se trata apenas d e diferenças de classe que d e­
vem ser reconhecidas constantem ente pela con d uta apro­
priada, em bora isto tam bém seja im portante. Sexo e ida­
de, laços de fam ília e relações anteriores, tudo passa a
fazer parte dos cálculos necessários.) E m ocasiões d i­
ferentes, até m esm o entre duas m esm as pessoas são re­
queridos graus diferentes d e respeito: um civil poderá ser
conhecido de um outro e não cum prim entá-lo, porém,
estando de uniform e militar, seu am igo em trajes civis há
de saudá-lo.|A observância de hierarquia é uma arte que
requer a ponderação de inum eráveis fatores, alguns dos
quais, segundo cada caso particular, poderão ser an ula­
dos m utuam ente, enquanto outros podem tornar-se até
m esm o cumulativos.)
/Ê claro que existem pessoas entre as quais existe
relativamente p ouca cerim ônia. N os E stados U n idos estas
pessoas são as do círculo fam iliar de cada um . D es-

47
fazem o-nos das m enores form alid ades de nossa etiqueta
quando chegam os em casa e entram os no seio da nossa
fam ília. N o Japão, é precisam ente na fam ília que são
aprendidas e m eticulosam ente observadas as regras de
respeito. E nquanto a m ãe ainda leva o b eb ê preso às
costas, em purra-lhe a cabeça para baixo com a m ão e suas
prim eiras lições consistem na observância de um p roce­
dim ento respeitoso com relação ao pai ou ao irm ão m ais
velho. A esposa inclin a-se diante d o marido; a criança,
diante do pai; os irm ãos mais jovens, diante dos m ais
velhos e a irmã, d ian te de todos os irm ãos, qualquer que
seja sua idade. N ão se trata de um gesto vazio. A quele que
se inclina reconhece o direito do outro de interferir em
assuntos sobre os quais ele próprio preferiria decidir e o
que recebe a saudação assum e, por seu turno, certas
responsabilidades relativas à sua posição. A hierarquia
baseada no sexo, geração e prim ogenitura constitui parte
d a vida fam iliar./
O devotam ento filial é, sem dúvida, um a alta lei ética
que o Japão com partilha com a C hina e suas form ulações
chinesas foram desde cedo adotadas no Japão, ju n ­
tam ente com o budism o chinês, a ética con fu cion ista e a
cultura secular chinesa dos séculos V I e V II d.C. Seu
caráter foi, no entanto, inevitavelm ente m odificado a fim
de adaptar-se à diferente estrutura da fam ília no Japão.
N a China, m esm o hoje em dia, cada qual deve lealdade a
toda extensão do seu clã. Seu núm ero d e com ponentes p o­
de chegar a dezenas d e m ilhares de pessoas sobre as quais
ele tem jurisdição e de quem recebe apoio. C onquanto
possam diferir as condições em várias partes desse im enso
país, na maior parte das regiões, toda a população das
aldeias pertence ao m esm o clã. I Entre todos os
45 0 000 000 de h abitantes da C hina, existem apenas 470
sobrenom es e todas as pessoas com o m esm o sobrenom e
consideram -se irm ãos-de-clã em algum grau. Por toda
um a área, todos podem pertencer exclusivam ente a um
único clã e, além disso, ter com panheiros de clã m orando
em cidades d istantes, i Em zonas populosas com o
K w angtung, todos os m em bros de clã congregam -se para
a organização de grandes salões-d e-clã e em dias d e­
term inados chegam a venerar m il placas de ancestrais,
mem bros falecidos do clã, originários d e um antepassado
com um . Cada çlã possui bens, terras e tem plos e dispõe de
fundos que são u tilizados para pagar a educação de seus

48
filhos promissores.10 c li não perde de vista os membros
d isp e rso s e p u b lic a p o rm e n o riz a d a s g e n e alo g ia s,
atualizadas por volta de cada década, a fim de divulgar os
nomes dos que têm direito a partilhar de seus privilégios. 1
Possui leis ancestrais que pode até mesmo proibi-los de
entregar criminosos d a fam ília ao Estado, caso o clã não
esteja de acordo com as autoridades. Nos tem pos im ­
periais, essas grandes com unidades de clãs semi-
autônomos eram governadas em nome do E stado Maior,
da form a mais displicente possível, por indolentes
m andarinatos, com andados por pessoas estranhas à re­
gião, que se revezavam, conforme nom eação do Estado.
No Japão, tudo isso era diferente. Até a metade do
século XIX, somente famílias nobres e famílias guerreiras
(,sa m u r a i ) podiam usar sobrenomes. Os sobrenomes eram
fundam entais no sistem a chinês de clãs e, sem eles ou
algum equivalente, a organização não se podia desen­
volver. E m algumas tribos, um desses equivalentes
consiste em m anter um a genealogia. No Japão, porém,
somente as classes superiores o faziam e mesmo assim
faziam o registro, tal qual as Filhas d a Revolução
Americana o fizeram nos Estados Unidos, recuando no
tempo, a partir de pessoas vivas atualm ente e não des­
cendo de modo a incluir todo contem porâneo proveniente
de um ancestral original. T rata-se de um a coisa bastante
diferente. Além do mais, o Japão era um país feudal. A
lealdade era devida não a um grande grupo de parentes, e
sim a um senhor feudal. E ra este um suserano residente,
não podendo ser m aior o contraste com os tem porários
m andarins burocráticos d a China, sem pre estrangeiros
nos seus distritos.10 que im portava no Japão era se al­
guém pertencia ao feudo de Satsum a ou de Hizen. Os
vínculos de um homem eram com o seu feudo. \
O utra m aneira de institucionalizar clãs é através do
culto de ancestrais remotos ou de deuses de clã, em altares
ou locais sagrados. Tal culto podia ser facultado à “ gente
comum” japonesa, mesmo sem sobrenomes e genealogias.
Mas no Japão não existe culto de veneração de ancestrais
remotos e nos altares onde a “ gente com um ” presta culto
reúnem-se todos os aldeões, sem terem de provar sua
ascendência comum. S io cham ados de “ filhos” do deus
do seu altar, isso porque vivem no território deste. Esses
adoradores de aldeia são certam ente aparentados entre si,
como os de qualquer outra parte do m undo, após gerações

49
de residência fixa, n ão con stitu ind o, no en tan to, u m clã
fechado, procedente d e um ancestral com um .
! ! O cu lto devido aos ancestrais é prestado num altar
bastante diferente na sala d e estar da fam ília, o n d e
apenas s ã s o u sete m ortos recentes são reverenciados. N o
Japão, em todas as classes é prestado o cu lto d iário
perante este altar, sen d o preparado alim en to para os pais,
avós e parentes próxim os relem brados em carne e osso,
representados no altar por pequenos túm ulos. M esm o no
cem itério, as lápid es nas sepulturas de bisavós n ão m ais
são refeitas e até m esm o a identidade da terceira geração
ancestral m ergulha rapidam ente no esquecim ento. O s
laços fam iliares são reduzidos gradualm ente no Japão a
proporções ocidentais, com o equ ivalente m ais próxim o
na fam ília francesa. t \
I O "devotam ento filial” no Japão, portanto, é um a
questão circunscrita a u m a lim itad a fam ília convivente.
C onsiste em assum ir a devida posição de cad a u m , de
acordo co m a geração, o sexo e a idade, no seio de um
grupo que inclui p ouco m ais d o q ue o p ai e o pai d o pai de
cad a um , assim com o seus irmãos e descendentes. |M esm o
em casas im portantes, on d e se inchiam grupos m aiores, a
fam ília se divide em linhas separadas e os filhos m ais jo ­
vens d ão origem a novas ram ificações. D entro d este
restrito grupo convivente, são m eticu losas as regras que
prescrevem a “ devida posição” . V erifica-se rigorosa
subm issão aos m ais velhos, até q ue os m esm os decidam
entrar em retiro form al ( in k y o ) . M esm o ainda hoje, um
pai de filhos crescidos, cujo próprio p ai ainda n ão se
afastou, não efetua transaçao algum a que não seja apro­
vada pelo idoso avô. Pais fazem e d esfazem os casam entos
de seus filhos, até m esm o quando estes já têm trin ta ou
quarenta anos de idade. O pai, com o ch efe m asculino da
casa, é servido prim eiro às refeições, é o prim eiro a tom ar
banho fam iliar e recebe com um aceno as profundas re­
verências dos seus. H á um a adivinhação popular no Japão
que poderia ser traduzida em nossa form a habitual: “ Por
que um filho que deseja dar con selh os aos p ais é com o um
sacerdote budista que quer ter cab elos no alto da ca-,
beça?” (Os sacerdotes budistas têm tonsura) ; A resposta
é: "Por m ais que queira, não con segu e” .
A devida posição significa n ão apenas diferenças de
geração, com o tam bém diferenças de idade. Q uando os
japoneses desejam expressar um a confusão com pleta,

50
dizem que algum a coisa não é “ nem irm ão m ais velho,
nem m ais m oço” . É com o quando dizem os q ue u m a coisa
não é peixe nem ave, pois para os jap on eses um hom em
tem de conservar-se no seu caráter de irm ão m ais velho
tão drasticam ente quanto um peixe dentro d ’água. O filho
m ais velho é o herdeiro. O s viajantes falam “ daqu ele ar de
responsabilidade que o filh o m ais velho adquire tão cedo
no Japão” . E le com partilha em alto grau d as prerro­
gativas do pai. A ntigam ente, seu irm ão m ais jovem com o
tem po se tornaria inevitavelm ente depen dente dele; hoje
em dia, especialm ente em cidades pequenas e aldeias, é
ele quem fica em casa segundo o costum e arraigado,
enquanto seus irm ãos m ais jovens poderão talvez pro­
gredir, obtendo m elhor ed u cação e m elhor salário. M as os
velhos hábitos de hierarquia são fortes.
A té m esm o no m oderno com entário p olítico as
prerrogativas d os irm ãos m ais velhos são vivam ente
proclam adas nas discussões em torno d a E xpansão do
Extrem o-O riente. N a prim avera de 1942, um tenente-
coronel, falando em nom e do M inistério d a Guerra, d isse
a respeito da E sfera de C o-prosperidade: “ O Japão é o seu
irm ão m ais velho e eles são os irm ãos m ais jovens do Ja­
pão. Ê preciso que este fato convença os h abitantes dos
territórios ocupados. D em onstrar d em asiad a con si­
deração pelas populações poderá gerar-lhes nas m entes a
tendência a pressupor benignidade por parte d o Japão,
com ruinosos efeitos sobre a sua doutrina” . Em outras
palavras, o irmão m ais velho decide o que é conveniente
para o irm ão m ais m oço e não deve dem onstrar
“d em asiada consideração” ao fazê-lo.
I Q ualquer que seja a idade, a pgfiiçãr» d<» ç ada um n a
hierarquia depende do fato de ser hom em ou m ulher. A
mulh er japonesa c am inha atrás d o m arido e tem um a
posição inferior. A tè m esm o as m ulheres que em certas
ocasiões, ao usárem roupas ocidentais, cam in ham ao seu
lado e precedem -no ao passar por u m a porta, voltam para
a retaguarda, um a vez envergado o quim ono. A filha de
fam ília japonesa deverá proceder da m elhor m aneira
possível, ao passo que os presentes, as atenções e o
dinheiro para a educação são para os irm ãos. M esm o
quando se criam escolas m ais adiantadas para m oças, os
cursos eram acum ulados de instruções sobre etiq u eta e
m ovimento corporal. O treinam ento intelectual sério não
se equiparava ao dos rapazes, sendo que o diretor d e uma

51
dessas escolas, ao pleitear p ara as suas estudantes de
classe m édia superior algum a instrução em idiomas euro­
peus, fundam entava a sua recom endação n a convivência
das mesmas saberem recolocar os livros de seus m aridos
de cabeça p ara cima nas estantes, depois de retirada a
poeira./
Contudo, as m ulheres japonesas têm grande li­
berdade, se com paradas com a m aioria dos outros países
asiáticos, não sendo isto apenas um a fase de oci-
dentalização. N unca tiveram os pés atados, como nas
classes superiores chinesas e as próprias m ulheres in­
dianas de hoje surpreendem -se ao ver as m ulheres ja ­
ponesas entrar e sair das lojas, andar p ara baixo e p ara
cima nas ruas, sem se velarem. As esposas japonesas
fazem as compras de casa e levam consigo a bolsá da
família. Se faltar dinheiro, são elas que escolhem um
objeto da casa e dirigem-se à casa de penhores. É a
m ulher quem dirige os criados, tem bastante voz ativa
quanto ao casam ento dos filhos e, quando é sogra,
geralmente dirige o seu reino doméstico com mão tão
firme como se jam ais tivesse sido, m etade da vida, um a
fior(anueSeT)
I São grandes no Japão as prerrogativas de geração,
sexo e idade. Os que exercem, porém , tais privilégios,
atuam mais como m andatários do que como arbitrários
autocratas. O pai ou o irm ão m ais velho é responsável
pela casa, quer os seus mem bros estejam vivos, mortos, ou
ainda por nascer. Deverá assum ir graves decisões e cuidar
que elas sejam cum pridas. E ntretanto, não dispõe de
autoridade incondicional. Deverá agir responsavelmente
pela honradez da casa. L em brará ao filho e ao irm ão mais
jovem o legado da família, tan to de coisas m ateriais,
quanto de espirituais, exortando-os a que deles se façam
merecedores. Ainda que seja um camponês, invocará n o-
b le sse o b lig e aos antepassados da fam ília e, se pertencer a
classes mais elevadas, o peso da responsabilidade pela
casa torna-se cada vez mais acentuado. As exigências
familiares precedem as individuais.^
Em qualquer assunto im portante, o chefe de um a
fam ília de qualquer posição social convoca um conselho
doméstico, no qual o mesmo será debatido. P ara um a
conferência sobre um noivado, por exemplo, poderão vir
m em bros d a fam ília de longínquas partes do Japão. O
processo de se chegar a um a decisão envolve todos os

52
imponderáveis de um a personalidade. U m irm ão mais jo ­
vem ou um a esposa poderá influenciar o julgam ento. O
dono d a casa se defrontará com grandes dificuldades se
agir sem respeitar a opinião do grupo. Não h á dúvida de
que as decisões serio enorm emente desagradáveis p ara o
indivíduo cujo destino está sendo resolvido. Os seus
maiores, contudo, que por seu turno já se subm eteram no
passado a decisões de conselhos familiares, m ostram-se
implacáveis ao exigirem dos m enores aquilo a que se
curvaram outrora. A sanção por trás de sua exigência é
muito diferente da que, por lei e costume, confere ao pai
prussiano dirçitos arbitrários sobre a esposa e os filhos.
Por esta razão n io será menos severa no Japão a exi­
gência, os efeitos é que são diferentes./ Os japoneses não
aprendem em seus lares a dar valor à autoridade a r­
bitrária, como tam bém não é cultivado o hábito de
submeter-se facilmente a ela. A submissão à vontade da
família efetua-se em nome de um valor suprem o p ara o
qual todos se voltam, conquanto opressivas suas exi­
gências. E la se processa em nome d a lealdade geral./
(Todo japonês prim eiro adquire o hábito da
hierarquia no seio da fam ília e posteriorm ente os aplica
nos campos mais vastos da vida econômica e do governo.
Aprende que um a pessoa dedica toda deferência aos que
sobre ela têm precedência, num a “ devida posição” d e­
term inada, sejam ou não eles os realm ente dom inantes no
grugo.jM esmo um m arido dom inado pela m ulher ou um
irm ao mais velho por um m ais moço, am bos não deixam
de receber deferência formal. Limites form ais entre
prerrogativas não são rompidos tão-som ente porque
alguém mais está agindo por trás dos bastidores. A facha­
da não é alterada a fim de adaptar-se à realidade do
domínio. Permanece inviolável. Existe mesmo um a certa
vantagem tática em agir sem os adereços da posição
formal; neste caso, se é menos vulnerável. Os japoneses
tam bém aprendem na sua experiência fam iliar que o
maior fardo que se possa atribuir a um a decisão advêm da
convicção fam iliar de que a m esm a preserva a sua honra.
A decisão não é um decreto reforçado por punho de ferro
ao arbítrio de um tirano que é o chefe d a família. Este é
antes um m andatário de um a propriedade material e
espiritual im portante p ara todos, exigindo destes que
subordinem suas vontades pessoais aos requisitos da
mesma. Os japoneses repudiam o uso do punho de ferro

53
não porque se subordinem menos às exigências d a
familia, nem porque seja menos extrem ada a deferência
dedicada aos de posição designada. A hierarquia é m an ti­
da na familia, ainda que os seus m ais idosos tenham
pouca oportunidade de ser autocratas vigorosos.
Esta tosca^declaração de hierarquia n a fam ília ja ­
ponesa, lida por americanos com seus padrões diferentes
de conduta pessoal, não faz justiça à aceitação de laços
emocionais fortes e sancionados no seio das famílias ja ­
ponesas.) Há um a solidariedade bastante considerável no
lar e a m aneira pela qual isto foi adquirido constitui-se
num dos tem as de que tra ta este livro. Por enquanto, é
im portante, ao tentar com preender a sua exigência de
hierarquia nos terrenos mais vastos do governo e d a vida
econômica, reconhecer a ênfase conferida ao aprendizado
dos hábitos na am biência familiar, t
As m edidas hierárquicas na vida japonesa têm sido
tão drásticas nas relações entre as classes quanto nas rela­
ções familiares. D urante toda a sua história nacional, o
Japão tem sido um a sociedade rígida de classe e çaçta e
um a nação com tais hábitos seculares de disposições de
casta possui forças e fraquezas que são d a maior im ­
portância. No Japão, a casta tem sido a organização de vi­
da durante toda a sua história escrita, e até mesmo no
século V II d.C. ele já estava adaptando normas de
existência em prestadas d a China sem casta, para modelar
sua própria cultura hierárquica. Nesse período entre os
séculos VII e VIII, o Im perador japonês e sua corte pro­
puseram -se o em preendim ento de enriquecer o Japão com
os costumes d a avançada civilização que se deparara aos
olhos assom brados de seus enviados no grande reino da
China. Passaram a em penhar-se com energia in­
comparável. Antes desia época, o Japão nem mesmo
possuía linguagem escrita; no século VII, adotou os Ideo­
gram as da China e es utilizou pjtra escrever sua língua to ­
talm ente diferente, À religião Japonesa especificava
quarenta mil deuses que presidiam m ontanhas, aldeias e
concediam boa sorte ao povo = um a religilo popular que
sobreviveu, através de tedas gg suas m edlfieaçêes §ubse=
qüintes, e§ffl§ § ?fl§áêfB8 Kmt§í§ffl§: N e séeuli VII, § Jâ=
p⧠â á ite am §pflɧ e§eala 8 feyái§ffl8 y ú f lâ te m e

54
uma religião "excelente par8 proteger o E stad o’*. ♦ O Ja­
pão tivera arquitetura d e grande perm anência, seja
pública ou particular; os im peradores construíram um a
grande capital, Nara, b asean d o-se n um a congênere
chinesa, erigindo igualm ente, segu n do os m esm os p a­
drões, vastos e aparatosos tem p los bud istas, além de
mosteiros. D o m esm o m odo, os im peradores introduziram
da C hina títulos, poste» nobili&rquicos e leis, d e acordo
com os inform es d e seu s enviados. I D ificilm en te se e n ­
contrará n a história d o m u n do sem elhan te im portação de
civilização, por parte de u m a nação soberana, planejada
com tan to êxito./
f Entretanto, desde o início, o Japão não conseguiu re­
produzir a organização social ch inesa sem castas. O s
títulos oficiais adotados p elo Japão eram dados na China
a adm inistradores que haviam passado pelos exam es do
Estado, ao passo que no Japão eram conferidos a nobres
hereditários e senhores feudais. T ornaram -se parte das
disposições de casta d os japoneses. O Japão era con s­
tituído de grande núm ero de feudos cujos senhores
m ostravam -se constantem ente invejosos d os p o d e m uns
dos outros, sendo im portantes as d isp osições sociais re­
ferentes às prerrogativas d e senhores, vassalos e d e ­
pendentes. Por mais que o Japão assidu am ente im ­
portasse civilização da C hina, era incapaz d e adotar m o­
dos de vida que substituíssem a sua hierarquia por al­
gu m a coisa que se assem elhasse à burocracia ad ­
ministrativa da China ou o seu sistem a de extensos clãs
que reuniam gente das m ais diferentes con d ições sociais.
T am pouco adotava o Japão a idéia ch in esa d e um
imperador secular, A designação jap on esa da Casa
Imperial é a de "A queles que habitam acim a das nuvens”
e som ente pessoas d essa fam ília podem ser im peradores.
O Jap so jam ais teve m udanças d e d in astia tã o ataiéd e
quanto a China, O Im perador era inviolável e a s u i^ e n o t T
er» « ifta d a . O* Im peradores jap on eses e as som oestes,
que introduziram a cultura chinesa no Japão, sem dúvida
nem sequer im aginavam quais $ m m m disposições
ehlfltia* m tais assuntei, nem adivinhavam « múà&açai
p e §Its epemvgfn, /

* Êi íâáe ás erânigã geRt em pr l fi ei de peeMe Nara, p f §if


egflFgi % m m , m i t y m A S k m Q m m i ttim ry-, tv. 13!

55
A d espeito de tod as as im portações cultu rais da
C hina por parte do Japão, ainda assim , esta nova c i­
vilização tão som ente abriu cam in h o para séculos de
conflitos referentes a quais d esses senhores hereditários e
vassalos haveriam de controlar o país. A n tes do fim do
século V III, a fam ília nobre Fujiw ara passara a
dom inar, d eixando o Im perador em segundo plano.
Q uando, com o passar do tem po, o dom ínio d os Fujiwara
foi contestado pelos senhores feudais e o país inteiro
mergulhou na guerra civil, quando um destes, o fam oso
Y oritom o M inam oto, venceu todos os rivais e tornou-se o
verdadeiro governante d a nação sob um antigo títu lo m ili­
tar, o X ógum , que significa literalm ente “G eneralíssim o
dom inador d os bárbaros” . Com o de costum e n o Japão,
Y oritom o tornou hereditário este títu lo na fam ília M ina-
tom o, por tod o o período durante o qual seus d es­
cendentes conseguiram conter os outros senhores feudais.
O Im perador tornou-se um a figura im potente. Sua im ­
portância principal con sistia em que o X ógu m ainda d e­
pendia dele para a sua investidura ritual. N ão dispunha
de poder civil. O poder efetivo era exercido por um cam po
m ilitar, conform e era cham ado, que tentava conservar seu
dom ínio através da força arm ada operando sobre feudos
rebeldes. C ada senhor feudal, o d a i m i o , tinha seus d e ­
pendentes arm ados, os s a m u r a i , cujas espadas achavam -
se à sua disposição, sem pre prontos, n os períodos de
desordem , a contestar a “ devida p osição” de um feudo ri­
val ou do X ógu m dom inante.
N o século X V I, a guerra civil tornara-se en d êm ica.
Após décadas de desordem , o grande leyasu obteve vitória
sobre todos os rivais e em 1603 p assou a ser o primeiro
X ógum da C asa de T okugaw a. O X ogu n ato conservou-se
na linhagem de leyasu por dois séculos e m eio e term inou
som ente em 1868, quando o “ governo dup lo” d e Im ­
perador e X ógum foi abolido no com eço do período mo-
dêrno. E m m uitos sentidos este longo Período Tokugaw a
constitui-se num dos m ais notáveis da história. M anteve
um a paz arm ada no Japão até a últim a geração antes do
seu térm ino, pondo em exercício um a adm inistração
centralizada que serviu adm iravelm ente aos propósitos
dos Tokugaw a.
leyasu defrontou-se com um problem a dos mais d i­
fíceis e não optou por u m a fácil solução. O s senhores de
alguns dos mais fortes feudos se haviam colocado em

56
oposição a ele na guerra civil e somente se subm eteram
após um a desastrosa derrota final. Eram os chamados
Senhores Externos. Tinham sido deixados por leyasu no
controle de seus feudos e sam urais e, entre todos os
senhores feudais do Japão, eram os que continuavam a ter
a maior autonom ia em seus domínios. Apesar disso,
excluiu-os da honra de serem seus vassalos e de todas as
funções im portantes. Estas funções im portantes foram
reservadas para os Senhores Internos, os partidários de
leyasu na guerra civil. A fim de m anter este difícil regime,
os Tokugawa recorreram à estratégia de evitar que os
senhores feudais, os daimios, acum ulassem poder, im ­
pedindo quaisquer combinações entre eles, que viesse a
ameaçar o dom ínio do Xógum. Os Tokugawa sim ­
plesmente não aboliram a organização feudal, como
tam bém , visando m anter a paz no Japão e o domínio da
Casa de Tokugawa, tentaram fortalecê-la e torná-la ainda
mais rígida.
A sociedade feudal japonesa estava organizada em
estratos e a posição social de cada um era fixada por
herança. Os Tokugawa consolidaram este sistema e re­
gulam entaram os pormenores do com portam ento diário
de cada casta. Todo chefe de fam ília era obrigado a afixar
à sua porta a posição de classe e os fatos exigidos pelo seu
s ta tu s hereditário. As roupas que podia usar, os alimentos
que tinha permissão de com prar e o tipo de casa em que
podia legalmente m orar eram regulam entados de acordo
com a categoria herdada. Abaixo d a Fam ília Imperial e
dos nobres da corte, havia quatro castas japonesas, em
ordem hierárquica: os guerreiros (samurai), os fazen­
deiros, os artesãos e os comerciantes. A inda abaixo destes,
estavam os párias. Os m ais numerosos e famosos dentre
os párias eram os E ta, trabalhadores em ofícios pros-
critos. Eram varredores, sepultadores dos executados,
esfoladores de anim ais m ortos e curtidores de peles. Eram
eles os intocáveis do Japão ou, mais exatam ente, os seus
incontáveis, pois até mesmo a extensão das estradas que
atravessavam suas aldeias não era aferida, como se a terra
e os habitantes da região n io existissem. E ram m isera­
velmente pobres e, em bora se lhes fosse garantido o
desempenho de seus ofícios, achavam-se fora d a estrutura
formal.
* Os comerciantes situavam-se logo acim a dos párias.
Por mais estranho que isto possa parecer aos americanos,

57
era b astan te realístico num a sociedade feudal. U m a classe
de com erciantes é sem pre dem olid ora do feudalism o, X
m edid a que os negociantes tornam -se respeitáveis e
prósperos, o feudalism o decai. Q u ando os T okugaw a.
através das m ais drásticas leis jam ais aplicadas por
qualquer país, decretaram o isolam en to do Japão no
século X V II. tiraram o solo d eb aixo d os p és dos
com ercian tes. O Japão havia m an tid o um com ércio por
toda extensão das costas da C hina e da Coréia, d esen ­
volvendo-se, então, inevitavelm ente, u m a classe de n e­
gociantes. O s T okugaw a term inaram com tudo isto con si­
derando um d elito passível de pena capital construir ou
operar em barcações que ultrapassassem determ inadas
dim ensões. O s pequenos barcos p erm itid os não podiam
atravessar o continente, nem transportar carregam entos
de mercadorias. O com ércio nacional tam bém foi se ­
veram ente lim itado, m ediante barreiras alfandegárias
erguidas nas fronteiras de cad a feudo, com m edidas ri­
gorosas contra a entrada e salda de m ercadorias.
Criaram -se outras leis acentuando a b aixa posição social
dos com erciantes. Leis suntuárias regulavam as roupas e
guarda-chuvas que podiam usar, a quantia que podiam
despender num casam ento ou funeral, N ão podiam morar
em bairro de sam urais. N ão d ispunham d e proteção legal
contra as espadas d os sam urais, o s guerreiros pri­
vilegiados. A política T okugaw a d e m anter os com er­
ciantes em posições inferiores falh ou, é claro, num a
econom ia m onetária, a exem p lo da que já en tão vigorava
no Japão. Entretanto, a tentativa fora fe ita .*
O regim e T okugaw a congelou em form as rígidas as
duas classes adequadas a um feud alism o estável, os
guerreiros e os fazendeiros. D u ran te as guerras civis,
finalm ente term inadas por leyasu , o grande com andante
H ideyoshi já havia consum ado a separação dessas duas
classes, por intem iéd io d a sua fam osa “ caça de esp ad a” .
D esarm ara os cam pon éses e conferira aos samurais o
direito exclusivo de usarem espadas, O i guerreiros n i o
podiam ier m ais fazendeiros, artesãos ou com erciantes.
Nem m esm o o m enos graduado d eles poderia legalm ente
ser um p reduter, deveria ser memfere de um a classe
parasítlea, que auferia geu estiplndie anual de arr©* per
meie é§ im pestes lançades sefere §§ eamp§neses: 0
daifflie lidava §§m e§te arfe*, d istrik u m ái a eaáa
sambai dêpgfiiefltê § Fgfláifflgfltê qü§ lhe gafeia-. Nl §

58
importava onde o sam urai fosse buscar auxílio; era in­
teiram ente dependente do seu senhor. Em períodos mais
antigos da história japonesa fortes laços ligavam o chefe
feudal aos seus guerreiros, em meio a um a guerra quase
incessante entre os feudos; no periodo de paz de
Tokugawa os laços tornaram -se econômicos. Pois o
guerreiro-dependente, ao contrário do seu equivalente
europeu, não era um subsenhor com posse de terra e
servos, nem tam pouco um soldado da fortuna. E ra um
pensionista de estipêndio fixo, estabelecido p ara a sua
linhagem fam iliar no começo do Período Tokugawa, o
qual não era grande. Sábios japoneses calcularam que a
pensão m édia de todos os sam urais regulava com a dos
agricultores, o que certam ente im portava em m era
subsistência.* Nada prejudicava mais a fam ília do que a
divisão de tal estipêndio por entre os herdeiros, o que le­
vava os sam urais a lim itarem a sua progênie. N ada lhes
era mais m ortificante do que um prestígio decorrente de
riqueza e ostentação, por isso davam grande ênfase nos
seus preceitos às superiores virtudes d a frugalidade.
( Um grande abismo separava oiL&amurais das outras
três classes: os fazendeiros, os artesãos e os comerciantes.
Estas três últimas constituíam a “ gente com um ” .I Os
samurais não o eram . As espadas que os sam urais usavam
como prerrogativa própria e símbolo de casta não eram
apenas enfeites. Tinham o direito de usá-las contra a
gente comum. Já o haviam feito tradicionalm ente antes da
época dos Tokugawa, sendo que as leis de Ieyasu apenas
sancionavam velhos costumes quando decretavam: “ A
gente comum que proceder inconvenientemente p a ra com
os sam urais ou não se m ostrar respeitosa com os seus
superiores poderá ser executada no local” . Não pretendia
Ieyasu que se criasse um a dependência m útua entre a
gente comum e os dependentes samurais. Sua política
baseava-se em rigorosos regulam entos hierárquicos. Ás
duas classes tinham icesio ao dalm io a prestavam contes
diretam ente a ele; era esm o se estivessem em escadas dl=
ferentei. Abaixo e acim a âe cada um a delas, havia lei, re*
p ia m e n te , eentrele e reelpteeldade, E ntre © pev© nas
duas m m ú m havia ip e n a i d!stlneia= Á sspsfüfl© entra m
i u i i elasses i?a repçeiam enti tf&sspestft pelas eif=

* fiíaás p@
f Msfkgfi Nyffflíffl, Em m em et a Medem
Sm P-. 1f, fi8: 1Í:

59
cunstâncias, a toda hora, m as não constituía p arte do
sistema.
I D urante o Período Tokugawa os dependentes
sam urais não eram meros m anejadores de espada. T orna­
vam-se cada vez adm inistradores das propriedades de
seus senhores e especialistas em artes pacíficas, como o
dram a clássico e a cerim ônia do chá. Todo o protocolo
caía na sua esfera e as intrigas do daim io eram consum a­
das através de suas hábeis m anobras. Duzentos anos de
paz constituem um longo período e o simples m anejo da
espada tinha seus limites. Assim como os negociantes, a
despeito dos regulam entos de casta, desenvolviam um
sistema de vida que atribuía posição de destaque a ati­
vidades corteses, artísticas e agradáveis, os sam urais
puderam desenvolver as artes de paz, além, é claro, dá
prontidão das- esp ad as.»
f Os fazendeiros, a despeito de sua desproteção legal
contra os sam urais, dos pesados tributos de arroz lan­
çados sobre eles e de todas as restrições que lhes eram
impostas, tinham garantidas certas seguranças, A posse
de suas fazendas lhes era assegurada, sendo que no Japão
a propriedade de terras confere prestígio. Sob o regime
Tokugawa, a terra não podia ser perm anentem ente
alienada, constituindo esta lei um a garantia p ara o culti­
vador individual e nao, como no feudalismo europeu, p ara
o senhor feudal. O fazendeiro tin h a direito perm anente a
algum a coisa que prezava de form a suprem a e, segundo
parece, terá trabalhado a sua terra com a mesma dili­
gência e irrestrito cuidado com que seus descendentes
cultivam seus arrozais hoje em dia. Contudo, ele era o
Atlas que sustentava toda a parasítica classe superior de
Cerca de dois milhões de pessoas, inclusive o governo do
Xógum, as instituições do daim io e as pensões dos d e­
pendentes samurais. E ra taxado em espécie, isto é, pagava
ao daim io um a percentagem de suas colheitas. Enquanto
que no Sião, outro país de cultura de arroz, o imposto tra ­
dicional é de 10%, no Japão Tokugawa era de 40%. Mas,
na realidade, era ainda mais elevado. Em alguns
feudos era de 80% e havia sempre corvéia oü exigências de
trabalho, que recaía sobre a capacidade e o tem po do
fazendeiro. Como os sam urais, os fazendeiros tam bém
limitavam suas famílias, conservando-se quase na mesma
cifra a população do Japão inteiro durante todos os
séculos do Período Tokugawa. P ara um país asiático, tais

60
cifras estáticas de popiíhição durante um longo período de
paz são bastante expressivas àíesp eito do seu regime. E ra
espartano nas suas restrições, tan to sobre os dependentes
sustentados pelos impostos, quanto sobre a classe pro­
dutora, mas relativamente fidedigno entre o dependente e
o seu superior. Todos sabiam de suas obrigações, de suas
prerrogativas e de sua condição social, e, se estas fossem
infringidas, mesmo os mais hum ildes poderiam protestar.
Os fazendeiros, ainda que na mais extrem a pobreza,
levavam seus protestos não apenas ao senhor feudal, como
tam bém às autoridades do Xogunato. Houve pelo ménos
mil dessas revoltas durante os dois e meio séculos
Tokugawa. Não eram elas ocasionadas pelo tradicional
pesado regulam ento de “ 40% p ara o príncipe e 60% para
os cultivadores” ; todas elas constituíram em protestos
contra impostos adicionais. Q uando as condições não
fossem mais suportáveis, os fazendeiros poderiam
m archar em grande núm ero contra seus senhores, mas as
normas de petição e julgam ento eram ordeiras. Os
fazendeiros redigiam petições formais de reparação que
submetiam ao tesoureiro do daimio. Q uando esta petição
era interceptada ou quando o daim io não tom ava
conhecimento de suas reclamações, enviavam seus re ­
presentantes à capital, a fim de apresentarem suas
denúncias escritas ao Xogunato. Em casos notórios,
somente podiam assegurar a entrega daquela es­
condendo-a no palanquim de algum a alta autoridade, de
passagem pelas ruas da capital. Mas, apesar dos riscos
assumidos pelos fazendeiros na entrega da petição, era a
mesma exam inada pelas autoridades do Xogunato e
cerca de metade dos julgam entos resultavam a favor dos
camponeses.*
As exigências do Japao quanto à lei e à ordem não
ficavam atendidos com o julgam ento do Xogunato sobre
as reivindicações dos fazendeiros. Suas reclamações po­
deriam ser justas e aconselhável ao Estado atendê-las,
mas os líderes camponeses haviam transgredido a lei rígi­
da da hierarquia. Independente de qualqúer decisão a seu
favor, haviam transgredido a lei inerente de sua sujeição,
o que não podia ser tolerado. Eram , portanto, condenados

* B orton, H ugh, P e a sa n t U p ris in g s in J a p a n o f th e T o k u g a w a


P e rio de . T ran sac tio n s o f th e A siatic Society o f Ja p a n , 2n d . Series, 16
(1936).

61
à morte. A integridade d e sua cau sa nada tinha a ver com
o assunto. A té m esm o os cam pon eses aceitavam esta in e­
vitabilidade. O s condenados eram seus heróis e o povo
aflüía à execução, onde os líderes eram fervidos em
óleo, decapitados ou crucificados, n ão entrando em a g i­
tação, contudo, as m ultidões. C onstituía isto a lei e a
ordem. Posteriorm ente, eles poderiam erguer altares aos
executados e venerá-los com o m ártires, m as aceitavam a
condenação com o parcela das leis hierárquicas sob as
quais viviam.
* O s X óguns T okugaw a, em sum a, tentaram soli­
dificar a estrutura de casta dentro d e cada feu d o e tornar
cada classe depen dente d o senhor feudal. O d aim io s i­
tuava-se no ápice da hierarquia de cada feudo e podia
exercer suas prerrogativas sobre seus dependentes. O
grande problem a adm inistrativo d o X ógum con sistia em
controlar os daim ios, evitando que form assem alianças ou
levassem a cabo p lanos d e agressão. M antiveram -se os
salvo-condutos e as autoridades ad uaneiras nas fronteiras
dos feudos, a fim d e perm itir rigorosa vigilância sobre
“ saída de m ulheres e entrada d e arm as” , evitando-se que
algum d aim io tentasse m andar para fora suas m ulheres e
contrabandeasse arm as. O d aim io n io podia contratar
casam ento sem a perm issão do X ógum , a fim de ser evi­
tad a algum a perigosa aliança política. O com ércio entre
os feudos era im pedido até m esm o a p onto d e se tom arem
intransitáveis as p ontes. O s esp iões d o X ógu m m a n ­
tinham -no bem inform ado sobre o s gastos d o d aim io e, se
os cofres feudais iam -se abarrotando, o X ógum exigia-lhe
que em preendesse obras públicas disp en d iosas, visando
recolocá-lo n os trilhos. O m ais fam oso de tod os os re­
gulam entos prescrevia que o d aim io p assasse a m etad e de
cada ano na capital e, m esm o quando regressasse para
residir no seu feudo, tin h a de deixar a m ulher em Y edo
(Tóquio), com o refém nas m ãos d os X ógu n s. M edian te to ­
das essas m edidas, a adm inistraçao assegurava a
m anutenção de superioridade e reforço de sua p osição
dom inante na hierarquia.
O X ógum , evidentem ente, não era a pedra angular
da abóbada, p~>is detinha a governança com o nom eado do
Imperador. E str, com a sua corte d e nobres hereditários
( k u g e ) , vivia isolado em Kyoto e não possuía realm ente
poder. Suas reservas financeiras eram m enores do que as
de d aim ios m enos expressivos e as próprias cerim ônias da

62
corte eram rigorosam ente lim itadas por regulam entos do
X ogunato. A in da assim , nem m esm o os extrem am ente
poderosos X óguns T okugaw a tom aram quaisquer m e­
didas para ábolir este d u p lo governo d e Im perador e
genuíno governante. N ão era coisa nova no Japão. D esde o
século X II, um G en eralíssim o (X ógum ) vinh a governando
o país em nom e de um trono privado d e efetiva autori­
dade. Em alguns séculos, a divisão de funções fora tão
longe que o poder real delegado pelo m isterioso Im ­
perador a um chefe secular hereditário era, por sua vez,
exercido por um conselheiro hereditário d este último.
Sem pre houve delegação após delegação d a autoridade
original. A té m esm o nos derradeiros e violentos dias do
regim e T okugaw a, C om odoro Perry n ão suspeitava da
existência de um Im perador em segundo p lano, cabendo a
Tow nsend Harris, nosso prim eiro enviado que negociou o
primeiro tratado com ercial com o Japão em 1858, d es­
cobrir, por si m esm o, que havia um Imperador.
* A verdade é que a concepção que o Japão tinha do
seu Imperador é a encontrada com freqüência nas ilhas
do Pacífico. Ele é o C hefe Sagrado que poderá ou não
tom ar parte na adm inistração. Ê m algum as ilhas do
Pacífico, ele assim o fez e, em outras, delegou sua autori­
dade. C ontudo, sua p essoa era sem pre sagráda. Entre as
tribos da N ova Z elândia, o C hefe Sagrado era tão
sacrossanto que não p odia se alim entar, sen d o que até
m esm o a colher que utilizava não tocava seus dentes sa­
grados. T inha de ser carregado quando ia ao estrangeiro,
pois qualquer solo tocado por seu pé sagrado tom ava-se
autom aticam ente tão sagrado que deveria passar para
possessão do C hefe Sagrado. Sua cabeça era e s­
pecialm ente sacrossanta, não p odendo ser tocada por
ninguém . Suas palavras chegavam até os deu ses tribais.
Em algum as ilhas do Pacífico, com o Sam oa e Tonga, o
Chefe Sagrado não descia na arena da vida. U m Chefe
Secular desem penhava todos os deveres d e E stado. James
W ilson, que visitou a ilha de Tonga no P acífico Oriental,
em fins do século X V III, escreveü que o governo da
m esm a “m uito de assem elha ao governo d o Japão, onde a
majestade sagrada é um a esp écie d e prisioneiro estatal do

63
capitão-general” .* Os Chefes Sagrados de Tonga viviam
isolados dos negdcios públicos, m as desem penhavam
funções rituais. Cabia-lhes receber os prim eiros frutos dos
jardins e dirigir um a cerimônia, antes que hom em algum
pudesse comê-los. Q uando o Chefe Sagrado m orria, a sua
m orte era anunciada pela frase “ Os céus estão vazios” .
E ra enterrado com solenidade num grande túm ulo real.
Mas não tom ava p arte na adm inistração.
O Im perador, mesmo politicam ente im potente e
“um a espécie de prisioneiro estatal do capitão general” ,
ocupava, segundo as definições japonesas, uma “devida
posição” na hierarquia. A participação ativa do Im ­
perador em assuntos m undanos constituía p ara eles um a
m edida do seu s t a t u s . Sua corte em Kyoto era um bem
que preservaram através dos longos séculos de poder dos
generalíssimos dom inadores de bárbaros. Somente do
ponto de vista ocidental é que as suas funções eram
supérfluas. Os japoneses, sempre acostum ados à d e­
finição rigorosa do papel hierárquico, encaravam d i­
ferentem ente o assunto.
A configuração extrem a do sistema hierárquico ja ­
ponês dos tempos feudais, desde o pária ao Im perador,
deixou sua forte m arca no Japão moderno. Afinal de
contas, o regime feudal term inou legalmente h á apenas
cerca de setenta e cinco anos, e os hábitos nacionais arrai­
gados não desaparecem no decurso de um a existência
hum ana. Os estadistas japoneses do período moderno
tam bém elaboraram planos cuidadosos, como veremos no
próximo capítulo, a fim de preservar grande parte do
sistema, não obstante as alterações radicais nos objetivos
do seu país. Os japoneses, mais do que qualquer outra n a ­
ção soberana, foram condicionados para um m undo onde
as menores particularidades de conduta já estão traçadas
e onde o s t a t u s já está determ inado. D urante dois séculos,
quando a lei e a ordem foram m antidas em tal m undo
com mão de ferro, os japoneses aprenderam a aliar segu­
rança e tranqüilidade a esta hierarquia meticulosam ente
planejada. E nquanto respeitassem os limites de fronteiras
conhecidas e cumprissem obrigações costumeiras, po­

* W ilson, Jam es. A m is s io n a ry V o y a g e to th e S o u th e r n P a c ific


O c e a n p e r fo r m e d in th e y e a r s 1796, 17 97 a n d 1798 in th e s h ip D u ff.
Londres, i 799, p. 384. C ita d o p o r E d w ard W inslow G ifford, T o n g an
Society. B ernice P. B ish o p M useum , B ulletin 61. H avaí, 1929.

64
deriam confiar no seu m undo. O banditism o era re­
primido. As guerras civis entre os daimios eram evitadas.
Se os vassalos pudessem provar que outros haviam
transgredido seus direitos, teriam licença de apelar, como
faziam os fazendeiros quando explorados. E ra arriscado,
porém, aceito. O m elhor dos Xóguns Tokugawa chegava
mesmo a ter um a Caixa de Reclamações, na qual qual­
quer cidadão podia deixar o seu protesto e cuja chave
somente o Xógum tinha. Havia garantias genuínas no Ja ­
pão de que as agressões seriam punidas, desde que fossem
atos não perm itidos pelo quadro de conduta existente.
Todos nele cpnfiavam e somente se sentiam seguros
quando o seguiam. É submetendo-se a ele que cada um
demonstrava a sua coragem e integridade e nao o mo­
dificando ou se revoltando contra ele. D entro de seus
limites estabelecidos, parecia-lhes tratar-se de um m undo
conhecido e seguro. Seus regulam entos não eram os
abstratos princípios éticos de um decálogo, mas
diminutas especificações do que era apropriado nesta ou
naquela situação; o que era apropriado em se tratando de
um sam urai ou de um homem comum; o que era correto
para um irmão mais velho ou p ara um m ais moço.
Os japoneses não se tornaram um povo pacífico e
submisso sob este sistema, como algum as nações o
fizeram sob um forte regime hierárquico. Ê im portante
reconhecer que se conferiam determ inadas garantias a
cada classe. Mesmo aos párias era assegurado um mono­
pólio de seus comércios particulares e as suas corporações
autônomas eram reconhecidas pelas autoridades. Eram
grandes as limitações impostas a cada classe, mas havia
tam bém ordem e segurança.
f I As restrições de casta tinham , outrossim , um a certa
flexibilidade nao existente, por exemplo, na índia. Os
direitos alfandegários japoneses forneciam várias técnicas
pormenorizadas de m anipulação do sistema, sem
violentar as atitudes consagradas. Um hom em podia
m udar sua posição de casta de várias m aneiras. Quando
financiadores e negociantes enriqueciam, como ine­
vitavelmente acontecia na economia m onetária japonesa,
os ricos utilizavam diversas maneiras de se infiltrar nas
classes superiores. Tornavam-se “proprietários de terras”
através do uso de hipotecas e arrendam entos.|É verdade
que a te rra d o s camponeses era inalienável, mas a locação

65
de fazendas era excessivam ente elevada no Japão, sendo
rendoso deixar o h om em do cam po em suas terras. O s
financiadores fixavam -se nas terras onde recolhiam seus
aluguéis. E ste “ dom ínio” d e terras proporcionava-lhes
prestígio, além de lucro. Seus filhos casavam -se com
sam urais. A scend iam socialm ente.
H O utra m an ipu lação tradicional do sistem a de casta
foi através do costum e d a ad oção, que propprcionava um
m odo de “ aq uisição” do s t a t u s de sam urai. A m edida que
os negociantes enriqueciam , a desp eito de todas as res­
trições T okugaw a, providenciavam a adoção de seus filhos
em fam ílias de sam urais. N o Japão raram ente se adota
um filho e sim um m arido para um a filha. E ste fica
conhecido com o “ m arido ad otado” . T orna-se herdeiro de
seu sogro. Paga um preço alto, pois o seu nom e é riscado
do registro de sua fam ília, passando para o da esposa.
A d ota o nom e d esta e vai viver com a sogra. Porém , se o
preço é elevado, as vantagens são grandes. Isto porque os
d e s c e n d e n te s d o c o m e r c ia n te p r ó s p e r o to r n a m -s e
sam urais e a em pobrecida fam ília sam urai efetuava um a
aliança com a riqueza. N ão há violentação do sistem a de
castas, que perm anece o que sem pre foi. O sistem a,
porém , foi m anipulado, de m odo a proporcionar aos ricos
a ascensão de classe.
O Japão, portanto, não exigia que as castas prom o­
vessem casam entos apenas entre si. Havia m edidas apro­
vadas que lhes perm itiam u m a interligação por
casam ento. A resultante infiltração d e com erciantes
prósperos nas classes sam urais inferiores m uito co n ­
tribuiu para o increm ento de um dos m aiores contrastes
entre a Europa O cidental e o Japão. Q uando o feudalism o
desm oronou na E uropa foi devido à pressão de um a classe
m édia crescente e cada vez m ais poderosa, que veio a
dom inar o m oderno período industrial. N o Japão não se
verificou um a ascensão de algum a classe m édia forte. Os
com erciantes e financiadores “ com praram ” um a posição
social de classe superior através de m étodos aprovados.
O s com erciantes e os sam urais inferiores tornaram -se
aliados. É curioso e surpreendente assinalar que, na
ocasião em que o feudalism o sé encontrava agonizante
nas duas civilizações, o Japão aprovava a m obilidade de
classes em grau bem m ais elevado do que a Europa
continental, nada evidenciando m elhor esta afirm ativa do

66
que a ausência de q u alq u et sinal de guerra d e classes
entre a aristocracia e a burguesia.
Ê fácil sustentar que a cau sa com um feita por essas
duas classes foi m u tuam ente vantajosa no Japão, m as, tê-
lo-ia sido tam bém na França. F oi vantajosa na Europa
O cidental nos casos isolados em que ocorreu. M as a ri­
gidez de classe era intensa na E uropa, sen d o que, na
França, o conflito de classes acabou por conduzir à ex-
propriação da aristocracia. N o Japão, elas se tornaram
m á s próxim as. A aliança que derrubou o com balido X o ­
gunato foi a que se efetuou entre os com erciantes-
fm ancistas e os sam urais d ep endentes. A era m oderna no
Japão conservou o sistem a aristocrático. D ificilm ente
teria ssim ocorrido, sem que se san cionassem , no Japão,
as técnicas de m obilidade d e classe.
O fato de os ja p o n e se s am arem e confiarem no seu
m eticulosam ente exp lícito quadro d e con d uta não d eixa­
va de ter certa justificação. G arantia a segurança, con ­
tanto que se ob edecesse às regras; perm itia protestos
contra agressões injustificadas e poderia ser m anipulado
em vantagem própria. E xigia o cum prim ento de obri­
gações recíprocas, j Q uando o regim e T okugaw a d es­
m oronou na prim eira m etade do século X IX , nenhum
grupo no país favoreceu a extin ção do quadro. N ão houve
R evolução Francesa. N em m esm o houve um 1848. No
entanto, os tem p os eram terríveis. D a gente com um ao
X ogunato, todas as cla sses endividaram -se com os
financiadores e os negociantes. | A sim ples existência de
classes im produtivas além da escala das despesas oficiais
habituais tornaram -se insuportáveis. A m edid a que o
aperto da pobreza intensificava-se sobre eles, os daim ios
não m ais puderam pagar os estip êndios fixos aos seus d e­
pendentes sam urais e todo o esquem a de liam es feudais
tornou-se um escárnio. T en tou -se reavivá-los aum entando
os já pesados im postos sobre os cam poneses. Eram co ­
brados com anos d e antecedência, reduzindo os fazen ­
deiros à extrem a miséria. 0 próprio X ogu n ato en ­
contrava-se igualm ente arruinado e pouco poderia fazer a
fim de m anter a situação. O Japão atravessava terrível
transe nacional por volta de 1853, qqando o A lm irante
Perry surgiu com seus com andados. A sua entrada for­
çada seguiu-se, em 1858, um acordo com ercial com os
E stados U n id os, que o Japão não estava em condições de
recusar.

67
I Entretanto, o grito em ergido d o Japão foi I s s h i n —
escavar o p assado, reconstruir. E ra o oposto do re­
volucionário, N em m esm o era progressista. Juntam ente
ao grito d e “ R eponham o Im perador” , acrescia-se o grito
igualm ente popular de “ E xpulsem os bárbaros” . | 0 país
apoiava o program a d e voltar ao período áureo de
isolam ento e os poucos líderes que preconizavam a im ­
p ossib ilid ade de um a tal diretriz eram assassinados por
seus esforços. N ão parecia haver a m enor probabilidade
de que um país não-revolucionário com o o Japão iria m o ­
dificar seu rum o no sentido d e ajustar-se a quaisquer p a­
drões ocidentais e ainda m enos que, dentro d e cin qü en ta
anos, estaria com petind o com p aíses ocidentais nos seus
próprios terrenos. T odavia, foi o q ue aconteceu. U tilizou
os seus recursos, que não se com paravam aos ocidentais, a
fim de alcançar um objetivo n ão visado no Japão por
nenhum grupo categorizado, nem pela opin ião pública.
N enhum ocidental da d écad a d e 60 d o século p assa­
do teria acreditado se visse o futuro num a b ola de cristal.
N ão havia no horizonte nuvem algum a maior d o que a
m ão de um hom em , que indicasse o tu m u lto de atividade
que varreria o Japão nas décadas segu intes. No entanto, o
im possível aconteceu. A população do Japão, atrasada e
d om inada pela hierarquia, passou por um novo processo e
acabou por assim ilá-lo.

68
4. A REFORM A M EIJI

O grito de guerra que anunciou a era m oderna no Ja ­


pão foi S o ht io j o i , “ Reponham o Im perador e expulsem os
bárbaros” . Este lem a procurou m anter o Japão imaculado
de contatos com o m undo exterior assim como restaurar
uma idade áurea do sécujo X antes do advento do “ duplo
m ando” de Im perador e Xógum. A corte do Im perador
em Kyoto era reacionária ao extremo. A vitória d a facção
do Im perador significava p ara os seus partidários a
humilhação e expulsão de estrangeiros, a reintegração de
costumes tradicionais d a vida no Japão e que os “re­
formistas” não mais deliberassem nos negócios. Os
gràndes Senhores Externos, os daimios dos m ais fortes
feudos do Japão que promoveram a derru b ad a do Xo-

69
gunato, viam na R estauração o m odo pelo qual eles, ao
invés d os T okugaw a, pudessem governar o Japão. V isa ­
vam apenas um a m udança d e p essoal. O s agricultores
almejavam guardar m aior porção d o arroz que cu l­
tivavam , porém , odiavam as “ reform as” . O s sam urais
desejavam conservar as pensões e ter a oportunidade de
usar suas espadas para m aiores glórias. O s com erciantes,
que financiaram as forças d a R estauração, queriam
expandir o m ercantilism o, sem con tu d o jam ais questionar
o sistem a feudal.
Q uando as forças anti-T okugaw a triunfaram e o
“ d u p lo m ando” teve fim em 1868 com a R estauração do
Im perador, os vencedores viram -se im p elidos, segu n do os
padrões ocidentais, a um a p olítica isolacionista
ferozm ente conservadora. A princípio, o regim e seguiu o
rum o oposto. M al um ano no poder, aboliu o direito de
tributaçao do d aim io em tod os os feudos. R ecolheu os ca ­
dastros e apropriou a taxa de “40% para o d aim io” dos
cam poneses. N ão deixou de haver com pensação para esta
desapropriação. O governo d estin ou a cada d aim io o
equivalente à m etade do seu salário norm al, liberando-o
ao m esm o tem po do sustento de seus dependentes
sam urais e disp ên d ios com obras públicas. O s d e ­
pendentes sam urais, assim com o o daim io, recebiam
pensões do governo. Por todos os cin co anos su b se­
qüentes, aboliu-se sum ariam ente qualquer desigualdade
entre as classes, proscrevendo-se as insígnias e as ves­
tim entas distintivas d e casta e classe — até m esm o os ra­
b ichos foram cortados — libertando-se os párias, re­
tirando-se as leis contra a alienação de terras, rem ovendo-
se as barreiras entre feud os e tornando não-oficial o
B udism o. Por volta de 1876, as pensões d os d aim ios e
sam urais foram convertidas em indenizações a vencerem -
se em cinco a quinze anos. Eram elas pequenas ou
grandes, de acordo com o salário fixo de tais indivíduos no
tem po d os T okugaw a, possib ilitand o-lh es com esse
dinheiro a iniciativa de em preendim entos dentro da nova
econom ia não-feudal. “ Era a etapa final de consum ação
d aqu ela peculiar u nião de com erciantes e príncipes
financeiros com os príncipes feudais ou proprietários, já
evidenciada no período T oku gaw a.’ *

* N orm an. p. % .

70
Essas notáveis reform as do incipiente regime Meiji
não foram populares. Houve um entusiasm o m uito mais
generalizado com um a invasão da Coréia, de 1871 a 1873,
do que em torno de tais m edidas. O governo Meiji não
somente persistiu no seu drástico cam inho de reformas,
como eliminou o projeto de invasão. O seu program a era
tão fortemente contrário aos desejos d a grande m aioria
daqueles que haviam lutado para instituí-lo que, por volta
de 1877, Saigo, seu m aior líder, organizara um a rebelião
geral contra o governo. Seu exército representava todos os
anseios pró-feudais dos partidários imperiais, traídos pelo
regime Meiji desde o prim eiro ano d a R estauração. O go­
verno convocou um exército voluntário não-sam urai,
derrotando os sam urais de Saigo. Contudo, a rebelião
servia p a ra indicar a extensão do descontentam ento susci­
tado pelo regime no Japão.
O descontentam ento dos agricultores foi igualmente
acentuado. Entre 1868 e 1878, a prim eira década Meiji,
verificaram-se, pelo menos, 190 revoltas. Em 1877, o novo
governo efetuou seus primeiros movimentos vagarosos no
sentido de am enizar o grande ônus fiscal sobre os cam ­
poneses, justificando-lhes a idéia de que o regime os
tra íra Âlém do mais, os agricultores opuseram-se à
fundação de èscolas, ao recrutam ento, à medição de
terras, a ter de cortar os rabichos, à igualdade legal dos
párias, às restrições drásticas sobre o budism o oficial, às
reformas do calendário e a m uitas outras m edidas que
modificavam os seus modos de vida estabelecidos.
Quem era, então, este “ governo” , que em prendia tais
reformas drásticas e impopulares? E ra o constituído por
aquela “ peculiar união” no Japão dos sam urais inferiores
e a classe dos comerciantes, promovida por instituições
japonesas especiais já na época feudal. Eram os samurais
dependentes que haviam aprendido política quando
camaristas e intendentes dos daim ios e foram eles
tam bém os organizadores dos monopólios feudais de
minas, têxteis, papelões e congêneres. E ram comerciantes
que haviam comprado a posição de sam urais e difundido
o conhecimento de técnicas produtivas nessa classe. Essa
aliança samurai-négociante logo revelou adm inistradores
competentes e seguros, que traçaram a política Meiji e
planejaram a sua execução. O problem a verdadeiro,
entretanto, não é de qual classe provinham eles e sim

71
como podiam ser tão capazes e realistas. O Japão,
emergindo do medievalismo n a segunda m etade do século
XIX e estando tão fraco então, quanto o atual Sião, pro­
duziu líderes capazes de conceber e levar a cabo um a das
obras de m aior nível político e vitoriosas já tentadas por
algum a nação. A força e tam bém a fraqueza desses líderes
estão arraigadas no caráter japonês tradicional, e o
principal objetivo deste livro está em exam inar qual foi e
qual é este caráter. Neste ponto, cabe-nos apenas
assinalar como os estadistas d a E ra Meiji desincum biram -
-se d a sua empresa.
Não em preenderam a sua tarefa como um a revolução
ideológica, e sim como um trabalho. A m eta que con­
cebiam era fazer do Japão um país de destaque. Não eram
iconoclastas. Não injuriaram e arruinaram a classe
TeuSãíTÕ que se fez foi atraí-lo com pensões substanciais,
a ponto de eventualm ente aliciá-los p ara o regime.
M elhoraram por fim a situaçao do Cam ponês, m ais se
atribuindo a sua dem ora de dez anos à deplorável con­
dição inicial do Tesouro à Êpoca Meiji do que a um a re­
jeição de classe às reivindicações que os camponeses
faziam ao regime.
Os estadistas operosos e atilados que dirigiram o go­
verno Meiji rejeitaram , contudo, as idéias de pôr fim à
hierarquia no Japão. A Restauração sim plificara a ordem
hierárquica colocando no ápice o Im perador e abolindo o
Xógum. Os estadistas da pós-R estauração, acabando com
os feudos, elim inaram o conflito entre a lealdade ao
suserano e ao Estado. Essas m udanças não depuseram os
hábitos hierárquicos. Deram-lhes nova localização. “ Suas
Excelências” , os novos líderes do Japão, de fato for­
taleceram o governo centralizado, a fim de im por ao povo
os seus bem elaborados program as. Alternavam as ordens
vindas de cima com as dádivas, logrando assim so­
breviver. Não pensaram , todavia, que tinham de dar sa­
tisfações à opinião pública que talvez não quisesse re­
form ar o calendário, fundar escolas públicas ou pres­
crever a discrim inação contra as párias.
Um a dessas dádivas vindas de cim a foi a Cons­
tituição do Japão, dada pelo Im perador ao seu povo em
1889. Conferia um lugar ao povo no Estado e instituía a
Dieta. Foi criada com grande cuidado por Suas Ex­
celências, após um estudo crítico de m uitas constituições
do M undo Ocidental. Contudo, seus redatores adotaram

72
"to d a precaução possível n a defesa contra a interferência
popular e a invasão d a opinião pública” . * Á própria re­
partição que a elaborou pertencia ao D epartam ento da
Casa Im perial, sendo por conseguinte sacrossanta.
Os estadistas d a E ra Meiji estavam cônscios do seu
objetivo. D urante os anos 80, o Príncipe Ito, estruturador
da Constituição, enviou o M arquês Kido a fim de
consultar H erbert Spencer n a Inglaterra sobre os pro­
blemas que se antepunham ao Japão e, após longas
conversações, Spencer escreveu a Ito os seus pareceres. A
respeito de hierarquia, Spencer alvitrou que o Japão
dispunha nos seus acordos tradicionais de um a base
incomparável p ara a felicidade nacional, que deveria ser
m antida e desenvolvida. As obrigações tradicionais p ara
com os superiores, disse ele, e acim a de tudo p a ra com o
Im perador, constituíam a grande oportunidade do Japão.
Este lograria progredir seguram ente sob os seus
“ superiores” e prevenir-se contra as dificuldades ine­
vitáveis em nações mais individualistas. Os grandes es­
tadistas da Êpoca Meiji m uito se agradaram ao ver assim
confirmadas as suas convicções. Dispunham -se a
conservar no m undo m oderno as vantagens de se observar
a “devida posição” . Não tencionavam solapar o hábito da
hierarquia.
Em todos os campos de atividade, fossem políticos,
religiosos ou econômicos, os estadistas d a E ra Meiji d e­
term inaram os deveres d a “ devida posição” entre o E sta­
do e o povo. Todo o seu sistema é tao distanciado de
dispositivos dos Estados Unidos e da Inglaterra que
geralmente não chegamos a perceber seus pontos básicos.
Havia, sem dúvida, um a direção superior poderosa que
não se propunha a seguir a orientação d a opinião pública.
Este governo era adm inistrado por um a hierarquia
suprema, sem jam ais incluir m embros eleitos. Neste nível
o povo não podia ter ingerência. Em 1940, a hierarquia
suprem a do governo era com posta por aqueles que
tinham “ acesso” ao Im perador, por aqueles que se consti­
tuíam nos seus consultores imediatos e por aqueles cujas
altas designações traziam o selo privado. Incluíam-se
entre estes últimos os ministros, os prefeitos-

* C itado d e u m a a u to rid a d e ja p o n e sa que b ase ia suas observações


cm d eclarações do B a rao K aneko, um dos red ato res. V er N orm an, ib id .,
p. 88.

73
governadores, os juizes, os ch efes d e repartições nacionais
e outros fu ncionários d e igual responsabilidade. Na
hierarquia, nenhum a autoridade eleita chegava a tal si­
tuação, estando, por exem plo, fora de cogitações para os
m em bros eleitos da D ieta qualquer interferência n a
escolh a ou aprovação d e um M inistro ou dirigente da
Secretaria de Fin anças ou de Transportes. A C âm ara
B aixa eleita da D ieta constituía um a voz do povo que
dispunha do privilégio nada desprezível de interrogar e
criticar as A utoridades Superiores, m as não tinha voz ati­
va em nom eações, em assuntos orçam entários e em
d ecisões, não podendo inclusive prom ulgar um a le ­
gislação. A C âm ara B aixa chegava a ser controlada por
um a Câm ara A lta n ão-eleita, form ada em sua m etade por
nobres e num a quarta parte por nom eados im periais.
D esd e que o seu poder de aprovar a legislação pra­
ticam ente se igualava ao da Câm ara B aixa, estipulou-se
novo controle hierárquico.
O Japão assegurou, portanto, que os detentores de
elevados postos no G overno p erm anecessem “ Suas E x­
celências” ,, mas isto não significa que n ão houvesse auto-
govem o no seu “ devido lugar” . Em todos os p aíses asiá­
ticos, sob quaisquer regim es, a autoridade de cim a
sem pre desce até encontrar em terreno m ediano o auto-
governo local vindo debaixo. A s d essem elhan ças entre
países diferentes dizem respeito a todas as questões re­
ferentes a quanto se eleva a prestabilidade dem ocrática,
quantas ou quão poucas são as suas responsabilidades e
se a liderança local perm anece receptiva a tod a a com uni­
dade ou é apropriada antecip adam ente pelos m agnatas
locais em prejuízo do povo. O Japão d os T okugaw a
possuía, com o a China, m inúsculas unid ades de cinco a
d ez fam ílias, recentem ente den om inad as de t o n a r i g u m i ,
constituindo as m ínim as unidades de responsabilidade
política da população. O chefe d este grupo de fam ílias
vizinhas assum ia a liderança d os negócios, era res­
ponsável pela sua boa conduta, tinha obrigação de for­
necer relatórics de quaisquer atos duvidosos e entregar ao
governo indivíduos procurados. O s estadistas d a É poca
M eiji aboliram -nas, de início, ten d o sido m ais tarde
restaurados e denom inadas de t o n a r i g u m i . N as cidades e
aldeias o governo por vezes as fom entava ativam ente, rftas
hoje em dia elas raram ente fu ncionam m esm o em vilare­
jos. A s unidades d os povoados ( b u r a k u ) são m ais im ­

74
portantes. As h u r a k u não foram abolidas nem in­
corporadas como unidades no governo. Situavam-se
num a zona em que o Estado não atuava. Esses povoados
de umas quinze casas continuam a funcionar ainda hoje
de m aneira organizada através de seus chefes anualm ente
revezados, que “ cuidam dos bens do povoado, controlam
o auxílio ao povoado concedido às famílias em caso de
morte ou incêndio, escolhem os dias apropriados p ara o
trabalho cooperativo n a agricultura, n a construção de
casas ou no conserto de estradas, assim como anunciam
as festividades locais e feriados, tocando o sino de in­
cêndio ou batendo dois blocos de m adeira um no outro,
dentro de um certo ritm o” .* Ao contrário de alguns
países asiáticos, esses dirigentes não são tam bém res­
ponsáveis pelo recolhim ento dos impostos de Estado na
sua comunidade, não tendo eles, porUmto, de suportar tal
ônus. A sua posição nada tem de ambivalente; atuam no
setor da responsabilidade democrática.
O governo civil moderno no Japão reconhece
oficialmente a adm inistração local de cidades, aldeias e
vilarejos. Os “ mais velhos” eleitos escolhem um chefe
digno de confiança que atua como representante da
comunidade em todos os entendimentos com o Estadò,
representado pelos governos nacional e d a prefeitura. Nos
vilarejos, o chefe é um m orador antigo, m em bro de um a
fam ília de agricultores proprietários rurais. T rabalha com
prejuízo financeiro, mas seu prestígio é considerável. Ele e
os mais velhos são responsáveis pelas finanças do vilarejo,
saúde pública, m anutenção de escolas e especialmente
pelos registros de propriedades e dossiês individuais. A
repartição do governo do vilarejo é um local mo­
vimentado. Encarrega-se de despender a verba estatal
para a educação prim ária das crianças, assim como da
arecadação e distribuição do seu quinhão local bem maior
de despesas escolares, adm inistração e locação d a pro­
priedade local, aproveitam ento de terras e florestamento e
registros de todas as transações de bens, que se tom am le­
gais somente ao darem en trad a devidam ente nesta re­
partição. Cumpre-lhe conservar tam bém um registro
atualizado de residência, estado civil, nascimentos, ado­
ções, qualquer encontro com a lei e outros fatos em rela­
ção a cada indivíduo que ainda m antenha residência
* É m b ree, Jo h n F. T h e J a p a n e s e N a tio n . p. 88.

75
oficiai n a com unidade, além de um registro fam iliar, em
que constem dados sim ilares acerca d a própria família.
Q ualquer informação dessas é enviada de qualquer p arte
do Japão p ara a repartição oficial local de cada um e
arrolada no dossiê. Q uando se pleiteia um cargo, o candi­
dato é submetido a julgam ento ou de algum a form a
solicitado a identificar-se; escreve à repartição local
competente da com unidade ou a ela se dirige pessoal­
mente, obtendo assim um a pública-form a, fornecida às
pessoas interessadas. Não se afronta levianam ente a
possibilidade de um m au assentam ento no próprio dossiê
ou no d a família.
A cidade, aldeia e vilarejo tem , portanto, um a res­
ponsabilidade considerável. É a responsável pela com uni­
dade. Mesmo nos anos 20 deste século, quando o Japão
tinha partidos políticos nacionais, o que em qualquer país
significa, um a alternância de dom ínio entre os “de
d en tro ” e os “de fora” , a adm inistração local geralmente
perm anecia incólume a tal evolução, sendo dirigida pelos
mais velhos que agem por toda a com unidade. Em três
pontos, no entanto, as adm inistrações locais não têm
autonom ia: todos os juizes são nom eados nacionalm ente,
toda a p o lid a e os professores são empregados do Estado.
Já que a m aioria das questões cíveis no Japão ainda são
resolvidas m ediante arbitragem ou através de in­
term ediários, os tribunais quase não figuram n a ad ­
m inistração. A polícia é mais im portante. A polícia tem
de estar de prontidão nos comícios, mas tais deveres são
periódicos e a m aior parte do tem po deles é dedicada à
guarda dos registros pessoais e de bens. O Estado pode
transferir policiais com freqüência de um posto p ara
outro, a fim de que perm aneçam desvinculados de elos
locais. Os professores são tam bém transferidos.'’O Estado
regulam enta cada detalhe das escolas e, como n a França,
cada escola do país está estudando no mesmo dia a
m esm a lição do mesmo compêndio. Todas as escolas
executam os mesmos exercícios calistênicos d a mesma
transm issão radiofônica, na m esm a hora m atutina. A
comunidade não dispõe de autonom ia local sobre escolas,
polícia ou trib u n ais.1'
O governo japonês difere grandem ente, portanto, em
todos os pontos do americano, onde os indivíduos eleitos
são investidos da mais elevada responsabilidade executiva
e legislativa, e o controle local é exercido através d a dire­

76
ção da polícia e de tribunais de polícia. C ontudo, não d i­
fere form alm ente d a estrutura governamental de países
rem atadam ente ocidentais tais como a H olanda e a
Bélgica, Na H olanda, por exemplo, como no Japão, o
M inistério da R ainha redige todas as leis propostas, n io
tendo a D ieta na prática iniciado a legislação. A Coroa
Holandesa nomeia legalmente até mesmo prefeitos de
aldeias e cidades, e assim o seu direito formal alcança
mais zonas locais de interesse do que no Japão antes de
1940. É isto verdade, m uito em bora n a prática a Coroa
Holandesa aprove geralmente um a nom eação local. A
responsabilidade direta d a polícia e dos tribunais perante
a Coroa é tam bém holandesa. E nquanto n a Holanda
podem as escolas serem organizadas livremente por
qualquer grupo sectário, o sistem a escolar japonês é
idêntico ao da França. A responsabilidade local por
canais, pôlderes e m elhoram entos é tam bém um dever de
toda a comunidade na H olanda, e não de um prefeito e
autoridades eleitas politicamente.
A verdadeira diferença entre a form a de governo ja ­
ponesa e casos como esses d a Europa Ocidental jaz n io na
form a e sim no funcionam ento. Os japoneses fiam-se nos
hábitos antigos de deferência, firmados n a experiência
passada e formalizados no seu sistema ético e n a etiqueta.
O Estado pode ficar certo de que quando suas Excelências
atuam n a sua “ devida posição” , suas prerrogativas serão
respeitadas, não porque seja aprovada a política, mas
porque é errado no Japão desprezar fronteiras entre as
mesmas. No nível mais elevado d a política a “ opinião po­
pular” não se entrosa. O governo solicita apenas “ apoio
popular” . Q uando o Estado dem arca o seu campo oficial
na zona do interesse local, a sua jurisdição tam bém é
aceita com deferência. O Estado, em todas as suas
funções domésticas, não é considerado um mal
necessário, quanto o é geralmente encarado nos Estados
Unidos. Aos olhos japoneses, o Estado vem quase a ser o
bem supremo.
De m ais a mais, o Estado é meticuloso ao reconhecer
o “devido lugar” p ara a vontade do povo. Nas zonas da le­
gítima jurisdição popular n io será exagero assinalar que o
Estado Japonês tenha precisado persuadir o povo, ainda
que para o seu próprio bem. O agente de expansão
agrícola do Estado poderá agir quase "orr o mínimo
autoritarism o no aperfeiçoamento de antigos métodos de

77
agricultura que o seu congênere d e Idaho. A autori­
dade estatal, ao defender as associações d e crédito dos
agricultores afiançadas pelo E stado ou as cooperativas de
agricultores para com pra e venda, é obrigada a realizar
prolongadas m esas-redondas com as em inências locais, e
depois acatar-lhes a decisão. O s assuntos locais exigem
gerência local. O m odo de vida jap on ês determ ina a
autoridade devida e define a sua devida esfera. Atribui
m uito maior deferência — e portanto liberdade de ação
— aos “ superiores” do que as culturas ocidentais, m as
tam bém estes devem m anter a sua posição. O lem a ja-
ponês é: cada coisa no seu lugar.
N o cam po da religião, os estadistas da E ra M eiji ad o­
taram m edidas form ais m uito m ais estranhas d o que no
governo. C ontinuavam , entretanto, fiéis ao m esm o lem a
japonês. O E stado considerou de seu dom ínio um culto
que preserva especificam ente os sím b olos da unidade e
superioridade nacionais e quanto ao resto concedeu ao
indivíduo a liberdade d e culto. E sta área de jurisdição
nacional era o X intó d o E stado. Já que se interessava pelo
devido respeito aos sím bolos nacionais, tal qual nos E sta­
dos U n idos a saudação à bandeira, o X in tó do Estado,
diziam eles, “ não era um a religião” . O Japão podia,
portanto,exigi-lo de tod os os cidadãos, sem violar o d og­
m a ocidental da liberdade religiosa m ais do que os E sta ­
dos U n id os ao dem andar a saudação à bandeira. Era um
sim ples gesto de ob ediência. Por “ não ser religião” , o Ja­
pão p odia ensiná-lo nas escolas sem arriscar-se à crítica
ocidental. O X intó do E stado nas escolas torna-se a
história do Japão desde a era dos deu ses e a veneração do
Imperador, “ sem piterno governante” . E ra sustentado e
regulam entado pelo E stado. T odas as outras áreas da
religião, m esm o o X in tó sectário ou ritual, sem falar no
B udism o e as seitas cristãs, eram entregues à iniciativa
individual, com o nos E stados U n idos. A s duas áreas ch e­
gavam a ser separadas adm inistrativa e financeiram ente.
O X intó do Estado tinha o seu próprio departam ento no
M inistério do Interior, sendo os sacerdotes, as cerim ônias
e os altares patrocinados pelo Estado. O X intó ritual e as
seitas budistas e cristãs eram da com petên cia de um Setor
d e R eligião, d o D epartam en to de E du cação e sustentados
por contribuições voluntárias dos m em bros.
D evid o à posição oficial do Japão quan to ao assunto,
n ão se pode falar do X intó do E stad o com o u m a grande

78
Igreja Oficializada, mas pelo menos como um a grande
Instituição. Havia mais de 110.000 altares, estendendo-se
desde o grande A ltar de Ise, tem plo da Deusa do Sol, até
pequenos altares locais, lim pados pelo saeérdòte óficiante
por ocasião de um a cerim ônia especial. A hierarquia
nacional de sacerdotes correspondia à política e as linhas
de autoridade partiam desde o mais ínfimo sacerdote,
através dos de distrito e prefeitura, até as suas m ais altas
Excelências eclesiásticas. Oficiavam cerimônias p ara o
povo, mais do que dirigiam o culto pelo povo, não h a ­
vendo no Xintó do Estado nada paralelo à nossa familiar
freqüência de igreja. Os sacerdotes do Xintó do Estado —
já que não constituía um a religião — eram proibidos por
lei de ensinar qualquer dogma e não podia haver ofícios
de igreja à m aneira ocidental. Ao invés, nos dias regular es
de cerimônias, os representantes oficiais da comunidade
compareciam diante do sacerdote, enquanto este os p u ri­
ficava, agitando na frente deles um a vara com cânham o e
galhardetes de papel. A bria ele, então, a porta do san­
tuário, invocando os deuses, com um agudo grito, a virem
participar de um a refeição cerimonial. O sacerdote rezava
e cada participante, por ordem de graduação, apresen­
tava, com um a profunda reverência, o objeto onipresente
no antigo e no novo Japão: um ram inho de sua árvore sa­
grada, com tiras de papel branco dependuradas. O
sacerdote enviava de volta os deuses com outro grito e
fechava as portas do santuário. Nos dias festivos do Xintó
do Estado, o Im perador, por seu turno, celebrava os ri­
tuais para o povo e as repartições públicas fechavam. Mas
tais feriados não constituíam grandes festividades po­
pulares como as cerimônias em honra dos altares locais ou
mesmo os feriados budistas. T anto uns como os outros si­
tuam-se na zona “ livre” , fora do Xintó do Estado.
Nesta zona o povo japonês ocupa-se das grandes sei­
tas e festividades caras aos seus corações. O Budismo
continua sendo a religião da grande m assa do povo e as
várias seitas, com os seus diferentes ensinam entos e pro­
fetas fundadores, são poderosas e onipresentes. O próprio
Xintó tem seus grandes cultos situados fora do Xintó do
Estado. Alguns constituíam cidadelas de puro
nacionalismo, antes mesmo de o governo, nos anos 30
deste século, ter assumido tal posição; alguns são seitas de
curas pela fé, comparáveis à Ciência Crista; outros
prendem-se a princípios confucionistas, sendo que outros

79
ainda se especializaram em estados de transe e pere­
grinações a m ontanhas sagradas. A m aioria dos festejos
populares sao tam bém realizados fora do Xintó do E s­
tado. Nesses dias, o povo se aglom era nos santuários. C a­
da um purifica-se enxaguando a boca e invoca a descida
do deus puxando um a corda de sino ou batendo palm as.
Curva-se em reverência, envia de volta o deus através de
outra puxada da corda do sino ou b atid a de palm as e sai
p ara as principais atividades do dia, quais sejam, as de
com prar bugigangas e guloseimas dos vendedores que
instalaram suas barracas, assistir a lutas livres, exor­
cismos ou mesmo danças k a g u r a , liberalm ente anim adas
por palhaços, que, em geral, divertem a multidão. Um
inglês que morou no Japão citava os versos de W illiam
Blake, por ele sempre lem brados nas festividades ja ­
ponesas:

S e n a ig r e j a n o s d e s s e m b e b id a ,
E um fo g o tr o u x e s s e a a lm a a q u e c id a ,
C a n t a n d o e r e z a n d o a o d i a f ic a r ,
J a r .ia is n o s s a f é ir i a f a lt a r .

^ A não ser para aqueles poucos que profissionalm ente


se dedicaram às austeridades religiosas, a religião não é
austera no Japão') Os japoneses consagram-se tam bém às
peregrinações religiosas, que se constituem em feriados
grandem ente apreciados.
Os estadistas d a Época Meiji, portanto, cui­
dadosam ente dem arcaram a zona de atuação do Estado
no governo e do Xintó do Estado no terreno religioso.
Deixaram as outras zonas p ara o povo, assegurando, no
entanto, p ara eles, como autoridades suprem as da nova
hierarquia, a preponderância em assuntos que a seus
olhos diziam respeito diretam ente ao Estado. Ao or­
ganizar as Forças Arm adas, defrontaram -se eles com um
problem a similar. Rejeitaram , como em outros terrenos, o
antigo sistema de castas, mas no Exército adiantaram -se
mais do que na vida civil. Proscreveram ali até mesmo a
linguagem de reverência do Japão, em bora na prática
persistisse, sem dúvida, o antigo tratam ento. O Exército
passou tam bém a fazer promoções à categoria de oficiais
na base do m érito e não de família, num grau que d i­
ficilmente poderia ser posto em prática em outros

80
terrenos. A sua reputação entre o s japoneses elevou-se e,
ao que tudo indica, m erecidam ente. C onstituiu cer­
tam ente o m elhor m eio disponível para angariar o apoio
popular para o novo E xército. A s com panhias e pelotões,
igualm ente, eram form ados de vizinhos d a m esm a região
e o serviço militar em tem p o d e paz era feito em postos
próxim os à casa de cada um . Isso significava n ão apenas
que os laços locais eram conservados, com o tam bém que
todos os que passavam p elo treinam ento m ilitar viviam
dois anos durante os quais as relações entre oficiais e pra­
ças, entre veteranos e calouros superavam as entre
sam urais e agricultores ou entre ricos e p o b r e s O Exército
funcionava de m uitas m aneiras com o um nivelador
dem ocrático, constituindo em grande parte um ver­
dadeiro exército p o p u la r / E nq u anto o E xército, na
maioria d os outros países, é considerado com o o braço
forte defensor da situação vigente, no Japão, a sim patia
do E xército pelo cam pônio m obilizou-o em reiterados
protestos contra os grandes financistas e industriais.
O s estadistas japoneses talvez não tenham aprovado
todas as conseqüências da organização de um exército po­
pular, m as não a ponto de julgarem cabível assegurar a
suprem acia do E xército na hierarquia. G arantiram tal
objetivo através de m edidas n as m ais altas esferas. N ão as
incluíram na C onstituição, m as conservaram com o norma
costum eira a já reconhecida ind ep en d ên cia do Alto
Com ando com relação ao governo civil. Os M inistros do
Exército e da M arinha, em contraste, por exem plo, com o
dirigente d os N egócios E xteriores e dos dem ais, tinham
acesso direto ao Im perador, podendo, por conseguinte,
.utilizar o seu nom e, ao impor as suas m edidas. Não
precisavam informar ou consultar os seus colegas civis de
gabinete. A lém disso, as Forças A rm adas d ispunham de
um a vantagem sobre qualquer gabinete. Podiam impedir
a formação de um gabinete em que não confiassem , m e­
diante o sim ples expediente de recusarem a disp en sa de
generais e alm irantes para ocuparem postos m ilitares no
gabinete. Sem tais elevadas p aten tes do serviço ativo para
as posições de M inistros d o E xército e d a M arinha, não
poderia haver gabinete. N enhum civil ou oficial d a reserva
poderia ocupar tais postos. A nalogam ente, se as Forças
Arm adas se descontentassem com qualquer ato do
M inistério, poderiam ocasionar a sua d issolução fazendo

81
voltar os seus representantes no gabinete. N este m ais alto
nível de governo, a alta hierarquia m ilitar assegurava-se
contra qualquer com patib ilização com interferências. Se
precisasse de garantias, existia um a na C onstituição: “ Se
a D ieta n ão aprovar o orçam ento apresentado, o Governo
disporá au tom aticam ente do orçam ento do ano anterior
para o atual período” . A façanha do E xército de ocu p ação
d a M anchúria, quando o M inistério d as R elações E x ­
teriores prometera que tal passo não seria d ado, co n s­
titu iu apenas um d os casos em que a hierarquia militar
apoiou efetivam ente seus com andantes em cam panha na
ausência de um a resolução m inisterial. C om o em outros
terrenos, o m esm o ocorria no Exército: no que respeita a
privilégios hierárquicos, os jap on eses inclin am -se a acei­
tar todas as conseqüências, não por concordância acerca
d a diretriz, mas por desencorajarem a transgressão de
lim ites entre as prerrogativas.
J N o cam po do desenvolvim ento industrial, o Japão se­
gu iu um cam inho sem paralelo em qualquer nação oci­
d en ta l/ D e novo Suas E xcelências arrumaram o jogo e
estabeleceram as regras. N ão apenas planejaram , com o
construíram e financiaram , com dinheiro do governo, as
indústrias que julgaram necessárias. A burocracia estatal
organizou-as e dirigiu-as. T écn icos estrangeiros foram
im portados e os jap on eses foram enviados ao exterior
para aprender. Q uando, então, segu n do eles, essas in ­
dústrias estavam “ bem organizadas e os negócios
prosperavam ” , o governo alienou-as para firm as p ar­
ticulares. Foram vendidas aos poucos, a “preços ri­
diculam ente baixos” * a um a oligarquia financeira
selecionada, a fam osa Zaibatsu, principalm ente das
fam ílias M itsui e M itsubishi. Seus estadistas con si­
deraram o desenvolvim ento industrial dem asiado im ­
portante para o Japão para ser confiado às leis da oferta e
da procura ou à livre em presa. M as esta política nao se
deveu ao dogm a socialista. Precisam ente os Z aibatsu é
que colheram as vantagens. O feito do Japão foi organizar
as indústrias que considerou necessárias com o m ínim o de
tropeço e desperdício.
P o rta is m eios, o Japão conseguiu reformar “ a ordem
normal do ponto de partida e as etapas subseqüentes da

* N orm an, op. cit. p. 131. E ste exam e é b a se ad o na esclarecedora


análise fornecida p o r N orm an.

82
produção capitalista” . r A o invés d e com eçar com a pro­
dução de bens de consum o e indústria leve, primeiro
incum biu-se ele das indústrias-chave p esada^cA rsenais,
estaleiros, usinas siderúrgicas, construção d e ferrovias ti­
veram prioridade e rapidam ente alcançaram um elevado
estágio de eficiên cia técnica. N em todos foram entregues a
m ãos particulares, perm anecendo grandes indústrias
militares presas à burocracia e financiadas por contas
especiais do governo.
E m todo este cam po de indústrias, às quais concedia
o governo prioridade, o pequeno com erciante ou o em ­
presário não-burocrata não tinham “ devido lugar”.
Som ente o E stado e os grandes estabelecim entos
financeiros de confiança e p oliticam ente protegidos é que
atuavam em tal área. M as, com o em outros setores da vi­
da japonesà, havia tam bém um a zona livre na indústria.
Eram as indústrias “ de sobra” , que funcionavam com um
financiam ento m ínim o e u m a utilização m áxim a d e m ão
de obra barata. Essas indústrias leves poderiam existir
sem a tecnologia m oderna e o conseguem . Funcionam elas
através do que costum ávam os cham ar nos E stados U n i­
dos de suadouros dom ésticos. U m pequeno industrial
compra a m atéria-prim a, dá de em preitada a u m a fam ília
ou oficina pequena com quatro ou cinco operários, re­
tom a-a, repetindo a entrega para m ais um a etapa de
operação e n er fim vende o produto ao com erciante ou
exp ortad ocrN os anos 30 deste século, nada m enos de
53 por cento d os industriários d o Japão trabalhavam ,
dessa m an eirayem oficinas e casas com m enos de cinco
operários. * * /
M uitos d eles são protegidos por antigas praxes de
aprendizado, sendo grande o núm ero de m ães que, nas
grandes cidades do Japão, trabalham em suas tarefas com
os seus bebês atados às costas.
Esta dualidade da indústria jap on esa é quase tão
importante no m odo de vida japonês quanto a do setor do
governo e a da religião. É com o se, quando os estadistas
japoneses decidissem da necessidade de u m a aristocracia
Financeira correspondente às suas hierarquias em outros
cam pos, criassem para ela as indústrias estratégicas,

* N orm an, op. cit. p. 125.


* * Prof. U yeda, c itad o p o r F arley, M iriam S. P ig m y F a c to rie s: F a r
lú is te r n S u rv e y , VI (1937), p. 2.

83
selecionassem as casas com erciais politicam ente pro­
tegid as e as filiassem nas suas “ devidas p osições” às
outras hierarquias. N ão fazia parte de seu plano de g o ­
verno apartarem -se d esses grandes estabelecim en tos
financeiros e os Z aibatsu valeram -se d e um a esp écie de
paternalism o persistente que lhes proporcionava não
som ente lucros com o tam bém dignidades. E ra inevitável,
dadas as antigas atitudes japonesas com relação a lucro e
dinheiro, que um a aristocracia financeira recebesse o ata­
que do povo, m as o governo fez o q ue p ôde no sentido de
criá-la de acordo com as idéias consagradas d e hierar­
quia. N ão foi inteiram ente bem su ced ida, pois os Z ai­
batsu vêm sendo atacados pelos grupos d os cham ados
Jovens O ficiais do E xército e das zonas rurais. M as verda­
de é ainda que o m aior rancor d a op in ião p ública ja ­
ponesa volta-se não contra os Zaibatsu, m as sim contra os
n a r ik i n . Narikin geralm ente tem- a acepção d e n o u v e a u
r ic h e , m as não dá id éia do sentim ento japonês. N os E sta ­
dos U n id os os novos ricos são rigorosam ente os “ arri-
vistas” . São ridículos por serem desajeitados, sem o tem po
necessário para adquirir o devido verniz. Tal d es­
vantagem , contudo, é con trabalançada pelo sim pático
predicado de se originarem das cabanas de toros, as­
cendendo da condução de m ulas ao controle de m ilhões
petrolíferos. Entretanto, no Japão, narikin é um term o
extraído do xadrez jap on ês e significa um peão prom ovido
a rainha, m ovim entando-se pelo tabuleiro com o um
grande figurão, sem possuir direito algum hierárquico
para fazer um a coisa dessas. O narikin tem a fam a de ter
adquirido a sua fortuna lesando ou explorando os outros e
o rancor contra ele está o m ais longe possível da atitude
adotada nos E stados U n idos em relação ao “rapaz da c i­
dade que se sai bem ” . O Japão reservou um lugar na sua
hierarquia para a grande fortuna e conservou-se aliado a
ela. Q uando a riqueza é conseguida fora desse cam po, a
opinião pública jap on esa recebe-a com acrim ônia.
O s japoneses, portanto, organizam o seu m undo em
constante referência com a hierarquia. N a fam ília e nas
relações pessoais, idade, geração, sexo e classe ditam a
conduta devida. N o governo, religião, E xército e in d ú s­
tria, as zonas acham -se cu idad osam ente separadas por
hierarquias, onde nem aos m ais elevados, nem aos m ais
baixos se perm ite ultrapassar as suas prerrogativas sem
uma punição. C ontanto que se conserve a “devida posi­

84
ção” , os japoneses vão adiante sem protesto. Sentem-se
seguros. E stá claro que nem sempre estão “ seguros” no
sentido de que os seus melhores bens estejam protegidos,
e sim porque consideram legítima a hierarquia, sendo ela
tão característica do seu julgam ento sobre a vida quanto a
fé na igualdade e n a livre em presa o é n a vida americana.
Os problem as do Japão surgiram quando ele tentou
exportar a sua fórm ula de “ segurança” . No seu próprio
país a hierarquia ajusta-se à imaginação popular, porque
esta por ela foi m odelada. As ambições só podiam ser as
que se formassem nesse tipo de m undo. M as revelou-se
um produto fatal p ara a exportação. Os outros países
consideraram as grandiloqüentes pretensões do Japão de
im pertinência p ara pior. Os oficiais e soldados japoneses,
entretanto, continuavam a surpreender-se pelo fato de
que os habitantes não os acolhessem bem. Não estava o
Japão lhes oferecendo um a posição, conquanto baixa,
num a hierarquia, e não era esta desejável, mesmo p ara os
que se encontram em seus degraus inferiores? Os seus
Serviços de G uerra continuavam a divulgar séries de
filmes de guerra focalizando o “ am or” d a C hina pelo Ja ­
pão, sob a imagem de furiosas e tresloucadas garotas
chinesas que descobriam a felicidade apaixonando-se por
um soldado ou engenheiro japonês. Estava bem longe da
versão nazista de conquista, contudo, a longo prazo não
era mais bem sucedida. Não podiam exigir das outras n a­
ções o mesmo que de si próprios. Im aginar que o
pudessem constituiu o seu erro. Não atinaram que o
sistema de m oralidade japonesa que os condicionara a
“ aceitar a devida posição” era algo com que não po­
deriam contar no exterior. Os outros países não o tinham .
Ê um produto genuíno do Japão. Os seus escritores tan to
se asseguravam desse sistema ético, a ponto de não
descrevê-lo, o que vem a ser imprescindível, antes que se
possa entender os japoneses.

85
5. D E V E D O R D O S SÉC UL OS E D O M U N D O

Na língua inglesa, costumávamos falar acerca de


sermos “herdeiros dos séculos” . D uas guerras e um a
grande crise econômica dim inuíram de algum modo a
autoconfiança antes pressagiada, contudo, fato é que
essas vicissitudes não aum entaram certam ente nosso
sentido de dívida p ara com o passado. Os países orientais
viram a moeda do outro lado: são devedores dos séculos.
O que os ocidentais denom inam de culto dos ancestrais
não é na m aior parte um culto nem é de todo dirigido aos
ancestrais; é antes um reconhecim ento em ritual do
grande débito do homem em relação a tudo o que se
passou antes. Aliás, tem débito não apenas p ara com o
passado; cada contato cotidiano com outras pessoas
aum enta o seu débito p ara com o presente, do qual devem

87
em anar suas decisões e ações diárias. Ê o ponto d e partida
fundam ental. D evid o a que os ocid en tais tão pouco
atentam para o seu débito para com o m u n do -e o que este
lhe deu sob a form a de cuidados, educação, bem -estar, ou
m esm o pelo sim ples fato de terem n ascido, os japoneses
julgam inadequadas as nossas m otivações. O s hom ens
virtuosos não declaram , com o fazem os d os E stados U n i­
dos, que nada devem a ninguém . N ão desprezam o p assa­
do. A probidade no Japão repousa sobre o recon he­
cim ento do próprio lugar dentro da grande rede d e m útuo
débito, abarcando tan to os antepassados quanto os
contem porâneos.
Ê sim ples pôr em palavras este contraste entre o
Oriente e o O cidente, porém é difícil avaliar a diferença
que faz no viver. A té que com preendam os isto no Japão,
não serem os capazes de perscrutar quer o suprem o auto-
sacrificio com que nos fam iliarizam os tanto durante a
guerra, quer as súbitas anim osidades que acom etem os
japoneses em situações que não ju lgam os propícias a
tanto. A situação de devedor pode tornar um hom em
extrem am ente suscetível e os japoneses o com provam .
Igualm ente lhes confere grandes responsabilidades.
T anto os chineses quanto os japoneses têm m uitas
palavras com o significado de “ obrigações” . Elas não são
sinônim as, e os seus sentidos específicos não têm tradução
literal em inglês porque as idéias que expressam nos são
estranhas. A palavra que corresponde a “ obrigações” , c o ­
brindo desde o maior até o menor d ébito d e u m a pessoa, é
o n . N a acepção japonesa, traduz-se para o inglês por um a
série de palavras, de “ obrigações” e “leald ad e” até
“bond ad e” e “ am or” , entretanto estas palavras d e ­
turpam -lhe o significado. Se quisesse m esm o dizer amor
ou m esm o obrigação, os japoneses sem dúvida em ­
pregariam o n com os seus filhos, no entanto este é um
em prego im possível para a palavra. N ão tem tam pouco o
sentido de lealdade, expressado por outras palavras ja ­
ponesas, de m odo algum sinônim as de o n . Em tod os os
seus em pregos o n é carga, débito, ônus que se carrega o
melhor que seja possível. R ecebe-se o n de um superior e o
ato de aceitar o o n de alguém que não seja de fato um
superior ou igual ocasiona um a incôm oda sensação de
inferioridade. Q uando eles dizem “T enho um o n com
relação a ele” , querem significar “ tenho um m onte de

88
obrigações p ara com ele” e cham am este credor, este
benfeitor, o seu “ homem do o r i ’ .
“Lem brar-se do seu o n ” poderá querer dizer um
puro extravasam ento de m útua devoção. U m a historieta
de um m anual de leitura do segundo ano prim ário, in­
titulada “ Não esqueça o o n ” , usa a palavra neste sentido.
Ê dirigida às criancinhas, em suas aulas de ética.

H achi é u m b o n ito cão. Ao n a sc er, foi a d o ta d o p o r u m estran h o e


tra ta d o com o filho d a casa. P o r isso, a té m esm o o seu co rp o fraco tor-
nou-se saudável e q u a n d o o d o n o ia p a ra o tra b a lh o to d a s as m an h ã s,
a co m p an h av a-o (ao d ono) ao p o n to dos b o n d es e à ta rd e voltava, lá p a ra
esperá-lo.
No devido tem p o , o d o n o m o rreu . H ach i, sab e n d o disso ou não,
co n tin u o u p ro c u ra n d o pelo d o n o todos os d ias. D irigindo-se ao h ab itu a l
p o n to , olhava p a ra ver se o d o n o e n co n trav a-se em m eio ao g ru p o de
pessoas que descia, q u an d o o b o n d e chegava.
D e sta m an e ira , p assa ram -se dias e m eses. P assou-se u m ano, dois
anos, três anos, m esm o p a ssad o s d ez anos, a en v elhecida fig u ra de H achi
e ra vista todos os dias no p o n to d os b o n d e s, à e sp e ra do dono.

A moral desta historieta é a fidelidade, que vem a ser


apenas um outro nome p ara amor. Um filho que nutre
profundo afeto por sua m ãe pode dizer que n io esquece o
o n que dela recebeu, significando que tem por ela a d e­
voção sincera de Hachi por seu dono. O term o, contudo,
refere-se especificamente não a este amor, e sim a tudo o
que a m ãe fez por ele quando bebê, os seus sacrifícios
quando foi um menino, tudo o que ela fez p a ra promover
os seus interesses quando hom em , tudo o que ele lhe deve
pelo simples fato de que ela existe. Im plica num a re­
tribuição sobre tal débito, significando, portanto, amor.
Mas o sentido prim ordial é de débito, ao passo que nós
consideramos o amor como algo dado livremente, sem
peias de obrigação.
O n é sempre em pregado neste sentido de devoção
sem limites quando em ana do principal e m aior dos d é­
bitos, o n imperial. Ê o débito p a ra com o Im perador, que
se deve aceitar com gratidao incomensurável. Seria
impossível, acham eles, estar satisfeito com o próprio país,
com a própria vida, com os próprios interesses grandes e
pequenos, sem pensar tam bém em aceitar tal privilégio.
Em toda a história japonesa, esta personalidade a con­
centrar m aior débito dos hom ens constituía o m aior entre
todos os superiores nos limites do horizonte. Em d i­
ferentes períodos havia sido o suserano, o lorde feudal e o

89
Xógum. A tualm ente é o Im perador. Qual fosse o
superior, não chegava a ser tão im portante quanto a
prim azia secular do hábito japonês de “lem brar-se do
o n ' . O Japão m oderno utilizou todos os meios no sentido
de concentrar este sentim ento sobre o Im perador. Cada
favoritismo que obtenham p a ra o próprio modo de vida
aum enta o o n imperial de cada um. Cada cigarro dis­
tribuído ao Exército nas linhas de frente, em nome do
Im perador, d urante a guerra, sublinhava o o n de cada
soldado p ara com ele. Cada gole de saquê a eles repartido,
antes da batalha, constituía mais um o n imperial. C ada
piloto k a m i k a z e de avião suicida estava, diziam eles, re­
tribuindo o seu o n imperial. Todos os soldados que, se­
gundo eles, m orriam até o último homem defendendo
algum a ilha do Pacífico estariam descarregando o seu
ilimitado o n p ara com o Im perador.
Ê igualmente possível dever-se o n a alguém abaixo
do Im perador. Está claro que existe o o n que se recebe dos
pais. Esta é a base do famoso devotam ento filial oriental,
que coloca os pais em posição de autoridade tão es­
tratégica com relação aos filhos. Ê expresso nos term os do
débito que os filhos têm p ara com eles e em penham -se em
pagar. São os filhos, portanto, que devem porfiar pela
obediência, ao contrário d a Alem anha — lá tam bém se
verifica essa autoridade sobre os filhos — onde os pais
têm de lutar m uito p ara arrancar e im por esta obediência.
Os japoneses são muito realistas na sua versão da devoção
filial oriental, havendo entre eles um ditado acerca do o n
aceito dos pais que pode ser traduzido livremente assim:
“ Somente depois que se é pai é que se tem noção do d é­
bito contraído para com os próprios” . Isto é, o o n dos pais
consiste nos próprios cuidados e preocupações diárias de
que são investidos os pais e as mães. A limitação japonesa
do culto aos ancestrais, a antepassados recentes e lem ­
brados, traz esta ênfase sobre a efetiva subordinação na
infância muito avante nos seus pensam entos, consi­
derando-se o truísm o bastante óbvio em qualquer cultura
de que todo homem e toda m ulher foi outrora um bebê
indefeso que não teria sobrevivido sem o cuidado dos pais,
e durante anos, até ser um adulto, foi provido de lar,
alimentação e vestuário. Os japoneses sentem de form a
preponderante que os americanos subestim am tudo isto e,
como diz um escritor, “ Nos Estados Unidos, lem brar o o n
aos pais é pouco mais do que ser bom p ara o pai e a m ãe” .

90
Ninguém pode deixar o n p a ra os filhos, é claro, mas o de-
votamento pelos filhos constitui um a retribuição ao débito
contraído p ara com os pais, quando se era indefeso. Efe-
tua-se em parte o pagam ento de o n aos pais dando-se um a
educação aos filhos tão boa ou melhor. As obrigações que
se têm p a ra com os filhos tão só se subordinam ao “ o n
para com os pais” .
Existe um o n especial que se tem p ara com o pro­
fessor e o patrão ( n u s h i) . Ambos auxiliaram o progresso
de cada um, sendo-lhe, portanto, devido o o n , o que po­
derá acarretar no futuro a necessidade de aceder a algum
pedido seu, quando se encontrarem em dificuldades ou
dar preferência, talvez a algum dos seus jovens parentes,
após a sua m orte. Deve-se chegar a grandes extremos p ara
pagar obrigações e o tem po não dim inui a dívida. Com os
anos ela aum enta ao invés de decrescer. Acresce-lhe um a
espécie de força. U m on p a ra com alguém é coisa séria,
segundo m ostra um costum eiro provérbio: “ Nunca se
salda um décimo milésimo de um o n ” . Constitui um pesa­
do ônus e o “poder do o n ” , segundo se considera, situa-se
acim a das meras preferências pessoais.
O livre operar desta ética do débito depende de cada
um ser capaz de considerar-se um grande devedor sem
experim entar dem asiada anim osidade ao desem penhar-se
das obrigações. Já vimos quão minuciosa é a disposição
hierárquica organizada no Japão. Os hábitos de subor­
dinação diligentemente continuados possibilitam os ja ­
poneses a acatarem seu débito moral a um ponto que não
ocorreria a um ocidental. Isto se torna mais fácil se os
superiores forem olhados como amigos. H á curiosa evi­
dência em sua linguagem de que os superiores eram de fa­
to tidos como sendo "afetuosos” para com os seus d e­
pendentes. /4£significa “ am or” no Japão e foi esta palavra
que pareceu aos missionários do século passado a única
palavra japonesa possível de usar nas suas traduções do
conceito cristão de “ am or” . U tilizaram -na ao traduzirem
a Bíblia no sentido do am or de Deus pelo homem e o amor
do homem por Deus. Mas a i quer dizer especificamente o
amor de um superior paralfo m os seus dependentes. Um
ocidental talvez pudesse achar que significasse “p a ­
ternalismo” , mas no sentido japonês quer dizer m ais do
que isso. E ra uma palavra que denotava afeição. No Japão
moderno a i ainda é usado neste sentido rigoroso de amor
de cima p ara baixo, mas, talvez devido em parte ao senti­

91
do cristão e, sem dúvida, com o con seq ü ên cia de esforços
oficiais para dem olir as distin ções de classe, poderá ser
usado hoje em d ia igualm ente com o amor entre iguais.
A despeito d os abrandam entos culturais, entretanto,
constitui auspiciosa circunstância no Japão quando o o n é
“devido” sem desagrado. N ão se gosta de assum ir sem
m ais nem m enos a dívida de gratidão envolvida pelo
o n . Sem pre falam de “ levar um a p essoa a dever um o n ” e
no m ais das vezes a tradução m ais aproxim ada é “ p re­
valecer sobre outro” , em bora nos E stad os U n idos “ p re­
valecer” denote requerer algum a coisa de alguém , e no
Japão a frase signifique dar-lhe algo ou fazer-lhe um a
gentileza. O s favores ocasionais de sem elhantes estranhos
são os que m ais causam ressentim entos, pois, com res­
peito aos vizinhos e às relações hierárquicas, h á m uito
estabelecidas, já são sabidas e aceitas as com plicações do
o n . Com sim ples conhecidos e entre os d a m esm a posição,
verifica-se o agastam ento. Seria preferível evitar-se o
enredam ento em tod as as conseqüências do o n . A p assi­
vidade do público no Japão, quando há um acidente, não
é apenas falta de iniciativa. Ê o reconhecim ento de que
qualquer interferência não-oficial levaria o recebedor a
dever um o n . U m a das leis mais conhecidas, d e tem pos
anteriores à Era M eiji, era: “ O correndo u m a briga ou
discussão, não se deverá d esnecessariam ente intervir
n ela” , sendo que um a p essoa ao ajudar u m a outra num a
situação dessas no Japão, sem um a autorização expressa,
é suspeita de estar assum indo um a indesculpável p re­
ponderância. O fato de que o recebedor ficará em grande
d ébito para com ele não torna qualquer um ansioso por
aproveitar-se de tal vantagem e sim m u ito relutante em
ajudar. E specialm ente em situações pouco form ais é que
os japoneses se m ostram extrem am ente cautelosos quanto
a se enredarem em o n . A té m esm o o oferecim ento de um
cigarro, por parte de um a p essoa com quem antes não se
tinham laços, provoca constrangim ento e a m aneira cortês
de expressar agradecim ento será: “O h, este sentim ento
venenoso ( k i n o d o k u ) ” . “ Será m ais fácil d e tolerar” , disse-
m e um japonês, “ se logo for dem onstrado o incôm odo
experim entado, já que nunca se pensou em fazer algo por
ele. e, portanto, se está envergonhado de receber o o n . ”
“ K i n o d o k u ” é, assim por vezes traduzido por “ O bri­
gado” , isto é , pelos cigarros, outras vezes por “ D escu lp e” ,
isto é, p elo débito, ou en tão por “ Sinto-m e com o um p a­

92
tife” , isto é, porque você obrigou-me a este ato de
generosidade. Significa tudo isso p u ra e simplesmente.
Os japoneses têm m uitos m odos de dizer “ O bri­
gado” , os quais expressam este mesmo constrangim ento
em aceitar o o n . O m enos ambivalente, a frase adotada
nas lojas das cidades m odernas significa “O h, esta coisa
difícil” ( a r ig a t o ) . Os japoneses geralm ente esclarecem que
“ esta coisa difícil” é o grande e raro favor concedido à loja
pelo freguês ao com prar. Constitui um cum prim ento. Ê
usado tam bém quando se recebe um presente e em cir­
cunstâncias inumeráveis. O utras palavras igualmente
comuns p a ra “ obrigado” relacionam-se como k i n o d o k u à
relutância em receber. Os lojistas que dirigem os próprios
estabelecimentos na m aior parte das vezes dizem li­
teralm ente: “ Oh, isto não acaba” , ( s u m i m a s e n ) , isto é,
“Estou aceitando o n do senhor e segundo os modernos
ajustes econômicos jam ais lhe poderei pagar. Lamento
estar colocado num a posição dessas” . S u m i m a s e n traduz -
se por “ O brigado” , “Agradecido” , ou “ Desculpe-me” ,
“ Perdão” . Usa-se esta palavra, de preferência a todos os
outros obrigados, por exemplo, se alguém se precipita
atrás do nosso chapéu, num a rua, em plena ventania. Ao
ser ele restituído, a cortesia exige que confessemos nossa
inquietação em aceitar. “ Ele está m e oferecendo um o n e
nunca o vi antes. Nunca tive a oportunidade de oferecer-
lhe o prim eiro o n . Sinto-me culpado por causa disso, mas
me sentirei m elhor se pedir-lhe desculpas. S u m i m a s e n é
talvez a palavra m ais com um p ara obrigado no Japão. Di­
go-lhe que reconheço ter aceito o o n dele, e que este não
term ina com o ato de ap an h ar de volta o meu chapéu.
Mas o que posso fazer? Somos desconhecidos.”
A mesma atitude acerca de débito é expressa ainda
m ais acentuadam ente, do ponto de vista japonês, por
outra palavra p ara obrigado, k a t a j i k e n a i , escrita com o
caráter “ insulto” , “ hum ilhação” . T anto significa “ Sinto-
me insultado” , quanto “ Sinto-me grato” . O dicionário ja ­
ponês explica que com este term o se diz que pelo ex­
traordinário favor recebido se sente envergonhado e
insultado porque não se é digno do benefício. Nesta frase
confessa-se expressam ente a vergonha por aceitar o o n ,
sendo a vergonha, h a ji, conforme veremos, um a coisa
am argam ente sentida no Japão. K a t a j i k e n a i , “ Sinto-ma
insultado” , ainda é usada por lojistas conservadores ao
agradecerem aos fregueses, e estes usam -na quando

93
solicitam a cobrança de suas compras. Ê palavra cons­
tantem ente encontrada em romances anteriores à E ra
Meiji. U m a bonita moça de classe hum ilde, que serve na
corte e é escolhida pelo senhor como sua am ante, diz-lhe
K a t a j i k e n a i , isto é, “ Sinto-me envergonhada de aceitar
imerecidamente este o n . Sinto-me atem orizada com a sua
bondade” . Ou o sam urai, num a rixa feudal, ao ser li­
bertado pelas autoridades, diz K a t a j i k e n a i : “T anto me
humilhei que aceito este o n . Não me é adequado en­
contrar-m e em posição tão m odesta. Desculpem.
H um ildemente lhes agradeço” .
Essas frases atestam , m elhor do que quaisquer
generalizações, o “ poder do o n ” . Ele é constantem ente
devido com ambivalência. Em relações estruturadas
consagradas, o grande débito que ele envolve amiúde tão
só leva o homem a adiantar em pagam ento tudo que está
dentro dele. Contudo, é penoso ser um devedor e as
anim osidades brotam facilmente. Q uanto o fazem, está
vivamente descrito na conhecida novela B o t c h a n , de um
dos mais famosos rom ancistas japoneses, Soseki Nat-
sume. Botchan, o herói, é um rapaz de Tóquio que está
lecionando pela prim eira vez num a cidadezinha d a pro­
víncia. Logo descobre que despreza a m aior parte de seus
colegas professores, evidencia-se o fato de que não se dá
bem com eles. Afeiçoa-se, no entanto, a um jovem pro­
fessor e, ao saírem juntos, aquele amigo recém-des-
coberto, a quem ele cham a de Porco-espinho, oferece-lhe
um copo de água gelada. Paga um sen e meio por ele,
correspondente a um quinto de um centavo.
Pouco tempo depois, outro professor inform a a
Botchan que Porco-espinho falou m al dele. Botchan acre­
dita no mexeriqueiro e de imediato passa a preocupar-se
com o o n que aceitou de Porco-espinho.

“ D ever um o n a um sujeito desses, a in d a q u e p o r algo tã o trivial


com o âg u a gelada, atin g e a m in h a h onra. U m sen o u m eio sen q u e seja,
n ão m o rrerei em paz devendo este o n . . . O fato d e a ce ita r eu o o n de
alguém , sem p ro testar, c o n stitu i um ato de b o a von tad e, sinal de que o
re p u to um sujeito decente. Ao invés de in sistir em p a g a r a m in h a ág u a
gelada, recebi o o n e m an ifestei g ratid ão . E is u m a ad m issão que n ã o p o ­
de ser c o m p ra d a por d in h eiro algum . N ão possuo títu lo s, nem cargo
oficial, m as sou ind ep en d en te, e levar alguém in d ep en d en te a a c e ita r o
favor de um o n re p re se n ta m u ito m ais do q u e se ele desse um m ilh ão de
ienes em retribuição. D eixei P orco-espinho e sb a n ja r um sen e m eio e dei-
lhe m eus agradecim entos, m ais c aro s d o que um m ilh ão de ien es.”

94
No dia seguinte, ele joga um sen e meio sobre a mesa
de Porco-espinho, pois somente depois de deixar de d e­
ver o o n pelo copo de água gelada poderá ele começar a
resolver a presente questão entre eles: a referência
insultuosa que lhe referiram . Poderá daí resultar briga,
mas o o n terá de ser saldado prim eiro, já que não ocorre
mais entre amigos.
Tal suscetibilidade com relação a ninharias, tal
penosa vulnerabilidade ocorrem em relatórios americanos
sobre quadrilhas de adolescentes e anamneses de neuró­
ticos. Trata-se, porém, de um a virtude japonesa. Bem
poucos japoneses levariam a questão a esse extremo,
acham eles, mas não há dúvida de que m uitos são ne
gligentes. Com entaristas japoneses, escrevendo acerca de
Botchan, descrevem-no como “ de tem peram ento exal­
tado, puro como cristal, um cam peão do direito” . O pró­
prio autor identifica-se com Botchan, tendo sido sempre o
personagem reconhecido pelos críticos como um auto-
retrato. É um a narrativa sobre a alta virtude, pois a
pessoa que aceita o o n só poderá içar-se d a posição de d e­
vedor considerando a sua gratidão do valor de “ um
milhão de ienes” e agindo nessa conformidade. Só poderá
aceitá-lo da parte de “ um sujeito decente” . Em meio à sua
fúria, Botchan contrasta o seu o n p ara com Porco-
espinho com o o n aceito há m uito de sua velha ama.
Tinha ela cega parcialidade por ele e achava que ninguém
do resto da fam ília lhe dava valor. Costum ava trazer-lhe
balas e lápis de cor às escondidas e certa vez deu-lhes três
ienes. “Suas constantes atenções p ara comigo p ro ­
vocavam-me calafrios.” M as em bora se sentisse “ insulta­
do” com o oferecimento dos três ienes, aceitara-o como
um empréstimo, que jam ais pagara no transcurso dos
anos subseqüentes. Mas isto, diz ele consigo mesmo,
contrastando com o seu modo de sentir acerca do o n p ara
com Porco-espinho, era porque " o c o n s i d e r o p a r t e d e
m i m m e s m o ” . E sta vem a ser a chave das reações ja ­
ponesas com relação ao o n . Podem ser contidas, sejam
quais forem os confusos sentimentos, contanto que “ o
homem do o n ” seja de fato a própria criatura; ele está
preso ao “ m eu* esquem a hierárquico ou está fazendo
alguma coisa em cuja prática me posso im aginar, como,
por exemplo, restituir-m e o chapéu num d ia de ventania
ou, então, trata-se de um a pessoa que me adm ira. U m a
vez destruídas essas identificações, o o n constitui um a

95
ferida supurada. Por m ais insignificante a dívida con>-
traída, a virtude consiste em ressentir-se dela.
Todo japonês sabe que se se to rn â o o n dem asiado
pesado sob quaisquer circunstâncias, defrontar-se-á com
dificuldades. No “ D epartam ento de consultas” de um a
m oderna revista, encontra-se um bom exemplo disto. A
seção é um a espécie de “ Conselhos aos enam orados
desprezados” , fazendo parte do T o k y o P s y c h o a n a l y t i c
J o u r n a l. O conselho pouco tem de freudiano, mas é bem
japonês. U m homem idoso escreveu solicitando conselho:

Sou pai de trê s m en in o s e u m a m en in a . M in h a esp o sa faleceu h á


dezesseis an o s. Com p e n a d e m eu s filhos, n ã o casei de novo, e eles co n si­
d eram ta l fa to u m a v irtu d e m in h a . A gora m eu s filhos estão todos c a sa ­
dos. H á o ito an o s, q u a n d o m eu filho casou-se, reco lh i-m e a u m a c asa, a
alg u n s q u a rte irõ e s de d istân c ia. Ê e m b araço so d e c la ra r, m as d u ra n te
três anos venho m an te n d o um caso com u m a g a ro ta no escu ro (p ro s­
titu ta c o n tra ta d a de u m a casa d e to lerân cia). E la falo u -m e de su a si­
tu a ç ã o e tive p en a d ela . C o m prei-lhe a lib e rd ad e p o r Um a p e q u e n a
som a, tro u x e-a p a ra a m in h a c asa, ensin ei-lh e b o a s m a n e ira s e
conservei-a com o e m p re g ad a . O seu senso d e re sp o n sa b ilid ad e é g ra n d e,
além de ser notav elm en te econôm ica. E n tre ta n to , m eus filhos e n o ra e
m in h a filh a e g enro d esp rezam -m e p o r isso e tra ta m -m e com o u m e s­
tran h o . N ão os culpo, o erro é m eu.
O s p a is d a g a ro ta n ã o p a rec era m e n te n d e r a situ a ç ã o e, já que ela
está em id a d e de c asar, escreveram , q u eren d o -a de volta. Fui ao e n ­
co n tro deles e expliquei-lhes as circ u n stân c ias. São m u ito p o b res m as
n ã o e stão a trá s do d in h eiro . R esolveram c o n sid erá-la com o m o rta e
d eix aram que co n tin u asse n a su a situ ação . E la p ró p ria q u e r ficar ao
m eu lad o a té a m in h a m o rte. M as as nossas id ad e s são de p ai e filha, e
por isso às vezes penso em m a n d á -la p a ra casa. M eu s filhos ach am que
ela e stá atrás d o m eu din h eiro .
T en h o u m a do en ça crô n ica e ju lg o te r ap en a s u m o u dois an o s de
vida. G o sta ria que m e m o strasse que ru m o to m a r. A c rescen tarei ap en as
com o conclusão que e m b o ra ela te n h a sido o u tro ra “ u m a g a ro ta do
e scu ro ” , isso foi devido às c irc u n stân c ias. O seu c a rá te r é bom e os pais
não são interesseiros.

O médico japonês considerou este o caso t ípico de ter


o velho depositado um o n por demais pesado sobre os
filhos. Diz ele:

O se n h o r descreveu um a co n tecim en to d e to d o s o s d ias . . .


P relim in arm en te , devo d iz e r que, segundo d ep ree n d o d a su a c a rta, está
solicitan d o de m im a resp o sta q u e o " s e n h o r” deseja, o q u e m e leva a
algum an ta g o n ism o a seu respeito. N ão h á d ú v id a de q u e d o u v alor ao
fato de não te r casado, porém , o sen h o r u tilizo u isso com a fin alid ad e
que os seus filhos devessem o o n e ta m b é m p a ra se ju stific ar d e n tro d a
sua a tu a l lin h a de ação. N ão gosto disto. N ão q u ero d ize r q u e o se n h o r
seja h ip ó crita, m as a su a p erso n alid ad e é m u ito frac a . T e ria sido m elhor

96
te r explicado aos seus filhos q u e vive com u m a m u lh e r — já q u e não p o ­
d e d eix ar de te r u m a — sem d eixá-los a dever u m o n (pelo sen h o r te r
p erm an ec id o solteiro). O s filhos, com o é n a tu ra l, estão c o n tra p o rq u e o
sen h o r en fatizo u b a sta n te este o n. A fin al de co n tas, os seres h u m an o s
n ã o p erd em seus desejos sex u ais e o sen h o r n ã o consegue evitá-los.
E n tre tan to , te n ta -se d o m in a r o desejo. O s seus filhos e sp erav am isso do
sen h o r p o rq u e a g u ard a v am que vivesse de aco rd o com a im agem que
haviam fo rm ad o d a sua pessoa. A o c o n trá rio , fo ram ilud id o s e faço idéia
de com o se sentem , e m b o ra isto seja egoístico d a p a rte deles. E stão c asa ­
dos, sex u alm en te satisfeitos e são egoístas ao n e g ar isto ao seu p ai. O
sen h o r p en sa de u m a m a n e ira e o s seus filhos, de o u tr a (com o acim a). As
d u a s m an e iras de p e n sa r n ã o se co m b in am .
O senhor a firm a q u e a m oça e os pais são b o a gente. Ê o q u e lhe
a g ra d a p ensar. T od o s nós sab em o s q u e as pessoas são b o a s e m ás, d e ­
p en d en d o d as circu n stân cias, d a situ aç ão e, pelo fa to d e n ã o estarem
no m o m en to b u sc an d o v antagem , n ão q u e r d ize r q u e sejam “ boa
gente” . A cho os p a is d a m oça bobos d e d e ix a re m -n a servir d e co n cu b in a
a um hom em próxim o d a m orte. Se tal p re te n d em d e la , deviam e n tã o
p leitear algum lu cro ou v antagem . Ê fa n ta sia sua ju lg a r de o u tro m odo.
N ão a d m ira que seus filhos estejam a c h a n d o q u e os p a is d a m oça
e stejam a trá s d o seu dinheiro. A c red ito q u e re alm e n te o estejam . A m oça
ê jovem, talvez n ã o p ense nisso, m as os pais, sim.
H â d u a s alte rn ativ as que lh e cabem :
1) S er “ u m h om em com pleto” (a p o n to d e n a d a lh e ser impossível),
te rm in a r com a m oça e cheg ar a u m a co rd o com ela. N ão acredito,
porêm , que pudesse fa ze r isso, seus se n tim e n to s n ão hav eriam de p e rm i­
ti- la
2) “ V o ltar a ser u m h o m em c o m u m ” (desistir d a s p retensões) e
d e stru ir a im agem de hom em ideal a seu respeito, p o r p a rte de seus
filhos.
Q u a n to aos bens, faça u m te sta m e n to im e d iatam e n te, d eclara n d o
as p a rte s d a m oça e d o s seus filhos.
C oncluindo, lem bre-se de q u e e stá velho e se to m a n d o infantil,
conform e d ep ree n d o d a su a letra. S u a s idéias são m ais em ocionais do
que racionais. E s tâ q u eren d o e sta m oça com o u m a s u b s titu ta m a te rn a ,
e m b o ra alegue estar q u eren d o salvá-la d a sa rjeta. N ão creio que u m a
crian ça possa viver sem a m ãe, p o rtan to , aconselho-o a a d o ta r a seg unda
alternativa.

E sta carta se refere a várias coisas sobre o o n . U m a


vez que um a pesoa resolveu fazer os próprios filhos d e­
verem um o n sobrecarregado, somente poderá modificar
seu rum o de ação de modo arriscado. Deverá saber que
irá sofrer por causa disso. Além do mais, por m aior que
seja p ara ele o preço do o n devido pelos filhos, não lhe ca­
berá avocá-lo a si como um m érito a ser haurido. Ê errado
usá-lo “ p ara se justificar n a sua presente linha de ação” .
Os seus filhos acham -se “ naturalm ente” ressentidos; d e­
vido ao fato de o pai ter iniciado algo que foi incapaz de
sustentar, eles foram “ enganados” . Ê tolice de um pai

97
im aginar que apenas por se ter dedicado inteiram ente a
eles, enquanto necessitvam dos seus cuidados, irão os
filhos agora adultos ser excepcionalm ente solícitos com
relação a ele. C ontrariam ente, estão cônscios apenas do
o n em que incorreram e “ naturalm ente estão contra o
pai” .
Os americanos não julgam desta m aneira um a tal si­
tuação. Achamos que um pai que se dedicou aos seus
filhos sem mãe deverá m ais tarde ocupar um cálido lugar
em seus corações e não terá os filhos voltados “ n a ­
turalm ente contra ele” . A fim de poder avaliá-la à
m aneira japónesa, poderemos, contudo, considerá-la
como um a transação financeira, pois nesse âm bito temos
atitudes comparáveis. T eria sido perfeitam ente possível
que disséssemos a um pai que em prestou dinheiro a seus
filhos num a transação formal, na qual tiveram de arcar
com ju ros,'que “ eles estão naturalm ente em oposição a
você” . Igualm ente podemos assim entender por que um a
pessoa que aceitou um cigarro fale d a sua “vergonha” , ao
invés de dizer um singelo “ O brigado” . Somos capazes de
com preender o ressentim ento com que se referem a al­
guém levar outrem a dever um o n . É possível, p ara nós, no
mínimo, obter um ressaibo no tocante à grandiosa exalta­
ção por parte de Botchan da dívida de um copo de água
gelada. M as os americanos não estão acostum ados a
aplicar tais critérios financeiros a um convite ocasional
num balcão de lanchonete ou à longa devoção, de anos a
fio, de um pai com relação a seus filhos sem mãe, ou ainda
à dedicação de um cão fiel como Hachi. O Japão, sim.
Amor, afabilidade, generosidade, por nós avaliados na
m edida em que são doados sem compromissos, no Japão
estes se impõem. E cada ato assim recebido to m a cada
qual um devedor. Conforme diz o provérbio deles: “Ê
imprescindível (em grau incomensurável) um a generosi­
dade inata p ara aceitar o o n ” .

98
6. S A L D A N D O U M D É C IM O M IL É SIM O

O o n é um a dívida que precisa ser paga, m as no Ja­


pão todos os pagam entos são considerados com o per­
tencentes a tod a um a ou tra categoria. O s japoneses
acham a nossa m oral, que confunde essas duas categorias
em nossa ética e em nossas palavras neutras tais com o
obrigação e dever, tão estranha quanto a nós pareceriam
os negócios financeiros num a tribo, cuja língua não
fizesse separação entre “ devedor” e “ credor” em transa­
ções m onetárias. Para eles o d ébito prim ordial e sem pre
presente que se den om ina o n está a m undos de distância
do tenso e ativo pagam ento nom eado num a série de
outros conceitos. O d ébito de um h om em ( o n ) n ão con sti­
tui virtude, o pagam ento o é. A virtude com eça quando ele
se em penha ativam ente no m ister da gratidão.

99
C om preenderem os m elhor a questão d a virtude no
Japão se tiverm os em m ente o paralelo com transações
financeiras; considerem o-la, pois, com o se tivesse por
trás as sanções contra a insolvência existentes nas transa­
ções de bens nos E stad os U n id os. A qui vinculam os um
hom em à sua obrigação moral. N ão particularizam os as
circunstâncias atenuantes quando um hom em tira o que
não é seu. N ão adm itim os que seja um a questão de im ­
pulso se um h om em p aga ou não u m a dívida a um banco.
E o devedor é tã o responsável pelo juro acum ulado
quanto pelo dinheiro inicial que obteve. C onsideram os o
patriotism o e o am or por nossas fam ílias com o bem d i­
ferentes de tudo isto. N o nosso entender, am or é assunto
d o coração e m elhor quando livrem ente doado. P a­
triotism o, no sentido de colocar os interesses de n ossa p á ­
tria acim a de tudo, é tido com o b astan te quixotesco ou
pelo m enos incom patível com a falível natureza hum ana,
até que os E stados U n id os sejam atacados pelas forças
arm adas de um inim igo. D esprovidos do básico postulado
japonês do grande d ébito au tom aticam ente incorrido
através do n ascim ento de cada h om em e cada m ulher,
acham os que um hom em deverá com padecer-se e auxiliar
os seus pais necessitados, não espancar a esp osa e prover
do necessário os filhos. T ais coisas, entretanto, não são
quantitativam ente orçadas com o um a dívida de dinheiro e
não alcançam a m esm a recom pensa do sucesso obtido nos
negócios. N o Japão, elas são consideradas do m esm o m o­
do que a solvência financeira nos E stados U n idos e as
sanções por trás delas são tão fortes quan to as dos E s­
tados U n idos relativas à possibilidade de se pagarem as
contas e os juros de hipoteca. N ão são assuntos a serem
cuidados apenas em crises tais com o declarações de
guerra ou doença séria de um parente; constituem um a
som bra perm anente, com o a preocupação do pequeno
agricultor de Nova Iorque acerca da sua hipoteca ou a de
um financista de W all Street, observando a alta do
mercado após vender a descoberto.
Os japoneses dividem em categorias d istin tas, cada
um com suas regras diferentes, aqueles pagam entos d e o n
ilim itados tanto em quantidade quanto em duração e
aqueles quantitativam ente equivalentes e vencíveis em
ocasiões especiais. O s pagam entos ilim itados de débitos
são cham ados de g i m u e eles dizem a seu respeito que:
“Jam ais se paga um décim o m ilésim o do

100 UNI VERSI DADE DE FORTALEZA

BIBLIOTECA CENTRAL
Q U A D R O E S Q U E M Á T IC O DA S O B R IG A Ç Õ E S JA PO N E S A S E
SUAS R E C IPR O C A S

I. O n : obrigações in co rrid as passiv am en te. “ A ceitar um o n ” , “ dever um


on ", isto ê, o n são o b rigações d o p o n to d e vista d o re ce b ed o r passivo.
k o on. O o n aceito d o Im p e ra d o r.
oy a on. O o n aceito dos pais.
n u s h i n o on. O o n aceito d o chefe.
sh i n o on. O o n aceito d o professor.
o n aceito em todos os c o n tato s d u ra n te a vida.
N O TA : T o d as essas pessoas de q u em se ace ita o o n to rn am -se on
ji n , " o hom em d o o n ' .
II. R ecíprocas d o on. “ P ag am -se e stas d ív id a s" , “ devolvem -se estas
obrigações” ao hom em d o o n , isto é, as obrigações d o p o n to de vista do
p ag am en to ativo.
A. G im u . O p a g a m en to in teg ral d estas obrig açõ es c o n tin u a n ã o
m ais do que p arcial, sem lim ite d e, tem po.
c h u . D ever p a ra com o Im p era d o r, a lei, o Jap ã o .
k o . D ever p a ra com os pais e a n cestrais (por co n seqüência, p a ra
com os descendentes).
n im m u . D ever p a ra com o p ró p rio trab a lh o .
B. G iri. E stas d ívidas são c o n sid era d as com o ten d o de ser p agas
com eq uivalência m ate m á tic a em rela ção ao favor recebido, havendo
lim ites de tem po.
1. G /rí-p ara -co m -o -m u n d o
D everes p a ra com o sen h o r feudal.
D everes p a ra com fam ília afim .
D everes p a ra com pessoas não a p a re n ta d a s, o rig in árias d e o n
aceito, p o r exem plo, q u a n to a um p re sen te em d in h eiro , um favor,
co n trib u içã o em tra b a lh o (com o “ p a rtícip e ” ).
D everes p a ra com pessoas d e p a ren tesco n a o su ficien tem en te
próxim o (tias, tios, sobrinhos, so b rin h as) o rig in ário s de um o n aceito n ã o
deles e sim d e an ce strais com uns.
2. G ir i- p ara-com -o-nom e. V ersão jap o n e sa d o d ie E h r e .
O dever de “ lim p a r" a re p u ta ç ã o d e in su lto ou a trib u iç ã o de
fracasso, isto é, o dever de v e n d e tta . (N.B. O a ju ste de c o n ta s n ão é tid o
com o agressão).
O dever de n ão a d m itir fracasso (profissional) o u igno rân cia.
O dever de c u m p rir to d as as re g ra s de e tiq u e ta jap o n e sas, p o r
exem plo, observ ar c o n d u ta respeitosa, n ã o viver além d as posses,
d o m in a r to d as as d e m o n straçõ es de em oção em ocasiões in a d e q u a d a s
etc.

(deste) o n ” . O gimu de cada um congrega dois tipos de


obrigações: pagam ento do o n aos pais, o k o , e o p a ­
gam ento do o n ao Im perador, o c h u . Essas duas obri­
gações de gimu são compulsórias e constituem o destino
universal do homem. O próprio ensino prim ário no Japão,
é cham ado de “ educação gim u” , porque não há outra
palavra que transm ita tão adequadam ente o sentido de
“ exigido” . Os acidentes da vida p o derio m odificar os de­

101
talhes do próprio gimu, este, porém , é autom aticam ente
incum bente a todos e sobrepõe-se às m ais imprevistas
circunstâncias.
As duas formas de gimu são absolutas. Constituindo-
as assim, o Japão divorciou-se dos conceitos chineses de
dever p ara com o Estado e devotam ento filial. O sistema
ético chinês tem sido repetidam ente adotado no Japão
desde o século VII, senao c h u e k o palavras chinesas.
Mas os chineses não consideram essas virtudes absolutas.
A China postula um a virtude dom inante, que vem a ser
um a condição de lealdade e devotamento. É geralmente
traduzida por “ benevolência’' ( je n ), m as significa quase
tudo que os ocidentais entendem por boas relações entre
as pessoas. Um pai precisa te r j e n . Se um governante não
o tiver, será justo que o seu povo se rebele contra ele. Ê
um a condição sobre a qual se baseia o dom de lealdade. O
domínio do Im perador e ó de suas autoridades dependia
da sua feitura de jen. A ética chinesa em prega tal critério
p ara todas as relações hum anas.
Este postulado ético chinês nunca foi aceito no Ja ­
pão. O gránde estudioso japonês, Kanichi Asakawa,
assinalando tal contraste nos tempos medievais, diz: “ No
Japão, essas idéias eram obviamente incompatíveis com a
sua soberania imperial e, portanto, nunca aceitas in­
tegralm ente, mesmo como teorias” . * A verdade é que o
jen tom ou-se um a virtude proscrita no Japão, de todo re­
baixada da eminência que possuía na ética chinesa. No
Japão pronuncia-se j i n (grafado como os caracteres usa­
dos pelos chineses) e “fazer jin” ou sua variação
“ fazer jingi” está bem longe de ser um a virtude exigida
mesmo nas cam adas mais elevadas. T anto foi expurgado
do seu sistema ético, a ponto de significar algo praticado
fora da lei. Poderá ser até um ato louvável, como assinar
um a lista de subscrição p ara caridade pública ou con­
ceder clemência a um criminoso. Não deixa, porém, de
ser, enfaticam ente, um ato de super-rogação, que não se
exigia da pessoa.
“ Fazer jingi” é tam bém usado em outro sentido de
“ fora d a lei” , no de virtude entre bandidos. A honra entre
ladrões, dos vigorosos assaltantes espadachins do período
Tokugawa — manejavam um a espada só, ao contrário
dos espadachins sam urais, de duas espadas, — consistia

(*í. D o c u m e n ts q f Ir ik i, 1929, p. 380, n. 19.

102
em “ fazer jingi” . Q uan d o um desses foras-da-lei ped ia
proteção a um outro que fosse estranho, este, a fim de
assegurar-se contra um a vingança futura d o bando do
suplicante, concedia-o e d este m odo “praticava jin gi” .
E m sentido m oderno, “ praticar jingi” rebaixou-se ainda
mais. Surge com freqüência em m eio a discussões de atos
puníveis: “ O s trabalhadores com un s” , d izem os seus
jornais, “ continuam praticando jingi e precisam ser p u n i­
dos. A polícia deveria agir no sentido de acabar com o
jingi nos antros em que m edra no Japão” . R eferem -se, é
claro, à “honra entre ladrões” , que floresce entre os
extorsionários e assaltantes. D izem que o em preiteiro no
Japão m oderno, em especial, “ faz jin gi” quando, com o o
pad ron e italiano nos portos norte-am ericanos, no
princípio do século, entra em relações fora-da-lei com tra­
balhadores não especializados e enriquece à custa de
arrendá-los para tirar lucros. D ificilm ente poderia ir m ais
longe a degradação d o con ceito chinês de j e m * T endo os
japoneses reinterpretado inteiram ente e rebaixado a
virtude crucial do sistem a chinês, sem n ad a pôr no seu
lugar que pud esse tornar condicional o gim u, o de-
votam ento filial passou a ser n o Japão um dever obri­
gatório, ainda que significasse fechar os olhos à corrupção
e iniqüid ade de um pai. Som ente poderia ser revogado se
entrasse em con flito com a obrigação para com o Im ­
perador, m as, certam ente, jam ais q uan d o um pai
fosse indigno ou estivesse destruindo a felicid ad e dos
filhos.
Num de seus film es m odernos, um a m ae apossa-se de
um dinheiro que o seu filho casado, um m estre-escola de
aldeia, arrecadou dos habitantes, a fim de resgatar um a
jovem escolar, prestes a ser vendida pelos pais a u m a casa
de prostituição, por estarem eles gassan do fom e por
ocasião de um a carestia rural. A m ae d o m estre-escola
rouba o dinheiro do filho em bora não seja pobre, já que é
dona de um decente restaurante. O filh o sabe que ela
tirou, m as tem de arcar com a culpa. A esp osa descobre a
verdade, deixa um b ilh ete d e suicida, assum indo inteira
responsabilidade pela perda do dinheiro, e afoga-se

* Q u a n d o os jap o n e se s u sam a ex p ressão “ co n h ecen d o jin " , estão


de certo m odo m ais p róxim os d o se n tid o chinês. O s b u d ista s exortam as
pessoas a “ conhecerem jin ” , o que significa ser com passivo e b e n e ­
volente. M as, conform e d iz o d icio n á rio de jap o n ês, “ co n h ecen d o jin re ­
fere-se a n te s ao hom em ideal d o q u e aos atos".

103
juntam ente com o bebê. H á publicidade em seguida, mas
o papel d a m ãe na tragédia nem sequer, é aludido. O filho
cum priu a lei de devotam ento fdial e parte sozinho p ara
Hokkaido, a fim de fortalecer o seu caráter e preparar-
-se p ara provas sem elhantes em anos futuros. É um
virtuoso herói. Meu com panheiro japonês contestou vi­
gorosam ente meu óbvio verecdito am ericano de que a
pessoa responsável pela tragédia toda havia sido a mãe
desonesta. O devotam ento filial, declarou ele, com fre­
qüência entra em conflito com outras virtudes. Se o pro­
tagonista tivesse sido bastante sagaz, teria encontrado um
modo de reconciliá-las, sem perder a dignidade. Não h a­
veria a m enor possibilidade de conservar esta última, se
fosse culpar a mãe, ao invés de a si próprio.
Tanto as novelas, como a vida real, ambos, estão re ­
pletos dos pesados encargos do devotam ento filial, após o
casam ento de um rapaz. Exceto nos círculos “ m odan”
(modernos), é tacitam ente aceito em fam ílias respeitáveis
que os pais escolham a esposa do filho, geralmente através
dos bons ofícios de interm ediários. A família, e não o
filho, é que principalm ente se interessa pelo assunto de
um a acertada escolha, não apenas por causa das ne­
gociações m onetárias envolvidas, como tam bém porque a
esposa inscrever-se-á na genealogia fam iliar e perpetuará
a linhagem desta m ediante os filhos. É costume os in­
term ediários prepararem um encontro aparentem ente
casual entre os dois jovens em questão, na presença dos
pais, sem que, no entanto, conversem. Às vezes, os pais
decidem arranjar p ara o filho um casam ento de con­
veniência, em cujo caso o pai da moça lucrará finan­
ceiramente e os pais do rapaz ligando-se a um a boa
família. O utras vezes, preferem escolher a moça por suas
qualidades pessoalmente aceitáveis. O pagam ento do o n
dos pais por parte do bom filho não lhe perm ite discutir a
decisão daqueles. Após o seu casamento, prossegue o p a ­
gamento. O filho m orará com os pais, especialmente se
for o herdeiro da família, sendo proverbial que a sogra
não goste da nora. Descobre nela toda sorte de defeitos,
podendo m andá-la em bora e acabar com 6 casamento,
mesmo quando o jovem m arido é feliz com a esposa e n a ­
da pretende senão viver com ela. As novelas japonesas e os
casos pessoais tanto acentuam o sofrimento do m arido
quanto o da mulher. O m arido, é claro, estará fazendo k o ,
ao submeter-se à dissolução do casamento.

104
U m a japonesa “ m odan” , atualm ente nos Estados
Unidos, recebeu em seus aposentos, em Tóquio, um a jo­
vem esposa grávida, cuja sogra obrigara-a a abandonar o
jovem m arido pesaroso. Achava-se ela doente e sucum bi­
da, contudo, não culpava o m arido. Aos poucos, foi-se
interessando pelo bebê que logo d aria à luz. Mas
quando a criança nasceu, apareceu a mãe, acom panhada
pelo filho silencioso e submisso, p ara reclam ar o bebê.
Pertencia, é claro, à fam ília do m arido e a sogra levou-o,
enviando-o im ediatam ente p ara um lar adotivo.
Ocasionalmente, nisso se incluía o devotam ento filial
e constitui devido pagam ento do débito p a ra com os pais.
Nos Estados Unidos, tais histórias são tidas como
exemplos de interferência externa na legítima felicidade
individual. No Japão, não se pode considerar esta in­
terferência como “ externa” , devido ao seu postulado de
débito. Histórias como essa, no Japão, assim como nossas
histórias de homens honestos que pagam aos credores
após incríveis privações pessoais, focalizam os ver­
dadeiram ente virtuosos, pessoas que granjearam o direito
de se respeitarem , que comprovaram ser bastante fortes
para aceitarem as próprias frustrações pessoais. Estas
frustrações, conquanto virtuosas, poderão deixar n a ­
turalm ente um resíduo de ressentim ento, sendo bem de
notar que o provérbio asiático acerca das Coisas Odiosas,
que na Birm ânia, por exemplo, incluem “ fogo, água, la­
drões, patrões e homens m aldosos” , no Japão especifica
“terrem oto, trovão e o Velho (chefe da casa, o pai)” .
O devotamento filial não abrange, como n a China, a
linha de antepassados de séculos atrás, nem o vasto e
proliferante clã vivente que deles descende. A veneração
japonesa cuida de reverenciar apenas aos ancestrais
recentes. H á necessidade de restauração anual d a lápide
p ara preservar suas identidades e, quando os vivos não
mais recordam um ancestral, seu culto é negligenciado.
Nem tam pouco no santuário fam iliar se guardam suas
placas. Os japoneses apenas prezam o devotam ento aos
lembrados em vida, concentrando-se no aqui e no agora.
Muitos escritores costum am com entar a falta de interesse
deles pela especulação de corpo ausente, ou em form ar
imagens de objetos distantes, servindo como outro
exemplo disso a sua versão de devotam ento filial, ao
contrastar-se com o d a China. A m aior im portância p rá­

105
tica da sua versão reside, no entanto, na m aneira como
lim ita as obrigações de ko entre pessoas vivas.
Pois o devotam ento filial, tanto n a China q uanto no
Japão, é bem mais do que consideração e obediência p ara
com os próprios pais e antepassados. Todo o cuidado
pelos filhos, tido pelos ocidentais como dependente do
instinto m aternal e da responsabilidade paterna, consi­
deram eles dependente do devotam ento aos próprios
ancestrais. O Japão é bastante explícito quanto a isso: p a­
ga-se o débito p ara com os ancestrais transferindo aos
filhos o cuidado que se recebeu. Não h á palavra para
expressar a “obrigação do pai p ara com os seus filhos” e
tais deveres são cobertos pelo ko devido aos pais e aos pais
destes. O devotam ento filial inclui todas as num erosas
responsabilidades que repousam sobre o chefe de um a
família, no sentido de prover à subsistência dos filhos,
educar esses filhos assim como aos irmãos mais jovens,
desincumbir-se da gerência da com unidade, abrigar os
parentes necessitados e milhares de deveres cotidianos
similares. A drástica limitação da família ins­
titucionalizada no Japão restringe acentuadam ente o
núm ero de pessoas em relação às quais tem um homem o
gimu. Se um filho morre, constitui um a obrigação de d e­
votamento filial agüentar o ônus do sustento da viúva e
dos filhos. Igualm ente, o ocasional provimento de abrigo
para um a filha viúva e a sua fam ília. Não constitui,
porém, gimu receber um a sobrinha viúva. Isto feito,
estará sendo cum prida um a obrigação inteiram ente d i­
ferente. Constitui gimu criar e educar os próprios filhos.
Mas, ao se educar um sobrinho, o costume é adotá-lo le­
galm ente como filho. Não será gimu se conservar a condi­
ção de sobrinho.
O devotamento filial não exige que a assistência,
mesmo aos parentes im ediatam ente necessitados nas
gerações descendentes, seja dada com consideração e
bondade. As jovens viúvas d a fam ília são cham adas de
“parentes do arroz frio” , querendo dizer que elas comem
o arroz quando já esfriou, estando subordinadas a
qualquer membro do círculo interno d a família, devendo
aceitar com profunda obediência quaisquer decisões
acerca de seus assuntos. Juntam ente com os filhos,
pertencem ao ram o pobre d a parentela e quando em casos
especiais logram m elhor situação do que esta, não é

106
porque o chefe da fam ília lhes deva com o um gim u este
melhor tratam ento. N em tam pou co um gim u, cuja in ­
cum bência recai sobre irm ãos, im plica no cum prim ento
de suas obrigações com entusiasm o. A m iúde recebem -se
elogios por se ter cum prido as obrigações para com um
irm ão m ais jovem, quando é m ais do que sabid o que os
dois se odeiam ferozm ente.
O m aior antagonism o é entre a sogra e a nora. A nora
entra para o círculo dom éstico com o um a estranha.
C onstitui seu dever aprender com o a sogra gosta que as
coisas sejam feitas e em seguida saber com o executá-las.
Em m uitos casos, a sogra adota categoricam ente a p osi­
ção de que a jovem esp osa nem de longe satisfaz os re­
quisitos de seu filho, havendo casos em que se pode inferir
que tenha considerável ciúm e. M as, conform e o provérbio
japonês, “A odiada nora continua gerando os queridos
netinhos e, portanto, o k o está sem pre p resente” . A jovem
nora m ostra-se externam ente sem pre subm issa, m as,
geração após geração, essas criaturas m eigas e en ­
cantadoras transform am -se em sogras tão exigen tes e
críticas com o o foram anteriorm ente as suas próprias.
N ão podem exprim ir sua agressividade com o jovens
esposas, m as tam bém n ão se transform am em seres
hum anos genuin am ente m ansos. Em ép oca ulterior, pre-
visivelm ente, descarregam contra as noras o peso
acum ulado do seu ressentim ento. A s m oças japonesas de
hoje falam abertam ente sobre a grande vantagem de casar
com um filho que não seja herdeiro para que não sejam
obrigadas a morar com um a sogra dom inadora.
“ Trabalhar para o k o ” não significa necessariam ente
alcançar benignidade na fam ília. E m algum as culturas,
constitui o ponto crucial da lei moral na fam ília au m en ta­
da. M as não no Japão. C om o diz um escritor japonês,
“justam ente porque tem em alta estim a a fam ília é que o
japonês não superpõe n ada ao elevado apreço pelos seus
m em bros individuais ou pelos laços fam iliares entre si” . *
E stá claro que isso nem sem pre é verdade, m as, constitui
o quadro geral. A ênfase recai sobre as obrigações e o p a­
gam ento de débito, assum indo os m ais velhos grandes
responsabilidades, consistindo um a delas em cuidar que
os menores cumpram os sacrifícios requeridos. Caso se
mostrem estes ressentidos, p ou ca diferença faz. T em de

(*) N ohara, K ., T h e T r u e F a c e o fJ a p a n . L ondon, 1936, p. 45,

107
obedecer às decisões dos m ais velhos ou então fracassam
no gim u.
A s acentuadas anim osid ades entre m em bros da fa ­
m ília, tão típicas do devotam ento filial no Japão, não se
verificam quanto à outra grande obrigação, igualm ente
gimu: a fidelidade ao Im perador. O s estadistas japoneses
planejaram acertadam ente ao apartarem o seu Im perador
com o um Chefe Sagrado, rem ovendo-o do tu m u lto da
existência; som ente assim no Japão poderia ele concorrer
para congregar o povo tod o para um serviço não-
am bivalente ao E stado. N ão bastava torná-lo pai de seu
povo, pois o pai dentro de casa, a desp eito d as obrigações
a ele devidas, era um a figura por quem se poderia ter
“ tudo m enos um a elevada estim a” . O Im perador tin ha de
ser um Pai Sagrado, apartado de todas as considerações
seculares. A fidelidade para com ele, chu, a virtude
suprem a, deve tornar-se um a con tem p lação extática de
um Bom Pai fantasiado, livre d os contatos do m undo. Os
primeiros estadistas da Era M eiji escreveram , d ep ois de
ter visitado os países do O cidente, que em tod os eles a
história fora feita através do conflito entre governante e
povo, o que era indigno do Espírito do Japão. Ao re­
gressarem, escreveram na C onstituição que o G overnante
haveria de “ ser sagrado e inviolável” , sem ser considerado
responsável por quaisquer atos de seus ministros. Serviria
com o sím bolo suprem o d a unidade jap on esa e n ão com o o
chefe responsável de um Estado. Já que o Im perador não
servira com o chefe executivo por uns sete séculos, foi
sim ples perpetuar o seu papel de bastidores. R estou
apenas aos estadistas da Ê poca M eiji lhe atribuir, nas
m entes de todos os japoneses, aquela elevadíssim a virtude
incondicional, o chu. N o Japão feudal o chu constituíra a
obrigação do C hefe Secular, o X ógum , e sua longa h is­
tória suscitou aos estadistas da Era M eiji o que era
necessário fazer, dentro das novas d isposições, de m aneira
a cum prir o seu objetivo, a unificação espiritual do Japão.
N aqueles séculos, o X ógu m havia sido G eneralíssim o e
principal adm inistrador e, a despeito do chu a ele devido,
as conspirações contra a sua suprem acia e a sua vida eram
freqüentes. A fidelidade para com ele am iúde entrava em
conflito com as obrigações para com o suserano, sendo
que m uitas vezes a lealdade m ais elevada era menos
im periosa do que a inferior. A fidelidade para com o
suserano, afinal de contas, baseava-se em laços acon ­

108
chegados, tornando com parativam ente fria aquela que
era dedicada ao Xógum. Aliás, os dependentes, em
épocas tum ultadas, lutaram p ara depor o Xógum e
instalar em seu lugar o seu suserano. Os profetas e líderes
da R estauração Meiji lutaram d urante um século contra o
Xogunato Tokugawa, sob o lem a de que se devia chu ao
Im perador, isolado na som bria obscuridade, um a figura
cujos traços cada um podia desenhar p a ra si mesmo, de
acordo com os próprios desejos. A R estauração Meiji foi a
vitória deste partido, sendo exatam ente esta m udança de
chu de Xógum p ara Im perador simbólico que justificou
o uso do term o “ restauração” p ara o ano de 1868. O
Im perador perm aneceu isolado. Ele investiu Suas Ex­
celências com autoridade, entretanto, ele próprio não
chefiava o governo, o exército ou ditava pessoalmente a
política. A m esm a espécie de conselheiros, em bora melhor
escolhidos, continuava a dirigir o governo. A verdadeira
revolução foi no terreno espiritual, pois o chu tornou-se o
pagam ento de cada um ao Chefe Sagrado, sum o sacerdote
e símbolo da unidade e perpetuidade do Japão.
A facilidade com que o chu foi transferido para o
Im perador foi auxiliada, é claro, pelo folclore tradicional
de que a Casa Im perial descendia da D eusa Solar. Mas a
folclorística pretensão de divindade não foi tão crucial
como julgaram os ocidentais. Não há dúvida de que os ja ­
poneses intelectuais que repeliram totalm ente essas prer
tensões não puseram em dúvida, por isso mesmo, o chu
ao Im perador, como, d a m esm a form a, a m assa do povo
que adm itia o nascim ento divino não queria significar
com isso o mesmo que os ocidentais. K a m i , a palavra tra ­
duzida como “ deus” , quer dizer literalm ente “ cabeça” ,
isto é, o pináculo da hierarquia. Os japoneses não criam
um grande abismo entre o hum ano e o divino, como o
fazem os ocidentais, sendo que todos eles tornam -se kami
após a morte. Nos tem pos feudais, atribuía-se o chu aos
chefes d a hierarquia desprovidos de qualificações divinas.
M uito mais im portante p ara a transferência do chu ao
Im perador foi a ininterrupta dinastia de um a única casa
imperial por toda a história do Japão. Ê ocioso alegarem
os ocidentais que tal continuidade constituía um a m is­
tificação porque as regras de sucessão não se amoldavam
às das famílias reais da Inglaterra ou Alem anha. As re*
gras eram as do Japão, e de acordo com elas, a sucessão
havia sido ininterrupta “desde a eternidade” . O Japão

109
não era nenhum a China, com trin ta e seis dinastias di­
ferentes na história conhecida. E ra um país que, com to ­
das as m udanças adotadas, jam ais havia dilacerado a sua
contextura social. O padrão conservara-se intato. Fora
este argum ento, e não a ascendência divina, que as forças
anti-Tokugawa exploraram durante os cem ànos que
antecederam à Restauração. Alegavam eles que o chu era
devido apenas ao que se encontrasse no topo d a h ierar­
quia, portanto, somente ao Im perador. Elevaram-no a
sumo-sacerdote da nação e tal função não significava
necessariamente divindade. E ra mais decisiva do que a
descendência dé um a deusa.
Envidaram-se todos os esforços no Japão m oderno a
fim de personalizar o chu e dirigi-lo especificamente p ara
a figura do próprio Im perador. O prim eiro Im perador
após a Restauração foi um indivíduo de relevo e dignidade
e durante o seu longo reinado tornou-se facilmente um
símbolo pessoal p ara os seus súditos. Suas raras aparições
em público eram encenadas com todos os acessórios de
culto. Nenhum m urm úrio erguia-se das multidões ao se
curvarem diante dele. Não erguiam os olhos p ara fitá-lo.
As janelas fechavam-se por toda a p arte acim a do
prim eiro andar p ara que nenhum hom em pudesse olhar
de cim a p ara o Im perador. Os seus contatos com os
conselheiros graduados eram igualm ente hierárquicos.
Não se dizia que chamasse os seus adm inistradores.
Algumas poucas privilegiadas Excelências “tinham
acesso” a ele. Não publicava editos acerca de questões
políticas controversas; suas publicações diziam respeito a
assuntos como ética, poupança ou, então, designam
marcos indicadores do encerram ento de um debate,
tranqüilizando, em conseqüência, o seu povo. Q uando se
achava no leito de m orte, o Japão inteiro transform ava-se
num templo, onde os devotos consagravam-se à in-
tercessão em seu favor.
De todas essas m aneiras, era o Im perador tornado
um símbolo, colocado fora do alcance da controvérsia
nacional. Assim como a fidelidade à bandeira está acim a
e além de todos os partidos políticos, do mesmo modo, o
Im perador era “ inviolável” . Cercamos o nosso m anejar da
bandeira com um grau de ritual que consideramos in­
teiram ente inadequado p ara qualquer ser hum ano. Os ja ­
poneses, entretanto, aproveitaram -se ao m áxim o do cará­
ter hum ano do seu símbolo supremo. Podiam amá-lo e ele

110
poderia corresponder. Extasiavam -se de que “ se ocupasse
deles com os seus pensam entos” . Dedicavam as vidas a
“ aliviar-lhe o coração” . N um a cultura baseada tão in­
tensam ente em laços pessoais como a do Japão, o Im ­
perador constituía um símbolo de lealdade m uito superior
a um a bandeira. Professores em período de treinam ento
eram reprovados se considerassem o am or à p átria como o
m aior dever do homem. Tal dever teria de ser a re­
tribuição feita à própria pessoa do Im perador.
O chu proporciona um duplo sistem a de relação
súdito-Im perador. O súdito defronta-se, em ascendente,
até o Im perador, diretam ente, sem interm ediários. Ele
“ alivia o seu coração” pessoalmente, através de suas
ações. Ao receber, contudo, as ordens do Im perador, o
súdito as ouve retransm itidas através de todos os in­
term ediários existentes entre eles. “Ele fala pelo Im ­
perador” é um a frase que invoca o chu, constituindo a
sanção mais poderosa dentre as possíveis de serem in­
vocadas por qualquer outro Estado moderno. Lory relata
um incidente d urante m anobras m ilitares em tem po de
paz, quando um oficial saiu com um regimento, sob
ordens de não beberem dos cantis sem a sua permissão. O
treinam ento m ilitar japonês punha grande ênfase na ca­
pacidade de m archar de oitenta a noventa quilômetros
sem descanso, sob condições penosas. Naquele dia, vinte
homens caíram pelo caminho, de sede e esgotamento.
Cinco m orreram . Q uando os seus cantis foram exam ina­
dos, estavam intatos. “O oficial d era a ordem . F alara pelo
Im perador.” *
Na adm inistração civil, o chu sanciona tudo, desde a
morte até os impostos. O coletor, o policial, os fun­
cionários do alistam ento local constituem instrum entos
através dos quais o súdito presta o chu. O ponto de vista
japonês consiste em que a obediência à lei é o pagam ento
do seu m aior débito, o k o - o n . Não poderia ser mais
marcante o contraste com o modo de pensar nos Estados
Unidos. P ara os norte-am ericanos, quaisquer leis novas,
dos sinais das ruas ao imposto de renda, são consideradas
pelo país inteiro como interferências n a liberdade in­
dividual respeitante aos próprios negócios. A re­
gulamentação federal é duplam ente suspeita, pois, in­
terfere tam bém com a liberdade de cada estado em fazer

* Lory. Hillis, J a p a n s M ilita r y M a s te rs , 1943. p. 40.

111
as suas próprias leis. É tid a como sendo im posta ao povo
pelos burocratas de W ashington, sendo que m uitos ci­
dadãos consideram o mais vigoroso protesto contra essas
leis como o mínimo que possa fazer, precisam ente devido
ao seu amor-próprio. Os japoneses julgam-nos, portanto,
um povo sem leis. Nós achamos que eles são um povo
submisso, sem idéia de democracia. Seria m ais correto
reconhecer que o am or-próprio dos cidadãos, nos dois
países, é vinculado a atitudes diferentes. Aqui, depende
ele da gerência dos próprios negócios; no Japão, do p a ­
gam ento do que se deve a benfeitores acreditados. Ambas
as disposições apresentam suas próprias dificuldades: as
nossas residem em que seja difícil conseguir a aceitação
de regulamentações, mesmo quando vantajosas p ara todo
um país; as deles, em que, em qualquer idioma, seja d i­
fícil estar em débito a tal ponto que a vida inteira de
cada qual se obscureça em face disso. Provavelmente, to­
dos os japoneses, a certa altura, tenham inventado
m aneiras de viver dentro da lei e mesmo de contornar o
que para isto seja requerido. Adm iram , igualmente,
certas formas de violência, ação direta e vingança p a r­
ticular repelidas pelos norte-am ericanos. Mas, tais res­
trições e quaisquer outras que possam ser alegadas, ainda
não elucidam o poder do chu sobre os japoneses.
Q uando o Japão se rendeu em 14 de agosto de 1945, o
m undo teve um a dem onstração quase inacreditável do seu
funcionamento. M uitos ocidentais, com experiência e
conhecimento do Japão, sustentavam que seria impossível
a sua capitulação. Seria ingenuidade, insistiam eles, im a­
ginar que os seus exércitos, espalhados pela Ásia e ilhas
do Pacífico, pacificamente depusessem as arm as. G rande
parte das forças arm adas japonesas não haviam sofrido
derrota local e achavam-se cónvencidas d a justiça de sua
causa. As ilhas interiores tam bém achavam-se repletas
de intransigentes e um exército de ocupação, com a sua
vanguarda necessariamente pequena, correria o risco de
ser m assacrado, um a vez fora da cobertura do arm am ento
naval. D urante a guerra, os japoneses não haviam recua­
do diante de nada e constituem um povo belicoso. Q uanto
a isso, os analistas norte-am ericanos não levaram em
conta o chu. O Im perador falou e a guerra acabou. Antes
que a sua voz soasse através do rádio, ferrenhos oponentes
lançaram um cordão em torno do palácio, tentando im pe­
dir a proclamação. Mas, um a vez lida, foi ela aceita.

112
Nenhum com andante de cam panha na M anchúria ou Ja-
va, nenhum Tojo no Japão colocou-se em oposição.
Nossos soldados desem barcaram nos aeroportos e foram
recebidos com cortesia. Os correspondentes estrangeiros,
conforme escreveu um deles, podiam chegar pela m anhã
com o dedo em suas arm as de pequeno porte, m as ao
meio-dia haviam -nas posto de lado e à tard e passeavam,
com prando bugigangas. Os japoneses achavam-se agora
“ aliviando o coração do Im perador” , ao seguirem os
caminhos da paz. U m a sem ana antes, haviam -no feito d e­
dicando-se a expulsar os bárbaros, até m esm o com auxílio
de lanças de bam bu.
Não havia mistério quanto a isso, exceto p a ra os oci­
dentais incapazes de adm itir como variam as emoções que
influenciam a conduta dos homens. Alguns^ haviam
proclam ado não haver o u tra alternativa senão a ex-
term inação prática. O utros apregoavam que o Japão
somente poderia salvar-se se os liberais tom assem o po­
der, derrubando o governo. Am bas as análises faziam
sentido dentro dos term os de um a nação ocidental,
em penhada num a guerra total, com apoio popular. Esta-
vam errados, contudo, pois atribuíam ao Japão rum os de
ação essencialmente ocidentais. Alguns profetas oci­
dentais ainda acham , após meses de ocupação pacífica,
que tudo foi perdido por não ter ocorrido revolução al­
gum a de caráter ocidental ou porque “os japoneses não
sabiam que estavam derrotados” . Eis aí um a boa filosofia
social ocidental, baseada em padrões ocidentais do que
seja justo e correto. Mas o Japão não é o Ocidente. Ele não
utilizou aquele último recurso das nações ocidentais: a re­
volução. Nem tam pouco empregou b irrenta sabotagem
contra o exército de ocupação do inimigo. Usou o próprio
recurso: a capacidade de exigir de si próprio, como chu, o
enorme preço d a rendição incondicional, antes que es­
tivesse abatido o seu poder de luta. A seus próprios olhos,
este enorm e pagam ento, entretanto, trouxe algo que
apreciava acim a de tudo: o direito de declarar ter sido o
Im perador quem dera a ordem, ainda que esta fosse de
rendição. Mesmo na derrota, a lei suprem a ainda era o
chu.

113
7. O PAGAMENTO “ MAIS D IFÍC IL D E SU PORTAR”

“O giri” , diz o provérbio japonês, “ é o mais difícil de


suportar” . Um a pessoa deve pagar o giri assim como o
gimu, só que é um a série de obrigações de fundam ento di­
ferente. Não existe equivalente em nossa língua, sendo
um a das mais curiosas entre todas as estranhas categorias'
de obrigações morais descobertas pelos antropólogos na
cultura m undial. É caracteristicam ente japonês. O Japão
com partilha com a China tan to o chu como o ko e, a
despeito das m udanças efetuadas nesses conceitos,
apresentam eles algum a semelhança fam iliar com im­
perativos morais bem conhecidos em outros países
orientais. Entretanto, o giri não lhe advém nem do
confucionismo chinês nem do budism o oriental. Trata-se

115
de um a categoria japonesa, sendo impossível com ­
preender os rum os de ação por eles em preendidos sem le-
vá-lo em consideração. Nenhum japonês consegue falar de
motivações ou boa reputação, ou então dos dilemas com
que se defrontam hom ens e m ulheres no seu país natal,
sem aludir constantem ente ao giri.
P ara um ocidental, o giri abrange um a lista ex­
trem am ente heterogênea de obrigações (ver quadro na
pág. 101, desde a gratidão por um antigo favor até o d e ­
ver de vingança. Não é de adm irar que os japoneses não
tenham tentado explicar o giri aos ocidentais. Os próprios
dicionários japoneses m al conseguem defini-lo. U m deles
descreve-o assim — passo a traduzir: “ reto caminho;
estrada que os seres hum anos deveriam seguir; algo que
se cum pre a contragosto, p ara evitar explicações ao
m undo.” Ainda assim o ocidental não poderá ter um a
idéia m uito clara, m as, a palavra “ a contragosto” ressalta
um contraste com o gimu. Este, por m uitas que sejam as
árduas exigências que faz sobre um a pessoa, consiste pelo
menos num grupo de deveres assumidos dentro do círculo
imediato de sua fam ília e p ara com o governante, que se
m antém como símbolo de seu país, do seu modo de viver e
do seu patriotism o. É devido a pessoas por motivo dos vi­
gorosos laços estreitados no próprio nascimento. Por mais
relutantes que possam ser certos atos de transigência, o
gimu nunca é definido como “ a contragosto” . Entretanto,
“ pagar o giri” está im pregnado de m al-estar. Os apuros
da situação de devedor chegam ao auge no “círculo do
giri” .
O giri tem duas divisões bastante distintas. Aquilo
que cham arei de “ giri p ara o m undo” — literalm ente
“pagar o giri” — é a obrigação de se pagar aos
semelhantes o o n , enquanto “ giri p ara o nom e” será o d e­
ver de conservar o próprio nome e reputação limpos de
qualquer acusação, um pouco à m oda d a “ho n ra” alemã.
Giri p ara o m undo pode ser aproxim adam ente descrito
como o cum prim ento de relações contratuais — em
contraste com o gimu, tido como o cum prim ento de obri­
gações íntimas p ara as quais se nasce. Deste m odo, o giri
inclui todos os deveres que se tem p a ra com a fam ília do
cônjuge, ao passo que o gimu é com relação aos que se
tem p ara com a própria família. O term o p ara sogro é pai-
por-giri, sogra é mãe-por-giri e cunhado e cunhada são
irmão-por-giri e irm ã-por-giri. Esta term inologia é usada

!
116
tanto p ara os irmãos do cônjuge, quanto p ara o cônjuge
dos irmãos. O casam ento no Japão é, sem dúvida, um
contrato entre famílias e o livrar-se dessas obrigações
contratuais p ara com a outra família, du ran te toda a vida,
constitui “trab alh ar p ara o giri” . Ê mais penoso para a
geração que ajustou o contrato — os pais — e d e­
finitivamente pior p ara a jovem esposa com relação à so­
gra porque, como dizem os japoneses, a noiva foi m orar
num a casa onde não nascera. As obrigações do marido
p ara com os seus sogros são diferentes, mas são tam bém
tem idas, pois ele poderá ter de em prestar-lhes dinheiro
quando estiverem em dificuldades e deverá igualmente
assum ir outras responsabilidades contratuais. Conforme
disse um japonês: “ Se um filho crescido faz coisas p ara a
mãe, é porque a am a e, portanto, não poderá ser giri. Não
se trabalha p ara o giri quando se age de coração” . Um a
pessoa cum pre escrupulosam ente seus deveres p ara com
os parentes de seu cônjuge, entretanto, se o faz é porque
deve evitar a todo custo a temível condenação: “ o homem
que não conhece o giri” .
A m aneira como eles sentem acerca deste dever p a ra
com a fam ília do cônjuge surge bastante clara no caso do
“ m arido adotado” , o hom em que se casa à m aneira de
um a m ulher. Q uando um a fam ília tem duas filhas e não
tem filhos, os pais escolhem um m arido p ara um a das
filhas, a fim de perpetuar o nome d a família. O nome dele
é apagado do registro da sua própria fam ília, um a vez que
adota o nome do sogro. Vai p ara a casa d a esposa, fica
sujeito “ em giri” ao sogro e à sogra, e quando morre, é
enterrado em terreno deles. Em todos esses atos, segue o
padrão exato da m ulher no casam ento comum. As razões
p ara a adoção de um m arido p ara a filha podem não ser
simplesmente a ausência de um filho: am iúde é um a
transação através da qual os dois lados esperam lucrar.
São os chamados “casam entos políticos” . A fam ília da
moça pode ser pobre, mas boa, e o rapaz poderá trazer
dinheiro em caixa, subindo em troca, na hierarquia de
classe. Ou a fam ília da moça pode ser rica e com ca­
pacidade de educar o m arido, que em troca deste bene­
ficio transfere-se de família. Ou, então, o pai da moça po­
derá ligar-se a um sócio em perspectiva p ara a sua firma.
De qualquer modo, o giri de um m arido adotado é
particularm ente pesado, o que vem a ser justo, já que o
ato de m udar o nome de um homem p ara o registro de

117
outra fam ília é drástico no Japão. No Japão feudal ele
tinha de se pôr à prova na nova casa, tom ando o lado de
seu pai adotivo em combate, ainda que isto significasse ter
de m atar o próprio pai. No Japão m oderno, os
“ casam entos políticos” envolvendo m aridos adotados
recorrem a esta forte sanção do giri, com a finalidade de
ligar o jovem aos negócios do sogro ou às fortunas de
fam ília com os mais consistentes laços que os japoneses
podem proporcionar. Especialm ente na E ra Meiji, às
vezes isto era vantajoso p ara os dois lados. Contudo, é
geralm ente violento o ressentim ento de ser um m arido
adotado, existindo um conhecido provérbio japonês que
diz: “ Se você tiver três g o de arroz (cerca de meio litro),
jam ais vá ser um m arido adotado” . Dizem os japoneses
que este resentim ento é “ devido ao giri” . Não alegam,
conforme o fariam os americanos, tivéssemos nós um
costume semelhante, que seja “ porque o impede de
desem penhar o papel de um hom em ” . Afinal de contas, o
giri é suficientemente penoso e “ a contragosto” , portanto,
“ devido ao giri” significa p ara um japonês um a relação
bastante incômoda.
Não apenas os deveres p a ra com os parentes
próximos do cônjuge é que são giri. Estão na m esm a ca­
tegoria os próprios deveres p ara com tios e tias, sobrinhos
e sobrinhas. O fato de, no Japão, não contarem como d e ­
votam ento filial (ko) os deveres em relação a parentes
mais chegados constitui um a das grandes diferenças nas
relações de fam ília entre o Japão e a China. Nesta, muitos
de tais parentes, além de outros m uito m ais distantes, h a ­
veriam de com partilhar de riquezas, ao passo que no Ja ­
pão são giri, ou parentes “ contratuais” . Os japoneses
assinalam acontecer am iúde jam ais terem essas pessoas
feito pessoalmente um favor (o n ) à pessoa solicitada a vir
em seu auxílio. A judando-as, ele estará pagando o o n aos
seus antepassados comuns. Igualm ente é esta a sanção
por trás do cuidado dos próprios filhos — sem dúvida, um
gimu — mas, ainda que ela seja a m esm a, a assistência a
esses parentes mais distantes conta como giri. Q uando se
tem de ajudá-los, como se fosse aos parentes próximos do
cônjuge, diz-se: “Estou enredado de giri” .
A grande relação tradicional de giri, considerada
pela m aioria dos japoneses até mesmo em precedência
quanto à relação com os parentes próximos do cônjuge, é

118
a do dependente p ara com o senhor feudal e os com­
panheiros de armas. Ê a fidelidade devida por um homem
honrado ao seu superior e aos colegas de classe. E sta obri­
gação do giri é celebrada num a vasta literatura tra ­
dicional, sendo identificada como a virtude dos samurais.
No Japão antigo, antes d a unificação do país efetuada
pelos Tokugawa, era am iúde considerada como um a
virtude ainda m aior e mais prezada do que o chu, naquela
época a obrigação p ara com o Xógum. Q uando no século
XII um Xógum M inam oto exigiu de um dos daimios a
entrega de um senhor feudal inimigo por ele abrigado,
este respondeu com um a carta que ainda é conservada.
Declarou-se ele profundam ente ofendido com a im-
putação quanto ao seu giri, recusando-se a transgredi-lo,
mesmo em nome do chu. “ Os negócios públicos” , es­
creveu ele, “(são um a coisa) sobre a qual pouco controle
tenho, mas o giri entre homens honrados constitui um a
realidade eterna” , transcendente à própria autoridade do
Xógum. Recusou-se ele “ a com eter um ato desleal contra
os seus estimados amigos” .* Esta transcendente virtude
sam urai do Japão antigo está presente em grande núm ero
de narrativas folclóricas de cunho histórico, conhecidas
hoje em dia em todo o Japão e aproveitadas em dram as
«ô, teatro k a b u k i e danças k a g u r a .
D entre essas narrativas, um a das m áis conhecidas é a
do gigantesco e invencível r o n in (um sam urai autônomo,
que vive à custa dos próprios expedientes), o herói Benkei,
do século XII. Com pletam ente sem recursos e contando
apenas com a sua força miraculosa, abriga-se nos m os­
teiros, dom inando os monges pelo terror. Vence todos os
sam urais que por lá passam , com a finalidade de
colecionar-lhes as espadas, equipando-se assim à moda
feudal. Acaba desafiando, segundo lhe parece, um
simples rapázelho, um senhor feudal franzino e de
maneiras afetadas. E ncontra nele, porém, um adversário
à altura, descobrindo que se tra ta do herdeiro dos
M inam oto, que conspira no sentido de reconquistar o
Xogunato p ara a sua família. É na verdade o querido
herói japonês Yoshitsune M inam oto. Benkei faz-lhe doa­
ção do seu veemente giri e pratica um a centena de proezas
em nome de sua causa. Finalm ente, entretanto, vêem-se
eles obrigados a escapar de um a esm agadora força inim i­

* C ita d o p o r A sakaw a, K a n ich i, D o c u m e n ts o f Ir ik i, 1929.

119
ga, juntam ente com 6s seus seguidores. Disfarçam-se de
peregrinos m onacais, que viajam pelo Japão a fim de
angariar contribuições p a ra um tem plo e, p ara escapar à
prisão, Yoshitsune veste-se como um m em bro do grupo,
enquanto Benkei finge-se de chefe. D efrontam -se com
um a guarda colocada pelo inimigo em seu cam inho e
Benkei inventa p ara eles um a longa lista de “con­
tribuintes” p ara o templo, que finge ler do seu per­
gaminho. O inimigo quase os deixa passar. No último
m omento, porém, suas suspeitas são despertadas pela ele­
gância aristocrática que Yoshitsune não consegue
dissimular, mesmo sob o disfarce de subalterno. Cham am
o grupo de volta. Im ediatam ente, Benkei utiliza um
recurso que livra Yoshitsune de qualquer suspeita: re ­
preende-o por um a trivialidade qualquer e esbofeteia-o. O
inimigo convence-se, pois será impossível que, caso aquele
peregrino fosse Yoshitsune, um de seus dependentes
ousasse levantar a m ão contra ele. Seria um a inconcebível
quebra do giri. O ato irreverente de Benkei salva as vidas
do pequeno magote. U m a vez em território seguro, Benkei
lança-se aos pés de Yoshitsune e pede-lhe que o m ate. O
seu senhor, complacente, perdoa-o.
Essas velhas estórias de tem pos em que o giri vinha
do coração e não era contam inado de ressentim ento
constituem o sonho de um a idade de ouro do Japão m o­
derno. Naquela época, conforme rezam as histórias, não
existia “ a contragosto” no giri. Se havia conflito com rela­
ção ao chu, podia-se honrosam ente ater-se ao giri. O giri
era então um a apreciada relação frente a frente, com to ­
dos os adornos feudais. “Conhecer o giri” significava ser
fiel a vida inteira a um senhor que, por seu turno, cuidava
de seus dependentes. “ Pagar o giri” queria dizer oferecer
até mesmo a própria vida ao senhor a quem se devia tudo.
E stá claro que isto é um a fantasia. A história feudal
do Japão fala de um a quantidade de dependentes cuja fi­
delidade foi com prada pelo daim io no lado contrário da
batalha. E o que ainda era m ais im portante, como
veremos no próximo capítulo, qualquer censura lançada
pelo senhor sobre o seu dependente poderia, justificada e
tradicionalm ente, levar o dependente a deixar o seu servi­
ço e até mesmo entrar em negociações com o inimigo. O
Japão exalta o tem a da vingança com o mesmo prazer
com que celebra a fidelidade aos m ortos. E ambos eram

120
giri. A fidelidade era o giri p ara com o senhor e a vingança
por um insulto era giri p a ra com o próprio nome. No Ja ­
pão são dois lados do mesmo escudo.
As velhas histórias de fidelidade constituem , todavia,
agradáveis devaneios p a ra os japoneses de hoje, pois,
atualm ente “ pagar o giri” não é m ais fidelidade p ara com
o próprio chefe verdadeiro e sim cum prir toda a espécie de
obrigações p ara com toda a espécie de pessoas. As frases
constantem ente usadas hoje em d ia s io cheias de
ressentim ento e de ênfase sobre a pressão d a opinião
pública, que obriga um a pessoa a fazer giri contra a
vontade. Dizem eles: “estou arranjando este casam ento
somente por g m ” ; “ só por causa de giri fui forçado a dar-
lhe o emprego” ; “ preciso vê-lo apenas por giri” . Falam
constantem ente de estarem “ enredados de giri” , ex­
pressão traduzida pelo dicionário como “ estou obrigado a
isto”, “Ele coagiu-me com giri” ; “ ele acuou-m e com
g^ri” , dizem eles, e estes como outros usos, significam que
alguém convenceu a pessoa que fala a praticar um ato que
ela não alm ejava ou visava, m ediante o levantar de al­
gum a questão relativa a pagam ento devido a um o n . Em
aldeias campesinas, nas transações em pequenos es­
tabelecimentos, nos altos círculos do Zaibatsu e no
.Conselho de M inistros do Japão, as pessoas são “ coagidas
com giri” e “ acuadas com giri” . Um pretendente poderá
efetuá-lo onerando o futuro sogro com algum a antiga
relação ou negociação entre as duas famílias ou pode um
homem utilizar esta m esm a arm a a fim de apoderar-se
das terras de um camponês. O próprio indivíduo que esti­
ver sendo “ acuado” achará que deve aquiescer. Dirá ele:
“ Se não seguro o meu hom em do o n (de quem recebi o
próprio), m eu giri cairá em descrédito” . Todos esses
costumes trazem um a íntim a conexão com a relutância e
aquiescência “ apenas por am or à honestidade” , conforme
o expressa o dicionário japonês.
As regras do giri são estritam ente as do pagam ento
exigido, não constituindo um a coleção de preceitos morais
como os Dez M andam entos. Q uando um homem é obri­
gado por força do giri, presum e-se que talvez ten h a de pôr
de lado o seu sentido de justiça, sendo comum ouvir-se
que: “ Não pude agir direito por causa do giri” . T am ­
pouco as regras do giri têm a ver com am ar ao próximo
como a nós mesmos. Elas não especificam que um homem
deva agir generosamente por pu ra espontaneidade do

121
coração. Um hom em deve fazer o giri, dizem eles, porque,
“ se não o fizer, hão de considerá-lo como “um a pessoa
que não conhece o giri” e se cobrirá de vergonha diante do
m undo” . É o que as pessoas dizem que to rn a tão
necessário aquiescer. Realm ente, “ giri p ara o m undo”
costum a aparecer em tradução inglesa como “con­
formidade com a opinião pública” , e o dicionário traduz
"E le não pode ser ajudado porque constitui giri p ara o
m undo” por “ Não irão aceitar qualquer outro rum o de
ação” .
Neste “ círculo do giri” é que o paralelo com as
sanções americanas quanto ao pagam ento de dinheiro
que se pediu em prestado m ais nos ajuda a entender a ati­
tude japonesa. Não acham os que um hom em tenha de p a ­
gar o favor de um a carta recebida, um presente dado ou
um a palavra oportuna com o rigor necessário à re­
gularidade de seus pagam entos de juros ou de um a dívida
bancária. Nessas transações financeiras, a falência é a
penalidade para o fracasso — bastante pesada, aliás.
Entretanto, os japoneses consideram um hom em falido
quando deixa de pagar o giri, sendo que todos os contatos
na vida tendem a incorrer em giri de um m odo ou de
outro. Isto significa m anter um a resenha de palavrinhas e
atos que os americanos pouco ligam, sem preocupações de
obrigações contraídas, querendo dizer na verdade que se
deve cam inhar com cautela num m undo complicado.
Existe um outro paralelo entre as idéias japonesas de
giri p ara com o m undo e as am ericanas de pagam ento de
dinheiro. O pagam ento de giri é regulado p ara um equi­
valente exato. Nisto o giri difere do gimu, que jam ais pode
ser nem sequer aproxim adam ente satisfeito, por mais que
se faça. M as o giri não é ilimitado. P ara os americanos, os
pagam entos são fantasticam ente desproporcionais ao fa­
vor original, mas não é assim que são encarados pelos ja ­
poneses. Achamos que a doação de presentes deles é
igualmente fantástica quando, duas vezes por ano, cada
casa em brulha algo de m aneira cerimoniosa, como re­
tribuição a um presente recebido seis meses atrás ou
quando a família de um a em pregada traz presentes pelos
anos afora, em paga do favor de tê-la contratado. Con­
tudo, os japoneses proíbem pagar presentes com outros
maiores. Não constitui parte integrante da honra de cada
um retribuir com “veludo puro” . U m a das coisas mais
depreciativas que se pode dizer a respeito de um presente

122
é que o doador "retribui um vairão (peixe pequeno) com
um goraz (peixe grande)” . O mesmo ocorre quanto ao p a ­
gamento do giri.
Sempre que possível, são conservados assentam entos
dos intercâm bios, de trabalho ou de m ercadorias. Nas
aldeias, alguns são obra dos chefes, outros, de alguém d o ,
grupo de trabalho, outros, ainda, são de fam ília ou
pessoais. P ara um enterro, é costume trazer-se “ dinheiro
p ara o incenso” , podendo os parentes trazer ta m b é m .
pano colorido p ara os pendões funerários. Os vizinhos
vêm ajudar, as mulheres na cozinha e os homens cavando
a sepultura e'fab rican d o o caixão. N a aldeia de Suye
M ura, o chefe organizou o livro em que tais coisas eram
registradas. Constituía um assentam ento valioso p ara a
família do falecido, pois revelava os tributos dos vizinhos.
Costuma ser igualmente um a lista que revela os nomes
aos quais a fam ília deve tributos recíprocos, a serem p a ­
gos quando ocorrer um a m orte em outras famílias. São
intercâmbios a longo prazo. Existem tam bém retribuições
a curto prazo em qualquer funeral de aldeia, como em
qualquer tipo de festividade. Os que ajudaram a fabricar
o caixão são alimentados, trazendo eles, portanto, um a
m edida de arroz p ara a fam ília enlutada, como p a ­
gamento parcial de sua comida. Este arroz é tam bém re­
gistrado nos assentam entos do chefe. P ara a maioria das
festividades, tam bém o convidado traz vinho de arroz
como pagam ento parcial das bebidas. Q uer seja a ocasião
de nascimento, m orte, transplante de arroz, construção de
casa, ou festa social, a transferência de giri é cui­
dadosam ente anotada, p ara futuro pagam ento.
Os japoneses têm outra convenção quanto ao giri
paralela às ocidentais relativas ao pagam ento de dinheiro.
Se a devolução ultrapassa o devido prazo, aum enta, como
se acrescida de juros. O Doutor Eckstein faz um relato j
sdisto, na ocasião de seus entendim entos com o industrial
japonês que financiou a sua viagem ao Japão, a fim de
coligir material p ara a sua biografia de Noguchi. R e­
gressou ele aos Estados Unidos p ara escrever o livro e
finalmente enviou o m anuscrito p ara o Japão. N io rece­
beu notificação de recebim ento, nem carta algum a. Ficou
naturalm ente preocupado, com medo de que algum a
coisa na obra pudesse ter ofendido os japoneses, en ­
tretanto as cartas continuavam sem resposta. Anos mais
tarde, o industrial telefonou-lhe. Encontrava-se nos Esta-

123
dos U nidos e logo depois chegava à residência do D outor
Eckstein, trazendo dúzias de cerejeiras japonesas. O
presente era principesco. Justam ente por ter estado em
expectativa tan to tem po, é que necessariam ente haveria
de ser algo magnificente. “ C ertam ente” , comentou o d oa­
dor ao D outor Eckstein, “ o senhor não poderia desejar
que eu lhe retribuísse r a p i d a m e n t e " .
Um hom em “ acuado com giri” vê-se amiúde obri­
gado a pagar débitos que cresceram com o tem po. U m a
pessoa pode pedir auxílio a um pequeno negociante por
ser sobrinho de um professor desse neeociante, quando
criança. Já que quando jovem o estudante não pode re­
trib u ir o seu giri ao professor, o débito acumulou-se
durante os anos e o com erciante terá de “ a contragosto
evitar explicações ao m undo” .

124
8. L IM PA N D O O N O M E

O giri ligado ao nome é o dever de conservar


im aculada a reputação. Consiste num a série de virtudes
— algumas das quais parecem opostas a um ocidental,
mas que, p ara os japoneses, possuem unidade suficiente
por não constituírem pagam entos de benefícios recebidos.
Acham-se “ fora do círculo do o n " . São os atos que
m antêm lim pa a reputação, sem estarem ligados a débitos
específicos para com outras pessoas. Neles se inclui,
portanto, a m anutenção de todas as heterogêneas exi­
gências de etiqueta concernentes à “ devida posição”
como a revelação de estoicismo na dor e a defesa d a pró­
pria reputação na profissão ou ofício. O giri ligado ao
nome reclam a igualmente atos que eliminem um estigma

125
ou insulto. O estigm a com prom ete o prestígio e deverá ser
extirpado. Talvez seja necessário vingar-se do difam ador
ou então cometer suicídio, existindo toda a espécie de
rumos de ação possíveis entre esses dois extremos. O fato
é que não se d á de om bros levianam ente ao que seja
comprometedor.
Os japoneses não têm palavras separadas p ara o que
designo aqui como “ o giri ligado ao nome” . Consideram-
no sim plesmente o giri fora do círculo do o n . Ê esta a base
de classificação e não o fato de que o giri p ara com o
m undo seja um a obrigação de retribuir favores e que o li­
gado ao nome consista principalm ente em vingança. O fa­
to de as línguas ocidentais separarem os dois em ca­
tegorias tão opostas como gratidão e vingança não im ­
pressiona os japoneses. Por que não haverá de abranger
um a virtude a conduta de um homem, tan to ao retribuir a
benevolência quanto ao reagir ao desprezo ou à m ale­
volência?
No Japão assim acontece. Um hom em idôneo sente
com a mesma intensidade os insultos tanto quanto os
benefícios que recebe. Constitui virtude pagar a um ou a
outro. Ele não separa os dois, como fazemos nós,
cham ando a um agressão e ao outro não-agressão. Para
ele, a agressão começa apenas fora do “ círculo do giri” .
Contanto que se m antenha o giri, lim pando de m ácula o
nome, não se é culpado de agressão, trata-se de um ajuste
de contas. “ O m undo está virado” , dizem eles, enquanto
um insulto, estigma ou derrota não seja revidado ou
eliminado. Um homem decente deve ten tar pôr o m undo
novamente em posição de equilíbrio. Ê a virtude hum ana
e não um vício bem hum ano. O giri ligado ao nome, e até
mesmo a m aneira como é lingüisticam ente com binado no
Japão com gratidão e lealdade, tem sido um a virtude oci­
dental em determ inados períodos da história européia.
Floresceu largam ente na Renascença, especialmente na
Itália e tem muito em comum com e l v a l o r e s p a n o l na
Espanha clássica e com d i e E h r e na Alem anha. Algo de
muito sem elhante conceituava o duelo na E uropa há um
século. Sempre que esta virtude de lavar as m anchas da
própria honra esteve em ascendência, no Japão ou nos
países ocidentais, persistiu sempre em seu âmago a
transcendência do proveito em qualquer sentido m aterial.
O virtuoso assim era considerado na proporção em que se
oferecia p a ra “h o n rar” os bens, a fam ília e a própria vida.

126
Faz parte da sua própria definição, constituindo a base da
asserção, por parte de tais países, de que seja um valor
“espiritual” . Não h á dúvida de que assim se envolvem eles
em grandes perdas m ateriais, mal se podendo justificar
dentro de um a base de lucros e perdas. Reside aí o grande
contraste entre esta versão de honra e a competição de
verdadeira degola e franca hostilidade que se m anifesta
na vida nos Estados Unidos. Na Am érica pode acontecer
de não haver exclusão de influência algum a num a ne­
gociação política ou financeira, mas trata-se de um a
guerra p ara obter ou conservar algum a vantagem m a­
terial. Som ente casos excepcionais, como, por exemplo,
nas contendas das M ontanhas de Kentucky, onde pre­
valeceram códigos de honra, é que caem na categoria do
giri ligado ao nome.
O giri ligado ao nome e toda a hostilidade e vigilante
expectativa que o cerca em qualquer cultura não é,
porém, virtude característica do continente asiático. Não
é, como se diz, oriental. Os chineses não o têm , nem os
siameses, nem os indianos. Os chineses consideram tal
sensibilidade p ara com insultos e difamações como um
traço de gente “ pequena” — m oralm ente pequena. Não
constitui parte do seu ideal de nobreza, como no Japão. A
violência, considerada errada quando irrom pe sem mais
nem menos, n io fica bem pela ética chinesa a exemplo de
um homem que a ela se entrega p ara o revide de um
insulto. Acham ridículo ser assim tão sensível. N io en­
caram tam pouco um estigma como algo cuja erradicação
seja edificante. Os siameses desconsideram esse tipo de
sensibilidade aos insultos. Do mesmo modo que os
chineses, regulam seus ajustes, ridicularizando seus di-
famadores, mas não imaginam que a sua honra tenha sido
contestada. “A melhor m aneira de evidenciar a selvageria
de um antagonista” , dizem eles, “ é concordar com ele” .
A significação completa do giri ligado ao nome não
pode ser entendida sem que se coloquem em contexto to ­
das as virtudes não-agressivas nele incluídas no Japão. A
vingança é apenas um a das virtudes por ele exigidas
ocasionalmente. Dele constam tam bém grandes doses de
conduta tranqüila e equilibrada. O estoicismo, o au to ­
controle imprescindível a um japonês de amor-próprio,
faz parte do seu giri ligado ao nome. Um a m ulher não d e­
ve queixar-se na hora do parto e um homem tem de ele­

127
var-se acim a da dor e do perigo. Q uando as enchentes
invadem um a aldeia japonesa, o am or-próprio de cada
um leva-o a reunir todos os seus pertences e procurar as
elevações de terreno. Não há lamentações, correrias, nem
pânico. Q uando os ventos equinociais e a chuva chegam,
num a fúria de ciclone, há sem elhante autocontrole. Ura
procedimento desses completa o respeito que cada um
sente por si mfesmo no Japão, ainda que a longo prazo não
viva assim. Acham eles que o am or-próprio americano
não exige autocontrole. H á um a n o b l e s s e o b l i g e neste
autocontrole no Japão e nos tem pos feudais exigia-se,
portanto, mais dos sam urais do que d a gente comum, mas
a virtude, em bora menos prem ente, constituía preceito de
vida entre as classes. Se se exigia dos sam urais que che­
gassem a extremos ao se elevarem acim a da do r fisica, a
gente comum era forçada a chegar a extremos ao aceitar
as agressões dos sam urais arm ados.
São famosas as histórias acerca do estoicismo dos
sam urais. Eram proibidos de se deixarem vencer pela
fome, o que, no entanto, era por dem ais trivial para ser
mencionado. Im punha-se-lhes quando fam intos que
aparentassem ter acabado de comer: deviam palitar os
dentes ostensivamente. “ Os filhotes de passarinho” , diz a
m áxima, “ choram por comida, mas o sam urai traz aos
dentes o palito” . Na guerra passada foi esta a m áxim a
m ilitar p ara o soldado com batente. Não devem tam pouco
ceder à dor. A atitude japonesa era como a réplica do
menino-soldado a Napoleão: “ Ferido? Não, m ajestade,
estou m orto” . Um sam urai não devia dar sinais de so­
frim ento até cair m orto e devia agüentar a dor sem
pestanejar. Contam que o Conde K atsu, que m orreu em
1899, quando menino teve os testículos lacerados por um
cão. Ele pertencia a um a fam ília de sam urais, reduzida,
no entanto, à miséria. E nquanto o médico o esperava, o
pai m antinha a espada encostada ao seu nariz. “ Se der
um pio” , avisou ele, “ m orrerá de um jeito que pelo menos
não será vergonhoso” .
O giri ligado ao nome exige tam bém que se viva de
acordo com a própria situação na vida. Se um hom em
falha neste giri, não tem direito a respeitar-se, o que
significava no período Tokugawa a aceitação, como parte
de seu amor-próprio, das porm enorizadas leis suntuárias
que regulavam praticam ente tudo o que usasse, tivesse ou

128
utilizasse. Os americanos ficam profundam ente chocados
por leis que definam tais coisas como advindas da si­
tuação de classe herdada. O am or-próprio nos Estados
Unidos está relacionado com a m elhoria da própria posi­
ção social, sendo que leis suntuárias rígidas constituem
um a negação d a própria base de nossa sociedade.
Ficamos horrorizados com as leis Tokugawa que es­
tabeleciam p ara o fazendeiro de um a classe a permissão
de com prar determ inada boneca p ara a filha e p ara o de
um a outra, um a boneca diferente. Na América, en­
tretanto, obtemos os mesmos resultados apelando para
um a ratificação diversa. Aceitamos sem críticas o fato de
que o filho do'dono da fábrica tenha um a coleção de trens
elétricos e que a filha do agricultor contente-se com um a
boneca de sabugo de milho. Aceitamos diferenças de
rendimentos e justificamo-las. G anhar um bom salário
faz parte do nosso esquem a de am or-próprio. Se as
bonecas são reguladas pelos rendim entos isto não consti­
tui violação de nossas idéias morais. Quem é rico com pra
melhores bonecas p ara os seus filhos. No Japão, ficar rico
é suspeito, ao passo que conservar a sua posição n io o é.
M esmo hoje em dia, tan to o pobre quanto o rico investem
o am or-próprio no cum prim ento das convenções da
hierarquia. Ê um a virtude estranha à América, e o francês
Tocqueville já o assinalou nos anos 30 do século passado,
no seu livro já mencionado. Nascido na França no século
XVIII, conhecia e am ava o m odo de vida aristocrático, a
despeito de seus generosos comentários sobre o iguali-
tarism o nos Estados Unidos. A América, disse ele, a
despeito de suas virtudes, carecia de verdadeira dig­
nidade. “ A verdadeira dignidade consiste em adotar a
posição devida, nem dem asiado elevada, nem demasiado
baixa, o que tan to está ao alcance do campônio, quanto
do príncipe” . Tocqueville teria compreendido a atitude
japonesa de que as diferenças de classe não são elas
mesmas hum ilhantes.
“A verdadeira dignidade” , nesta era de estudo obje­
tivo de culturas, é considerada como algo que diferentes
pessoas podem definir de modo diverso, exatam ente como
sempre definem por eles mesmos o que é hum ilhante. Os
americanos, que atualm ente proclamam que o Japão n io
alcançará o am or-próprio enquanto não o compelirmos ao
igualitarismo, são culpados de etnocentrismo. Se o que

129
esses americanos querem é, conforme dizem, um Japão
com am or-próprio, terão de respeitar as bases japonesas
de am or-proprio. Podemos reconhecer, como o fez
Tocqueville, que esta “verdadeira dignidade” aris­
tocrática está ficando ultrapassada no m undo m oderno e
que um a outra, mais apurada, está tom ando o seu lugar
Tam bém assim sucederá no Japão. E nquanto isso, m o­
dernam ente, terá o Japão de ir reconstruindo o seu amor-
próprio na sua própria base, e não na nossa. E terá de
purificá-lo à sua m aneira.
O giri ligado ao nom e está igualm ente relacionado
com muitos gêneros de compromissos, além dos d a devida
posição. Quem pede um empréstimo, poderá estar em ­
penhando o giri ligado ao seu nome. H á um a geração, era
comum dizer: “ Sujeito-me a cair no ridículo, se não pagar
esta dívida” . Se falhasse, não se transform ava li­
teralm ente num alvo de risos: não existiam pelourinhos
no Japão. Mas quando chegava o Ano Novo, d ata em que
as dívidas deviam ser pagas, o devedor insolvente podia
suicidar-se, a fim de “ lim par o nom e” . A véspera de Ano
Novo ainda tem a sua safra de suicidas, que assim proce­
deram p ara redim ir suas reputações.
Todos os compromissos profissionais resultam em
giri ligado ao nome. As exigências japonesas costum am
ser fantásticas quando circunstâncias especiais dão lugar
à publicidade, e a reprovação possa ser geral. Veja-se, por
exemplo, a longa lista de diretores de colégios que se
suicidaram porque os incêndios em suas escolas — de que
nao eram culpados — am eaçaram o retrato do Im ­
perador, pendurado em todos os estabelecim entos de
ensino. M uitos professores, igualm ente m orreram
queimados ao penetrarem nas escolas em cham as, a fim
de salvar esses retratos. Com as suas m ortes dem ons­
traram o quanto prezavam o giri ligado a seus nomes e o
seu chu ao Im perador. H á tam bém famosas histórias de
pessoas que incorreram num l a p s u s l i n g u a e durante lei­
turas públicas solenes de um dos Editos Im periais, seja o
da Educação ou o dirigido aos Soldados e M arinheiros, e
lim param os seus nomes suicidando-se. D urante o reina­
do do atual Im perador, um hom em que inadvertidam ente
dera ao seu filho o nome de Hiroito — o nome dado ao
Im perador jam ais foi pronunciado no Japão — m atou a si
mesmo e ao filho.

130

\
O giri ligado ao nome como profissional é m uito
prem ente no Japão, não precisando ser m antido, no
entanto, no sentido em que o am ericano considera de ele­
vado padrão. Diz o professor: “ Pelo giri ligado ao meu
nome como professor, não posso adm itir ignorância al­
gum a” , querendo dizer que, se desconhece a que espécie
pertence um a rã, mesmo assim tem de fingir que assim
não acontece. Se ensina inglês na base de apenas alguns
anos de instrução escolar, nao poderá adm itir, entretanto,
que alguém possa corrigi-lo. Ê particularm ente a este tipo
de defensiva que se refere o “ giri ligado ao nome como
professor” . O homem de negócios, tam bém , pelo giri li­
gado ao seu nome como homem de negócios, não pode
deixar ninguém saber que os seus haveres estejam
seriamente exauridos ou que os planos que elaborou p ara
a sua organização fracassaram . E o diplom ata não pode
adm itir em giri o m alogro de sua política. Em todos esses
empregos de giri, verifica-se um a identificação extrem a
do hom em com a sua obra, tornando-se autom aticam ente
um a crítica d a própria pessoa qualquer apreciação de sua
atuação ou competência.
Essas reações japonesas a imputações de falhas e
insuficiências podem ser reproduzidas efetivamente nos
Estados Unidos. Todos conhecemos gente atribulada pela
calúnia. Raram ente, porém, somos tão defensivos quanto
os japoneses. Se um professor não sabe a que espécie
pertence um a rã, acha m ais digno confessá-lo do que
arrogar-se tal conhecimento, ainda que pudesse sucum bir
à tentação de esconder a sua ignorância. Se um hom em de
negécios acha-se descontente com algum plano de ação
que vem propondo, seu parecer será de que poderá es­
tabelecer um a diretiva nova e diferente. Jamais lhe
ocorrerá estar o seu am or-próprio condicionado à
asserção de que sempre esteve certo e que se admitisse
estar errado, devesse pedir demissão ou aposentar-se. No
Japão, entretanto, a defensiva se instala profundam ente,
constituindo norm a de sabedoria — como tam bém o é de
etiqueta universal — não exprobrar a ninguém ter come­
tido um erro profissional.
Esta sensitividade evidencia-se principalm ente em si­
tuações em que um a pessoa perdeu p ara um a outra. Pode
ser apenas que a outra tenha obtido preferência para um
emprego ou que a pessoa interessada tenha se saído mal
em algum exame competitivo. O perdedor “ arrasta

131
vergonha” por tais fracassos e, em bora esta vergonha
constitua, em alguns casos, um forte incentivo p a ra
empenhos maiores, em m uitos outros é um perigoso de-
pressor. Ele perde a confiança e torna-se melancólico,
irritado, ou ambos. Bloqueiam-se os seus esforços. Ê
particularm ente im portante p ara os americanos verificar
que a competição no Japão não apresenta, pois, o mesmo
grau de efeitos socialmente desejáveis de nosso sistem a de
vida. Fiamo-nos acentuadam ente na competição como
um a “ coisa boa” . Os testes psicológicos dem onstram que
a competição nos estim ula p ara um a m elhor produção. O
desempenho vigoriza-se sob tal estímulo. Q uando nos dão
algo p ara fazer, isoladam ente, decaímos em relação
ao índice que alcançam os na presença de competidores.
No Japão, entretanto, seus testes revelam exatam ente o
oposto. Ê especialmente m arcante um a vez term inada a
infância, pois, as crianças japonesas m ostram -se mais
folgazãs quanto à competição, sem se preocuparem tanto
com ela. Com rapazes e adultos, contudo, o desempenho
piora com a competição. C andidatos com apreciável pro­
gresso dim inuíram os erros e aum entaram a rapidez ao
trabalharem sozinhos, passando a com eter enganos e a se
retardarem com a presença de um competidor. Pro­
duziram m elhor quando o seu aperfeiçoamento foi cote­
jado com os próprios antecedentes e não quando se
m ediram com outros. Os pesquisadores japoneses na-
lisaram corretam ente a razão p ara estes fracos índices
em situações competitivas. Os seus candidatos, disseram
eles, quando o projeto tornou-se competitivo, passaram a
se preocupar especialmente com o perigo de serem derro­
tados e a produção decaiu. T anto consideraram a compe­
tição como um a agressão, que voltaram a atenção p ara a
sua relação com o agressor, ao invés de concentrar-se na
tarefa.*
Os estudantes exam inados nesses testes tendiam a
ser influenciados antes de mais nada pela possível ver­
gonha do fracasso. Como um professor ou hom em de ne­
gócios confrontando-se com o giri ligado ao seu nome
profissional, são eles atingidos pelo giri ligado ao nome
como estudantes. Equipes estudantis que perderam em

* P a ra um sum ário, ver T h e J a p a n e s e : C h a ra c te r a n d M o r a le


(m im eografado). P re p a ra d o p o r L adislas F a ra g o p a r a o C om itê d e M oral
N ational, 9 E a st 89th S treet, New Y ork.

132
jogos competitivos, igualmente, exacerbam -se carpindo a
vergonha do fracasso. Tripulações arrojam -se dentro de
seus botes, ju n to aos remos, chorando e se lam entando.
Equipes derrotadas de beisebol ajuntam -se num pranto
ruidoso. Nos Estados Unidos seriam considerados m aus
perdedores. Segundo a nossa etiqueta, esperamos que
reconheçam ter vencido a m elhor equipe. Os derrotados
devem apertar as mãos dos vencedores. Por m ais que d e­
testemos ser derrotados, desprezamos os que entram em
crise emocional por causa disso.
Os japoneses sempre se mostravam inventivos no
sentido de idear m aneiras de evitar a competição direta.
Suas escolas elem entares reduzem -na a um mínimo in­
concebível aos americanos. Os seus professores recebem
instruções visando a que cada criança deva ser ensinada a
m elhorar a própria atuação, sem que lhe sejam dadas
oportunidades de com parar-se com outras. Nas suas
escolas prim árias chegam a não conservar os repetentes,
levando as crianças que entraram juntas a assim se
conservarem por todo o seu período elem entar. Seus bole­
tins classificam as crianças nas escolas elem entares a tra ­
vés de notas de conduta e não de trabalhos escolares:
quando se torna inevitável um a situação realm ente
competitiva, como nos exames p ara o ingresso em cursos
médios, a tensão é compreensivelmente grande. Todos os
professores contam histórias de meninos que se suici­
daram ao saber que haviam sido reprovados.
A redução ao m ínimo d a competição direta continua
por toda a vida dos japoneses. U m a ética baseada no o n
pouco lugar tem p ara a competição, ao passo que o
imperativo categórico americano repousa sobre o êxito na
competição com os semelhantes. Todo o seu sistema de
hierarquia, com as suas porm enorizadas regras de classe,
reduz ao m ínimo a competição direta. O sistema familiar,
igualmente, pois pai e filho não se encontram ins-
titucionalm ente em competição, como na América: po­
derão rejeitar-se, mas jam ais competir. Os japoneses
falam , assombrados, da fam ília am ericana, onde pai e
filho competem pelo uso do carro de fam ília e pela
atenção d a mãe-esposa.
A onipresente instituição do interm ediário re­
presenta um a das m uitas m aneiras através das quais os
japoneses evitam o confronto direto de pessoas em

133
competição. Toda a situação em que um hom em possa
envergonhar-se por não se ter saído bem exige um in ­
term ediário, em pregado em grande núm ero de ocasiões
— negociação de casam ento, oferecimento dos próprios
serviços sob contrato, saída de um emprego e incontáveis
assuntos cotidianos a serem resolvidos. Um agente des­
ses inform a os dois lados ou, no caso de um a im portante
negociação, como um casam ento, em pregam -se res­
pectivamente dois interm ediários, que ajustam os d e­
talhes entre si antes de irem fornecer os resultados de
seus trabalhos. M ediante um trato de segunda m ão como
esse, os representados livram-se de tom ar conhecimento
de reclamações e incum bências que haveriam de
ressentir-se como giri ligado aos seus nomes, se estivessem
em comunicação direta. O interm ediário, igualmente,
obtém prestígio atuando em caráter oficial, como tam bém
o respeito d a com unidade com o êxito de suas m anobras.
As possibilidades de um acordo pacífico são maiores,
pois, o interm ediário está pessoalmente em penhado em
negociações conciliatórias. Ele age do mesmo modo ao
sondar um em pregador acerca de um emprego p a ra o seu
cliente, ou ao transm itir-lhe a decisão do em pregado de
sair do mesmo.
Estabelece-se toda a sorte de etiquetas a fim de evitar
situações causadoras de vergonha, possíveis de acarretar
giri p a ra o próprio nome. Tais situações, assim reduzidas
ao mínimo, vão m uito além d a competição direta. O dono
d a casa, acham eles, deve receber o seu hóspede com um
certo ritual de boas-vindas e nas suas melhores roupas.
Portanto, quem encontra o fazendeiro em casa com as
suas vestes de trabalho, é provável que vá ter de esperar
um pouco. Ele não d a rá sinais de reconhecim ento até
envergar roupas apropriadas e providenciar, as devidas
cortesias. N io faz diferença se o dono d a casa tiver de
trocar de roupa no aposento em que o hóspede estiver
esperando. Simplesmente ele não se acha presente, até
que vista o traje adequado. Nas zonas rurais, igualmente,
os rapazes podem visitar as moças à noite, depois que to­
dos em casa estejam dorm indo e a moça já na cama. As
moças p o derio aceitar ou rejeitar suas investidas, en­
tretanto, o rapaz usa um a toalha am arrad a ao rosto, de
modo a que, se for repelido, não se sinta envergonhado no
dia seguinte. O disfarce não é p ara im pedir que a moça o

134
reconheça. É simplesmente um a técnica de avestruz, a fim
de que ele não se veja obrigado a adm itir que ten h a sido
em pessoa hum ilhado. A etiqueta exige tam bém que se
tenha o mínimo conhecimento de um projeto, até que o
seu sucesso esteja assegurado. Faz parte dos deveres de
interm ediários no arranjo de um casam ento aproxim arem
os futuros noivos antes de ser completo o contrato. Todos
os esforços são envidados no sentido de to m a r casual o
encontro, pois se o objetivo da apresentação fosse declara­
do àquela altura, qualquer rom pim ento das negociações
am eaçaria a honra de um a das famílias ou de ambas. Já
que o jovem casal deve cada um estar acom panhado por
um ou ambos os progenitores, e os interm ediários venham
a ser os donos ou donas d a casa, nada mais natural que
“ esbarrem um no outro” casualm ente n a exposição anual
de crisântemos, na contem plação do florescer das cere­
jeiras ou então num parque ou local de recreio assaz
conhecidos.
De todos esses modos e de muitos outros mais, os ja ­
poneses procuram evitar as ocasiões em que o fracasso
possa ser vergonhoso. E m bora coloquem tan ta ênfase no
dever de lim par o nome de um insulto, na prática isso os
leva a ajustar os acontecim entos de m aneira a que o mais
raram ente possível se venha a experim entar insultos.
G rande é o contraste com o que ocorre em m uitas tribos
das ilhas do Pacífico, onde lim par o próprio nome ocupa
um lugar tão preem inente quanto no Japão.
E ntre esses primitivos povos horticultores da Nova
Guiné e Melanésia, o incentivo principal d a açao tribal ou
pessoal é o insulto, de que é necessário ressentir-se. Não
há um a festa tribal sem que um a aldeia o trag a à baila,
declarando que um a outra aldeia é tão pobre que nao po­
de alim entar dez hóspedes, é tão sovina què esconde seus
inham es e cocos, tem uns chefes tio ignorantes a ponto de
serem incapazes de organizar uma festa, ainda que o
tentassem. A aldeia provocada limpa, então, o seu nome,
deslum brando a quem chega com o seu pródigo aparato e
hospitalidade. As negociações de casam ento e as tran sa­
ções financeiras são postas em andam ento d a mesma
m aneira. Do mesmo modo, quando decidem guerrear,
terríveis insultos sao trocados, antes de colocarem as
flechas em seus arcós. Abordam a m ais insignificante
questão como se fosse ocasião p ara um combate mortal.

135
H á um grande incentivo p ara a ação e essas tribos cos­
tum am ter m uita vitalidade. Contudo, jam ais foram tidas
como corteses.
Os japoneses, ao contrário, são modelos de polidez,
valendo tal preem inência como indicação dos extremos a
que chegaram na lim itação das ocasiões em que seja
necessário lim par o próprio nome. Prezam , como in­
comparável estímulo ao em preendim ento, a anim osidade
ocasionada pelo insulto, entretanto, restringem as si­
tuações em que seja despertado. E ra apenas cabível em
determ inadas situações ou quando cedessem sob pressão
às disposições tradicionais p ara eliminá-lo. Não h á dúvida
de que o emprego de tal estímulo no Japão contribuiu
para a posição dom inante por ele alcançada no Extrem o
Oriente e no tocante à sua política de guerra anglo-
- am ericana n a últim a década. M uitos debates ocidentais
em torno da sensibilidade do Japão ao insulto e ã sua
ansiedade em vingar-se, contudo, m ais se aplicariam às
tribos insulto-ativistas d a Nova G uiné do que ao Jap io ,
sendo que m uitas previsões ocidentais de como o Japão
procederia após a derro ta nesta guerra tan to se ex­
traviaram devido a não levarem em conta as particulares
limitações japonesas quanto ao giri ligado ao próprio
nome.
A cortesia dos japoneses não deverá levar os
americanos a m enosprezar a sua sensibilidade a im-
p u ta ç õ e s. Os a m e ric a n o s tro c a m m u ito des-
preocupadam ente com entários pessoais, num a espécie de
jogo. Ê difícil para nós avaliar a extrem a seriedade que se
liga aos comentários ligeiros no Japão. Na sua auto­
biografia, publicada nos Estados Unidos escrita em in­
glês, um artista japonês, Yoshio M arkino, descreveu com
nitidez um a reação japonesa perfeitam ente adequada ao
que ele interpretou como um escárnio. Q uando escreveu o
livro já vivera a m aior parte d a sua vida adulta nos Es­
tados Unidos e na Europa, entretanto, p ara ele era como
se ainda morasse na sua cidade natal, a rural Aichi. E ra o
filho m ais moço de um proprietário de terras, de boa posi­
ção social e havia sido criado com a m aior afeição, num
lar encantador. Quase ao final d a infância, a mãe m orreu
e, não muito depois, o pai faliu, vendendo todos os bens
p ara pagar as dívidas. A fam ília dissolveu-se e M arkino
não tinha sequer um sen p a ra auxiliá-lo a realizar as suas

136
ambições. U m a delas era aprender inglês. Empregou-se
num a escola missionária das vizinhanças e exerceu o
emprego de porteiro, a fim de aprender a língua. Aos
dezoito anos, ainda nunca havia saído do círculo de al­
gumas cidades provincianas, m as já decidira ir p ara a
América.

F u i p ro c u ra r um dos m issionários, em quem confiav a m ais d o que


ém q u a lq u e r o utro. Falei-lh e d a m in h a in te n ç ão d e ir p a ra a A m érica, na
esp erança de q u e p u d esse d a r-m e alg u m a in fo rm açã o útil. P a ra g ra n d e
d esap o n ta m e n to m eu, ele exclam ou: “ C om o? V o c ê e stá p re te n d e n d o ir
p a ra a A m é rica?” S u a esp o sa achava-se n a m esm a sala e am b o s tiveram
u m sorriso d e esc âín io p a ra comigo! N aq u ele m o m en to senti com o se to ­
do o sangue d a cabeça m e tivesse c o rrid o p a ra os pés! P e rm an e ci no
m esm o lu g ar alg u n s segundos em silêncio, em se g u id a voltei ao m eu
q u a rto , sem d espedir-m e. D isse p a ra m im m esm o: " E s tá tu d o t e r ­
m in ad o ” .
Na m a n h ã seguinte, fugi. Q u e ro a g o ra ex p licar a ra z ã o disso.
S e m p re achei a h ip o c r is ia o m aio r crim e d o m u n d o , e n a d a p o d e ria ser
m ais h ip ó crita do q u e um sorriso d e escárnio!
P e rd ô o sem pre a raiv a alh eia, p o rq u e t h u m a n o irritar-se.
G eralm en te perd ô o q u a n d o m e d izem u m a m e n tira, p o rq u e a n a tu re z a
h u m a n a é m u ito fraca, sendo fre q ü e n te fa ltar a d isp o sição de e n fre n tar-
se a dificu ld ad e e d izer a verdade. P e rd ô o ta m b é m se e sp alh am boato s
ou bisbilhotices a m eu respeito, pois é fácil a te n ta ç ã o q u a n d o o utros
assim p ersuadem .
A té m esm o assassinos posso p e rd o ar, d e p en d e n d o d a s c ir­
cunstâncias. M as q u a n to ao e scárn io n i o h á d e scu lp a, p o rq u e n ão se p o ­
de zo m b a r de gente sem h ip o crisia intencional.
P e rm ita m q u e lhes d l a m in h a defin ição d a s d u a s p alavras. O
assassino ê quem m a ta a c a r n e h u m a n a . O escarn e ce d o r m a ta a ALM A
e o c a ra ça o alheios.
A a lm a e o co ração valem m ais d o q u e a carne, p o rtan to , o escárnio
é o pior dos crim es. D e fato, aqu ele m issio n ário e a esp o sa te n ta ra m
assassin ar-m e a a lm a e o c o ra ç ã o e tive u m a g ra n d e d o r em m eu co ração
que gritava: “ P o r que vocês?” *

Na m anhã seguinte ele partia com todos os seus


pertences am arrados num lenço.
Conforme achava, havia sido “ assassinado” pela
incredulidade do m issionário quanto a um rapaz pro­
vinciano sem vintém ir p ara os Estados Unidos a fim de
tornar-se um artista. O seu nome estava m aculado até que
o limpasse cum prindo o seu propósito, não lhe restando
outra alternativa após o “escárnio” do missionário senão
sair do lugar e comprovar a sua com petência em ir para os

'■ | M a r kino, Y oshio. W h e n I w as a C h ild . 1912, pp. 159-160. O s g ri­


to s sâo do original.

137
Estados Unidos. Soa estranho em outra língua ele acusar
o missionário de “ hipocrisia” , já que a exclamação do
americano parece-nos bastante “ sincera” , segundo
compreendemos a palavra. M as é que ele está usando a
palavra no seu significado japonês, em que geralm ente se
nega sinceridade a alguém que faz pouco de um a pessoa a
quem não pretende provocar no sentido de agressão. U m a
zom baria dessas é injustificada e com prova “hipocrisia”.
“ Até mesmo assassinos posso perdoar, dependendo
das circunstâncias. Mas quanto ao escárnio não há
desculpa.” Já que não se deve “ perdoar” , a reação
possível ao estigma é a vingança. M arkino lim pou o nome
indo p ara os Estados Unidos, contudo, a vingança ocupa
situação elevada na tradição japonesa como sendo “coisa
boa” em caso de insulto ou derrota. Os japoneses que
escrevem livros p ará leitores ocidentais algumas vezes
usaram vigorosas figuras de linguagem p ara designar ati­
tudes japonesas relativas à vingança. Inazo Nitobe, um
dos mais bondosos homens do Japão, escrevendo em 1900,
diz: “ Na vingança existe algo que satisfaz o sentido de
justiça de cada um . O nosso sentido de vingança é tão
preciso quanto a nossa aptidão m atem ática e, até serem
satisfeitos os dois termos da equação, não conseguimos
evitar a sensação de algo deixado por fazer” . * Yoshisa-
buro O kakura, num livro sobre T h e L i f e a n d T h o u g h t o f
J a p a n , utiliza como com paração um costum e tipicam ente
japonês.

M u ita s d as c h a m a d a s p ecu liarid ad es m e n ta is dos jap o n eses devem


su a origem ao am or pela p u re za e à su a c o m p le m e n ta r aversão pela
m ácula. M as, convenham os, com o p o d eria ser de o u tr a m an e ira , sendo
ed u cad o s com o o som os p a ra e n c a ra r as d esfeitas infligidas, q u e r sobre a
nossa h o n ra fa m iliar q u e r sobre o o rg u lh o n a cio n al, com o u m as ta n ta s
m ácu las e ferim en to s q u e n ão seriam o u tra vez lim p o s nem cu rad o s, a
m enos q u e p o r total lavagem atra v és de v in dicação? P odem consid erar
os casos de v e n d e tta en co n trad o s tã o am iú d e n a vida p ú b lic a e p a rtic u la r
do Ja p ã o sim plesm ente e com o u m a espécie d e m atin al b a n h o de
b a n h eira de um povo cujo sen tid o de lim p eza tran sfo rm o u -se em p a i­
xão. * *

E continua ele dizendo que dessa form a vivem os ja ­


poneses “ vidas limpas e imaculadas, serenas e belas como

* N itobe, Inazo. B u s h id o , T h e S o u l o fJ a p a n . 1900, p. 83.


* * O k a k u ra, Y osh isab u ro . T h e L ife a n d T h o u g h t o f J a p a n .
Londres, 1913, p. 17.

138
um a cerejeira em flor” . Este “ m atinal banho de
banheira” , em outras palavras, lava a sujeira sobre a
pessoa atirada, sendo impossível a virtude, enquanto ela
ficar aderindo. Os japoneses n io têm ética que ensine não
poder um hom em ser insultado a menos que assim se
julgue e que somente “ o que sai de um hom em ” é que o
m acula e não o que é dito ou feito contra ele.
A tradição japonesa vai m antendo diante do público
este ideal de “ banho m atinal” de v e n d e t t a . Incontáveis
incidentes e histórias de heróis, entre as quais a mais po­
pular é a histórica N a r r a t i v a d o s q u a r e n t a e s e t e r o n in s ,
são conhecidos de todos. São lidos nos seus livros es­
colares e representados no teatro, transform ados em
filmes modernos e divulgados em publicações populares.
Fazem p arte da cultura viva do Japão moderno.
M uitas dessas histórias são a respeito d a sensi­
bilidade a fracassos ocasionais. Por exemplo, um daim io
m andou cham ar três de seus dependentes a fim de que
dissessem o nome de certa esplêndida espada. Tendo eles
discordado e tendo sido consultados os peritos, descobriu-
se que Nagoya Sanza havia sido o único que a tinha
identificado corretam ente como um a lâm ina M uram asa.
Os que se enganaram consideraram -se insultados e
resolveram m atar Sanza. Um deles, ao encontrá-lo
adormecido, feriu-o com a espada do mesmo. Sanza,
entretanto, sobreviveu e o seu atacante dali por diante d e­
dicou-se à sua vingança. Finalm ente conseguiu matá-lo,
satisfazendo o seu giri.
H á outras histórias acerca d a necessidade de des­
forrar-se do senhor. O giri significava na ética japonesa
tanto a fidelidade do dependente ao senhor até a morte,
quanto a sua meia-volta de exorbitante hostilidade, ao se
julgar ele próprio insultado. Um bom exemplo advém das
histórias a respeito de leyasu, o prim eiro Xógum
Tokugawa. Inform aram a um de seus dependentes que
leyasu dissera dele: “ Ele é o tipo do indivíduo que
m orrerá com um a espinha atravessada na garganta” . A
im putação de que haveria ele de m orrer de m aneira pouco
digna não era aturável, e o dependente fez prom essa de
que não se esqueceria disso vivo ou morto. leyasu achava-
se na ocasião unificando o país, desde a nova capital Yedo
(Tóquio) e ainda não estava a salvo de seus inimigos. O
dependente fez proposta aos senhores inimigos,
oferecendo-se para incendiar Yedo desde a p arte interna e

139
devastá-la. Deste m odo o giri seria satisfeito e ele se
vingaria de Ieyasu. A m aioria das discussões ocidentais
em torno da lealdade japonesa n ada têm de realistas, pois
não assinalam que o giri não é simplesmente fidelidade.
Tam bém é um a virtude que sob determ inadas cir­
cunstâncias prescreve traição. Como dizem eles, “ Um
homem espancado transform a-se num rebelde” . E
igualmente o homem insultado.
Esses dois tem as das narrativas históricas — vin­
gança contra um a pessoa que estava certa quando um a
o utra estava errada e a desforra contra um a im putação,
mesmo partida do senhor — são corriqueiros na literatura
japonesa m ais divulgada, apresentando m uitas variações.
Q uando se examinam m odernas biografias, novelas e
acontecim entos, torna-se claro que, conquanto muito
aprecie o Japão a vingança nas suas tradições, as histórias
'de represálias são hoje em dia certam ente tão raras
quanto nos países ocidentais, talvez m ais raras. Isto não
quer dizer que as obsessões concernentes à honra tenham
dim inuído e sim que a reação aos m alogros e estigmas
mais e mais am iúde tornou-se defensiva, ao invés de
ofensiva. O opróbrio continua como nunca a ser encarado
seriam ente pelo povo, porém, mais e m ais amiúde
paralisa as energias das pessoas, ao invés de incitá-las à
luta. O ataque direto de vingança era mais possível nos
anárquicos tempos anteriores à E ra Meiji. No período
moderno, a lei, a ordem e as dificuldades de conduzir um a
economia mais interdependente tornaram a vingança
subterrânea ou voltaram -na contra o peito de cada um.
U m a pessoa pode tirar um a vingança particular contra o
inimigo em pregando um estratagem a que jam ais confessa
— de certo modo como a velha história do hospedeiro que
serviu excremento ao inimigo, m isturado na comida
deliciosa, nada m ais pretendendo além do conhecimento
de que o havia feito. O convidado jam ais soube. Mas,
mesmo esta form a de agressão subterrânea é m ais rara
hoje em dia do que o ato de voltá-la contra si mesmo.
Neste caso têm-se duas alternativas: utilizá-la como
incentivo p ara um a autodiretriz até o “ impossível” ou
deixar que ela devore o próprio coração.
A vulnerabilidade dos japoneses aos fracassos, es­
tigm as e rejeições decididam ente os inclina m ais a se
m altratarem do que aos demais. Suas novelas rei-

140
teradam ente exploram o beco d a melancolia, em al­
ternância com as explosões de furor a que se têm
abandonado nas últimas décadas, com tan ta freqüência,
os japoneses instruídos. Os protagonistas dessas histórias
sao entediados — entediados da rotina da vida, das
famílias, da cidade, do país. Não é, contudo, o tédio de
procurar alcançar as estrelas, em que todos os esforços
parecem triviais com parados com a grande m eta figurada
nos olhos da mente. Não é um tédio nascido do contraste
entre a realidade e o ideal. Q uando os japoneses adquirem
a visão de um a grande missão perdem o seu tédio. Per-
dem-no de form a completa e absoluta, por mais distante
que esteja a m eta. O seu tipo especial de v n n u i constitui a
doença de um povo por demais vulnerável. Voltam contra
si próprios o seu medo de rejeição e ficam bloqueados. O
retrato do tédio na novela japonesa é um estado mental
bastante diferente daquele com que nos familiarizamos
na novela russa, onde o contraste entre os m undos real e
ideal é básico nos tédios experim entados por seus heróis.
Sir George Sansom declarou que os japoneses carecem
deste sentido de contraste entre o real e o ideal. Não está
especificando de como isto esteja subjacente ao seu tédio e
sim de que modo eles formulam a sua filosofia e a atitude
geral perante a vida. Não há dúvida de que este contraste
com noções básicas ocidentais vai m uito além do caso
aqui estudado, tendo no entanto especial pertinência com
as suas assediantes depressões. O Japão equipara-se com
a Rússia como um a nação tendente a retratar o tédio em
suas novelas, sendo m arcante o contraste com os Estados
Unidos. As novelas am ericanas não aproveitam muito o
tema. Nossos novelistas relacionam a desdita de seus
personagens com um a deficiência de caráter ou os açoites
de um m undo cruel, quase nunca se detêm no tédio puro e
simples. Os desajustes pessoais têm um a causa, um a
estruturação e instigam a condenação m oral por parte do
leitor de algum defeito do herói ou heroína ou algum mal
da ordem social. O Japão tam bém tem as suas novelas
proletárias que denunciam as desesperadoras condições
econômicas nas cidades e as terríveis ocorrências nos
barcos m ercantes pesqueiros, porém, suas novelas que
tratam do caráter revelam um m undo onde as emoções
das pessoas lhes costuma acorrer, conforme diz um autor,
como nuvens de gás de cloro. Nem o personagem, nem o

141
autor julgam necessário analisar as circunstâncias ou a
história d a vida do herói, no sentido de explicar a nuvem.
Ela vai e vem. As pessoas são vulneráveis. Introverteram a
agressão com que os seus antigos heróis costum avam
assolar os seus inimigos e a sua depressão não lhes parece
ter causa explícita. Podem valer-se de um incidente como
origem, o qual deixa, no entanto, um a curiosa impressão
de não passar de um símbolo.
A ação agressiva mais extrem a em preendida por um
japonês moderno contra si mesmo é o suicídio. O suicídio,
adequadam ente executado, de acordo com os seus
princípios, lim pa o nome e reabilita a memória. A con­
denação am ericana do suicídio faz da autodestruição tão
só um a submissão insensata ao desespero, ao passo que o
respeito a ele votado pelos japoneses licencia-o como ato
honroso e significativo. Em determ inadas situações, é a
m aneira mais digna de assum ir o giri ligado ao nome. O
devedor omisso no dia de Ano Novo, o oficial que se m ata
para comprovar que assume responsabilidade de algum a
lamentável ocorrência, os am antes que selam o seu am or
impossível num duplo suicídio, o patriota que protesta a
protelação por parte do governo da guerra com a China
estão todos, assim como o menino que é reprovado no
exame ou o soldado fugindo à captura, voltando contra si
mesmos um a violência definitiva. Algumas autoridades
japonesas dizem que esta tendência ao suicídio é nova no
Japão. Não é fácil opinar, e as estatísticas revelam que nos
últimos anos os observadores têm superestim ado a sua
freqüência. Houve proporcionalm ente m ais sucídios na
Dinam arca no século passado e mais na Alem anha a n ­
terior ao nazismo do que em tempo algum no Japão, Um a
coisa, porém, é certa: os japoneses adoram o assunto.
Exploram-no como os americanos o fazem com o crime,
tendo com relação a ele a m esm a fruição vicária. Preferem
alongar-se sobre ocorrências em torno da autodestruição
do que da de outros. Fazem disso, segundo a frase de
Bacon, o seu “caso flagrante” favorito, pois que, satisfaz
certa necessidade impossível de ser atendida com o
alongar-se em outros atos.
O suicídio é tam bém mais m asoquístico no Japão
moderno do que parece ter sido em narrativas históricas
dos tempos feudais. Nestas, o sam urai suicidava-se por
ordem do governo p ara livrar-se de um a execução
desonrosa, do mesmo modo que um soldado inimigo oci­

142
dental seria fuzilado, ao invés de enforcado, ou então ado­
tava tal procedim ento a fim de salvar-se d a tortu ra que
esperava, se caísse nas mãos do inimigo. Concedia-se
h a r a k i r i a um guerreiro, assim como, de form a análoga,
às vezes, facilitava-se o suicídio secreto a um oficial
prussiano em desonra. Seus superiores deixavam um a
garrafa de uísque e um a pistola sobre um a mesa em seu
quarto, após ter sido ele inform ado de que não poderia
salvar a sua honra de outra m aneira. Para os sam urais ja ­
poneses, tirar-se a vida num a circunstância dessas consti­
tu ía apenas um a escolha de meios: a m orte era certa. Nos
tempos modernos o suicídio é um a opção pela morte.
Um a pessoa volta contra si própria a violência, amiúde,
ao invés de assassinar outrem . O ato do suicídio, que em
tempos feudais era a declaração final da coragem e
decisão de um homem, transform ou-se hoje em dia num a
autodestruição escolhida. D urante as duas últimas gera­
ções, quando os japoneses acharam que “ o m undo estava
tom bando” , que “ os dois term os da equação” não são
eqüivalentes, que precisam de um “banho de banheira
m atinal” para lim par as m áculas, passaram de modo
considerável a se destruírem mais do que aos outros.
Mesmo o suicídio como argum ento final para
garantir uma vitória para o próprio lado, em bora tenha
ocorrido tanto em tempos feudais quanto modernos, mo-
dificou-se nesta mesma direção. U m a história fam osa da
Era Tokugawa refere-se a um velho tutor, de alta posição
no conselho do xogunato, que desvestiu-se e colocou a
espada de prontidão p ara um harakiri imediato, na
presença de todo o conselho e de regente do xogunato. A
ameaça de suicídio preponderou, conseguindo ele assim a
sucessão do seu candidato à posição de Xógum. Obteve o
que pretendia e não houve suicídio. Em terminologia oci­
dental, o tutor fizera chantagem com a oposição. Mo­
dernam ente, contudo, um suicídio de protesto como esse é
o ato de um m ártir e não de um negociador. É consumado
depois que se fracassou ou p ara colocar-se em evidência
como opositor de um acordo já assinado, como o Ato de
Paridade Naval. E efetuado de modo a que somente o ato
efetivado e não a ameaça de suicídio, possa influenciar a
opinião pública.
Esta crescente tendência a atacar a si próprio,
quando seja ameaçado o giri ligado ao nome, n io precisa

143
incluir m edidas assim extrem as como o suicídio. As
agressões dirigidas p a ra dentro poderão produzir tão-
somente depressão e lassitude, além do típico tédio ja ­
ponês tão freqüente nas classes instruídas. Existem boas
razões sociológicas justificando a dissem inação de tal
disposição de ânim o especialmente nessa classe, já que a
i n t e l l i g e n t s i a achava-se superlotada e situada de forma
bastante insegura na hierarquia. Somente um a pequena
proporção de seus membros conseguia satisfazer suas
ambições. Nos anos 30 igualmente, tornaram -se eles
duplam ente vulneráveis, pois as autoridades receavam
que estivessem tendo “ pensam entos perigosos” e os
manteve sob suspeita. Os intelectuais japoneses geral­
m ente atribuem a sua frustração às confusões d a oci-
dentalização, m as a explicação não tem alcance
suficiente. A típica oscilação japonesa de hum or vai do
intenso empenho ao intenso tédio e a queda psíquica so­
frida por muitos intelectuais decorreu d a tradicional
m aneira japonesa. M uitos deles, igualmente, dele se li­
vraram, de m aneira tradicional, por volta da m etade da
década de 30: adotaram objetivos nacionalistas e diri­
giram o ataque novamente p ara fora, distanciado de seus
peitos. Na agressão totalitária contra nações exteriores
conseguiam “ encontrar-se” de novo. Salvaram-se de um a
má disposição de ânim o e sentiram dentro de si um a
grande força nova. Não lograriam fazê-lo nas relações
pessoais, acreditavam, no entanto, que o conseguiriam
como nação eonquistadora.
Agora que o resultado da guerra comprovou o en ­
gano de tal confiança, de novo a lassitude constitui um a
grande ameaça psíquica p ara o Japão. Não podem lutar
facilmente contra ela, m algrado suas intenções, pois
penetra profundam ente. “ A cabaram -se as bom bas” ,
disse um japonês de Tóquio, “o alívio é maravilhoso. Mas
não estamos lutando mais e não há mais objetivos. Todos
acham -se atordoados, sem se im portarem m uito como
fazem as coisas. Eu estou assim, m inha m ulher está assim
e igualmente o povo no hospital. Todos vagarosos com
relação a tudo o que fazemos, atordoados. O povo agora
se queixa de que o governo está se dem orando na limpeza
posterior à guerra e em proporcionar auxílio, mas acho
que a razão disso está no fato de que todas as autoridades
governamentais sentiam o mesmo que nós.” Esta forma

144
de apatia é o tipo de perigo encontrado no Japão, tal qual
na França após a libertação. Na Alem anha, nos primeiros
seis ou oito meses após a rendição, não constituiu pro­
blema. No Japão o é. Os americanos conseguem entender
bastante bem esta reação, no entanto, parece-nos quase
inacreditável que venha acom panhado de tal cordialidade
p ara com o conquistador. Q uase im ediatam ente tornou-se
claro que o povo japonês aceitava a derrota e todas as suas
conseqüências com extrem a boa vontade. Os americanos
foram recebidos com m esuras e sorrisos, com acenos e
brados de saudação. Aquele povo não estava triste nem
indignado. Segundo a frase do Im perador, utilizada ao
anunciar a rendição, eles haviam “ aceitado o impossível” ,
Por que então aquele povo não punha em ordem a sua
casa nacional? Segundo os term os da ocupação, tinham
oportunidade de fazê-lo. Não havia ocupação estrangeira
aldeia por aldeia e a adm inistração dos negócios estava
entregue em suas m ios. A nação inteira parecia sorrir e
saudar, ao invés de dirigir os seus negócios. Entretanto,
era esta a mesma nação que realizara milagres de rea­
bilitação no princípio do período Meiji, que se preparara
para a conquista m ilitar com tan ta energia nos anos 30 e
cujos soldados haviam lutado com tan ta impetuosidade,
ilha por ilha, pelo Pacífico afora.
São o mesmo povo, na verdade. Estão reagindo
conforme a índole. A oscilação de ânim o a eles condizente
vai do esforço intenso a um a lassitude que é puro ganhar
tempo. No presente m om ento os japoneses antes de mais
nada tencionam defender a boa reputação na derrota e
acham que lhes é possível fazê-lo sendo amistosos. Como
conseqüência, p ara muitos a m aneira mais segura de
consegui-lo é sendo dependente. Num a fácil sucessão, o
esforço passará a ser suspeito e o m elhor será ganhar
tempo. A lassitude espalha-se,
No entanto, os japoneses nao se comprazem no tédio.
“ D espertar da lassitude” , “despertar os demais da lassi­
tude” é a convocação constante p ara um a vida melhor no
Japão e quase sempre estava nos lábios de seus locutores
mesmo durante a guerra. A própria m aneira, combatem a
sua passividade. Na prim avera de 1946, seus jornais
continuam insistindo quanto à m ancha que constitui para
a honra do Japão não terem eles lim pado as ruínas dos
bombardeios, nem posto a funcionar alguns serviços

145
públicos. Reclam am d a lassitude das famílias sem teto
que se juntam p a ra dorm ir à noite nas estações ferro­
viárias, onde os americanos surpreendem a sua miséria.
Os japoneses compreendem tais apelos à sua boa re ­
putação. Tam bém esperam que como nação conseguirão
novamente envidar os m aiores esforços no futuro, a fim de
lutar por um lugar de respeito n a O rganização das Nações
Unidas. Isso seria de novo trab alh ar pela honra, mas
num a direção nova. Se houver paz entre as G randes Po­
tências no futuro, o Japão poderá trilh ar o cam inho da
dignidade.
Pois, no Japão, o objetivo constante é a honra. É
necessário impor respeito. Os meios usados p ara tal fim
constituem ferram entas que se empregam e se põem de
lado, conforme as circunstâncias exigirem. Q uando as si­
tuações m udam , os japoneses podem m udar de proce­
dim ento, criando novas rotas. A m udança não parece
form ar p ara eles a questão m oral aberta p ara os oci­
dentais. Aderimos a princípios, a convicções em m atéria
ideológica. Quando perdemos, não m udam os de
pensam ento. Os europeus derrotados, por toda a parte,
congregaram-se em movimentos clandestinos. À exceção
de alguns ferrenhos conservadores, os japoneses não
necessitam organizar movimentos de resistência e
oposição subterrânea às forças de ocupação do Exército
Americano. Não sentem necessidade moral de se m anter
na linha antiga. Desde os primeiros meses, americanos
isolados viajaram com segurança em trens apinhados
para as regiões mais remotas do país e foram recebidos
com cortesia por antigas autoridades nacionalistas. Não
se verificaram v e n d e t t a s . Q uando nossos jipes percorrem
as aldeias, crianças enfileiradas pelas estradas gritam
“ Alô” e "A deus", e as mães acenam p ara o soldado
americano com as m ãozinhas de seus bebês, quando pe­
quenos dem ais para fazerem-no sozinhos.
A meia volta efetuada pelos japoneses na derrota é
difícil de ser encarada dentro do seu valor nominal por
parte dos americanos. Seria impossível que algo
fizéssemos de semelhante. M ais difícil ainda seria e n ­
tendermos a m udança de atitude de seus prisioneiros de
guerra em nossos campos de internam ento, já que eles se
consideravam mortos p ara o Japão e nós nos acre­
ditávamos impossibilitados de ter noção do que poderiam

146
ser capazes homens “ m ortos” . M uito poucos dos oci­
dentais conhecedores do Japão puderam prever que a
mesma m udança de característica frontal dos prisioneiros
de guerra iria verificar-se tam bém no Japão, após a derro­
ta. Á m aioria deles julgava que o Japão “ apenas conhecia
vitória ou derrota” e que a seus olhos a derrota cons­
tituiria um insulto a ser desagravado m ediante furiosa
violência. Alguns acreditavam que os traços nacionais
característicos dos japoneses proibiam-lhes a aceitação de
quaisquer condições de paz. Tais estudiosos do Japão não
compreendiam o giri. Haviam destacado, dentre todos os
processos alternativos que conferem honra a um nome, a
única e evidente técnica tradicional de vingança e
agressão. Não levaram em conta o hábito japonês de ado­
tar outra norm a de ação. Confundiram as éticas de
agressão japonesas com as form as européias, segundo as
quais qualquer pessoa ou nação que combate tem de estar
convencida primeiro da eterna integridade de sua causa e
extrair daí a força das reservas de ódio ou indignação
moral.
Os japoneses conduziram de m aneira diferente a sua
agressão. Necessitam extrem am ente serem respeitados
no mundo. Verificaram que o poderio m ilitar granjeara
respeito p ara as grandes nações e em penharam -se num
procedimento com o fito de igualá-las. Tiveram de se so-
breexceder porque seus recursos eram pequenos e sua
tecnologia primitiva. Q uando fracassaram no seu grande
esforço, entenderam que afinal de contas a agressão não
era o caminho da honra. O giri sempre significara tanto o
uso da agressão quanto a observância de relações res­
peitosas e na derrota os japoneses recorreram a um e a
outro, aparentem ente sem se infligirem um a violência
psíquica. O objetivo continua sendo a sua boa reputação.
O Japão procedeu de form a sim ilar em outras
ocasiões de sua história, sempre de form a desconcertante
para os ocidentais. Mal se erguera o pano após o longo
isolamento feudal do Japão, quando em 1862 um inglês de
nome Richardson foi assassinado em Satsum a. O feudo
de Satsum a era um viveiro de agitação contra os bárbaros
brancos e os sam urais do lugar eram tidos como os mais
arrogantes e belicosos de todo o Japão. Os ingleses en­
viaram um a expedição punitiva e bom bardearam Ka-
goshima, um im portante porto de Satsum a. Os japoneses
haviam fabricado arm as de fogo durante todo o período

147
Tokugawa, sendo elas, porém, copiadas de arm as po r­
tuguesas obsoletas, não se podendo evidentemente ri­
valizar com as belonaves inglesas. As conseqüências desse
bom bardeio foram, no entanto, surpreendentes. Ao invés
de fazer voto de vingança eterna contra os ingleses, Sa-
tsum a procurou a amizade destes. Haviam testem unhado
a grandeza do adversário e logo se dispuseram a aprender
com eles. Estabeleceram relações comerciais e no ano se­
guinte fundavam um a universidade em Satsum a onde,
conforme escreveu um japonês d a época, “ Os mistérios da
ciência e da cultura ocidentais eram ensinados . . . A
amizade nascida da Q uestão N am am uga continuava a
crescer” .* A Questão N am am uga era a expedição puni­
tiva inglesa contra eles e o bom bardeio de seu porto.
Não foi este um caso isolado. O outro feudo que ri­
valizava com Satsum a como os mais belicosos e virulentos
inimigos dos estrangeiros era Choshu. Ambos lideraram a
fomentação da restauração do Im perador. A corte do
Im perador oficialmente sem poderes promulgou um edito
imperial, designando a d a ta d,e 11 de maio de 1863 como a
ocasião em que Xógum tinha instruções p ara expul­
sar todos os bárbaros do solo japonês. O xogunato não
tomou conhecimento d a ordem, o mesmo não aconte­
cendo, porém, com Choshu, que abriu de seus fortes
sobre navios m ercantes ocidentais que passavam lito­
ral afora pelo estreito de Shimonoseki. As arm as e a
munição japonesas eram por demais primitivas p ara
danificar os navios, entretanto, um a esquadra de guerra
ocidental internacional logo arrasou os fortes, a fim de
dar um a lição a Choshu. Seguiram-se as mesmas es­
tranhas conseqüências que em Satsum a, a despeito
mesmo do fato de terem as potências ocidentais exigido
uma indenização de três milhões de dólares. Conforme diz
Norm an a respeito dos incidentes de Satsum a e Choshu,
“ Q ualquer que tenha sido a complexidade de motivos por
trás da m eia volta executada por esses im portantes
núcleos anti-estrangeiros, não se pode deixar de respeitar
o realismo e a serenidade atestados por um a ação
dessas” . * *
Esta form a de realismo situacional constitui o lado
alegre do giri ligado ao nome japonês. Como a lua, o giri

♦ N orm an. E. H. op. c it. pp. 44-45, e n. 85.


* * O p. cit. p. 45.

148
tem a sua face clara e a sua face escura. O seu aspecto
sombrio é que levou o Japão a considerar eventualidades
como o Ato de Exclusão A m ericana e o T ratado de P ari­
dade Naval como insultos nacionais de tal forma exor­
bitantes a ponto de instigá-lo ao seu desastroso program a
de guerra. O seu aspecto luminoso é que possibilitou a
boa vontade com que aceitou as conseqüências da ren­
dição em 1945. O Japão continua fiel à sua índole.
Os escritores e publicistas japoneses modernos o r­
ganizaram um a seleção das obrigações do giri e
apresentaram -nas literalm ente aos ocidentais como o
culto do b u s h i d o , os costumes dos samurais. Por várias
razões isto veio a ser enganoso. Bushido é um termo
oficial moderno que não tem atrás de si o profundo senti­
do folclórico de expressões consagradas no Japão como
“ acuado com giri” , "sim plesm ente por giri” e "em-
penhando-se por giri” . Não abrange tam pouco as
complexidades e ambivalências do giri. Ê a insinuação de
um publicista. Tornou-se, além do mais, o s l o g a n dos
nacionalistas e m ilitaristas, desacreditando-se o seu
conceito na sucessão do descrédito desses líderes. De mo­
do nenhum isso significa que os japoneses não mais
“ conhecerão o giri” . Mais do que nunca é im portante
para os ocidentais entender o que significa o giri para o
Japão. A identificação do bushido com o Sam urai consti­
tuiu tam bém um a fonte de mal-entendidos. O giri é uma
virtude comum a todas as classes. Como todas as outras
obrigações e disciplinas do Japão, o giri é “ mais pesado” à
medida que se sobe na escala social-, mas é exigido em to­
dos os níveis da sociedade. Pelo menos os japoneses consi­
deram -no mais pesado p ara os sam urais. Um observador
não-japonês provavelmente achará que o giri exige mais
da gente comum porque as recom pensas da conformação
afiguram-se-lhe menores. P ara os japoneses constitui
recompensa suficiente ser respeitado no seu m undo e “ um
homem que não conhece o giri” não passa de um
“ miserável infeliz” . É desprezado e proscrito pelos seus
semelhantes.

149
9. O CÍRCULO DOS SE N T IM E N T O S HUMANOS

Seria de todo consistente que um código de ética


como o do Japão, a exigir tão extremo saldar de obri­
gações e tais renúncias drásticas, estigmatizasse o desejo
pessoal como um mal a ser extirpado do peito humano.
Tal é a doutrina budista, sendo, portanto, duplam ente
surpreendente que os preceitos japoneses sejam tão
acolhedores com relação aos prazeres dos cinco sentidos.
A despeito do fato de ser o Jajjão um a das grandes nações
budistas do mundo, neste particular a sua ética contrasta
acentuadam ente com os ensinam entos de G autam a
Buda e dos livros sagrados do Budismo. Os japoneses
não condenam a auto-satisfação. Não são puritanos.
Consideram os prazeres físicos bons e dignos de serem
cultivados. Daí serem procurados e apreciados. En-

151
tretanto, precisam ser contidos no devido lugar. Não d e­
vem m isturar-se aos assuntos sérios d a vida.
Preceitos como esse em préstãm T êxístencia um esta­
do de tensão particularm ente elevado. Um hindu
apreende com m uito mais facilidade essas conseqüências
da aceitação japonesa dos prazeres do que um americano.
Os americanos não acham que os prazeres devam ser
aprendidos. Um homem pode recusar-se a condescender
em prazeres sensuais, o fato é que estará resistindo a um a
tentação conhecida. Assim como os deveres, os prazeres
podem ser ensinados. Em m uitas culturas, os prazeres
não são ensinados, tornando-se especialmente fácil p ara
as pessoas dedicarem -se ao dever de sacrificar-se a si pró­
prias. Mesmo a atração física entre hom ens e mulheres
tem sido pouco revelada, mal chegando a am eaçar o livre
curso da vida familiar, que em tais países baseia-se em
considerações bem diversas. Os japoneses tornam a sua
vida difícil cultivando os prazeres físicos e em seguida
estabelecendo um código de preceitos, segundo o qual não
deverão os mesmos serem desfrutados dentro de uni
sistema de vida sério. Cultivam os prazeres d a carne como
um a arte e, depois, um a vez Inteiram ente saboreados,
sacrificam-se ao dever.
Um dos prazeres menores mais apreciados no Japão
é o banho quente. Desde o mais pobre agricultor de arroz
e o mais humilde criado ao mais rico aristocrata, a
imersão diária em água extrem am ente quente constitui
parte d a rotina de todos os fins de tarde. A banheira mais
utilizada é um a barrica de madeira, com carvões acesos
por baixo, a fim de m anter a água aquecida a 110 graus
Fahrenheit ou mais. O costum e é se lavar e enxaguar
inteiram ente antes de en trar na banheira e em seguida
entregar-se de todo ao gozo do calor e do relaxam ento
proporcionado pela imersão. Sentam-se no banho com os
joelhos trazidos à posição fetal, a água até a altura do
queixo. Prescrevem eles o banho diário por questão de
limpeza, como os americanos, increm entando-o, no
entanto, de uma requintada arte de passivo deleite, difícil
de igualar-se nos hábitos de banho do resto do mundo.
Q uanto mais velho se é , dizem eles, m aior a adesão a ele.
Há todos os tipos de m aneiras de reduzir ao m ínimo
o custo e o trabalho de proporcionar tais banhos, o fato é
que não podem faltar. Nas cidades grandes e pequenas há
grandes estabelecimentos públicos de banhos, como

152
piscinas, onde se pode imergir e conversar com um
ocasional vizinho ao lado. Nas aldeias agrícolas, várias
mulheres costum am revezar-se na preparação do banho
no quintal — o pudor japonês não proscreve os olhares
públicos — p ara uso de suas famílias, cada um por sua
vez. Todas as famílias, mesmo as refinadas, passam pela
banheira dom éstica em rigorosa sucessão: o hóspede, o
avô, o pai, o filho mais velho e assim por diante, até o mais
hum ilde empregado. Saem todos vermelhos como
camarões e a fam ília reúne-se a fim de desfrutar dos mais
descontraídos m omentos do dia, antes d a refeição no­
turna.
Assim como o__banho_ quente é tão avidamente
desfrutado como um prazer, igualmente o "enrijecer-se”
consta tradicionalm ente d a mais severa rotina de duchas
frias. G eralm ente denom inada “ exercícios de inverno” ou
“fria austeridade” , é ainda cum prida, m as não na antiga
form a tradicional, que prescrevia sair antes do am anhecer
e colocar-se debaixo de quedas d ’água de frígidos riachos
de m ontanha. Mesmo o derram ar de água gelada sobre si
em noites de inverno nas suas casas japonesas des­
providas de aquecimento, não deixa de constituir apreciá­
vel austeridade, sendo o costume descrito por Percival
Lowell, conforme existia na últim a década do século
passado. Os que aspiravam a poderes especiais ou à pro­
fecia — sem que no entanto se tornassem sacerdotes —
praticavam a austeridade fria antes de dorm ir e le­
vantavam-se às duas da m adrugada p ara repeti-la à hora
em que “ os deuses se banhavam ” . O mesmo ocorria pela
m anhã ao levantar-se, ao meio-dia e ao cair da noite. * A
austeridade que antecedia ao am anhecer era es­
pecialmente difundida entre as pessoas que ansiassem por
aprender um instrum ento musical ou preparar-se para
alguma carreira secular. Com o fito de enrijecer-se, era
lícito se expor a qualquer frio, sendo considerado es­
pecialmente virtuoso por p arte das crianças que p ra ­
ticassem caligrafia que term inassem seus períodos de p rá­
tica com os dedos entorpecidos e com frieiras. As escolas
elementares m odernas não são aquecidas, consistindo
nisso uma grande virtude, pois que prepara as crianças
p ara futuras dificuldades da vida. Os ocidentais têm se

# Lowell, Percival. O c c u lt J a p a n . 1895, pp. 106-121.

153
impressionado mais é com os resfriados constantes e as
corizas que tal costume em nada contribui p ara impedir.
O jo n o constitui outro deleite, um a das mais
consumadas artes dos japoneses. Dorm em inteiram ente
relaxados, em qualquer posição e ém circunstâncias que
consideramos impossíveis, o que costum a surpreender
muitos estudiosos ocidentais dos costumes japoneses. Os
americanos consideram a insônia quase um sinônimo de
tensão psíquica e, segundo nossos critérios, notam-se ele­
vadas tensões no caráter japonês. P ara eles, no entanto,
dorm ir bem é brincadeira de criança. Vão para a cam a
cedo, no que m uito diferem de outras nações orientais.
Os aldeões dormem todos ao anoitecer, m as não estão se­
guindo o nosso princípio de acum ular energia p ara o dia
seguinte, pois não têm esse tipo de cálculo. Um ocidental,
que os conhecia bem, escreveu: “Q uando se vai ao Japão,
deve-se deixar de acreditar que seja um dever sagrado
preparar-se para o trabalho de am anhã m ediante o sono e
o descanso de hoje. O sono é para ser considerado à parte
das questões de recuperação, repouso e diversão” . Deverá
ser destacado, tal qual um a proposta de trabalho,
“ sozinho, isolado, sem relacionar-se com fato algum de
vida ou de m orte” . * Os americanos estão habituados a
estimar o sono como algo a que nos entregamos a fim de
m anter a resistência, sendo que o prim eiro pensam ento da
m aioria de nós quando despertam os de m anhã é cal­
cularmos quantas horas dormimos naquela noite. A
extensão de nosso sono indica-nos quanta energia e
eficiência teremos naquele dia. Os japoneses dormem por
outras razões. Gostam de fazê-lo, entregando-se p ra ­
zerosamente ao sono, um a vez aliviada a tensão.
Em compensação, não hesitam em sacrificar im ­
placavelmente o sono. Um estudante que se prepara para
exame atravessa dias e noites, sem a m ínima consideração
de que o dorm ir pudesse dar-lhe melhores condições para
o exame. No treinam ento militar, o sono é simplesmente
algo a sacrificar pela disciplina. O Coronel H arold Doud,
adido ao exército japonês de 1934 a 1935, narra a sua
conversa com o Capitão Teshima. D urante m anobras em
tempos de paz, os soldados passaram “ duas vezes três
dias e duas noites sem dorm ir, à exceção das paradas de
dez minutos e de curtos intervalos no período. As vezes os

* W atson. W. Petrie. T h e F u tu r e o / J a p a n , 1907.

154
homens dorm iam m archando. O nosso segundo-tenente
fez todos rirem quando m archou de encontro a um a pilha
de tábuas, na beira da estrada, dorm indo a sono solto” .
Quando finalm ente se arm ou acam pam ento, mesmo
assim ninguém teve oportunidade de dorm ir, com a
ocupação dos postos avançados e os serviços de patrulha.
“ Mas por que não deixa alguns deles dorm ir?” , indaguei.
“ Oh, não!” , retrucou ele. “ Isso na o é necessário. Dormir,
já sabem. Treinam é para ficar acordados.” * O que bem
sintetiza o ponto de vista japonês.
Com er, tal como o agasalho e o sono, tanto é um re­
pouso abertam ente desfrutado como prazer, quanto uma
disciplina im posta p ara adquirir-se têm pera. Como forma
de lazer, os japoneses dem oram -se em refeições com
infindáveis pratos, durante as quais um a colher de chá de
alimento vem de cada vez e a comida é apreciada tanto
pelo aspecto quanto pelo sabor. M as a disciplina, por
outro lado, é exigida. “ R ápido comer, rápido defecar, os
dois reunidos constituem um a das m ais altas virtudes ja ­
ponesas” , Eckstein cita as palavras de um aldeão ja ­
ponês.** “ Comer não é considerado um ato de im­
portância . . . Comer é necessário p a ra conservar a vida,
p o r t a n t o deve ser da form a mais breve possível. As
crianças, em especial os meninos, contrariam ente à E uro­
pa, não são obrigados a comer devagar, e sim o mais d e­
pressa possível” (o grifo é meu). * * * Nos mosteiros de fé
budista, onde os sacerdotes estão sob disciplina, na o ra­
ção de graças antes das refeições, pedem eles p ara
lem brarem -se de que a comida é apenas um remédio. O
intuito é de que os que se estão calejando devam des­
prezar a comida como prazer e considerá-la apenas uma
necessidade.
De acordo com as idéias japonesas, a privação in­
voluntária de comida constitui um teste especialmente
adequado de quanto se esteja “ calejado” . Tal como abrir
mão do agasalho e do sono, portanto, igualmente, privar-
se de comida constitui um a oportunidade de se
dem onstrar que se pode “ agüentar firm e” e, como os
samurais, “ segurar o palito entre os dentes” . E n­
frentando-se a abstenção de alimento, obtém-se um
* H o w t h e J a p A rm y F ig h ts, artigos d o I n fa n ta r y J o u rn a l. publica^
d o pela P enguin Books, 1942, pp. 54-55.
«» E ck stein , G I n P e a c e J a p a n B r e e d s W a r. 1943, p. 153.
* N ohara, K ., T h e T ru e F a c e o fJ a p a n , L ondon, 1936, p. 140.

155
aumento de força através d a vitória do espírito e não um a
diminuição ocasionada pela falta de calorias e vitaminas.
Os japoneses não aceitam a correspondência equivalente
dem andada pelos americanos entre a nutrição e a força
corporais. Deste modo, à rádio de Tóquio, du ran te a
guerra, cabia divulgar ao povo que a calistenia tornaria a
gente fam inta de novo forte e vigorosa.
O am or^rom ântico é outro “ sentim ento hum ano”
que os japoneses cultivam. Aclim ata-se perfeitam ente no
Japão, por m ais que contrarie suas form as de casam ento e
obrigações para com a família. Suas novelas estão cheias
dele e, tal como na literatura francesa, os personagens
principais já estão casados. Duplos suicídios por amor são
temas favoritos de leitura e de conversa. A H i s t ó r i a d e
G r n j i , do século X, é um a novela de am or rom ântico tão
prim orosa como qualquer grande rom ance jam ais pro­
duzido por qualquer país do m undo, e as histórias de
amores de senhores e sam urais do período feudal per­
tencem a este mesmo gênero romântico. É um tem a pre­
ponderante em suas novelas contem porâneas. O contraste
com a literatura chinesa é m uito grande. Os chineses
poupam-se muitos problem as não ressaltando o amor
romântico nem os prazeres eróticos, sendo a sua vida
familiar, conseqüentemente, de tendência notavelmente
equilibrada.
Não há dúvida de que neste particular os americanos
conseguem entender m elhor os japoneses do que os
chineses, mas mesmo assim de form a não muito apreciá­
vel. Temos muitos tabus no prazer erótico que os ja ­
poneses não têm. É um terreno em que, ao contrário de
nós, não são moralistas. Como qualquer outro “ sen­
tim ento hum ano” , consideram o sexo de todo bom
ocupando um lugar secundário na vida. Nada h á de mal
nos “ sentimentos hum anos” e portanto não há necessi­
dade de ser moralista quanto aos prazeres do sexo.
Comentam ainda o fato de que os americanos e os ingleses
consideram pornográficos alguns de seus apreciados li­
vros de ilustrações e vêem o Yoshiwara — o bairro das
gueixas e prostitutas — sob uma luz tão sensacionalista.
Os japoneses, mesmo nos primeiros anos de contato com o
Ocidente, mostravam-se m uito suscetíveis a esta crítica
estrangeira e aprovaram leis visando pôr seus hábitos
mais próximos da conform idade com os padrões oci­

156
dentais. E ntretanto, nenhum preceito legal conseguiu
ainda transpor as diferenças culturais.
Os japoneses instruídos estão inteiram ente a par de
que os ingleses e os am ericanos não encaram como eles a
imoralidade e a obscenidade, mas não são tão cientes do
hiato entre as nossas atitudes convencionais e o princípio
deles de que os “ sentimentos hum anos” não devem in ­
terferir nos assuntos sérios d a vida. É esta, no entanto, a
origem principal da nossa dificuldade em com preender as
atitudes japonesas acerca do amor e do prazer erótico. Se­
param eles um território que pertence à esposa de outro
ligado ao prazer erótico, ambos igualmente às escancaras.
Não se apartam um do outro, como sucede na vida
americana, pelo fato de que consista no que o homem
admite publicam ente e o outro no que seja ilícito. São se­
parados porque um circunscreve as obrigações mais
im portantes de um homem e o outro a área secundária da
diversão. E sta m aneira de efetuar para cada setor o le­
vantam ento do “ lugar devido” estabelece a separação
tanto p ara o chefe de fam ília ideal quanto para um
homem qualquer. O japonês não preconiza ideal algum,
como fazemos nos Estados Unidos, que retrate am or e
casam ento como uma única e idêntica coisa. Aprovamos o
amor na proporção de que constitua a base da escolha de
um a esposa. “ Estar apaixonado” vem a ser a nossa razão
mais aceita para o casamento. Após o casam ento a a tra ­
ção física por outra m ulher por parte do m arido é
hum ilhante para a esposa devido a conferir ele alhures o
que de direito pertence a ela. Os japoneses têm ju l­
gamento diverso. Q uanto à escolha de uma esposa, o jo­
vem deverá curvar-se à seleção dos pais e casar-se às ce­
gas. Deverá observar um grande formalismo nas suas
relações com a esposa. Mesmo no dar e receber da vida
familiar, os filhos não hão de ver gesto algum de emoção
erótica passar entre eles. “ Neste país a finalidade real do
casam ento é tida como sendo a procriação dos filhos”,
afirmou um japonês atual, num a de su-as revistas, “ asse­
gurando dessa form a a continuidade d a vida familiar.
Qualquer propósito diferente deste tão somente resultará
na perversão do seu verdadeiro significado.”
Mas isto não significa que um homem perm aneça
virtuoso lim itando-se a um a tal vida. Se puder, sustenta
uma amante. Num acentuado contraste com a China, não
traz para o seio da família a m ulher que lhe agradou. Se o

157
fizesse, iria m isturar os dois setores de existência que d e ­
veriam se conservar separados. A moça pode ser um a
gueixa, altam ente instruída em música, dança, massagem
e artes recreativas ou, então, um a prostituta. Em q ual­
quer dos casos, ele assina um contrato com a casa onde
ela está em pregada e por este instrum ento a moça fica
protegida do abandono e com um rendim ento assegurado,
sendo instalada em um a casa p ara ela. Somente em casos
muito excepcionais, quando a moça tiver um filho que o
homem tencione educar ju n to com os outros seüs, é que
ele a traz p ara casa, ficando ela sob a designação de cria­
da e não de concubina. A criança passa a cham ar a esposa
legal de “ m ãe” , e os laços entre a m ãe verdadeira e o filho
não são reconhecidos. Assim se define, pois, como nada
tendo de japonês todo o sistema oriental de poligamia,
que constitui na China um padrão tradicional tão m arca­
do. Os japoneses m antêm as obrigações de fam ília e os
“ se n tim e n to s h u m a n o s ” a p a rta d o s m esm o es-
pàcialmente.
Somente a classe superior pode arcar com o sustento
de am antes, entretanto, a m aioria dos hom ens vez por
outra visitou gueixas ou prostitutas. Tais encontros nada
têm de furtivos. A esposa poderá vestir o m arido e pre-
pará-lo p ara a sua noite de diversão. A casa por ele visi­
tada poderá m andar a conta para a esposa e esta a pagará
com a maior naturalidade. Talvez o fato não lhe agrade,
mas isto será um problema seu. U m a visita a um a casa de
gueixas é mais cara do que a visita a um a prostituta, mas
o pagam ento efetuado por um homem pelo privilégio de
um a noite dessas não inclui o direito de tê-la como
parceira sexual. O que obtém é o prazer de ser entretido
por moças iindam ente vestidas e de meticulosos
ademanes, minuciosamente treinadas para o seu
desempenho. Para ganhar acesso a um a determ inada
gueixa, seria preciso que o homem se tornasse o seu p a­
trono, assinando um contrato m ediante o qual ela
passaria a ser sua am ante ou então que a seduzisse com os
seus encantos, de modo a que ela a ele se entregasse de li­
vre vontade. Entretanto, um a noite em com panhia de
gueixas não constitui assunto sexual. Suas danças, sua
agudeza de espírito, suas canções, seus gestos são tra ­
dicionalm ente sugestivos e cuidadosam ente calculados
para expressarem tudo o que um a esposa de classe

158
superior não pode oferecer. Elas pertencem ao “ círculo
dos sentimentos hum anos” e proporcionam alívio do
“ círculo de k o ” . Não há razão p ara não desfrutar; as duas
esferas, no entanto, acham -se apartadas.
As prostitutas vivem em casas licenciadas e, após
um a noite em com panhia de um a gueixa, um homem po­
deria visitar um a prostituta, se o quisesse. O preço é baixo
e os de pouco dinheiro têm de contentar-se com esta
form a de diversão e desistir das gueixas. Os retratos das
moças da casa são exibidos do lado de fora e os homens
co stu m am p a s s a r lo ngo tem p o e x a m in a n d o -o s
publicam ente e fazendo suas escolhas. Tais moças
ocupam posição hum ilde e não são colocadas em
pináculos como as gueixas. São na m aioria filhas de gente
pobre vendidas por suas famílias ao estabelecim ento por
contingência econômica e não são iniciadas nas artes
recreativas das gueixas. A ntigam ente, antes do Japão
aperceber-se d a desaprovação ocidental do costume e
aboli-lo, as próprias moças é que ficavam em público exi­
bindo seus rostos impassíveis para os fregueses es­
colherem suas mercadorias hum anas. Suas fotografias as
substituem.
U m a dessas moças poderá ser escolhida por um
homem que se torna seu patrono exclusivo e instala-a
como am ante, após fazer contrato com a casa. Serão elas
protegidas pelos term os do acordo. E ntretanto, um
homem poderá tom ar como am ante um a criada ou
comerciária sem assinar contrato e essas “ amantes
voluntárias” são as mais indefesas, precisam ente aquelas
que de modo mais provável apaixonaram -se por seus
companheiros, mas acham -se fora de todos os círculos de
obrigação reconhecidos. Q uando os japoneses lêem nossos
contos e poemas de mulheres sofredoras abandonadas
pelos am antes “com o meu filho no colo” , identificam
essas mães de filhos ilegítimos com as suas “ amantes
voluntárias” .
As satisfações homossexuais tam bém fazem parte
dos “ sentimentos hum anos” tradicionais. No Japao an ti­
go constituíam elas os prazeres autorizados de homens de
posição elevada tais como os sam urais e os sacerdotes. No
período Meiji, quando o Japão tornou ilegais tantos
costumes seus, num esforço para obter a aprovação dos
ocidentais, decretou que este hábito seria punido por lei.

159
Ainda se enquadra, no entanto, entre aqueles “ sen­
tim entos hum anos” a respeito dos quais as atitudes
moralistas são inadequadas. Deverá ser m antido na sua
posição devida, não cabendo que interfira na direção da
família, O perigo, portanto, de um hom em ou de um a
m ulher “ tornar-se” homossexual, segundo a expressão
ocidental, é quase inconcebível, em bora um homem possa
resolver adotar a profissão de gueixa m asculina. Os ja ­
poneses ficam particularm ente chocados com os
homossexuais passivos adultos nos Estados Unidos. Os
homens no Japão procurariam garotos como com ­
panheiros, já que consideram o papel passivo abaixo da
sua dignidade de adultos. Os japoneses traçam suas
linhas pertinentes ao que um homem possa fazer sem ferir
o amor-próprio, não sendo elas, porém, as mesmas que as
nossas.
Os japoneses não são tam pouco m oralistas quanto a
prazer es auto^êrStlcos. Nenhum outro povo jam ais teve
tãnfois..ãcissSnôs p ara tal finalidade. Tam bém neste
terreno procuraram evitar a reprovação estrangeira
abolindo um a parte da publicidade mais patente recebida
por tais objetos, em bora eles próprios não os consi­
derassem instrum entos malignos. A severa atitude oci­
dental contrária à m asturbação, mais acentuada ainda na
maior parte d a Europa do que nos Estados Unidos, grava-
se profundam ente na nossa consciência antes de che­
garmos à idade adulta. O menino ouve m urm úrios de que
provoca a loucura ou a calvície. A m ãe tê-lo-á vigiado
quando bebê e talvez tenha dado grande im portância a
esse assunto, castigando-o fisicamente. Talvez lhe tenha
am arrado as mãos. Talvez lhe tivesse dito que Deus o
puniria. Os bebês e as crianças japonesas não passam por
tais experiências e como adultos não podem, portanto, ter
atitudes como as nossas. O auto-erotism o é um prazer a
respeito do qual nao experimentam sentimentos de cul­
pa e consideram-no suficientem ente controlado, atri­
buindo-lhe a sua secundária posição num a vida decente.
A embriaguez, é outro dos “ sentimentos hum anos”
permissíveis. Os japoneses consideram os nossos com ­
promissos de abstinência total como um a das ex­
travagâncias do Ocidente e igualm ente as nossas cam ­
panhas locais visando prom ulgar a lei seca na região em
que habitam os. Beber o s a k e constitui um prazer que
nenhum homem de posse de suas faculdades negaria a si

160
próprio. Por outro lado, o álcool figura entre as distrações
menos im portantes e nenhum hom em de posse de suas
faculdades se deixaria, tam pouco, dom inar-se por ele. Se-
gím3c> a sua m aneira de pensar, tan to não se teme
“ transform ar-se” num bêbedo quanto num homossexual,
sendo verdade que o ébrio compulsivo não constitui pro­
blem a social no Japão. O álcool é um a diversão agradável
e tan to a própria fam ília quanto o público não consi­
deram um hom em repulsivo quando se acha sob a in­
fluência d a bebida. Não é provável que se torne violento e
certam ente ninguém im agina que vá b ater nos filhos.
Um a boa bebedeira é bastante comum e o relaxam ento
dos rigorosos preceitos japoneses quanto às atitudes e
gestos é geral. Nas festas citadinas de s a k e , os homens
gostam de sentar-se nos colos uns dos outros.
O ja p o n ê s .típico separa rigorosam ente a bebida da
comida. Logo que um hom em começa a com er arroz
num a festa cam pestre onde seja servido o s a k e , isto sig­
nifica que parou de beber. Já passou p a ra outro “cír­
culo” e m antém-nos separados. Em casa, poderá tom ar
s a k e após a refeição, mas nao come e bebe ao mesmo
tempo. Entrega-se a um a e outra distração de cada vez.
Tais pontos de vista japoneses sobre os “ sentimentos
hum anos” têm várias conseqüências. R etira todo apoio à
filosofia ocidental dos dois poderes, a carne e o espírito,
lutando continuam ente pela suprem acia em cada vida
hum ana. Na filosofia japonesa a carne não é um mal.
D esfrutar de seus possíveis prazeres não constitui pecado.
O espírito e o corpo não são forças opostas no universo,
levando os japoneses tal princípio a um a conclusão lógica:
o m undo não é um campo de batalha entre o bem e o mal.
Sir George Sansom escreve: “Através de sua história, os
japoneses parecem ter conservado de certo modo a in­
capacidade de discernir, ou a relutância em atacar o pro­
blem a do m al” . * De fato, constantem ente se recusaram a
um a tal norm a de vida. Acreditam que o homem tenha
duas almas, não constituindo elas, no entanto, um a luta
dos bons impulsos contra os m aus. São a alm a “b ran d a” e
a “ rude” , havendo ocasiões na vida de um homem — e de
um país — em que deva ser “brando” e, em outras,
“ rude” . U m a alma não está destinada ao inferno e a outra

* Sansom , ob. cit., 1931, p. 51.

161
ao céu. Am bas são necessárias e boas, em ocasiões d i­
ferentes.
Mesmo os seus deuses são m anifestam ente bons e
/ maus desta mesma m aneira. O seu deus mais popular é
Susanowo,. “ Sua Veloz e Im petuosa M ajestade M as­
culina” , irm ão d a D eusa do Sol, cuja conduta ínòm iníyel
para com a irm ã haveria de situá-lo n a mitologia oci­
dental como um demônio. E sta últim a ten ta expulsá-lo de
seus aposentos porque suspeita dos motivos dele em vir
procurá-la, Ele se porta de m aneira desatinada, es­
palhando excremento no salão de jan tar, onde ela e os
seus seguidores estão celebrando a cerim ônia dos
Prim eiros Frutos; demole as demarcações dos arrozais —
um a afronta terrível; e como pior injúria de todas —
extrem am ente enigm ática p ara um ocidental — arroja no
seu quarto, através de um buraco que pratica no teto, um
cavalo m alhado “ cujo pelo escanhoara” . Por todos esses
ultrajes, Susanowo é julgado pelos deuses, recebe pesada
m ulta e é exilado do céu p ara o País das Trevas. Continua
sendo, porém, um deus favorito do panteão japonês,
sendo devidamente adorado. Personagens divinos como
esses são comuns nas mitologias do m undo inteiro. Nas
religiões de ética m ais elevada, contudo, eles foram ex­
cluídos, já que, num a filosofia de conflito cósmico entre o
bem e o mal, é mais compatível separar seres so­
brenaturais em grupos tão diferentes como o branco e o
preto.
Os japoneses sempre se m ostraram sum am ente ca­
tegóricos em negar que a virtude consiste em com bater o
mal. Conforme h á séculos vêm afirm ando seus filósofos e
mestres religiosos, um código m oral como este é estranho
ao Japão. Proclam am enfaticam ente que por isso fica
comprovada a superioridade morai do seu povo. Os
chineses, dizem eles, precisaram ter um código m oral que
elevou o jen, a conduta ju sta e benévola, a um caráter de
norm a absoluta, m ediante a aplicação d a qual todos os
homens e os atos poderiam ser considerados carentes se
não a satisfizessem. “ O código m oral foi bom p a ra os
chineses, cujas naturezas inferiores dem andavam tais
meios artificiais de repressão.” Assim escreveu o grande
xintoísta do século XV III, Motoori, sendo que mestres
budistas e líderes nacionalistas m odernos escreveram e
falaram sobre o mesmo tem a. A natureza hum ana no Ja-

162
pão, dizem eles, é espontaneam ente boa e digna de
confiança, nao tem necessidade de com bater um a parte
m á de si própria. Precisa é lim par as janelas de sua alm a e
agir com propriedade em todas as ocasiões. Se se houver
deixado “ sujar” , as impurezas serão prontam ente rem o­
vidas e a bondade essencial do homem b rilhará no­
vamente. A filosofia budista, m ais do que em qualquer
outra nação do m undo, avançou no Japão ensinando que
cada homem é um Buda em potencial e que as regras da
virtude não se encontram nos textos sagrados, e sim no
que se desvenda em nossa alm a ilum inada e inocente. Por
que desconfiar do que se encontra lá? Não existe mal
inerente na alma hum ana. Eles não têm um a teologia que
exclama junto com o salm ista: “Vede, forjaram -m e na
iniqüidade e m inha mãe concebeu-me no pecado” . Não
ensinam doutrina algum a a respeito d a Q ueda do
Homem. Os “ sentimentos hum anos” são bênçãos que o
homem não deve condenar, nem o filósofo, nem tam pouco
o camponês.
P ara ouvidos americanos, tais doutrinas parecem
conduzir a um a filosofia de comodismo e licenciosidade.
Os japoneses, entretanto, como vimos, consideram o
suprem o em preendim ento d a vida o cum prim ento das
próprias obrigações. Aceitam inteiram ente o fato de que o
pagam ento do o n implica em sacrificar os desejos e os
prazeres pessoais. A idéia de que a busca da felicidade se­
ja um a finalidade séria na vida é p ara eles um a doutrina
imoral, de causar estupefação. A felicidade é um a dis­
tração a que a pessoa se entrega quando pode, sendo, no
entanto, de todo inconcebível dignificá-la como algo a tra ­
vés do qual o Estado e a fam ília devam ser julgados. O fa­
to de que um homem m uito sofra para atender às suas
obrigações de chu, ko e giri está bem dentro de suas
expectativas. T orna a vida dura, mas estão preparados
para isso. Constantem ente renunciam a prazeres que de
modo algum consideram perversos. O que exige força de
vontade vem a ser a m ais adm irada virtude no Japão.
O fato de ser tão raro um “ final feliz” nas novelas e
peças japonesas é coerente com essa posição deles. As
platéias populares am ericanas anseiam por soluções.
Querem acreditar que as pessoas vivam felizes para
sempre. Querem estar certas de que sejam recompensadas
por sua virtude. Se têm de chorar no fim de um a peça, d e­
verá ser porque houve um defeito no caráter do herói ou

163
por ter sido ele vitimado por um a ordem social corrupta.
M as é m uito mais agradável ver tudo sair bem p a ra o
herói. As platéias populares japonesas assistem de­
bulhadas em lágrimas o protagonista chegar ao seu fim
trágico e a adorável heroína ser assassinada devido a um a
giro da roda da fortuna. Tais enredos constituem os
pontos altos do entretenim ento de um a noite. São o que as
pessoas vão ver no teatro. Mesmo os seus filmes modernos
são construídos sobre o tem a dos sofrimentos do herói e
da heroína. Estão apaixonados e renunciam aos seus entes
amados. São bem casados e um ou outro suicida-se no
correto cum prim ento do dever. A esposa que se dedicou a
salvar a carreira do m arido e estimulá-lo a desenvolver
seus grandes dotes de ator esconde-se no seio d a grande
cidade e morre pacientem ente na pobreza, no dia da
grande consagração dele. Não precisa haver um final feliz.
A piedade e sim patia pelo herói e heroína abnegados têm
toda a procedência. O seu sofrimento nao advém do
julgam ento de Deus sobre eles. Revela que cum priram a
todo custo o seu dever sem que nada — desam paro,
doença ou morte — os desvie do verdadeiro caminho.
Os seus filmes de guerra modernos conservam essa
mesma tradição. Os americanos que os assistem cos­
tum am proclam ar serem os mesmos a m elhor propaganda
pacifista por eles vista. Trata-se de um a reação ti­
picam ente am ericana, por serem os filmes inteiram ente
relacionados com o sacrifício e o sofrimento da guerra.
Não exibem paradas e bandas m ilitares nem arrogantes
aspectos de m anobras náváis ou de arm as poderosas.
Quer abordem a guerra russo-japonesa ou o incidente
chinês, sua tenaz insistência é sobre a rotina m onótona da
lam a e das m archas, o combate rasteiro, as cam panhas
inconclusas. Suas cenas finais não são de vitória nem de
ataques b a n z a is . São paradas noturnas, em algum a ci­
dade chinesa sem nada de característico, cheia de lama.
Ou focalizam representantes de três gerações de um á
fam ília japonesa estropiados, m ancos ou cegos, so­
breviventes de três guerras. Ou então m ostram a família
em casa, após a morte do soldado, chorando a perda do
marido, pai e arrimo e concentrando-se para prosseguir
sem ele. O fundo emocionante dos filmes anglo-
americanos tipo “ Cavalgada” não aparece. Nem mesmo
chegam a dram atizar o tem a da reabilitação dos veteranos
feridos. Nem mesmo se mencionam os propósitos pelos

164
quais se disputou a guerra. P ara a platéia japonesa basta
que todos na tela tenham pago o o n dando tudo de si,
sendo tais filmes, portanto, no Japão, propaganda dos
militaristas. Seus responsáveis sabiam que as platéias ja ­
ponesas não seriam levadas ao pacifismo através deles.

165
10. O DILEM A DA VIRTU D E
O ponto de vista japonês sobre a vida é exatam ente o
assinalado por suas fórm ulas de chu, ko, giri, jin e dos
sentimentos hum anos. Consideram eles “ o dever total” do
homem como se fosse repartido em regiões separadas
num m apa. Segundo a sua expressão, a vida de
cada um consiste no “ círculo do chu” , no “ círculo do ko” ,
no “ círculo do giri” , no “círculo do jin ” , no “ círculo dos
sentimentos hum anos” e em muitos mais. C ada círculo
tem o seu código especial particularizado, sendo que o
homem julga os seus semelhantes, não lhes atribuindo
personalidades integradas e sim referíndo-se a eles como
“desconhecendo o ko” , ou “ desconhecendo o giri” . Ao
invés de acusar alguém de injusto, como faria um
americano, especificam o círculo de conduta que

167
deslustraram . Ao invés de acusar alguém de egoísta ou
maldoso, os japoneses determ inam a região dentro da
qual tiver violado o código. Não invocam um imperativo
categórico ou algum preceito áureo. A conduta aprovada
é relativa ao círculo dentro do qual se m anifesta. Q uando
um hom em age “ pelo ko” está se com portando de certa
m aneira; quando age “ simplesmente pelo giri” ou “ no
círculo de jin” , estará procedendo, julgariam os oci­
dentais, em caráter bem diferente. Os códigos, mesmo
p ara cada “ círculo” , estão organizados de tal m aneira
que, quando as condições m udam dentro dele, poderá
justificar-se um a conduta totalm ente diversa. O giri p ara
com o próprio senhor exigia a m áxim a fidelidade até que
este insultasse o dependente; depois disso, justificava-se a
deslealdade, por m aior que fosse. Até agosto de 1945, o
chu exigia do povo japonês que lutasse até o último
homem contra o inimigo. Q uando o Im perador m udou as
exigências do chu, transm itindo pelo rádio a rendição j a ­
ponesa, os seus súditos esm eraram -se na cooperação com
os visitantes.
Isto é desconcertante para os ocidentais. De acordo
com a nossa prática, as pessoas agem “segundo um cará­
ter” . Separam os as ovelhas das cabras, conforme tenham
sido leais ou traiçoeiras, cooperativas ou teimosas. R o­
tulamos as pessoas e esperamos que o seu procedimento
seguinte seja em consonância com o antecedente. Serão
elas generosas ou sovinas, solícitas ou desconfiadas,
conservadoras ou liberais. Esperam os que acreditem
num a determ inada ideologia política e com batam conse­
qüentem ente a oposta. Na nossa experiência de
guerra na Europa, houve colaboracionistas e gente da
resistência e duvidamos, acertadam ente, que após o Dia
da Vitória os prim eiros fossem modificar-se. Nas con­
trovérsias nacionais nos Estados Unidos, identificamos,
por exemplo, os quais apóiam e os que combatem o N e w
D e a l , considerando que, conforme surjam situações no­
vas, os dois campos continuarão a agir dentro de um
caráter. Se os indivíduos passam de um lado p ara o outro
da cerca — como quando um descrente torna-se católico,
ou um “ vermelho” passa a ser conservador — um a
m udança dessas terá de ser devidamente rotulada como
conversão e um a nova personalidade foi criada a fim de
ajustar-se a ela.

168
Esta fé ocidental na conduta integrada, é claro, nem
sempre é justificada, mas não constitui um a ilusão. Na
maioria das culturas, prim itivas ou civilizadas, os homens
e as mulheres afiguram -se agindo como determ inadas
espécies de pessoas. Se estiverem interessados no poder,
consideram seus malogros e sucessos em termos da
submissão de outros à sua vontade. Se estão interessados
em ser amados, contrariam -se nas situações impessoais.
Imaginam-se como rigorosam ente justos, como possui­
dores de um “tem peram ento artístico” ou como sendo
indivíduos caseiros. Alcançam geralm ente um a G e s t a l t
nos seus caracteres. Assim trazem ordem à existência
hum ana.
Os ocidentais não conseguem acreditar facilmente na
capacidade dos japoneses de oscilar de um a conduta para
outra sem detrim ento psíquico. Nossa experiência não
inclui possibilidades extrem as como essas. Na vida ja ­
ponesa, no entanto, as contradições, conforme se nos afi­
guram, acham-se tão profundam ente baseadas na sua
visão da existência quanto as nossas uniform idades na
nossa. Ê particularm ente im portante que os ocidentais
verifiquem não estar nenhum “ círculo do m al” incluído
entre aqueles nos quais os japoneses dividem a vida. Isto
não significa que não adm itam a má conduta, o fato é que
não consideram a vida hum ana como um palco onde as
forças do bem lutam contra as do mal. P ara eles a exis­
tência é um dram a que implica num cuidadoso sopesar
das exigências de um “ círculo” com as de outro e de um a
linha de procedimento com outra, sendo cada círculo e
cada linha de procedimento bons em si mesmos. Se todos
seguissem seus verdadeiros instintos, todos seriam bons.
Como vimos, eles consideram mesmo os preceitos morais
chineses comprobatórios de que estes últimos necessitam
de tal tipo de coisa, num atestado de sua inferioridade. Os
japoneses, dizem eles, não precisam de m andam entos
éticos de ordem global. Segundo a frase de Sir George
Sansom já citada por nós, eles “ não atacam o problem a
do m al” . De acordo com o seu ponto de vista, prestam
contas adequadam ente por má conduta através de meios
menos cósmicos. Em bora originariam ente todas as almas
brilhem de virtude como um a espada nova, mesmo assim,
se não foram limpas, ficam em baciadas. Esta “ ferrugem
do meu corpo” , conforme dizem eles, é tão ruim quanto a
da espada. O homem deve dedicar ao seu caráter o mesmo

169
cuidado que a um a espada. Sob a ferrugem , no entanto,
jaz ainda a sua alm a gloriosa e cintilante, basta apenas
lim pá-la novamente.
O ponto de vista japonês sobre a existência torna as
suas histórias populares, novelas e peças especialmente
inconcludentes p ara os ocidentais — a menos que consi­
gamos, como amiúde acontece, refundir o enredo de
molde a satisfazer nossas exigências de coerência de
caráter e de conflito entre o bem e o mal. Entretanto, não
é desta m aneira que os japoneses encaram esses enredos.
Segundo a sua observação, o herói é apanhado num
conflito de “ giri contra os sentim entos hum anos” , “chu
contra ko” , “giri contra gimu” . Q uando o herói fracassa é
por estar deixando os seus sentim entos hum anos obs-
curecerem as suas obrigações de giri ou porque não consi­
ga pagar a sua dívida de chu e de ko. Não pode proceder
corretam ente (gi) devido ao giri. É acuado pelo giri e
sacrifica a família. Os conflitos assim configurados são
ainda entre obrigações, as duas obrigatórias. Ambas são
“ boas” . A escolha entre am bas é como aquela com que se
defronta um devedor com dívidas dem asiadas. Deverá p a ­
gar algum as e deixar de lado outras por enquanto, mas o
fato de que paga um a não o livra do resto delas.
E sta m aneira de visualizar a vida do herói muito
contrasta com o ponto de vista ocidental. Nossos heróis
são bons precisam ente na m edida em que “ escolheram o
lado m elhor” e são lançados contra adversários que são
maus. “ A virtude triu n fa” , dizemos nós. Deverá haver um
final feliz. Os bons deverão ser recompensados. Os ja ­
poneses, entretanto, têm um apetite insaciável pela
história do “ caso flagrante” do herói que finalm ente salda
dívidas incompatíveis p ara com o m undo e o seu nome
escolhendo a morte como solução. Em m uitas culturas,
histórias coiho essas seriam narrativas que ensinassem
resignação a um destino cruel. No Japão, porém, é o que
precisam ente elas não são. São crônicas a respeito de
iniciativa e determ inação implacável. Os heróis em ­
penham todos os seus esforços a fim de pagarem algum a
obrigação que lhes é incum bente e, ao fazê-lo, descuram -
se de outra. No final, porém, conciliam-se com o “ círculo”
menosprezado.
O verdadeiro épico nacional do Japão é a N a r r a t i v a
d o s q u a r e n t a e s e t e r o n in s . Não ocupa posição elevada na
literatura m undial, contudo, é incomparável a influência

170
que exerce sobre os japoneses. Todo menino japonês
conhece não apenas a história principal, como tam bém os
enredos secundários d a narrativa. Suas histórias são
constantem ente contadas e publicadas, figurando a sua
adaptação num a série de filmes populares modernos. Há
gerações que as sepulturas dos quarenta e sete constituem
m eta favorita de peregrinação, p ara onde m ilhares se diri­
gem, a fim de render tributo. Além disso, deixam seus
cartões de visita, m uitas vezes ficando em branquecido
com eles o terreno à volta das sepulturas.
O tem a dos Q u a r e n t a e s e t e r o n i n s gira em torno do
giri p ara com o seu senhor. Segundo a m aneira de ver ja ­
ponesa, retrata os conflitos do giri com o chu, do giri com
o ostensivo senso de justiça e de moral — em que o giri,
sem dúvida, vence virtuosam ente — e do “ simples giri”
com o giri ilimitado. É um a narrativa histórica de 1703,
sobre os grandes dias do feudalismo, quando os homens
eram homens e, de acordo com a m oderna fantasia ja ­
ponesa, não havia “ indisposição” ao giri. Os quarenta e
sete heróis oferecem-lhe tudo, suas reputações, seus pais,
suas esposas, suas irmãos, seu senso de m oral e de justiça
(gi). Finalm ente oferecem em chu a própria vida, m a­
tando-se.
O Príncipe Asano fora nom eado pelo Xogunato
como um dos dois daimios, encarregados de cerimônia em
que todos os daimios prestavam suas hom enagens perió­
dicas ao Xógum. Os dois m estres de cerimônias eram
senhores provincianos, sendo, portanto, obrigados a pedir
instruções sobre a etiqueta adotada por um dos maiores
daimios d a Corte, o Príncipe Kira. Infelizmente o mais
sábio dos dependentes do Príncipe Asano, Oishi — o
herói da narrativa — que o teria aconselhado com
prudência, achava-se fora, na província natal, e Asano foi
bastante ingênuo p ara não providenciar a entrega de um
“ presente” condigno ao seu grande instrutor. Os d e­
pendentes do outro daimio que estava sendo instruído por
K ira eram homens m undanos e cobriram de ricos
presentes o professor. O Príncipe K ira, portanto, instruiu
de m á vontade; o Príncipe Asano, indicando-lhe Um traje
inteiram ente inadequado p ara ser usado rta cerimônia.
Aparecendo assim vestido o Príncipe Asano no grande
dia, ao verificar o insulto que lhe fora feito, puxou da
espada e feriu K ira na testa, antes que pudessem separá-

171
los. Constituía virtude sua, como hom em honrado — o
giri ligado ao seu nome — vingar o insulto de Kira, mas
puxar d a espada no palácio do Xógum era contrário ao
seu chu. O Príncipe Asano conduzira-se virtuosam ente
quanto ao giri ligado ao seu nome, m as somente podia
saldar o chu m atando-se, segundo as regras do s e p p u k u .
Recolheu-se ele a sua casa e vestiu-se p ara a prova, es­
perando apenas pela volta de Oishi, o seu mais sábio e
mais fiel dependente. Após terem trocado um longo olhar
de despedida, o Príncipe Asano, sentado na m aneira exi­
gida, m ergulhou a espada no ventre, m orrendo pela pró­
pria mão. Não havendo parente desejoso de herdar a
m ansão do príncipe m orto que transgredira o chu e in­
correra no desagrado do Xogunato, o feudo de Asano foi
confiscado e os seus dependentes tornaram -se ronins pri­
vados de senhores.
De acordo com as obrigações do giri, os dependentes
sam urais de Asano tinham p ara com o falecido senhor o
dever de consumar o s e p p u k u como ele o fizera. Se em
giri ao seu senhor fizessem eles o que ele havia feito em
giri ligado ao seu nome, m anifestariam deste modo o pro­
testo deles contra o insulto de K ira ao primeiro. Mas
Oishi estava secretam ente convencido de que o s e p p u k u
era um ato por demais secundário através do qual ex­
pressassem o seu giri. Precisavam com pletar a vingança
que o seu senhor não alcançara quando os dependentes
o haviam separado do seu inimigo altam ente considerado.
Precisavam m atar o Príncipe Kira. C ontudo, somente
infringindo o chu é que lograriam fazê-lo. O Príncipe K ira
achava-se por dem ais próximo ao X ogunato p ara possi­
bilitar aos ronins obterem perm issão oficial do Estado
para consum arem a sua vingança. Nos casos mais h a ­
bituais, um grupo que tencionasse vingar-se registrava o
seu plano junto ao Xogunato, declarando a d a ta definitiva
antes da qul com pletariam o ato ou abandonariam o
empreendim ento. E sta providência perm itia a pessoas
afortunadas conciliarem o chu com o giri. Oishi sabia que
tal caminho não se achava aberto p ara ele e os com­
panheiros. Convocou, portanto, os ronins que haviam sido
dependentes sam urais de Asano, m as n ad a revelou do seu
plano de m atar K ira. Havia mais de trezentos desses
ronins e, conforme a história foi contada nas escolas ja ­
ponesas em 1940, todos eles concordaram em consum ar o
s e p p u k u . Oishi sabia, no entanto, que nem todos dentre

172
eles tinham giri ilim itado — “ giri m ais sinceridade” , na
expressão japonesa — impossibilitados, portanto, de se
encarregarem d a perigosa façanha de um a vingança
contra K ira. A fim de separar os providos “ sim ­
plesmente” de giri dos que estivessem com giri mais
sinceridade, utilizou ele a prova de como dividiriam eles a
renda pessoal do seu senhor. Aos olhos dos japoneses, tal
ensaio valeria como se não houvessem eles resolvidos
suicidar-se; suas famílias lucrariam . Verificou-se violenta
divergência entre os ronins q uanto à base d a divisão dos
bens. O despenseiro-mor era o mais bem pago dentre os
dependentes e liderava a facção que queria a divisão da
renda de acordo com o salário prévio. Oishi chefiava os
que a preferiam dividida igualm ente entre todos. Logo
que ficou bem estabelecido quais dentre os ronins tinham
“ simplesmente” o giri, Oishi concordou com o plano do
despenseiro-mor de p artilha dos bens, perm itindo que os
vencedores se retirassem . Saindo o despenseiro-mor desde
então, por isso, ganhou ele a fam a de ser um “ cãb
sam urai” , um “ hom em que desconheceu o giri” , um ré-
probo. Apenas quarenta e sete achou Oishi capazes de
giri, a ponto de merecerem ser informados do seu plano
de vingança. Esses homens que a ele se uniram por tal ato
comprometeram-se a que nenhum a boa fé, afeição ou
gimu iria interferir no cum prim ento de sua promessa. O
giri haveria de ser a sua lei suprem a. Os quarenta e sete
fizeram cortes nos dedos e uniram -se num pacto de
sangue.
Sua prim eira tarefa seria despistar Kira. Dis­
persaram-se, simulando terem caído na completa
desonra. Oishi passou a freqüentar as mais reles tabernas
e envolveu-se em indecorosas rixas. Sob a capa de tal vida
dissoluta, divorciou-se d a esposa — m edida habitual e
inteiram ente justificada p ara o japonês prestes a in­
fringir a lei, já que impedia a esposa e os filhos de no final
serem incriminados junto com ele. A esposa de Oishi se­
parou-se dele com grande pesar, entretanto, o filho
reuniu-se aos ronins.
Tóquio inteira especulava sobre a vingança. Todos os
que respeitavam os ronins, sem dúvida, estavam con­
vencidos de que os mesmos iriam tentar m atar o Príncipe
Kira. Contudo, os quarenta e sete negaram tal intenção.
Fingiram ser homens que “ não conheciam o giri” . Seus

173
sogros, ofendidos com essa conduta ignominiosa, ex-
pulsaram -nos de suas casas e dissolveram seus
casamentos. Os amigos ridicularizaram -nos. Certo dia,
um amigo chegado encontrou Oishi em briagado, num a
farra com mulheres, chegando a negar até mesmo a ele o
giri p ara o seu senhor. “V ingança?” , redargüiu ele.
“ Ê bobagem. Devemos gozar a vida. N ada m elhor do que
beber e divertir-se por aí.” O amigo não acreditou nele e
puxou da bainha a espada de Oishi, esperando que o seu
brilho refutasse o que o dono dissera. Mas a lâm ina estava
enferrujada. Viu-se forçado, então, a acreditar e em plena
rua desferiu pontapés e cuspiu sobre o bêbedo Oishi.
Um dos ronins, precisando de dinheiro para encobrir
a sua parte na vingança, vendeu a esposa como prostituta.
Seu irmão, tam bém um dos ronins, descobriu que chegara
até ela o conhecimento da vingança e propôs m atá-la com
a própria espada, alegando que, com aquela prova de sua
lealdade, Oishi o adm itiria entre os vingadores. Outro
ronin m atou o sogro. Um outro m andou a irm i servir de
criada e concubina ao próprio Príncipe K ira, a fim de po­
der ele ter informações do interior do palácio a respeito de
quando atacar. Tal ato tornava inevitável que ela se suici­
dasse, um a vez consum ada a vingança, pois teria de puri-
ficar-se pela morte da culpa de haver sim ulado estar ao
lado do Príncipe Kira.
N um a noite de nevasca, 14 de dezembro, Kira
ofereceu um a festa de s a k e e os guardas ficaram bêbedos.
Os ronins assaltaram as defesas, dom inaram os vigilantes
e rum aram direto p ara o quarto do Príncipe Kira. Este
não se encontrava lá, mas a cam a ainda estava quente. Os
ronins sabiam que deveria estar escondido em algum
ponto do cercado. Finalm ente encontraram um hom em
agachado num a dependência utilizada como depósito de
carvão. Um dos ronins enfiou a lança através de um a das
paredes da cabana, mas ao retirá-la não havia nela
sangue. O fato é que K ira fora atingido, porém, ao ser
recolhida a arm a. ele lim para-a com a m anga do
quimono. De nada adiantou o seu estratagem a. Os ronins
obrigaram -no a sair. Afirmou ele, no entanto, que não era
Kira, apenas o despenseiro-mor. Naquele m omento, um
dos q u arenta e sete lembrou-se do ferimento produzido
em K ira pelo Príncipe Asano, no palácio do Xógum.
Através dessa cicatriz, identificaram -no e exigiram o seu
s e p p u k u imediato. Ele recusou-se, o que comprovava, evi­

174
dentem ente, a sua covardia. Com a espada que o próprio
Príncipe Asano utilizara no seu s e p p u k u , eles cortaram -
lhe a cabeça, lim param -na e, term inada a sua tarefa,
saíram em procissão, levando a espada duplam ente
ensangüentada e a cabeça decepada p ara a sepultura de
Asano.
Tóquio inteira encheu-se de entusiasm o com a
proeza dos ronins. Suas famílias e sogros, que haviam
duvidado deles, correram a abraçá-los e a render-lhes
homenagem. Poderosos senhores ofereceram-lhes hos­
pitalidade ao longo do caminho. Prosseguiram eles até o
túm ulo e lá depositaram não apenas a cabeça e a espada,
como tam bém um a comunicação escrita ao seu príncipe,
ainda conservada.

H oje aq u i viem os p re sta r h o m en ag em , . . N ão o u saríam o s nos


a p re se n ta r d ian te de vós. sem que houvéssem os co n su m ad o a vingança
por vós iniciada. C ad a d ia q u e a g u ard a m o s, afigurou-se-nos três
outonos . . . A co m p an h a m o s o se n h o r P rfncipe K ira até aq u i ao vosso
tím iulo. A e sp ad a que ta n to v alorizastes n o ano p assa d o e a nós con-
fiastes. devolvem os agora. T o m ai-a e golpeai a cab eça d o vosso inim igo
um a seg u n d a vez, assim vos rogam os, e p a ra sem p re d issip ai o vosso
ódio. Eis o respeitoso re lato dos q u a re n ta e sete hom ens.

Haviam pago o seu giri. Restava-lhes ainda pagar Ô


chu. Somente com a sua morte é que os dois coincidiriam.
Haviam infringido o regulam ento estatal contra â vendeta
não declarada, mas não se haviam insurgido contra o chu.
O que fosse exigido deles em nome do chu, teriam obri­
gação de cum prir. O Xogunato determ inou que os
quarenta e sete consumassem o seppuku. Assim consta
nos m anuais de leitura japoneses p ara crianças do quinto
grau:

J ã q ue tin h am agido p a ra vingar o seu senhor, o seu inab aláv el giri


deveria ser co n siderado um exem plo p a ra to d a a e te rn id a d e . . . P or
conseguinte, após delib eração , o X o g u n a to o rd en o u o s e p p u k u , o que
significava m a ta r dois coelhos com u m a só c ajad a d a .

Isto é, suicidando-se, os ronins pagavam a dívida


suprem a, tanto ao giri, quanto ao gimu.
Esta epopéia nacional japonesa varia um pouco nas
diferentes versões. Na m oderna versão cinem atográfica, o
tem a inicial do suborno passa a ser de caráter sexual: o
Príncipe K ira é surpreendido fazendo propostas amorosas
à esposa de Asano e, atraído por ela, hum ilha Asano,

175
r
dando-lhe instruções falsas. O suborno é assim eliminado.
E ntretanto, todas as obrigações do giri são relatadas em
pavorosos detalhes. “ Pelo giri, abandonaram eles suas
esposas, separaram -se dos filhos e perderam (m ataram )
seus pais.”
O tem a do conflito entre o gimu e o giri constitui a
base de m uitas outras histórias e filmes. Um dos melhores
filmes históricos é situado n a época do terceiro Xógum
Tokugawa. Fora ele nom eado p ara o seu cargo quando jo­
vem e inexperiente, tendo havido desunião entre os seus
cortesãos quanto à sucessão, alguns deles apoiando um
parente próximo d a m esm a idade. Um dos daimios
derrotados alimentava no peito aquele “ ultraje” , a
despeito d a adm inistração com petente do Terceiro Xó­
gum. Ficou aguardando a sua oportunidade. Finalm ente,
o Xógum e o seu séquito com unicaram -lhe que iriam
percorrer alguns feudos. C abia a este daim io recepcionar
a comitiva, resolvendo ele aproveitar a oportunidade p ara
um ajuste de contas e satisfazer o giri ligado ao seu nome.
A sua casa já era um a fortaleza e, assim, preparou-a
p ara o acontecim ento vindouro, de modo a que todas as
saídas pudessem ser bloqueadas, ficando fechada a ci­
dadela. Em seguida, providenciou meios que possi­
bilitassem a derrubada das paredes e do teto sobre as ca­
beças do Xógum e a sua comitiva. O plano foi preparado
em grande estilo. O espetáculo seria minucioso. P ara
deleite do Xógum, pôs um de seus sam urais p ara dançar
diante dele, com instruções para m ergulhar a espada na
autoridade, no auge dos movimentos. Por giri ao seu
daimio, o sam urai não poderia de m odo algum deso­
bedecer à ordem do seu senhor. O seu chu, no entanto,
proibia-o de erguer a mão contra o Xógum. A dança na
tela retrata de modo completo o conflito. Ele deve e ao
mesmo tempo não deve. Quase chega a decidir-se a
desfechar o golpe, mas não consegue. A despeito do giri, o
chu é demasiado forte. Decai a apresentação da m úsica e
a comitiva do Xógum começa a suspeitar. Levantam-se no
m omento em que o daimio, desesperado, ordena a
demolição da casa. H á perigo de que o Xógum, em bora
tenha escapado da espada do dançarino, venha a m orrer
nas ruínas da fortaleza. Naquele instante, o dançarino da
espada adianta-se e guia a comitiva do Xógum através de
passagens subterrâneas, conseguindo, assim, que todos
escapassem. O chu sobrepujara o giri. O porta-voz do

176
Xógum, em reconhecimento, convida o guia a acom ­
panhá-los, com todas as honras, a Tóquio. Este, no en­
tanto, olha p a ra a casa desabando. “ Ê impossível” ,
responde. “ Vou ficar. T rata-se do m eu gimu e do meu
giri.” Volta-se e vai m orrer entre as ruínas, “ Com a sua
morte, satisfez ele o chu e o giri, coincidindo-os.”
As histórias dos tempos antigos não dão destaque ao
conflito entre as obrigações e os “ sentimentos hum anos” .
Recentemente, passou a ser um dos temas principais. As
novelas m odernas referem-se a am or e bondade que d e­
vem ser postos de lado devido ao gimu ou ao giri, tem a
que passa a ser explorado, ao invés de desprezado. Como
os seus filmes de guerra, que aos ocidentais mais parecem
propaganda pacifista, essas novelas mais se nos afiguram
um apelo p ara um a m aior am plitude de vivência de
acordo com os ditam es do coração de cada um . Cons­
tituem , sem dúvida, um a comprovação desse impulso.
Entretanto, os japoneses vêem um significado diferente ao
renovarem as discussões dos enredos das novelas e filmes.
O herói com que sim patizam os por estar apaixonado ou
porque n u tra ambições pessoais, eles condenam como
fraco por ter perm itido que tais sentimentos viessem
interpor-se entre ele e o seu gimu ou giri. Os ocidentais
sentem-se inclinados a considerar um sinal de força re­
voltar-se contra as convenções e conquistar a felicidade, a
despeito dos obstáculos. Os fortes, entretanto, de acordo
com a opinião japonesa, são aqueles que desprezam a
felicidade pessoal e cum prem as suas obrigações. A força
de caráter, acham eles, é revelada conform ando-se e não
se rebelando. Conseqüentem ente, os enredos de no­
velas e filmes costum am ter no Japão um significado
bastante diferente do que lhes em prestam os quando os
vemos com olhos ocidentais.
Os japoneses exercem o mesmo tipo de avaliação
quando passam em julgam ento suas vidas ou das pessoas
que conheceram. Consideram um hom em fraco se der
atenção aos desejos pessoais quando em conflito com o
seu código de obrigações. Todos os tipos de situações são
julgados desta m aneira, porém a que mais se opõe à ética
ocidental é a referente à atitude do hom em p ara com a
esposa. Ê esta tão somente tangencial ao “círculo do ko” ,
ao passo que os seus pais ocupam posição central. Por-,
tanto, o seu dever é claro. U m homem de firme caráter
moral obedece ao ko e aceita a decisão d a m ãe p a ra que se

177
divorcie d a esposa. Se a am a e se esta lhe deu um filho, em
tal caso, o hom em torna-se “ mais firm e” . Segundo a
expressão japonesa, “ o ko leva-o a colocar a esposa e os
filhos na categoria de estranhos” . Sendo assim, o seu tra ­
tam ento com relação a eles pertencerá, quando m uito, ao
“ círculo de jin ” ; em último caso, serão gente sem direito
algum quanto a você. Mesmo quando um casam ento é
feliz, um a esposa não está no centro do círculo de obri­
gações. Portanto, um hom em não deve elevar a sua rela­
ção p ara com ela de modo a que nivele com os seus
sentimentos voltados p ara os pais ou pátria. Constituiu
um escândalo popular nos anos 30 deste século
quando um ilustre liberal declarou publicam ente quão
feliz se sentia de regressar ao Japão, m encionando a
reunião com a esposa como um a das razões p ara a sua sa­
tisfação. Deveria ter falado dos pais, de Fujiyama, da sua
dedicação à missão nacional do Japão. A esposa não
pertencia a este nível.
Os japoneses sem dúvida dem onstraram nos tempos
modernos não estarem satisfeitos em tan to onerarem de
ênfase o seu código de m oral quanto a conservar se­
parados níveis diferentes e distintos diferentes “ cír­
culos” . Grande parte da doutrinação japonesa foi d e­
dicada a exaltar o chu ao máximo. Assim como os es­
tadistas sim plificaram a hierarquia colocando o Im ­
perador no ápice, elim inando o Xógum e os senhores
feudais, igualm ente no âm bito m oral promoveram a
simplificação do sistema de obrigações arrolando sob a
categoria de chu todas as virtudes inferiores. Procuraram
deste modo não apenas unificar o país sob o “ culto do
Im perador” , como tam bém dim inuir o atomismo da
moral japonesa. Visaram ensinar que o cum prim ento do
chu implicava no de todos os outros deveres. Buscaram
torná-lo não um círculo num m apa e sim a pedra angular
de um a arcada moral.
A m elhor e mais autorizada exposição desse pro­
gram a é o Edito Im perial aos Soldados e M arinheiros,
publicado pelo Im perador Meiji em 1882. Este Edito e o
relativo à Educação constituem as Sagradas Escrituras do
Japão. N enhum a das religiões japonesas inclui livros
sagrados. O Xintó não tem nenhum e os cultos do
budism o japonês ou fizeram um dogm a d a desilusão^com
as escrituras textuais ou as substituíram pela repetição de
frases como “G lória a A m ida” ou “G lória ao Lótus do Li­

178
vro” . Os Editos de Meiji de advertência, entretanto, são
verdadeiras Escrituras Sagradas. São lidos como rituais
sagrados perante auditórios silenciosos, curvados em re­
verência. São m anuseados como a t o r à , retirados de um
sacrário p ara leitura e p ara lá devolvidos com um a re­
verência, antes de despedir o público. Hom ens designados
para lê-los suicidaram -se por terem lido errado um a frase.
O Edito aos Soldados e M arinheiros destinou-se ori-
ginariam ente aos m ilitares. Eram eles que o aprendiam
textualm ente e sobre ele meditavam durante dez minutos,
todas as m anhãs. E ra lido p ara eles ritualm ente em
im portantes festas nacionais, quando os recrutas che­
gavam aos quartéis, quando estes saíam ao final do seu
período de treinam ento e em ocasiões similares. Tam bém
era ensinado a todos os meninos das escolas m édias e das
classes de aperfeiçoam ento..
O Edito aos Soldados e M arinheiros é um documento
de várias páginas, claro e específico, cuidadosam ente
organizado sob títulos. Constitui, no entanto, um es­
tranho enigma p ara o ocidental. Os seus preceitos
parecem-lhe contraditórios. A bondade e a coragem são
apontadas como m etas verdadeiras e qualificadas da
m aneira que um ocidental possa apreciar. Em seguida o
Edito adverte aos seus ouvintes para não serem como os
heróis de antigam ente que m orriam na desonra porque,
“ perdendo de vista o cam inho verdadeiro do dever
público, c o n s e r v a r a m a fé n a s r e l a ç õ e s p r i v a d a s " . Esta é a
tradução oficial e, em bora não seja literal, representa
claram ente as palavras do original. “ Deverão, pois” ,
continua o Edito, “ advertirem-se seriamente por esses
exemplos” de heróis do passado.
A “ advertência” transm itida não é inteligível sem um
conhecimento do m apa japonês de obrigações. O Edito
inteiro revela um a tentativa oficial de m inim izar o giri e
elevar o chu. Nem um a só vez, no texto inteiro, a palavra
giri aparece no sentido da palavra dom éstica que é no Ja ­
pão. Ao invés de falar em giri, acentua que existe um a Lei
Superior, que é o chu, e um a Lei Inferior, que é
“ conservar a fé nas relações privadas” . A Lei Superior,
empenha-se o Edito em provar, é suficiente p ara com­
provar todas as virtudes. “ A integridade” , afirm a ele,
consiste no cum prim ento do gimu. Um soldado repleto de
chu é certo possuir “verdadeira coragem ” , o que significa
“ nas relações diárias pôr em prim eiro lugar a bondade e

179
procurar conquistar o am or e a consideração dos outros” .
Tais preceitos, se seguidos, argum enta por implicação o
Edito, dispensarão a invocação do giri. Afora o gimu, as
outras obrigações constituem a Lei M enor, não devendo
ser reconhecidas sem a m ais cuidadosa consideração.

S e desejais . . . c u m p rir a vossa p a la v ra (n a s relações p riv ad a s) e


(tam bém ) satisfazer o vosso gim u . . . devereis d e início c o n sid erar c u i­
d a d o sa m e n te se podeis realizá-lo ou não. Se . . . a ssu m ird es obrigações
insen satas, possivelm ente vos e n co n trareis n u m a p o sição em q u e n ã o
p odereis ir nem p a ra d ia n te nem p a ra trás. Se e stais convencidos de que
n ão conseguireis c u m p rir a vossa p ala v ra e co n serv ar a in teg rid ad e (que
o E d ito a c a b a d e d e fin ir com o o c u m p rim en to d o gim u), será m elh o r que
a b an d o n e is de im ed iato o vosso co m prom isso (p a rticu lar). D esde os
a ntigos tem p o s têm hav id o re p etid o s exem plos d e g ra n d es h o m en s e
heróis que, oprim id o s p e la d esgraça, su cu m b iram d e ix a n d o um n o m e
m a n c h ad o p a ra a p o sterid ad e, sim p lesm en te p o rq u e n o seu esforço de
serem fiéis em p equenas questõ es n ão m ais d istin g u iram o certo do e r r a ­
d o com relação a p rincípios fu n d a m e n ta is ou, e n tão , p o rq u e p e rd en d o
de vista o cam in h o v e rd ad eiro d o dever público, m an tiv eram o c o m ­
p rom isso nas relações privadas.

T oda esta instrução acerca d a superioridade do chu


sobre o giri é escrita, como dissemos, sem m encionar o
giri, pois, todo japonês conhece a expressão “Não pude
praticar a integridade (gi) por causa do giri” , p a ra ­
fraseada pelo Edito através das seguintes palavras: “ Se
estais convencido de que não conseguireis cum prir a vossã
palavra (vossas obrigações pessoais) e satisfazer à in­
tegridade . . . ” Com autoridade im perial, prescreve ele
que em tal situação deve-se deixar de lado o giri, lem-
brando-se de que é um a Lei Menor. A Lei Superior, to ­
davia, se obedecidos os seus preceitos, h á de conservar
um a pessoa virtuosa.
E sta E scritura Sagrada de exaltação ao chu é um
docum ento básico no Japão. Difícil é dizer, no entanto, se
a sua detração indireta do giri enfraqueceu o apoio po­
pular desta obrigação. O s japoneses citam com freqüência
outras partes do Edito — “X integridade consiste no
cum prim ento do gimu” , “A condição de o coração ser
sincero, tudo se pode realizar” — a fim de explicar e justi­
ficar os seus próprios atos e os dos outros. Mas, em bora
sejam amiúde oportunas, as advertências contra a
m anutenção de compromisso nas relações privadas quase
nunca lhes vêm aos lábios. O giri continua sendo atual­
mente um a virtude de grande influência, constituindo

180
um a das mais drásticas condenações no Japão dizer-se de
um hom em que “ desconhece o giri” .
A ética japonesa não se simplifica facilm ente m e­
diante a introdução de um a Lei Superior. Conforme
tantas vezes se têm vangloriado, os japoneses não dispõem
de um a virtude generalizada a ser usada como pedra de
toque de boa conduta. Na m aioria das culturas, os in­
divíduos respeitam-se entre si à m edida que adquirem
algum a virtude como zelo, bom sentido de adm inistração
ou sucesso nos negócios. Estabelecem como m eta algum
objetivo n a vida como felicidade, poderio sobre os outros,
liberdade ou mobilidade social. Os japoneses obedecem a
códigos m ais meticulosos. Mesmo quando se referem à
Lei Superior, t a i s e t s u , seja nos tempos feudais, seja no
Edito aos Soldados e M arinheiros, o fazem somente no
sentido de que as obrigações de alguém que ocupa posi­
ção elevada na hierarquia devem prevalecer sobre as
obrigações de quem está abaixo. Eles ainda são par-
ticularistas. P ara eles a Lei Superior não constitui, como
geralmente tem sido p ara os ocidentais, um a lealdade à
lealdade, em contraposição à lealdade p a ra com d e­
term inada pessoa ou causa.
Ao tentarem os japoneses modernos fazer pre-
ponderar por sobre todos os “ círculos” certa virtude
m oral, geralmente escolhem a “ sinceridade” . O Conde
Okum a, ao discutir a ética japonesa, afirm ou ser a sin­
ceridade f m a k o t ‘4 “ o preceito de todos os preceitos; a
base dos ensinam entos morais pode ser im plicada nessa
única palavra. Nosso vocabulário antigo carece de termos
éticos, exceto quanto a um a solitária palavra, m akoto” . *
Tam bém os novelistas modernos, que nos prim eiros anos
deste século exaltaram o novo individualismo ocidental,
desagradaram -se das fórm ulas ocidentais e procuraram
celebrar a sinceridade (geralmente m a g o k o r o ) como a
única “ doutrina” verdadeira.
Esta ênfase moral sobre a sinceridade tem o apoio do
próprio Edito aos Soldados e M arinheiros. Ele principia
com um prólogo histórico, equivalente japonês dos prólo­
gos americanos que mencionam W ashington, Jefferson e
os Pais da Pátria. No Japão, esta seção atinge um clímax
ao invocar o o n e o chu:

(*) C onde Shln en o b u O k u m a, F i f t y Y e a r s o f N e w J a p a n . T ra d u ç ão


inglesa e d ita d a p o r M a reu sB , H uish, L ondres, 1909,11:37.

181
Nós (o Im p era d o r) som os a c ab e ça e vós sois o corpo. D ep en d em o s
de vós com o b ra ço s e p ernas. D o c u m p rim e n to d e vossas obrig açõ es d e ­
p e n d erá serm os ou n ã o c ap azes d e p ro teg e r nosso pafs, p a g an d o o o n de
nossos an cestrais.

Seguem-se em seguida os preceitos: (1) A virtude


suprem a é cum prir as obrigações do chu. Um soldado ou
m arinheiro, por mais hábil, em quem não seja forte o chu,
não passa de um boneco. U m grupo de soldados carentes
de chu não será mais do que um a tu rb a. “Portanto, não
vos deixeis p erturbar pela opinião geral, n e m v o s m e t a i s
e m p o l í t i c a e sim, com sinceridade, praticai o chu,
lem brando-se de que o g i (integridade) é m ais pesado do
que um a m ontanha, ao passo que a m orte é m ais leve do
que um a pena.” (2) A segunda recom endação é considerar
um a aparência exterior e um a conduta, isto é, com rela­
ção ao posto no Exército. “ Acate as ordens dos superiores
como se emanassem diretam ente de Nós” e trate os in­
feriores com consideração. (3) A terceira é a coragem. A
verdadeira coragem é posta em contraste com “ atos
bárbaros de arder o sangue” , sendo definida como
“jam ais desprezar um inferior ou tem er um superior. Os
que assim prezam a verdadeira coragem deverão nas suas
relações diárias pôr em prim eiro lugar a bondade e
procurar conquistar o am or e a consideração dos outros” .
(4) A quarta recomendação* é a advertência contra
“ m anter o compromisso nas relações privadas” , e (5) a
quinta é a admonição por ser frugal. “ Se não fizerdes da
sim plicidade o vosso objetivo, tornar-vos-eis efeminados e
frívolos e adquirireis gosto pelos hábitos sabaríticos e
extravagantes; acabareis por vos tom ardes egoístas e
sórdidos e m ergulhareis no último grau de baixeza, de
modo a que nem a lealdade nem a coragem adiantarão
p ara salvar-vos do desprezo do m undo . . . Atorm entados
de angústia, temerosos de que ela se desencadeie, nestes
termos reiteramos Nosso aviso.”
O parágrafo final do Edito denom ina esses cinco
preceitos “o G rande Cam inho do Céu e d a T erra e a Lei
universal d a hum anidade” . Constituem eles “ a alm a de
Nossos soldados e m arinheiros” . E, alternativam ente, “ a
alm a” desses cinco preceitos “é a sinceridade” . Se o cora­
ção não for sincero, as palavras e os atos, por melhores
que sejam, não passam de ostentação e de nada valem. É
só o coração ser sincero que tudo poderá ser realizado. Os

182
cinco preceitos serão, deste modo, “ fáceis de respeitar e
praticar” . É caracteristicam ente japonês que a sin­
ceridade seja acrescentada no fim, após todas as virtudes
e obrigações terem sido conjeturadas. Ao contrário dos
chineses, os japoneses não baseiam todas as virtudes nos
estímulos do coração benigno. Estabelecem prim eiro o
código de deveres e em seguida acrescentam, ao fim, a
exigência de que sejam cum pridos de todo coração, com
toda a alma, com toda a energia e com toda a intenção.
A sinceridade tem o mesmo tipo de significado nos
ensinamentos da grande seita budista de Zen. No grande
compêndio do Zen, de Suzuki, fornece ele um diálogo
entre o discípulo e o Mestre:

M o n g e : A o que me parece, q u a n d o um leão investe sobre o con-


tendor, seja um a lebre ou um elefante, faz um exaustivo uso do seu p o ­
der. D iga-m e, por favor, que p o d e r é este?
M e s tr e : O espirito da sin cerid ad e (literalm en te, o p o d er de n ã o
enganar).
A sinceridade, isto é, não e n g an ar, significa " a p lic a r to d o o se r” ,
tec n ica m e n te c o n sid erad o com o “ to d o o ser em a ç ã o ” . . . em que n a d a
è m an tid o em reserva, n a d a é expresso sob disfarce, n a d a se d esperdiça.
Q u a n d o u m a pessoa vive d e sta fo rm a, se diz que é um fulvo leão, um
sím bolo de virilidade, sinceridade, devo tam en to , um ser div in am en te
hum ano.

Os significados japoneses especiais desta palavra


“ sinceridade” já foram referidos dè passagem. M a k o t o
não tem o mesmo significado que em inglês, sendo de a-
cepção mais am pla e menos ampla. Os ocidentais n u n ­
ca tardaram a se aperceber que o seu significado é bem
menos amplo do que na sua língua, tendo mesmo declara­
do que quando um japonês diz que alguém é insincero,
quer dizer apenas que a outra pessoa não concorda com
ele. Há certa verdade nisso, pois, cham ar alguém de
"sincero” no Japão nada tem de referente a se ele esteja
agindo “ genuinam ente” de acordo com am or ou ódio,
decisão ou assombro, que predom inem em sua alma. O
gênero de aprovação expresso pelos americanos ao
dizerem “ Ele se mostrou sinceram ente contente em ver­
me” , “Ele se m ostrou sinceram ente satisfeito” é
proscrito no Japão. Dispõem eles de um a série de ex­
pressões proverbiais que lançam escárnio sobre tal
“ sinceridade” . Dizem eles, sardônicos: “ Cuidado com a
rã que quando abre a boca revela todo o seu interior” ,
“Como um a romã, que quando escancara a boca m ostra

183
tudo que está dentro” , constitui um a vergonha para um
hómem “ proferir impulsivamente os seus sentim entos” ,
pois, assim fica “ exposto” . Tais associações com “ sin­
ceridade” , tão im portantes nos Estados Unidos, nada re ­
presentam quanto ao significado desta pafãvra no Japão.
Q uando o rapaz japonês acusou o m issionário americano
de insinceridade, jam ais lhe ocorreu considerar se o
americano experimentou “ genuinam ente” assom bro com
relação ao plano do pobre moço de ir p ara os Estados
Unidos sem nada de seu. Q uando os estadistas japoneses
na últim a década acusaram os Estados Unidos e a In ­
glaterra de insinceridade — como constantem ente o
fizeram — nem sequer cogitavam de se os países oci­
dentais estariam agindo de m aneira diversa do que
sentiam na realidade. Não estavam nem mesmo os
acusando de serem hipócritas — o que teria sido um a
acusação de im portância secundária. Igualm ente, quando
o Edito aos Soldados e M arinheiros afirm a que “ a sin­
ceridade é a alm a destes preceitos” , não está significando
que a virtude efetivadora das demais seja um a auten­
ticidade de alm a que leve um homem a agir e falar em
conformidade com os próprios estímulos interiores. Não
quer dizer certam ente que ele esteja sob a imposição de
ser genuíno, por m ais que as suas convicções difiram das
dos outros.
No entanto, o m akoto tem as suas acepções positivas
no Japão, e um a vez que os japoneses tão fortem ente enfa­
tizam o papel ético deste conceito, torna-se urgentem ente
necessário que os ocidentais compreendam o sentido em
que eles o utilizam. O sentido básico japonês do m akoto
está bem ilustrado na H i s t ó r i a d o s q u a r e n t a e s e t e r o n in s .
A “ sinceridade” nesta narrativa é um sinal de mais,
acrescentado ao giri. “ Giri mais m akoto” é posto em
contraste com “ sim plesm ente giri” , e significa “giri como
exemplo para a eternidade dos tem pos” . Na expressão ja ­
ponesa atual, “ m akoto é o que o faz p erd u rar” . O “ o”
nesta expressão refere-se, segundo o contexto, a qualquer
preceito do código japonês ou atitude estipulada no
Espírito Japonês.
O uso nos campos de recolocação japonesa durante a
guerra era exatam ente paralelo ao que vigorava nos
Q u a r e n t a e s e t e r o n in s , dem onstrando claram ente a
quanto se estende a lógica e quão oposto ao uso
americano o significado pode tornar-se. A acusação

184
comum do issei pró-japonês (im igrantes americanos
nascidos no Japão) contra os nisseis pró-Estados Unidos
(imigrantes de segunda geração) era a de que careciam de
makoto. Por outro lado, os isseis alegavam que esses
nisseis não possuíam a qualidade de alm a que fazia o
Espírito Japonês — conforme fora oficialmente definido
no Japão durante a guerra — “ perd u rar” . Os isseis não
tinham a m ínim a intenção de afirm ar que o pró-
americanismo de seus filhos fosse hipócrita. Longe disso,
pois as acusações de insinceridade foram tan to mais
convictas quando os nisseis alistaram -se como voluntários
no exército norte-am ericano, tornando-se assaz aparente
p ara todos que o apoio ao seu país de adoção fora in­
duzido por um entusiasm o genuíno.
Um sentido básico de “ sinceridade” , segundo o uso
japonês, consiste, pois, no empenho de seguir a “ estrada”
traçada pelo código japonês e pelo Espírito Japonês.
Q uaisquer sentidos particulares que o m a k o t o tenha em
contextos especiais, sempre poderá ser entendido como
louvor a alguns aspectos acordes do Espirito Japonês e
bem aceitos postos de orientação no m apa das virtudes.
U m a vez aceito o fato de que “ sinceridade” não possui o
sentido americano, passa a ser um a palavra ex­
trem am ente útil de ser assinalada em todos os textos ja ­
poneses. Quase infalivelmente identifica as virtudes posi­
tivas de fato salientadas pelos japoneses. O m akoto
constantem ente é utilizado p ara elogiar um a pessoa que
não seja interesseira. Constitui um reflexo da grande
condenação sobre auferição de lucros pronunciada pela
ética japonesa. O lucro — quando não seja um a conse­
qüência natural da hierarquia — é julgado como sendo o
resultado de exploração e o interm ediário que se desviou a
fim de auferir lucro do seu trabalho transform a-se no
odiado agiota. Ê sempre apontado como “ falto de sin­
ceridade” . Do mesmo modo, m akoto costum a ser usado
como term o elogioso p ara o hom em livre de paixão, o que
vem espelhar as idéias japonesas de autodisciplina. Um
japonês digno de ser considerado sincero, igualmente,
jamais descam ba p ara o perigo de insultar um a pessoa
que não pretende provocar p a ra agressão, o que vem
espelhar o seu dogm a de que um a pessoa tanto é res­
ponsável pelas conseqüências m arginais de seus atos
como pelo próprio ato. Finalm ente, somente um makoto
pode "dirigir o seu povo” , pôr em uso efetivo suas a p ­

185
tidões, livre de conflito psiquico. Esses três sentidos e um a
m ultidão de outros assinalam com toda a clareza a hom o­
geneidade da ética japonesa, refletindo o fato de que
somente se pode ser eficiente e sem tergiversações no Ja ­
pão quando se cum pre o código.
U m a vez sendo estes os sentidos d a “ sinceridade” ja ­
ponesa, esta virtude, não obstante o Edito e o Conde
O kum a, não simplifica a ética japonesa, não estabelece
um a “ base” p ara a sua m oralidade, nem lhe confere um a
“ alm a” . Constitui um expoente que, devidam ente coloca­
do após qualquer núm ero, eleva-o a um a superior po­
tência. Um ? elevará indiferentem ente ao quadrado 9,
159, b ou x . D a m esm a m aneira, o m akoto eleva a um a
potência superior qualquer artigo do código japonês. Não
é como se fosse um a virtude separada, mas sim o en­
tusiasmo do entusiasta pelo seu credo.
Não im portando o que tenham os japoneses tentado
fazer ao seu código, perm anece ele atomístico, e como
princípio de virtude persiste o de equilibrar um a jogada,
em si m esm a boa, com um a outra, que tam bém o seja. É
como se houvessem organizado suas éticas como um jogo
de bridge. O bom jogador é o que aceita as regras e joga
de acordo com elas. Distingue-se do que não o é pelo fato
de ser disciplinado nos seus cálculos, sendo capaz de
secundar as mãos dos outros jogadores com inteiro
conhecimento do seu significado, segundo as regras do jo­
go. Joga, como dizemos nós, de acordo com Hoyle, h a ­
vendo inumeráveis m inúcias que precisa levar em consi­
deração a cada jogada. As contingências que possam
surgir estão previstas pelas regras do jogo, sendo a conta­
gem com binada com antecedência. As boas intenções, no
sentido americano, tornam -se irrelevâncias.
Em qualquer idioma, os contextos em que as pessoas
falam de perder ou ganhar am or-próprio lançam um jorro
de luz sobre a sua visão da vida. No Japão “respeitar-se”
consiste sempre em revelar-se o jogador cuidadoso. Não
significa, como em inglês, sujeitar-se conscientemente a
um digno padrão de conduta — não bajular, não m entir,
não fornecer falso testem unho. No Japão, a dignidade
{ jic h o ) é literalm ente “ um ser pesado” e o seu oposto “um
ser leve e flutuante” . Q uando um homem diz “Você deve
respeitar-se” , quer dizer “ Você deve ser arguto ao avaliar
todos os fatores envolvidos na situação e nada fazer que
provoque críticas ou com prom eta as suas possibilidades

186
de sucesso” . “ Respeitar-se” costum a significar exa­
tam ente a conduta oposta ao sentido prevalecente nos Es­
tado Unidos. U m em pregado diz “Devo respeitar-m e
(jicho)” , o que significa não que ele deva firm ar-se nos
seus direitos e sim que nada deva dizer aos patrões que lhe
possa causar problem as. “ Você deve respeitar-se’ tinha
este mesmo sentido, igualmente, em política. Q ueria dizer
que uma “ pessoa de peso” não poderia respeitar-se caso
se entregasse a algo tão tem erário como “ pensam entos
perigosos” , não implicando, como nos Estados Unidos,
em que mesmo sendo os pensam entos perigosos, a
dignidade de um homem exige que ele pense de acordo
com o seu esclarecimento e a própria consciência.
“ Você deve respeitar-se” acha-se constantem ente nos
lábios dos pais quando advertem seus filhos adolescentes,
num a referência à obediência ao decoro e ao atendim ento
às expectativas dos demais. Deste modo, um a moça é
exortada a sentar-se sem mexer-se. as pernas devidamente
colocadas e um rapaz, a disciplinar-se, a aprender a
atentar p ara as oportunidades cedidas pelos outros, “pois
agora é a ocasião que decidirá o seu futuro” . Q uando um
progenitor diz-lhes: “ Você não procedeu como uma
pessoa decente” , significa que estão sendo acusados de
uma im propriedade e não de um a falta de coragem de
lutarem por seu direito conforme o concebem.
Um fazendeiro que não pode pagar sua dívida ao
agiota, diz de si mesmo “Eu deveria ter tido dignidade” ,
não querendo isto dizer que esteja se acusando de in­
dolência ou adulação ao credor. Significa é que deveria ter
previsto a emergência e sido mais ponderado. Um homem
de prestígio num a comunidade declara “ M inha dignidade
exige isto” , não querendo dizer que deva viver de acordo
com certos princípios de sinceridade e probidade e sim,
que é o seu dever m anipular a questão com toda a consi­
deração pela posição de sua família, lançando, pois, no
caso, todo o peso da sua posição social.
Um executivo que diz de sua firm a “ Devemos
dem onstrar dignidade” está querendo dizer que o tino e a
vigilância deverão ser redobrados. Alguém que discuta a
necessidade de vingar-se fala em "desforrar-se com
dignidade” , sem que isto se refira a am ontoar carvões
acesos sobre a cabeça do inimigo ou a qualquer regra
moral que pretenda seguir. Eqüivale a dizer “exigirei um a
vingança perfeita” , isto é, meticulosam ente planejada e

187
aproveitando cada fator da situação. Em japonês um a das
expressões mais violentas é "d o b rar dignidade com
dignidade” e significa ser ponderado no m ais alto grau,
jam ais saltando p ara um a conclusão precipitada, cal­
culando meios e modos no sentido de que nem m ais nem
menos esforço seja despendido do que o estritam ente
necessário p ara atingir o objetivo.
Todos esses sentidos de dignidade ajustam -se'à visão
japonesa da vida como um m undo em que nos movemos
com grande cuidado, “ de acordo com Hoyle” . Esta
m aneira de definir dignidade não perm ite que se alegue
um alibi para o fracasso na base das boas intenções. Cada
jogada tem as suas conseqüências e não se pode agir sem
avaliá-las. Ê m uito correto ser generoso, mas deve-se
antever que o recebedor dos seus favores sentirá que foi
levado a “ receber um o r i ' . É preciso cautela. Por per-
missível que seja criticar-se outrem , apenas se deve fazê-lo
se se pretende arcar com todas as conseqüências do seu
ressentimento. U m a zom baria tal como a de que foi
acusado o missionário americano pelo jovem artista é
inadmissível exatam ente porque as intenções do prim eiro
eram boas; o que ele não levou em conta foi todo o alcance
da sua jogada no tabuleiro de xadrez. Algo de in ­
teiram ente indisciplinado, no modo de ver japonês.
A acentuada identificação de ponderação com dig­
nidade pressupõe, portanto, vigilância de todos os indí­
cios observáveis nos atos dos outros e um a viva impressão
de que os demais estão dispostos p a ra julgar. “A dig­
nidade se cultiva (o jicho é devido)” , dizem eles, “ por
causa da sociedade” . “ Se não houvesse sociedade não
seria necessário respeitar-se (cultivar o jicho)” . São estas
as manifestações extremas de um a sanção externa para a
dignidade, as quais não levam em conta as sanções in­
ternas p ara um a conduta apropriada. Tal como os ditos
populares de muitos países, exageram elas o caso, pois os
japoneses às vezes reagem tão violentam ente quanto
qualquer puritano a um a acum ulação pessoal de culpa. O
fato é, cohtudo, que as suas manifestações extremas
assinalam corretam ente onde incide a ênfase no Japão,
mais n a im portância da vergonha do que na da culpa.
Nos estudos antropológicos de culturas diferentes, é
im portante a distinção entre as que profundam ente enfa­
tizem a vergonha ou a culpa. U m a sociedade que incute
padrões absolutos de m oralidade e orienta-se no sentido

188
do desenvolvimento de um a consciência por parte do
homem é um a cultura de culpa por definição, no entanto,
alguém pode num a sociedade dessas, como a dos Estados
Unidos, padecer ainda m ais na vergonha quando se auto-
acusa de grosserias que nada têm de pecados. Poderá
mostrar-se extrem am ente m ortificado por não estar vesti­
do de acordo com a ocasião ou devido a algum lapso de
língua. Num a cultura em que a vergonha constitua uma
sanção im portante, as pessoas m ortificam-se por atos que
esperamos nelas despertem culpa. Tal m ortificação po
derá ser m uito intensa, não podendo ser aliviada, como a
culpa, através de confissão e expiação. Quem peca pode
conseguir alívio desabafando. O expediente da confissão é
usado na nossa terapia secular e por muitos grupos reli­
giosos, que outrossim pouco têm em comum. Sabemos
que traz alívio. O nde a vergonha constitui sanção im ­
portante. não se experim enta alívio quando se divulga
uma transgressão, ainda que seja a um confessor. Con­
tanto que a sua m á conduta não “ transpire p ara o
m undo", não precisará inquietar-se, afigurando-se-lhe a
confissão tão somente como um m odo de criar problemas.
As culturas de vergonha, portanto, não prescrevem
confissões ainda que aos deuses. Dispõem mais de
cerimônias p ara boa sorte do que p ara expiação.
As verdadeiras culturas de vergonha enfatizam as
sanções externas p ara a boa conduta, opondo-se às verda­
deiras culturas de culpa, que interiorizam a convicção do
pecado. A vergonha é um a reação à crítica dos demais.
Alguém pode envergonhar-se ou quando é ridicularizado
abertam ente ou quando cria p ara si mesmo a fantasia de
que o tenha sido. Em qualquer dos casos trata-se de uma
sanção poderosa. Requer, entretanto, um a platéia, ou
pelo menos que se fantasie um a. A culpa, não. Num país
onde a honra significa viver de acordò com a imagem que
se tem de si próprio, pode-se padecer de culpa, ainda que
todos ignorem a transgressão, sendo aliviados os seus
sentimentos a tal respeito através d a confissão de seu
pecado.
Os antigos puritanos que se estabeleceram nos E sta­
dos Unidos procuraram basear toda a sua m oralidade na
culpa e bem sabem os psiquiatras os problem as que os
americanos modernos têm com as suas consciências. A
vergonha, no entanto, é um a carga cada vez m aior nos
Estados Unidos, sendo a culpa não tão extrem adam ente

189
sentida quanto em gerações anteriores. É isto aqui in ­
terpretado como um relaxam ento dos costumes. H á m uita
verdade nisso, sem dúvida porque não esperamos que a
vergonha perfaça o trabalho pesado d a m oralidade. Não
atrelam os a intensa m ortificação pessoal que acom panha
a vergonha ao nosso sistem a fim dam ental de m oralidade.
Os japoneses o fazem. Um fracasso em seguir os seus
visíveis marcos de boa conduta, um fracasso em avaliar
obrigações ou prever contingências constitui vergonha
(h a jí). A vergonha, dizem eles, é a raiz d a virtude. Quem é
sensível a ela cum prirá todas as regras de boa conduta.
“Um hom em que conhece a vergonha” é por vezes tra ­
duzido por “virtuoso” ou "h onrado” . A vergonha ocupa o
mesmo lugar de autoridade na ética japonesa que um a
“consciência lim pa” , “ estar bem com D eus” e a abs­
tenção de pecado têm na ética ocidental. M uito lógico,
portanto, que não se vá ser punido após a morte. Os ja ­
poneses — à exceção dos sacerdotes conhecedores dos
sutras*indianos — estão m uito pouco fam iliarizados com
a idéia de reencarnação dependente do m érito de cada um
na vida presente, e — à exceção de alguns convertidos
cristãos bem instruídos — não aceitam recom pensa ou
punição após a morte e a idéia de céu ou inferno.
A prim azia da vergonha na vida japonesa significa,
como em qualquer tribo ou país onde a vergonha seja pro­
fundam ente sentida, que cada um aguarda o julgam ento
de seus atos por parte do público. Será apenas questão de
fantasiarem qual vá ser o veredicto, o fato é que se
orientam com relação ao mesmo. Q uando todos estão
disputando o jogo através das mesmas regras e apoiando-
se m utuam ente, os japoneses conseguem m ostrar-se
despreocupados e tranqüilos. O fanatism o na disputa do
jogo vem quando sentem que este encerra a “m issão” do
Japão. São extrem am ente vulneráveis quando tentam
exportar as suas virtudes p ara as terras estrangeiras, onde
não se firmam os seus marcos de boa conduta. Falharam
na sua missão de "boa vontade” ao Extrem o-O riente,
sendo assaz genuíno o ressentim ento experim entado por
muitos deles com as atitudes dos chineses e filipinos a seu
respeito.
Os indivíduos japoneses que vieram p ara os Estados
Unidos, a fim de estudarem ou a negócios sem serem m o­
tivados por sentimentos nacionalistas, am iúde sentiram
intensam ente o “ fracasso” de sua cuidadosa educação

190
quando tentaram viver num m undo menos rigidam ente
demarcado. Suas virtudes, sentiram eles, não cons­
tituíram bom m aterial de exportação. Não é que tenham
tentado comprovar o ponto de vista universal de que seja
difícil alguém m udar de cultura. T entam é dizer algo
mais, às vezes contrastando as dificuldades d a própria
adaptação à vida am ericana com as dos chineses ou
siameses conhecidos seus. O problem a japonês específico,
segundo eles, consiste em terem sido educados p ara
■ nfiar num a segurança que depende do reconhecim ento
por p arte dos demais das nuanças d a sua observância de
um código. Q uando os estrangeiros deslem bram -se de tais
justezas, os japoneses m ostram -se perplexos. Com em ­
penho procuram eles encontrar meticulosas justezas
similares, de acordo com as quais vivam os ocidentais e,
tiao as encontrando, falam alguns d a raiva que sentem e
étitros de como se acham assustados,
i Ninguém descreveu m elhor tais experiências num a
n ilu ra menos exigente do que a Srta. M ishima na .sua
« tobiografia, M y N a r r o w I s l e . * Ela em penhara-se
avidamente em vir p ara um a universidade am ericana,
combatendo a relutância de sua fam ília conservadora em
aceitar o o n de um a bolsa de estudos am ericana. Foi para
^Vellesley. Os professores e as moças, n a rra ela, m os­
trar am-se m aravilhosam ente gentis, o que, no entanto, se­
gundo sua m aneira de sentir, só serviu p ara dificultar.
/‘Meu orgulho de am abilidade pura, um a característica
universal dos japoneses, foi am argam ente ferido. Fiquei
Furiosa comigo mesm a por não saber como portar-m e
oondignamente aqui e com o meio, que parecia zom bar da
m inha educação passada. Com exceção desse sentimento
de raiva, vago, porém, profundam ente arraigado, não h a ­
via mais emoções em m im .” Sentiu-se ela “ um ser caído
de outro planeta, com sentidos e sentimentos inúteis neste
outro mundo. M inha educação japonesa, a exigir ele­
gância de cada movimento físico e de cada palavra
pronunciada que estivesse de acordo com a etiqueta,
tornava-m e extrem am ente sensível e constrangida neste
ambiente, onde me achava com pletam ente cega,
socialmente falando” . Só dois a três anos depois é que ela
se descontraiu e começou a aceitar a gentileza que lhe era
propiciada. Os americanos, concluiu ela, vivem com o que

* M ishim a. S u m ieS eo , M y N a r r o w I s le , 1941, p. 107.

191
ela denom ina de “ fam iliaridade refm ada” . M as a verdí. ' 1
é que “ a fam iliaridade, tid a como atrevim ento, havia si->^
m orta em m im desde os três anos de idade” .
A Srta. M ishima com para as moças japonesas qt
conheceu na Am érica com as chinesas e os seus
comentários revelam como cs Estados Unidos as afetaram
diferentemente. As chinesas tinham “ segurança e socia­
bilidade, de todo ausentes na m aioria das m oças ja­
ponesas. Essas chinesas de classe alta pareceram -m e às
mais afáveis criaturas da terra, possuindo cada um a delis
um a graça próxim a da dignidade régia, como se fossem as
verdadeiras senhoras do m undo. Seu destem or e se­
gurança soberba, im perturbável mesmo nesta grande ci­
vilização de m aquinaria e velocidade, faziam grandè
contraste com a nossa tim idez e hipersensibilidade de ja}-
ponesas, revelando um a diferença fundam ental de for­
m ação social” .
A Srta. M ishima, como m uitas outras japonesas
sentia-se como se fosse um a exímia tenista atuando num
torneio de c r o q u e t . Sua perícia sim plesm ente nãq
adiantava. O que aprendera nao se aplicava ao novo mei*>.
A disciplina a que se subm etera era inútil. Os americanas
prescindiam dela.
U m a vez tenham os japoneses aceito, no mínimo
grau que seja, as regras menos codificadas que governam
a conduta nos Estados Unidos, encontram dificuldade em
im aginar sua capacidade em subm eter-se novamente às
restrições de sua antiga vida no Japão. Xs vezes referem-se I
a elas como um paraíso perdido, outras como uns
“ arreios” , outras como um a “ prisão” , outras como um
“ pequeno vaso” contendo um a árvore ana. E nquanto as
raízes do pinheiro em m iniatura restringiam -se aos limites
do vaso, o resultado era um a obra de arte que adornava
um encantador jardim . U m a vez, porém , plantado en>
solo aberto, o pinheiro anão jam ais poderia ser tranr
plantado de volta. Sentiam-se, pois, incapazes de voltar
ser ornam entos daquele jardim japonês. Não mais sa
tisfariam as exigências. Haviam experim entado n a sua
form a mais pungente o dilem a japonês da virtude.

192
11. A AUTODISCIPLINA

As autodisciplinas de um a cultura têm sempre pro­


babilidades de parecerem irrelevâncias aos observadores
’e outro país. Por mais claras que sejam as técnicas disci-
niinares, p ara que dar-se todo esse trabalho? Por que
^forcar-se pendurado em ganchos, concentrar-se no
■ Vnbigo ou jam ais despender o seu capital? por que
■ oncentrar-se num a dessas austeridades e nao exigir
controle algum sobre impulsos que para o de fora são de
fato im portante e necessitam de treino? Q uando o
observador pertence a um país que não ensina métodos
técnicos de autodisciplina e está estabelecido em meio a
um povo que dá grande im portância a eles, a possi­
bilidade de desentendim ento chega ao auge.

193
Nos Estados Unidos, os métodos técnicos e tr a ­
dicionais de autodisciplina são relativam ente atrasados. <$
suposição am ericana é a de que um hom em , um a v«.„
tenha avaliado as possibilidades de sua vida pessoal, irá
disciplinar-se, se assim for necessário, a fim de alcançii
um objetivo escolhido. Se o consegue ou não, d e p e n d e ^
de sua ambição, consciência, ou “ instinto dé trab alh o ” ,-
conforme Veblen o denominava. Será capaz de subm eter-
se a um regime estóico, a fim de jogar num a equipe de
futebol, ab rir m ão de todas as diversões, a fim de tornar-
se um músico ou obter êxito no seu negócio. Evitará o mal
e a frivolidade por causa de sua consciência. Mas, nos
Estados Unidos, a autodisciplina em si mesma, como um
aprendizado técnico, não é coisa que se aprenda como
um a aritm ética distanciada de sua aplicação em d e­
term inado caso. Tais técnicas, quando ocorrem nos E sta­
dos Unidos, são ensinadas por certos chefes de culto euro­
peus ou por Swamis que ensinam invenções fabricadas na
índia. Mesmo as autodisciplinas religiosas de m editação e
prece, como foram ensinadas e praticadas por Santa
Teresa ou São João da Cruz, pouco sobreviveram nos;
Estados Unidos.
A suposição japonesa, entretanto, é a de que um ra
paz ao fazer seus exames de escola m édia, um disputant
de um jogo de esgrima ou um a pessoa apenas vivendo
um a existência de aristocrata necessita de um auto-
treinam ento bem diverso do que dele será exigido quando
for testado. Não im portando os fatos de que se tenha
abarrotado p ara o seu exame, por mais hábil que seja no
m anejo da espada, conquanto meticulosas as suas for­
malidades, terá de pôr de lado os livros, a espada e as
aparências em público e subm eter-se a um tipo especial
de treinam ento. Não são todos os japoneses que se submen
tem ao treinam ento esotérico, é claro, mas, mesmo p a rQ
os que não o fazem, a fraseologia e a prática da au to ­
disciplina dispõem de um lugar distinto na vida. Os ja ­
poneses de todas as classes julgam-se a si mesmos e aos
outros nos termos de toda um a série de conceitos que d e­
pendem de sua noção de autocontrole e -autodomínio
técnicos generalizados.
Seus conceitos de autodisciplina podem ser divididos
esquem aticam ente naqueles que conferem competência e
nos que conferem algo mais. Este algo mais denominarei;
perícia. Os dois acham -se divididos no Japão e visam

194
alcançar um resultado diferente n a alm a hum ana,
ssuem um fundam ento lógico diferente, sendo
conhecidos por sinais diferentes. Já foram descritos
muitos exemplos do prim eiro tipo, com petência auto-
ciplinar. O oficial do exército que disse dos seus
mens, entregues a m anobras de tem po de paz durante
sessenta horas, com oportunidades de apenas dez m inutos
para dorm ir, que ‘‘dorm ir eles sabiam , precisavam era de
treino para ficar acordados” , estava apenas, a despeito do
que p ara nós se afigura como extrem as exigências, al­
m ejando uma conduta competente. Estava enunciando
um princípio bastante aceito de economia psíquica ja ­
ponesa de que a vontade deve reinar suprem a sobre o
corpo infinitam ente ensinável e que este não possui leis de
bem-estar, desprezadas pelo hom em por sua própria
conta. Toda a teoria japonesa de “ sentimentos hum anos”
repousa sobre esta pressuposição. Q uando se tra ta das
questões realm ente sérias d a vida, as exigências do corpo,
por mais essenciais à saúde, por m ais destacadam ente
aprovadas e cultivadas, deverão ser drasticam ente
subordinadas. Seja a que preço for de autodisciplina, é
preciso evidenciar o Espírito Japonês.
Constitui violentação, no entanto, p ara as suposições
japonesas, expressar desta m aneira a sua posição. Pois
“ seja a que preço for de autodisciplina” significa no
emprego comum americano quase o mesmo que “ seja a
que preço for de auto-sacrificio” . Costum a tam bém sig­
nificar “ seja a que preço for de frustração pessoal” . A
teoria am ericana de disciplina — seja im posta de fora ou
introjetada como consciência censuradora — consiste em
que desde a infância os homens e as mulheres têm de ser
socializados pela disciplina, livremente aceita ou imposta
^or autoridade. Isto constitui um a frustração. O in­
divíduo ressente-se deste cerceam ento dos seus desejos.
Tem de sacrificar-se e inevitavelmente dentro de si
despertam emoções agressivas. Esta não é apenas a
opinião de muitos psicólogos profissionais americanos. Ê
tam bém a filosofia dentro da qual cada geração é educada
pelos pais em casa, sendo, portanto, em grande parte
verdadeira em nossa sociedade. U m a criança “ tem d e”
ser posta na cama em determ inada hora e ela aprende
pela atitude dos pais que ir para a cam a é um a frustração,
iem onstrando em incontáveis lares, todas as noites, o seu
ressentimento, através de verdadeiras contendas. Já se

195
trata de um joVem am ericano doutrinado, que considera
dorm ir algo que um a pessoa “tem de” fazer e d á seus
m urros em ponta de faca. Sua m ãe determ ina tam bém
existirem certas coisas que ele “ tem de” comer. T anto po­
derá ser aveia, espinafre, pão ou suco de laranja, o fato é
que a criança am ericana aprende a erguer um protesto
contra os alimentos que “tem d e” comer. A com ida que é
“boa p a ra ” ele, leva-o a concluir, pois, que não é gostosa.
Eis um a convenção am ericana inexistente no Japão, como
tam bém em alguns países ocidentais como a Grécia. Nos
Estados Unidos, tornar-se adulto significa emancipar-se
das frustrações de comida. U m a pessoa crescida pode
comer o alimento gostoso, ao invés do que é bom para ele.
Essas idéias acerca de sono e comida, no entanto, são
insignificantes em com paração com a totalidade do
conceito ocidental de auto-sacrifício. Ê doutrina padrão
ocidental que os pais façam grandes sacrifícios pelos
filhos, as esposas sacrifiquem suas carreiras por seus
maridos, os m aridos sacrifiquem a sua liberdade p ara se
tornarem arrimos de família. Ê difícil p ara os americanos
conceberem que em algum as sociedades os hom ens e as
m ulheres não adm itam a necessidade do auto-sacrificio.
Não obstante, isto é verdadeiro. Em tais sociedades, asse­
veram todos que os pais acham naturalm ente os filhos
encantadores, que as m ulheres preferem o casam ento a
qualquer outro caminho e que um hom em ganhando o
sustento de sua fam ília está entregue à sua ocupação fa ­
vorita como caçador ou jardineiro. Por que falar em auto-
sacrifício? Q uando a sociedade enfatiza essas in­
terpretações e perm ite que as pessoas vivam de acordo
com elas, a idéia de auto-sacrifício nem chega a ser a d ­
missível.
Em outras culturas, todas essas coisas que um a
pessoa faz para os outros à custa de tal “ sacrifício” nos
Estados Unidos são consideradas como perm utas recí­
procas. Serão ou investimentos a serem posteriorm ente
pagos ou retribuições por préstim o já recebido. Nesses
países até mesmo as relações entre pai e filho poderão ser
encaradas dessa m aneira, e o que o pai faz pelo filho nos
primeiros anos do rapaz será retribuído por este ao
progenitor, na vida posterior do velho e após a sua morte.
Todas as relações comerciais constituem, igualmente, um
contrato popular que, em bora costume assegurar equi­
valência em espécie, do mesmo modo obriga um a parte a

196
proteger e a outra a servir. Se os benefícios dos dois lados
são considerados vantagens, nenhum a parte encara seus
deveres como um sacrifício.
A sanção por trás de serviços prestados a outros no
Japão é sem dúvida a reciprocidade, tanto em espécie,
como em perm uta hierárquica de responsabilidades
complementares. A posição m oral do auto-sacrifício é,
portanto, m uito diferente da existente nos Estados U ni­
dos. Os japoneses sempre se opuseram especificamente
aos ensinam entos dos missionários cristãos a respeito do
sacrifício. Argum entam que um hom em bom não pode
achar frustrâneo p ara si o que faz p ara os outros.
“Q uando fazemos as coisas que vocês cham am de auto-
sacrifício” , disse um japonês p ara mim, “é porque dese­
jamos dar ou porque seja bom dar. Não nos lam entam os.
Por mais que renunciemos a coisas pelos outros, não
achamos que tal doação nos eleve espiritualm ente ou que
devêssemos ser ‘recom pensados’ por isto” . Um povo que
organizou suas vidas em torno de tão complicadas obri­
gações recíprocas como os japoneses naturalm ente acha
irrelevante o auto-sacrifício. Em penham -se ao máximo no
sentido de cum prir obrigações extremas, mas a sanção
tradicional de reciprocidade impede-os de sentir a auto-
comiseração e farisaísmo que surge tão facilm ente em
países mais individualistas e competitivos.
Os americanos, a fim de entenderem as práticas
autodisciplinárias comuns do Japão, têm, portanto, de
efetuar um a espécie de operação cirúrgica em nossa idéia
de “ autodisciplina” . Temos de decepar os acréscimos de
“ auto-sacrifício” e “ frustração” que se apinharam em
torno do conceito em nossa cultura. No Japão a pessoa
disciplina-se p ara ser um bom jogador e a atitude ja ­
ponesa implica n a submissão ao treino no mesmo grau de
consciência do sacrifício em relação a alguém que jogue
bridge. Não há dúvida de que o treino seja rigoroso, o
que é, porém, inerente à natureza das coisas. A criança
nasce feliz, porém, sem capacidade de “saborear a vida” .
Somente através de um treinam ento m ental (ou auto­
disciplina, s h u y o ) pode um homem ou m ulher adquirir o
poder de viver plenam ente e “ alcançar o gosto” d a vida. A
expressão é geralmente traduzida como “ somente assim
poderá ele apreciar a vida” . A autodisciplina “cria a
barriga (a sede do controle)” , am pliando a vida.

197
A autodisciplina “ com petente” no Japão possui o
fundam ento lógico de que aprim ora a conduta de alguém
na sua própria vida. Q ualquer impaciência que se possa
sentir enquanto seja novo no treinam ento passará, dizem
eles, pois finalm ente se d a rá um a apreciação ou desis­
tência. O aprendiz cuida devidamente do seu negócio, o
rapaz ap ren d e/W ó (jiujitsu), a jovem esposa acomoda-se
às exigências d a sogra; bem se com preende que nos es­
tágios iniciais de treinam ento, o hom em ou a m ulher
desabituados às novas exigências queiram libertar-se
deste shuyo. Seus pais conversarão com eles, dizendo-
lhes: “ O que querem vocês? Para gozar a vida é preciso
treino. Se desprezam tal coisa, abandonando qualquer
treinam ento, como conseqüência natural, serão infelizes.
Em tal caso, m inha tendência não será protegê-los contra
a opinião pública” . Shuyo, n a expressão que tão am iúde
utilizam , faz desaparecer “ a ferrugem do corpo” . T orna o
homem um a espada afiada e brilhante, exatam ente, sem
dúvida, o que ele pretende ser.
Toda essa ênfase em como a autodisciplina resulta
em vantagem própria não significa que os atos extremos
exigidos amiúde pelo código japonês não sejam ver­
dadeiram ente sérias frustrações e que estas não con­
duzam a impulsos agressivos. Tal distinção é a que os
americanos compreendem em jogos e esportes. O cam ­
peão de bridge não reclam a do auto-sacrifício dele re­
querido p ara aprender a jogar bem. Não classifica de
“ frustradas” as horas que despendeu até tornar-se um
perito. Declaram os médicos, no entanto, que em alguns
casos a grande atenção necessária, quando se está
apostando alto ou participando de um a p artida de
campeonato, não deixa de relacionar-se às úlceras es­
tomacais e às tensões corporais excessivas. O mesmo
sucede ao povo no Japão. M as a sanção d a reciprocidade,
a par da convicção japonesa de que a autodisciplina
resulta em vantagem própria, torna fáceis para eles
muitos atos que se afiguram insuportáveis p ara os
americanos. A tentam m uito mais em proceder com
competência e permitem-se menos desculpas do que os
americanos. Nao projetam tão am iúde seus des­
contentam entos sobre bodes expiatórios e não costum am
entregar-se tanto a lam úrias por não alcançarem o que os
americanos cham am de felicidade m édia. Foram trein a­
dos p ara atentar m uito mais para a “ferrugem do corpo”
do que é comum entre os americanos.
Além e acim a d a autodisciplina “com petente” ,
encontra-se, além do mais, o plano da “ perícia”. As
técnicas japonesas deste últim o gênero n lo se têm feito
muito inteligíveis p ara os leitores ocidentais por in­
termédio dos escritores japoneses que sobre elas es­
creveram, tendo se m ostrado bastante desdenhosos a seu
respeito os estudiosos ocidentais especializados neste
assunto. As vezes têm -nas cham ado de “ excentricidades”.
Um erudito francês considera-as todas “um desafio ao
bom senso” , não passando a m aior das seitas dis-
ciplinares, o culto Zen, de “ um conjunto de solenes as­
neiras” . Contudo, os objetivos visados por essas técnicas
n io s io impenetráveis e na sua totalidade o assunto lança
um a luz considerável sobre a economia psíquica japonesa.
Longas séries de palavras japonesas designam o esta­
do mental que o perito em autodisciplina deverá alcançar.
Alguns desses termos são usados p ara atores, outros p ara
devotos religiosos, outros p ara esgrimistas, outros p ara
oradores, outros para pintores, outros p a ra m estres da
cerimônia do chá. Têm todos o mesmo sentido geral, por
isso usarei apenas a palavra m u g a , que vem a ser a pala­
vra em pregada no florescente culto de Zen-Budismo das
classes superiores. A descrição deste estado de perícia
consiste em assinalar as experiências, seculares ou reli­
giosas, em que “ não se verifica nenhum a brecha, nem
mesmo d a espessura de um cabelo” entre a vontade de um
homem e o seu ato. U m a descarga de eletricidade passa
diretam ente do pólo positivo p ara o negativo. Nas pessoas
que n io alcançaram perícia, é como se existisse um a tela
n io condutor a entre a vontade e o ato. Cham am a isto o
“ser observador” , o “ ser interferente” e, quando for ele
removido m ediante tipos especiais de treinam ento, o peri­
to perde toda a sensação de que “ estou fazendo isto” . O
circuito processa-se livremente. O ato é desem baraçado. É
“ singelo” . A açao reproduz inteiram ente o quadro for­
m ado pelo agente em sua mente.
Gente da mais comum visa a este tipo de “ perícia”
no Japão. Sir Charles Eliot, a grande autoridade inglesa
em budismo, n arra a respeito de um a escolar que
p ro cu ro u , u m c o n h e c i d o m i s s i o n á r i o d e T ó q u io ,

199
d e c la r a n d o q u e d e s e ja v a to m a r - s e c r is tã . Q uando lh e
in d a g a r a m as ra zõ es, resp o n d eu e la q u e a su a m a io r
v o n t a d e e r a s u b i r n u m a v iã o . A o s e r c o n v i d a d a a e x p l i c a r
a li g a ç a o e n t r e a v i o e s e o c r i s t i a n i s m o , r e v e l o u t e r e m - l h e
d ito q u e a n te s d e s u b ir n u m a v iã o d e v e r ia e la e s ta r c o m a
m e n te c a lm a e bem r e g u la d a , o q u e s o m e n te era a l­
ca n ç a d o a tr a v é s d o tr e in a m e n to r e lig io s o . A c h a v a que
e n tr e as r e lig iõ e s o c r is tia n is m o era p r o v a v e lm e n te a
m e l h o r , p o r is s o v i e r a p e d i r e n s i n a m e n t o .

Os japoneses não apenas associam m entalm ente


Cristianism o e aviões, como tam bém o treinam ento p ara
alcançar “ um a m ente calm a e bem regulada” com um
exame de Pedagogia, com a arte de fazer discursos ou com
um a carreira de estadista. O treinam ento técnico p ara
aquisição de singeleza se lhes afigura um a vantagem
indiscutível em quase todos òs empreendim entos.
M uitas civilizações aperfeiçoaram técnicas desse
gênero, porém, os objetivos e os métodos japoneses
possuem um caráter m arcante todo seu, o que vem a ser
especialmente interessante, pois grande núm ero daquelas
provém d a índia, onde são conhecidas como ioga. As
técnicas japonesas de auto-hipnotism o, concentração e
controle dos sentidos revelam ainda parentesco com p rá ­
ticas indianas. Verifica-se um a ênfase sim ilar no es­
vaziamento da mente, na imobilidade do corpo, em dez
mil repetições da m esm a frase, na fixação da atenção num
$ímbolo escolhido. Até mesmo a term inologia utilizada na
índia é ainda reconhecível. Além desse visível arcabouço
do culto, no entanto, a versão japonesa pouco tem em
comum com a hindu.
A ioga na ín d ia é um culto extrem ado de ascetismo.
É um a m aneira de alcançar a libertação do ciclo d a
reencarnação. O homem não tem salvação a não ser atra­
vés desta libertação, n i r v a n a , e o obstáculo no seu
caminho é o desejo hum ano. Tais desejos podem ser
eliminados um a vez definhados, afrontados e atuados
pela autotortura. Por esses meios o hom em pode alcançar
a santidade, atingindo a espiritualidade e a união com o
divino. A ioga é um modo de renunciar ao m undo d a
carne e escapar à rotina da futilidade hum ana, como

* Eliot, S ir C harles, J a p a n e s e B u d d h i s m . p. 286.

200
tam bém de obter poderes espirituais. A jornada em dire­
ção à m eta tan to m ais rápida será quanto m ais extremo o
ascetismo.
Tal filosofia é inexistente no Japão. M uito em bora
seja o Japão um a grande nação budista, as idéias de
transm igração e de nirvana jam ais fizeram parte d a fé
budista do povo. Essas doutrinas são aceitas pessoalmente
por alguns sacerdotes budistas, mas nunca influenciaram
o costume ou o pensam ento popular. Nenhum anim al ou
inseto é poupado no Japão porque o fato de m atá-lo
atingiria um a alm a hum ana transm igrada, sendo que as
cerimônias fúnebres e os rituais de nascim ento são puros
de quaisquer idéias de algum ciclo de reencam ações. A
transm igração não é um padrão japonês de pensamento.
Igualm ente, a idéia de nirvana não apenas nada significa
para o público em geral, como tam bém os próprios
sacerdotes m odificam-na a p artir da existência. Eruditos
sacerdotais declaram que um a vez tenha sido o homem
“ ilum inado” (s a t o r i ), já se encontra no nirvana; o nirvana
é aqui e agora, em pleno tem po, podendo “ ser visto” num
pinheiro ou num pássaro selvagem. Os japoneses sempre
se m ostraram desinteressados das fantasias de um a vida
futura. A sua mitologia fala de deuses, mas não d a vida
dos mortos. Chegaram mesmo a rejeitar as idéias budistas
de recompensas e punições diferenciais após a morte.
Qualquer um, até o m ais hum ilde agricultor, torna-se um
B uda quando morre. A designação apropriada p ara as
placas memoriais de fam ília no santuário doméstico é “os
Budas” . Nenhum a outra nação budista usa semelhante
linguagem, por conseguinte, quando um país se refere tão
audaciosam ente aos seus m ortos comuns, será bastante
compreensível que não prefigure m eta tão difícil como o
alcance do nirvana. Seja como for, quem se torna um
Buda não precisa dedicar-se a atingir a m eta d a finali­
dade absoluta através de um a perpétua m ortificação da
carne.
Igualm ente inexistente no Japão é a doutrina de que
a carne e o espírito são irreconciliáveis. A ioga é um a
técnica p ara eliminar o desejo e este tem sede n a carne.
Mas os japoneses não possuem este dogma. Os “ sen­
tim entos hum anos” não provêm do M aligno e parte da
sabedoria consiste no saboreio dos prazeres dos sentidos.
A condição única é a de se sacrificar aos deveres sérios da

201
vida. Tal princípio é levado ao seu extrem o lógico no tra ­
tam ento japonês do culto d a ioga: não apenas são
elim inadas as autotorturas, como tam bém o culto chega a
destituir-se de ascetismo. Até mesmo os “ ilum inados”
nos seus retiros, em bora fossem cham ados de eremitas,
habitualm ente se instalavam com conforto, em com ­
panhia das esposas e dos filhos em encantadores locais no
campo. A presença das esposas e mesmo o nascim ento de
filhos subseqüentes eram considerados de todo com ­
patíveis com a sua santidade. Na mais popular das seitas
budistas, os sacerdotes não deixam de casar-se e cons­
tituir família, pois o Japão jam ais aceitou com facilidade a
teoria de que o espírito e a carne sejam incompatíveis. A
santidade dos “ ilum inados” consistia nas suas meditações
autodisciplinares e n a sua simplificação d a existência.
Não envolvia o uso de vestes sujas, nem o fechar dos olhos
às belezas da natureza ou dos ouvidos à beleza dos ins­
trum entos de corda. Os seus santos podiam encher seus
dias com a composição de versos elegantes, com o ritual
da cerimônia do chá e com “observações” d a lua e do
florescer das cerejeiras. O culto Zen chega mesmo a
instruir seus devotos a evitarem “ as três insuficiências: de
roupa, de alimento e de sono’*.
O princípio decisivo d a filosofia ioga é tam bém
estranho ao Japão: o de que as técnicas de misticismo por
ela ensinadas conduzem o praticante a um a união ex­
tática com o Universo. O nde quer que tenham sido p ra­
ticadas no m undo as técnicas de misticismo, seja por po­
vos primitivos ou por dervixes m uçulm anos, iogues in­
dianos ou cristãos medievais, todos os que delas se utili­
zam quase universalm ente concordam, não im portando o
credo, em que se tornam “ unos com o divino” , ex­
perim entando um êxtase que “não é deste m undo” . Os
japoneses possuem as técnicas de misticismo desprovidas
do mesmo. Isto não significa que não experim entam
transe. Na verdade o fazem. Mas até mesmo o transe
encaram como um a técnica que treina o homem p ara a
“ singeleza” . Não o consideram como êxtase. O culto Zen
nem mesmo diz, como os místicos de outros países, que os
cinco sentidos ficam em suspensão du ran te o transe.
Afirmam eles que os “ seis” sentidos, através desta téc­
nica, são levados a um estado de extraordinária acuidade.
O sexto sentido está localizado n a m ente e o treinam ento

202
leva-o a preponderar sobre os cincos comuns, sendo que
gosto, tato, visão, olfato e audição recebem, por seu turno,
treinam ento especial d urante o transe. Consiste um dos
exercícios do grupo Zen em cuvír passos silenciosos, e ser
capaz de acompanhá-los acuradam ente, à m edida que
passam de um lugar p ara o outro ou distinguir odores
tentadores de comida — expressamente introduzidos —
sem interrom per o transe. Cheirar, ver, ouvir, tocar e pro­
var “ auxiliam o sexto sentido” e, neste estado, aprende-se
a tornar “todos os sentidos alertas” .
Trata-se, sem dúvida, de um treinam ento bastante
desusado e m »qualquer seita de experiência extra-
sensorial. M esmo em transe, tal praticante Zen não tenta
sair fora de si mesmo, e sim, segundo a frase dos antigos
gregos utilizada por Nietzsche, “ perm anece o que é e
conserva o seu nome cívico” . Existem m uitas vividas
expressões desta visão do assunto entre os ditos dos
grandes m estres budistas japoneses. Um dos melhQres é o
de Dogen, o grande fundador do culto do Soto de Zen, do
século XIII, que ainda é o m aior e o mais influente dos
cultos Zen. Falando de sua ilum inação (satori), diz ele:
“Verifiquei apenas que meus olhos achavam-se
horizontais, acim a do meu nariz perpendicular . . . Nada
há de misterioso (na experiência Zen). O tem po passa n a­
turalm ente, o sol erguendo-se a leste e a lua pondo-se a
oeste” . * Os textos Zen tam pouco adm item que a ex­
periência do transe confira outro poder além do hum ano
autodisciplinado. “ A Ioga alega que diversos poderes so­
brenaturais podem ser adquiridos através da m editação” ,
escreve um budista japonês, “ no entanto, o Zen não
sustenta nenhum absurdo sem elhante” .**
Desta forma, os japoneses lim pam do quadro-negro
todas as pressuposições sobre as quais se baseiam as p rá ­
ticas iogas na índia. O Japão, com um am or vital pela
finitude que faz lem brar os gregos antigos, considera as
práticas técnicas de ioga como um autotreinam ento para
a perfeição, um meio através do qual o hom em possa
obter aquela “ perícia” em que não existe a espessura de
um cabelo entre o agente e o seu feito. É um treino de
eficiência, de autoconfiança. Suas recompensas estão no

* N ukariya, K aiten. T h e R e lig io n o f t h e S a m u r a i. Londres. 1913.


p. 197.
* » lb id . p. 194.

203
aqui e no agora, pois perm ite ao hom em defrontar-se com
qualquer situação despendendo seus esforços d e­
vidam ente, nem demais, nem de menos, além de pro­
porcionar-lhe controle de sua mente, sob outros aspectos
instável, de modo á que nem o perigo físico de fora, nem a
paixão de dentro possa desalojá-lo.
E stá claro que tal treinam ento é tão valioso p a ra o
guerreiro quanto p a ra o sacerdote e precisam ente os
guerreiros do Japão é que adotaram o culto Zen. D i­
ficilmente se encontrarão noutro lugar que não o Japão
técnicas de misticismo executadas sem a recom pensa de
absorvente experiência mística e apropriadas pelos
guerreiros com o fito de treiná-los p ara o com bate corpo a
corpo. No entanto, assim tem acontecido desde os
prim eiros períodos d a influência Zen no Japão. O grande
livro do fundador jap o n ê s, Ei-sai, no século XII, era
cham ado A p r o t e ç ã o d o E s t a d o a t r a v é s d a p r o p a g a ç ã o
d o Z e n , tendo o Zen treinado guerreiros, estadistas, es­
grimistas e estudantes universitários visando à obtenção
de m etas de todo m undanas. Como diz Sir Charles Eliot,
nada na história do culto Zen na China forneceu qualquer
indicação do futuro que o aguardava como disciplina
m ilitar no Japão. “ O Zen tom ou-se tão japonês como as
cerimônias de chá ou as peças Nô. Seria de supor que num
período conturbado como os séculos XII e X III esta
doutrina contem plativa e mística, que encontra a verdade
não em textos sagrados e sim na experiência im ediata da
mente hum ana, florescesse em abrigos monásticos, entre
os que houvessem abandonado as tem pestades do m undo
e não fosse ser aceita como a regra de vida favorita p ara a
classe m ilitar. E ntretanto, foi o que sucedeu.” *
M uitas seitas japonesas, tan to budistas quanto
xintoístas, puseram grande ênfase nas técnicas místicas
de contemplação, auto-hipnotism o e transe. Algumas
delas, porém, apontam o resultado deste treinam ento
como prova da graça de Deus, e baseiam a sua filosofia no
t a r i k i , “ ajuda de outro” , isto é, de um deus bondoso.
O utras, entre as quais Zen é o exemplo supremo,
baseiam-se apenas na “ auto-ajuda” , j i r i k i . A força po­
tencial. ensinam elas, jaz apenas no íntim o, e somente
pelos próprios esforços é que poderemos aum entá-la. Os
sam urais japoneses achavam isso inteiram ente ap ro ­
* E liot, S ir C harles. l a p a n e s e B u d d h i s m . p. 186.

204
priado e fosse como monges, estadistas ou educadores —
pois desempenhavam todos esses papéis — utilizavam as
técnicas Zen a fim de reforçar um rigoroso in­
dividualismo. Os ensinam entos Zen eram por demais
explícitos. “ Zen busca apenas a luz que o homem pode
encontrar dentro de si mesmo, não adm itindo obstáculo
algum a tal empresa. M antenha afastados todos os
obstáculos no seu caminho . . . Se Buda surgir na sua
estrada, mate-o! Se surgirem os patriarcas, mate-os! Se
surgirem os santos, mate-os a todos. Esta é a única
m aneira de alcançar a salvação. ’*
Quem busca a verdade nada deve tom ar de segunda
mão, nenhum ensinam ento de Buda, nem escrituras ou
teologia. “ Os doze capítulos do cânone budista são pe­
daços de papel.” Pode-se estudá-los com proveito, porém,
nada têm com o relam pagueante clarão na alm a, que tão
somente é o que proporciona a Ilum inação. Num livro Zen
de diálogos, um noviço pede a um sacerdote Zen p ara
comentar o sutra do Lótus d a Boa Lei. Este forneceu-lhe
um a brilhante exposição e o ouvinte disse, sem en ­
tusiasmo: “ O ra, pensei que os sacerdotes Zen des­
prezassem textos, teorias e sistemas de explicações ló­
gicas” . “ O Zen,” retorquiu o sacerdote, “ não consiste em
não saber nada, mas sim na crença de que s a b e r está fora
de todos os textos e documentos. Você não me disse que
queria s a b e r , mas apenas que desejava um a explicação do
texto” .* *
O treino tradicional fornecido pelos m estres Zen
tinha a finalidade de ensinar os noviços como “ saber” .
Poderia ser físico ou m ental, mas deveria finalm ente
comprovar-se no âmago d a consciência do discípulo. O
treinam ento Zen do esgrim ista ilustra bem isto. O es­
grimista, sem dúvida, terá de aprender e praticar assi­
duam ente os devidos golpes de espada, mas, sua pro­
ficiência neles pertence ao campo d a m era “com ­
petência” . Além disso, deverá aprender a ser m u g a .
Põem-no inicialmente de pé no solo, p ara que se con­
centre nos poucos centímetros de superfície que sus­
tentam o seu corpo. Esta pequena sftperfície p ara se ficar
de pé é gradualm ente elevada, até que ele aprenda a estar

* C itado por E. S tein ilb er-O b erlin , T h e B u d d h i s t S e c t s o f J a p a n .


London, 1938, p. 143,
* * I b i d ., p. 175.

205
tão à vontade de pé sobre um suporte de um m etro e vinte,
quanto ao nível do solo. Q uando se sentir perfeitam ente
seguro em cim a daquele suporte, então é que “ sabe” . A
m ente não mais irá traí-lo com vertigem e tem or de
queda.
Este uso japonês de subida em suporte transform a a
conhecida dem onstração medieval de ascetismo de São
Simeão Estilita num a propositada autodisciplina. Todos
os tipos de exercícios físicos no Japão, sejam do culto Zen,
ou os exercícios comuns nas aldeias cam pesinas, passam
por este gênero de transform ação. Em m uitos lugares do
m undo m ergulhar em água gelada e en trar embaixo de
cachoeiras constituem demonstrações padronizadas de
ascetismo, às vezes p ara m ortificar a carne, outras vezes
para alcançar a compaixão dos deuses, ou ainda p ara
provocar o transe. A dem onstração de ascetismo japonesa
através do frio consistia em ficar de pé ou sentado em ­
baixo de um a cachoeira de água gelada antes do
am anhecer ou banhar-se três vezes d urante um a noite de
inverno com água gelada. O objetivo, no entanto, era
treinar o ser consciente até que se não m ais ex­
perim entasse desconforto. A finalidade do devoto era
treinar-se p ara continuar a m editação sem interrupção.
Quando nem o choque frio da água nem o arrepio do
corpo na m adrugada fria se gravavam mais em sua
consciência, ele seria um “perito” . Não havia outra
recompensa.
O treino m ental tinha de ser igualm ente auto-
adaptado. A pessoa podia associar-se com um mestre,
mas este não iria “ ensinar” no sentido ocidental, pois n a­
da que um noviço aprendesse de qualquer outra fonte fora
de si mesmo tinha qualquer im portância. O mestre po­
deria m anter debates com o noviço, porém , não haveria de
conduzi-lo suavemente p a ra um novo dom ínio intelectual,
sendo considerado de tan to m aior auxílio quanto mais
abrupto fosse. Se, imprevisivelmente, o m estre partisse a
tigela de chá que o noviço erguia aos lábios, lhe desse um a
rasteira ou lhe golpeasse os nós dos dedos com um bastão
de metal, o abalo poderia eletrizá-lo p a ra um a revelação
íntim a repentina, violentando-lhe a autocom placência. Os
livros monásticos estão cheios de incidentes deste tipo.
A técnica preferida p ara induzir o esforço deses­
perado do noviço em “conhecer” consistia nos k o a n , li­
teralm ente “ os problem as” . Segundo consta, existem mil

.2 0 6
e setecentos destes problem as e os livros de anedotas não
revelam que alguém se dedicasse durante sete anos à
solução de algum deles. Não se destinam a ter soluções
racionais. Um deles é “Conceber o b ater de uma palm a” ,
outro é “ Sentir o anseio pela m ãe antes da concepção” .
Contam-se entre outras: “ Quem está carregando o corpo
sem vida d a própria pessoa?” , “Quem é que vem
cam inhando na m inha direção?” "T odas as coisas voltam
para Um a; p ara onde volta esta últim a?” Problem as Zen
como esses foram usados na China antes do século XII ou
XIII e o Japão adotou tais técnicas junto com o culto. No
continente, entretanto, não subsistiram. No Japão, consti­
tuem parte extrem am ente im portante do treinam ento
para “ a perícia” . Os m anuais Zen encaram -nas com a
máxima seriedade. "O s koan encerram o dilema da
existência.” Quem se achar estudando um deles, segundo
dizem, atinge um impasse, como “ um rato perseguido que
se enfiou por um túnel sem saída” ; é como se fosse um
homem “ com um bola de ferro em brasa presa na gar­
ganta” , “ um m osquito tentando m order um pedaço de
ferro” . Está fora de si e redobra de esforços. Finalm ente
tom ba o anteparo do seu “ ser que observa” entre a mente
e o problema. Com a rapidez de um relâmpago, os dois —
mente e problem a — chegam a um acordo. Ele “ sabe” .
Após essas descrições de esforço m ental de corda de
arco retesada, constitui um anticlím ax percorrer os livros
de ocorrências, à cata de grandes verdades alcançadas à
custa de todo esse dispêndio. Nangaku, por exemplo,
passou oito anos às voltas com o problem a “Q uem é que
vem cam inhando na m inha direção?” Finalm ente ele
compreendeu. Suas palavras foram: “ Mesmo quando se
afirm a que há algum a coisa aqui, omite-se o todo” . To­
davia, verifica-se um a configuração geral nas revelações,
sugerida nas falas do diálogo:
N o v iç o : Como escaparei da Roda do Nascimento e da
Morte?
M e s t r e : Quem o está sujeitando? (isto é, ligando-o a
tal Roda.)
O que aprendem, dizem eles, segundo a famosa
expressão chinesa, é que “ estavam procurando um a vaca
e estavam todo o tempo em cim a de um a". Aprendem,
igualmente, que “ O necessário não é a rede e a arm adilha
e sim o peixe ou o animal a quem esses instrum entos

207
destinavam-se a ap a n h ar” . A prendem , em suma, de
acordo com a linguagem oriental, que os dois cornos do
dilema são irrelevantes. Aprendem que os objetivos po­
dem ser alcançados com os meios de que se dispõe
atualm ente se os olhos do espírito estiverem abertos.
Tudo é possível, inclusive sem auxílio de ninguém,
somente o da própria pessoa.
A im portância dos koan não reside nas verdades
descobertas por esses buscadores d a verdade, que são as
de âm bito m undial dos místicos. Reside na m aneira
como os japoneses concebem a busca d a verdade.
Os koan são denom inados “ tijolos com os quais se
bate à porta” . “ A porta” é a da parede construída em
torno da natureza h um ana ignara, que se preocupa sobre
se os meios atuais serão suficientes e cria p ara si m esm a
um a nuvem de alertas testem unhas que conferirão louvor
ou censura. É o m uro da h a ji (vergonha), tão real p ara to ­
dos os japoneses. U m a vez tenha o tijolo abalado a porta,
de modo a que se abra, chega-se ao ar livre e ele é jogado
fora. Não se prossegue resolvendo m ais koan. A lição foi
aprendida e solucionado o dilema japonês d a virtude.
Lançaram-se eles com desesperada intensidade contra um
impasse. “ Por am or ao treinam ento” , transform aram -se
em “ m osquitos m ordendo um pedaço de ferro” . No final
aprenderam que não existe impasse — entre gimu e giri,
tam pouco entre giri e os sentimentos hum anos e entre a
dignidade e o giri. Descobriram um a saída. Estão livres e
pela prim eira vez podem “ saborear” com pletam ente a vi­
da. São muga. O seu treinam ento de “ perícia” teve êxito.
Suzuki, a grande autoridade em Zen Budismo, define
m uga como “ um êxtase sem a sensação de que e u e s t o u
f a z e n d o ' , “ a ausência de esforço” . * O “ ser que observa”
é eliminado, a pessoa “ solta-se” , isto é, deixa de ser es­
pectador de seus atos. Suzuki diz: “ Com o despertar da
consciência, a vontade divide-se em dois: . . . agente e
observador. O conflito é inevitável, pois o agente (ser)
deseja libertar-se das limitações” do ser observador. Por
conseguinte, na Ilum inação o discípulo descobre que não
existe o ser observador, “ um a entidade de alm a como
porção incógnita ou incognoscível" ** N ada mais resta, a

* S u zu k i, P ro fessor D aisetz T eiraro. E s s a v s in Z e n B u d d h i s m . vol.


3. p. 318 (Kyoto, 1927. 1933, 1934).
* * C ita d o por Eliot, S ir C harles. J a p a n e s e B u d d h i s m . p. 401.

208
não ser o objetivo e o ato que o realiza. O estudioso da
conduta hum ana poderia reform ular esta asserção, de
modo a referir-se m ais especialm ente à cultura japonesa.
Q uando criança, a pessoa é drasticam ente educada para
observar os próprios atos e julgá-los à luz do que os outros
vão dizer. O seu ser observador é terrivelm ente vul­
nerável. P ara entregar-se ao êxtase da alma, ele elimina
este ser vulnerável. Deixa de sentir que “ e l e está fazen­
do” . Sente-se então treinado na alm a da mesma m aneira
que o principiante em esgrima, p ara m anter-se de pé em
cim a do suporte de um m etro e vinte de altura, sem medo
de cair.
O pintor, o poeta, o orador e o guerreiro utilizam
sim ilarm ente este treinam ento de m ugaLAlcançam, não a
Infinidade, mas sim um a percepção clara e im ­
perturbável da beleza finita, ou adaptação de meios e fins,
de modo a que possam exatam ente em pregar a quan­
tidade devida de esforço, “ nem m ais nem m enos” , para
atingir o seu objetivo.
Mesmo um a pessoa que não passou por treino algum
poderá ter um a espécie de experiência muga. Quando
aiguém assiste a peças NÔ ou K abuki e absorve-se in­
teiram ente no espetáculo, é. considerado como tendo
perdido o seu ser observador. As palm as das mãos to r­
nam-se úmidas. Sente “ o suor de m uga” . Um piloto de
bom bardeiro que se aproxim a do seu objetivo sente “o
suor de m uga” antes de soltar suas bom bas. “ E l e não está
fazendo isto” . Não h á mais um ser observador em sua
consciência. Um artilheiro de peça antiaérea, distraído do
m undo ao redor, é igualmente considerado como tendo “o
suor de m uga” e se desem baraçado do ser observador.
Segundo essa idéia, as pessoas em tal estado, em todos
esses casos, encontram-se no auge da forma.
Esses conceitos são um testem unho eloqüente da
pesada ênfase atribuída pelos japoneses à auto-
observação e à autovigilância. Q uando tais restrições
desaparecem, sentem-se livres e eficientes. E nquanto os
americanos identificam os seus seres observadores com o
princípio racional dentro deles, orgulhando-se nas crises
de “ conservarem o controle de si mesmos” , os japoneses
sentem como se lhes tivesse caído um a pesada carga do
pescoço quando se entregam ao êxtase de suas almas e
esquecem das restrições impostas pela auto-observação.
Como vimos, a sua cultura incute-lhes na alm a a necessi­

209
dade da circunspecção, tendo os japoneses con­
trabalançado esse aspecto, declarando haver um plano
mais eficiente de consciência hu m an a quando dela se
desoneram.
A form a mais extrem a dos japoneses form ularem
este princípio, pelo menos p ara os ouvidos ocidentais,
consiste na m aneira por eles excelsamente aprovada do
hom em “ que vive como se já estivesse m orto” . A tradução
literal ocidental seria “ o cadáver vivo” , o que constitui
um a expressão de horror em todos os idiomas do Oci­
dente. M ediante tal frase declaram os que o ser de um
homem morreu, deixando o seu corpo entulhando a terra.
Nenhum princípio vital lhe resta. Os japoneses dizem “vi­
ver como se já estivesse m orto” , no sentido de que se vive
no plano d a “ perícia” . Repetem -no em exortações
comuns diárias. P ara anim ar um m enino preocupado com
os exames finais da escola média, dir-se-á: “ Enfrente-os
como se já estivesse m orto, que você passará facilm ente” .
Para estim ular alguém prestes a em preender um a im ­
portante transação comercial, dirá um amigo: “Aja como
se já estivesse m orto” . Q uando um hom em atravessa um a
grande crise de alm a, sem conseguir vislum brar um a saí­
da, quase sempre dela emerge com a determ inação de vi­
ver “ como se já estivesse m orto” . O grande líder cristão
Kagawa, m em bro d a C âm ara dos Lordes desde o Dia da
Vitória, diz na sua biografia rom anceada: “ Como um
homem possuído de um m au espírito, passava ele todos os
dias em seu quarto, chorando. Seus soluçdX chegavam à
beira da histeria. Sua angústia durou um mês e meio,
finalmente, porém, a vida venceu a batalh a . . . Ele vi­
veria provido d a força da m orte . . . E n traria no combate
como alguém que já estivesse m orto . . . Decidiu fazer-se
cristão” . * D urante a guerra, diziam os soldados ja ­
poneses: “ Resolvo viver como se já estivesse morto, p a ­
gando, desde modo, o k o - o n ao Im perador” , o que incluía
promover o próprio enterro antes de em barcar, en­
com endando o corpo ao “ pó de Iwo Jim a” e resolvendo
“tom bar junto com as flores de B urm a” .
A filosofia subjacente ao m uga, igualm ente o é
quanto a “viver como se já estivesse m orto” . Neste estado
o homem elimina toda a auto-observação e por conse­
guinte todo o medo e a circunspecção, torna-se igual aos

* K agaw a, Toyohiko. B e f o r e l h e D a w n . p. 240.

210
mortos, que ultrapassaram a necessidade de ponderar
acerca do rum o devido de ação. Os mortos não estão mais
pagando o n , acham -se livres. Dizer, portanto, “Viverei
como se já estivesse m orto” significa a libertação suprem a
do conflito. E, igualmente: “ M inha energia e atenção
estão prontas a correr livremente p ara o cum prim ento de
meu próposito. M eu ser observador, com toda a sua carga
de temores, não mais se encontra entre m im e o m eu obje­
tivo. Igualm ente term inou a sensação de nervosismo e
tensão, como tam bém a tendência à depressão que
perturbava meus esforços anteriores. Agora tudo é
possível p a ra m im ” .
Em linguagem ocidental, os japoneses na prática do
muga e do “ estar vivo como se estivesse m orto” eliminam
a consciência. O que cham am de “ser observador” , “o
ser interferente” , é um censor que julga os atos. Assinala
nitidam ente a diferença éntre a psicologia ocidental e a
oriental pelo fato de que, quando falamos de um
americano sem consciência, nos referimos a um a pessoa
que não mais experim enta a idéia de pecado que deveria
acom panhar um a m á ação e que, quando um japonês
utiliza a expressão equivalente, isto diz respeito a alguém
que não m ais esteja tenso ou em baraçado. O americano
quer referir-se a um hom em m au; o japonês, a um bom,
um a pessoa treinada, capaz de utilizar d a m elhor m aneira
possível suas habilidades. Refere-se a alguém capaz de
praticar os m ais árduos e extremosos atos de altruísmo. A
grande ratificação am ericana d a boa conduta é a culpa.
Quem não mais a possa sentir devido à consciência cale-
jada, tornou-se anti-social. Os japoneses diagram am de
modo diferente o problem a. Segundo a sua filosofia, o
homem é bom no íntimo. Se o seu impulso puder ser dire­
tam ente corporificado no ato, terá agido virtuosamente,
sem preocupações. Para a “ perícia” submete-se ele,
portanto, a um autotreinam ento a fim de elim inar a auto-
censura da vergonha (haji). S6 então é que o seu “sexto '
sentido’ está livre de em baraço. Ê a libertação suprem a
do constrangim ento e do conflito.
A filosofia japonesa d a autodisciplina será ex­
cêntrica enquanto for desligada de suas experiências de
vivência individual n a cultura japonesa. Já vimos quão
intensam ente esta vergonha (haji) por eles reportada ao
ser observador pesa sobre os japoneses, m as o sentido

211
verdadeiro de sua filosofia na sua economia psíquica será
ainda obscuro sem um a descrição d a educação d a criança
japonesa. Em qualquer cultura, as sanções morais tra ­
dicionais são transm itidas a cada nova geração, não
apenas através de palavras, como tam bém das atitudes
dos mais velhos com relação a seus filhos, dificilmente po­
dendo alguém de fora entender o enquadram ento fun­
dam ental de um país na vida sem estudar a m aneira como
as crianças são ali educadas. A educação d a criança ja ­
ponesa esclarece m uitas de suas pressuposições acerca da
vida que até agora descrevemos apenas no nível dos
adultos.

212
12. A CRIANÇA APRENDE

Os bebês japoneses não são criados da m aneira que


um ponderado ocidental possa supor. Os pais americanos,
ao educarem seus filhos p ara um a vida tão menos cir­
cunspecta e estóica do que a do Japão, mesmo assim
começam de imediato a dem onstrar ao bebê que as pe­
quenas vontades não são suprem as neste m undo. E n­
quadram o-lo logo num horário de alim entação e de sono
e, por mais que se inquiete antes da hora d a m am adeira
ou da cama, ele é obrigado a esperar. Pouco mais tarde, a
mãe bate-lhe na mão, a fim de fazê-lo tirar o dedo da boca
ou de outras partes do corpo. A mãe freqüentem ente nao
está à vista e quando ela sai, ele tem de ficar atrás. Tem de
ser desm am ado antes de preferir outros alimentos, ou, se

213
tom a rnam adeira, -terá de abandoná-la. H á certos
alimentos bons p ara ele, e deverá comê-los. Ê castigado
quando não faz o que é direito. M ais do que natural,
portanto, que um am ericano suponha que tais disciplinas
sejam repetidas quanto ao bebezinho japonês que, ao
tornar-se um produto acabado, terá de refrear as suas
vontades e ser um observador atento e meticuloso de um
código tão exigente.
Os japoneses, entretanto, não seguem este caminho.
O arco da vida é projetado de form a diferente ao dos
Estados Unidos. Ê um a grande curva em U pouco acen­
tuada, com a m áxim a liberdade e indulgência concedidas
aos bebês e aos velhos. As restrições são lentam ente
aum entadas após a prim eira infância, até que a satisfação
da própria vontade atinge uma baixa logo antes e depois
do casamento. Nesta linha prossegue por muitos anos,
durante o vigor da m ocidade, ascendendo gradualm ente o
arco de novo até que, após os sessenta, hom ens e mulheres
acham-se tão desimpedidos pela vergonha quanto as
criancinhas. Nos Estados Unidos viramos de cabeça p ara
baixo esta curva. As disciplinas severas são dirigidas p ara
a criança e aos poucos relaxadas, à m edida que esta cresce
em força, até passar a dirigir a própria vida ao arranjar
um emprego que lhe garanta a subsistência e constituir
lar próprio. O vigor d a mocidade p ara nós coincide com o
ponto alto de liberdade e iniciativa. As restrições come­
çam a aparecer quando os homens perdem o domínio, a
energia, ou se tornam dependentes. Ê difícil para os
americanos sequer im aginar um a vida arranjada de
acordo com o padrão japonês. Parece-nos fugir em face da
realidade.
As disposições am ericana e japonesa do arco d a vida,
no entanto, asseguraram de fato em cada país a p a r­
ticipação enérgica do indivíduo na sua cultura, durante o
vigor d a mocidade. Com o fito de g arantir tal finalidade
nos Estados Unidos, promovemos o aum ento de sua li­
berdade de escolha durante este período. Os japoneses
apelam p ara a m áxim a elevação das restrições sobre ele.
O fato de que o homem nesta época encontra-se no auge
da sua força física e capacidade de trabalho não o torna
senhor da própria vida. Confiam eles grandem ente em
que a repressão é um a boa educação m ental ( s h u y o ) e pro­
duz resultados não alcançados pela liberdade. Mas' o
aum ento das restrições sobre o homem ou a m ulher por

214
i
I

parte dos japoneses durante os seus períodos produtivos


mais ativos de modo algum indica que as mesmas se
estendam por toda a vida. A infância e a velhice são
“ zonas livres” .
Um povo tão verdadeiram ente permissivo p ara os
filhos é m uito provável querer bebês. Os japoneses
querem. Querem-nos, antes de tudo, como os pais norte-
americanos, porque é um prazer am ar um a criança. Mas
querem-nos tam bém por motivos m uito menos pon­
deráveis na América. Os pais japoneses precisam de filhos
não apenas por satisfação emocional, como tam bém
porque terão falhado na vida se não houverem levado
avante a linha de família. Todo j aponês deve te r um filho.
Necessita dele p ara que preste hom enagem diária à sua
m em ória após a morte, no altar da sala de estar, diante da
m iniatura da pedra tum ular. E, igualm ente, p a ra per­
petuar a linha de fam ília pelas gerações afora, preser­
vando a honra e as possessões fam iliares. Por motivos
sociais tradicionais, o pai precisa do filho quase tanto
quanto este daquele. O filho tom ará o lugar do pai no
futuro, não indo com isto suplantar e sim segurar o pai.
Por alguns anos, o pai é o m andatário d a “ casa” . No
futuro, será o filho. Se o pai não puder passar o m andato
ao filho, terá desem penhado em vao o seu papel. Este pro­
fundo senso de continuidade evita que a dependência do
filho adulto, mesmo quando continuada tan to mais
prolongadam ente do que nos Estados Unidos, tenha a
au ra de vergonha e hum ilhação tão generalizada nos
países ocidentais.
A m ulher tam bém quer filhos, não apenas pela sa­
tisfação emocional obtida através deles, como tam bém
porque só como m ãe é que adquire posição social. U m a
esposa sem filhos tem um a posição das mais inseguras na
fam ília e, ainda que não seja rejeitada, jam ais poderá vir a
ser um a sogra e exercer autoridade sobre o casam ento do
filho e a esposa do filho. Seu m arido poderá adotar um
filho para propagar a sua linhagem, mas de acordo com o
modo de pensar japonês a m ulher sem filhos continua
sendo a prejudicada. As japonesas são tidas como
fecundas. A m édia anual de nascimentos d urante a
prim eira m etade d a década de 30 deste século foi de
31,7 por 1000, que é elevada mesmo quando com parada
com países prolíficos d a Europa O riental. Nos Estados
Unidos, em 1940, a proporção foi de 17,6 por 1000. Além

215
do mais, as maes japonesas começam a ter filhos cedo,
sendo que as moças de dezenove anos concebem mais do
que as mulheres de qualquer outra idade.
Os nascim entos no Japão são tão reservados quanto
as relações sexuais, não devendo as m ulheres gritar
quando em trabalhos de parto, a fim de não lhes dar
publicidade. Ê preparada um a cam inha p ara o bebê, com
colchão e cobertas novas. Seria um m au presságio p ara a
criança não ter a própria cam a, mesmo que a fam ília
mande apenas lavar a coberta e m u d ar o estofamento, a
fim de torná-los “ novos” . A colcha d a cam inha não é tão
grossa quanto a dos adultos. É bem m ais leve. Por conse­
guinte, o bebê é considerado como estando m ais con­
fortável na própria cam a, se bem que a razão mais pro­
funda d a cam a separada ainda se julgue que resida num a
espéôie de consideração de ordem mágica: o ser hum ano
novo deve ter sua própria cam a nova. O catre do bebê é
puxado p a ra junto do d a mãe, mas este não dorm e com
ela senão quando tiver idade suficiente p a ra dem onstrar
iniciativa. Talvez com um ano de idade, dizem eles, a
criança estire os braços e exprim a suas vontades. É então
que passa a dorm ir nos braços da mãe, sob as cobertas.
D urante três dias após o nascim ento o bebê não é
alim entado, pois os japoneses esperam até que venha o
leite verdadeiro. Depois disto, poderá te r o seio a qualquer
momento, seja p ara alim ento ou comodidade. A mãe,
além do mais, gosta de am am entar. Os japoneses estão
convencidos de que a am am entação é um dos maiores
prazeres fisiológicos e o bebê facilm ente aprende a
com partilhá-lo com a sua mãe. O seio não é apenas
alimento: é prazer e comodidade. Por um mês o bebê fica
na sua cam inha ou nos braços d a mãe. Somente depois de
levado ao santuário local e ali apresentado, com a idade
de uns trin ta dias, é que sua vida passa a ser considerada
como firmem ente ancorada no corpo, de m odo a que
possa ser carregado livremente em pjúblico com se­
gurança. Depois de um mês, é transportado às costas da
mãe. U m a faixa dupla prende-o por baixo dos braços e do
traseiro, passando à volta dos om bros d a mãe, sendo
am arrada à frente, na cintura. No inverno, a mãe usa o
seu casaco grosso por cim a do bebê. Os filhos mais velhos
da fam ília, meninos e m eninas, carregam tam bém a
criança, mesmo quando brincam , correndo de um a base

216
para o u tra ou pulando am arelinha. Especialmente os
aldeões e as famílias mais pobres dependem das babás e
“vivendo em público, como costum am os bêbes japoneses,
logo adquirem um ar inteligente e atento, parecendo
apreciar os jogos das crianças mais velhas tanto quanto os
próprios disputantes, sobre cujas costas estão”’.* O
enfaixam ento do bebê a cavaleiro nas costas no Japão tem
muito em comum com a am arração em xale habitual nas
ilhas do Pacífico e em outros lugares. Contribui para o
relaxam ento dos bebês, que carregados desta maneira,
como acontece com os japoneses, crescem com facilidade
p ara dorm ir fem qualquer lugar e de qualquer maneira.
Mas a m aneira enfaixada japonesa não induz passividade
tão com pleta como a do transporte no xale ou em saco. O
bebê “aprende a apegar-se como um gatinho às costas de
quem o carregue . . . As faixas que o prendem são
suficientes para a segurança, m as a criança . . . depende
dos próprios esforços p ara se assegurar de um a posição
confortável, logo aprendendo a cavalgar a quem o
transporta com notável habilidade, ao invés de ser apenas
um a trouxa am arrada aos om bros” . **
A mãe deixa o bebê na cam inha sempre que está tra ­
balhando e leva-o consigo sem pre que sai à rua. Fala com
ele. Cantarola. Educa-o p ara os gestos de etiqueta. Se re­
tribui um cum prim ento, movimenta a cabeça e os ombros
do bebê p ara a frente de modo a que ele tam bém saúde. O
bebê sempre participa. Todas as tardes ela o leva p ara o
banho quente na banheira e brinca com ele, sobre os
joelhos.
D urante três ou quatro meses o nenê usa fraldas,
grossos panos acolchoados, a que muitos japoneses atri­
buem o fato de terem as pernas arqueadas. Q uando a
criança está com três ou quatro meses, a m ãe começa a
treinar seus hábitos. Prevê as suas necessidades fisioló­
gicas, segurando-a nas mãos, de fora d a porta. E nquanto
espera, geralmente assobia baixo e m onotonam ente, e a
criança logo percebe a finalidade daquele estímulo audi­
tivo. Todos concordam em que o bebê, tanto no Japão
quanto n a China, é treinado muito cedo. Se houver erros,
há mães que beliscam a criança, m as geralm ente m udam
apenas o tom de voz e seguram de fora da porta a criança

* Bacon, A lice M abei. J a p a n e s e W o m e n a n d G ir ls . p. b.


* * O p. c it. p. 10.

217
difícil de ser treinada, em intervalos cada vez mais fre­
qüentes. Se houver retenção, a m ãe aplica-lhe um clister
ou um purgante. Declaram as mães que estão con­
tribuindo p a ra o bem -estar dos bebês: um a vez treinados,
não precisarão m ais usar as fraldas grossas e incômodas.
É verdade que o bebê japonês deve achar incômodas as
fraldas, não só por serem grossas, como tam bém porque o
costume não determ ina que elas sejam trocadas sempre
que ele as molhe. Todavia, é jovem dem ais p ara perceber
a ligação entre o treino de hábitos e o livrar-se das fraldas
incômodas. Sua única experiência é apenas a de um a ro­
tin a inevitável, implacavelm ente imposta. Além disso, a
mãe tem de m anter o bebê afastado do corpo, segurando-
o firmem ente, O fruto deste treino inexorável é um
condicionamento p a ra as compulsões mais sutis da
cultura japonesa na idade adulta. *
O bebê japonês geralm ente fala antes de andar. O
engatinhar é evitado. Havia tradicionalm ente a idéia de
que a criança não deveria ficar de pé ou cam inhar até um
ano de idade e a m ãe costum ava im pedir qualquer ten­
tativa. D urante um a década ou duas, através de sua M o -
t h e r s M a g a z i n e , b a ra ta e de larga circulação, o governo
ensinou que o cam inhar deveria ser incentivado, to r­
nando-se este muito mais generalizado. As mães passam
um a faixa por baixo dos braços da criança ou a seguram
com as mãos. Mas os bebês tendem ainda a cam inhar
mais cedo. Q uando começam a usar as palavras, a
torrente de fala infantil, com que os adultos gostam de
distrair um a criança, torna-se mais intencional. Não
deixam à imitação ocasional a aquisição de linguagem por
parte do bebê. Ensinam -lhe palavras, gram ática e ex­
pressões de cortesia, vindo isto a constituir um a b rin ­
cadeira agradável p a ra a criança e p ara os adultos.
Q uando as crianças começam a andar, são capazes
de m uitas travessuras num lar japonês. Enfiam os dedos
através de paredes de papel e estão sujeitas a cair no
buraco da lareira acesa no centro do aposento. Não
contentes com isso, os japoneses chegam a exagerar os
perigos d a casa. É “perigoso” e inteiram ente tabu pisar
na soleira d a porta. E stá claro que a casa japonesa não

* G eoffrey G o rer assinalou ta m b é m o papel d o trein o de t o il e tt e


jap o n ês em T h e m e s in J a p a n e s e C u ltu r e . R elató rio s d a A c ad em ia de
C iências de New Y ork, vol. 5, pp. 106-124, 1943.

218
tem porão, elevando-se acim a do solo, sustentada por vi-
gotas. Acredita-se de fato que a casa toda poderá ser d e­
form ada mesmo com o pisar de um a criança n a sua
soleira. Além disso, deverá aprender a não pisar ou
sentar-se na junção das esteiras do chão. Sendo estas de
tam anho padronizado, os aposentos ficam conhecidos
como “ quartos de três esteiras” ou “ quartos de doze
esteiras” . Na junção dessas esteiras, costum am dizer às
crianças, os sam urais dos tempos antigos enfiavam suas
espadas por debaixo da casa, trespassando os ocupantes
do aposento. Somente os grossos assoalhos macios de
esteira é que proporcionam segurança; até as fendas onde
se unem são perigosas. A m ãe incute sentimentos de tal
espécie nas constantes advertências que faz ao bebê:
“ Perigoso” e “ M au” . A terceira advertência costum eira é
“ Sujo” . A ordem e a lim peza da casa japonesa é pro­
verbial, sendo a criança adm oestada p ara respeitá-la.
A m aioria das crianças japonesas não são des-
m am adas até pouco antes do nascim ento do novo bebê,
no entanto, a M o t h e r s M a g a z i n e do governo, anos mais
tarde, prescreveu para os oito meses tal providência. As
m ães de classe m édia amiúde fazem isto, o que está longe,
porém, de ser hábito comum no Japão. Fiéis ao sen­
tim ento japonês de que a am am entação constitui grande
prazer p ara a mãe, esses círculos que estão gradualm ente
adotando o costume consideram tal período mais curto
um sacrificio p ara a mãe em prol da saúde d a criança.
Aceitando o ditado inédito de que “ a criança longo tempo
am am entada torna-se fraca” , culpam a m ãe por como-
t dismo, no caso de não ter desm am ado seu bebê. “ Diz ela
que não consegue desm am ar seu filho. A verdade é que
não se resolveu. Sua vontade é continuar, pois a satisfação
é sua.” Com um a atitude dessas, é compreensível que o
desmam e aos oito meses não se tenha difundido. H á
tam bém um a razão prática p a ra o desmame tardio. Os ja ­
poneses não têm tradição de alimentos especiais p ara um
bebê recém-desmamado. Se o tiver sido cedo, dão-lhe a
água do cozimento do arroz, passando no entanto,
geralmente, do leite m aterno p ara o passadio comum dos
adultos. O leite de vaca não faz parte d a dieta japonesa,
não sendo preparadas verduras especiais p ara as crianças.
Em tais circunstâncias, é razoável duvidar do acerto do
governo em ensinar que “ a criança longo tempo
am am entada torna-se fraca” .

219
As crianças são geralm ente desm am adas logo que se­
jam capazes de entender o que lhes digam . No colo da
mãe, à m esa da fam ília, du ran te as refeições, foram-lhes
servidos bocados de comida; agora, passam a comer mais.
Algumas crianças passam a ter problem as de alimentação
nesse período, o que é compreensível sendo eles des-
m am ados devido ao nascim ento de um novo bebê. As
m ães costum am oferecer-lhes doces, no intuito de se livrar
dos pedidos de aleite. H á as que passam pim enta nos
bicos dos seios. O que todas, porém , fazem é provocá-los,
assegurando-lhes que se desejam ser am am entados estão
se revelando simples bebês. “Veja o seu prim inho, que
homenzinho ele é, da mesm a idade de você e não pede
p ara m am ar.” “ Aquele meninozinho está rindo de você,
grande desse jeito e ainda querendo m am ar.” Crianças de
dois, três e quatro anos que ainda pedem o seio da mãe
hão de largá-lo e dem onstrar indiferença quando tom am
conhecimento d a aproxim ação de um a criança mais
velha.
Este provocar, este incitar da criança para a idade
adulta não se lim ita ao desmame. No instante em que a
criança possa entender o que lhe esteja sendo dito, essas
técnicas passam a ser comuns em qualquer situação. U m a
mãe d irá p ara o filhinho, quando este chora: “ Você não é
m enina” , ou “Você é um hom em ” , ou ainda “Veja aquele
nenê, ele não está chorando” . Q uando outro bebê vier de
visita, ela o acarinhará na presença do filho, dizendo:
“ Vou adotar este nenê. Quero um a criança assim linda,
boazinha, diferente de você, fazendo vergonha nessa ida­
de” . E a sua criança se atirará contra ela, am iúde m ar­
telando-a com os punhos, exclamando: “ Não, não vamos
querer outro nenê. Faço o que você está dizendo” .
Quando a criança de um ou dois anos mostrou-se
barulhenta ou desobediente, a m ãe d irá p ara um visi­
tante: “ Faz-m e o favor de levar em bora ésta criança? Não
queremos saber dela aqui” . O visitante desem penha o seu
papel. Começa a levar a criança p ara fora da casa. O bebê
grita, cham ando p ara a m ãe vir apanhá-lo. Desespera-se.
Q uando esta acha que a provocação surtiu efeito, cede e
retom a o filho, exigindo-lhe a promessa frenética de se
com portar direito. A pequena encenação é às vezes feita
até mesmo com crianças de cinco a seis anos de idade.

220
A provocação poderá apresentar outra forma. A mãe
volta-se p ara o m arido, falando com a criança: “ Gosto do
seu pai mais do que você. Ele é um hom em bom ” . O filho
dá inteira expressão ao ciúme, tentando meter-se entre o
pai e a mãe. Diz a mãe: “ Seu pai não grita pela casa,
fazendo estrepolias pelos cantos” . “ Não, nao” , protesta a
criança, “ não vou fazer tam bém . Sou bom. A g o r a você
gosta de m im ?” Q uando a brincadeira prolongou-se
bastante, o pai e a m ãe entreolham -se e sorriem. Cos­
tum am provocar desta m aneira tan to um filho quanto
um a filha, enquanto pequenos.
Essas experiências constituem solo rico p ara o temor,
tão assinalado no adulto japonês, do ridículo e do os­
tracism o. Ê impossível dizer-se quando descobrirão as
criancinhas que estão sendo alvo de brincadeiras através
dessas provocações, o fato é que o farão cedo ou tarde, e
quando assim acontecer, a sensação de estar sendo alvo de
riso funde-se com o pânico de estarem am eaçadas da
perda de tudo o que é seguro e familiar. Q uando for um
homem crescido, o fato de rirem dele se revestirá dessa
aura infantil.
O pânico ocasionado por tais provocações nas
crianças de dois a cinco anos é tan to m aior já que o lar é
realm ente um rem anso de segurança e indulgência. A di­
visão de tarefas, físicas e emocionais, é tão com pleta entre
pai e mãe que raram ente lhe são apresentados como
competidores. Sua mãe ou avó dirige a casa e adverte a
criança. Ambas servem ao pai de joelhos, colocando-o
num a posição de honra. A ordem de prioridades na
hierarquia dom éstica é bem definida. A criança aprendeu
as prerrogativas de gerações anteriores, as do homem
com paradas com as da m ulher, as do irm ão mais velho
com as do mais jovem. Mas neste período de sua vida a
criança tira proveito dessas relações. Isto é m ani­
festamente verdadeiro quando se tra ta de um menino.
P ara meninos e meninas a m ãe é a fonte de satisfações
constantes e extremas, porém, no caso de um garoto de
três anos, poderá até mesmo descarregar contra ela a sua
raiva furiosa. Talvez jam ais manifeste qualquer- agressão
contra o pai, mas tudo o que sentiu quando foi provocado
pelos pais, além dos ressentim entos por ter sido
“ abandonado” , poderão ser expressos em acessos de
zanga dirigidos contra a mãe e a avó. Evidentemente, não

221
são todos os meninozinhos que têm tais acessos, o fato é,
porém, que tanto nas aldeias como nos lares de classes
superiores, são eles encarados como um a parte comum da
vida d a criança entre três e seis anos. O bebê esm urra a
mãe, b erra e, como ultraje definitivo, desm ancha com um
puxão o seu querido penteado. A m ãe é m ulher e ele,
mesmo aos três anos, é sem dúvida homem. Pode dar
vazão até às suas agressões.
Ao pai deverá somente dem onstrar respeito. O pai se
constitui num exemplo de elevada posição hierárquica e,
segundo a expressão japonesa constantem ente em ­
pregada, a criança deverá aprender “ como treino” o d e­
vido respeito p ara com o mesmo. É m uito menos um
disciplinador, tendo em vista qualquer nação ocidental. A
disciplina da criança cabe à m ulher. Ao pai geralmente
basta um simples olhar ou um a breve advertência como
indicação de seus desejos aos seus filhos, mas são
suficientemente raros e prontam ente obedecidos. Nas
horas livres poderá fazer brinquedos p ara os filhos.
Ocasionalmente leva-os no colo muito depois de já sa­
berem andar — a m ãe tam bém o faz — e, em se tratando
de filhos nessa idade, assume com toda a naturalidade
encargos que um pai americano geralm ente reserva à
esposa.
As crianças têm de m odo geral grande liberdade com
os avós, em bora sejam êstes igualmente alvo de respeito.
Não têm eles o papel de disciplinadores. Poderão assum ir
tal encargo, caso se oponham à tibieza da educação das
crianças, o que vem a ser motivo de atrito. A avó da
criança geialm ente está sempre presente durante as vinte
e quatro horas do dia, sendo proverbial nos lares ja ­
poneses a rivalidade, com relação às crianças, entre a so­
gra e a mãe. Do ponto de vista d a criança, ela é solicitada
por am bas. Do ponto de vista da avó, ela am iúde se utiliza
das crianças para dom inar a nora. A jovem m ãe tem como
m aior obrigação na vida satisfazer à sogra, não podendo
protestar, por mais que os avós estraguem seus filhos. A
avó dá-lhes balas após a m ãe ter declarado que não devem
mais comê-las. observando, de forma m ordaz: “ M i n h a s
balas não são veneno” . Em muitas casas, a avó pode dar
presentes acima das possibilidades da mãe, tendo mais
tempo disponível p ara dedicar-se ao entretenim ento das
crianças.

222
Os irm ãos mais velhos aprendem tam bém a com-
prazer-se com as crianças mais jovens. Os japoneses bem
que estão a par do perigo representado pelo cham ado
“ nariz torcido” do bebê quando o outro nasce. A criança
desalojada pode facilm ente incrim inar o recém-chegado
pelo fato de lhe ter tido que ceder o seio e a cam a m a­
ternos. Antes do novo bebê nascer, a mãe diz à criança
que agora terá um boneco de verdade e não m ais “de
fingimento” . Ê avisado de que agora pode dorm ir com o
pai, ao invés de fazê-lo com a mãe, o que é considerado
privilégio. As crianças são envolvidas nos preparativos
p ara o novo bebê. M ostram-se elas geralm ente de fato
excitadas e contentes com ele, no entanto ocorrem alguns
deslizes perfeitam ente esperáveis que não devem dar
maiores cuidados. A criança desalojada poderá apanhar o
bebê e sair correndo com ele, dizendo p a ra a mãe:
“Vamos d ar p ara alguém este nenê” . “ Não,” responde
aquela, “ este nenê é nosso. E stá vendo, nós todos vamos
ser bons p ara ele. Ele gosta de você. Precisamos que nos
ajude a tra ta r do bebê.” A pequena cena às vezes repete-
se durante um considerável período de tem po, mas as
m ães não parecem se preocupar m uito com isso. Nas
grandes famílias surge autom aticam ente um remédio
p ara a situação: as crianças alternadas são unidas por la­
ços mais estreitos. A mais velha servirá de b ab á e pro­
tetora d a terceira e a segunda d a quarta. As crianças mais
jovens retribuem . Até as crianças atingirem sete ou oito
anos, pouco diferença faz quanto a esta organização o
sexo que elas tenham .
Todas as crianças japonesas têm brinquedos. Os
pais, as m ães e o círculo inteiro de amigos e parentes fa­
bricam ou com pram bonecas e demais acessórios p ara as
crianças, sendo que entre a gente mais pobre pra-
ticam entè nada custam . As crianças pequenas brincam de
casa, casam ento e festa com eles, após estabelecerem qual
será a atuação “certa” dos adultos, subm etendo por vezes
ao juízo da mãe algum ponto controvertido. Q uando so­
brevêm disputas, a mãe costum a invocar o lem a de n o -
b l e s s e o b l i g e , pedindo à criança mais velha que ceda à
mais jovem. A expressão habitual é “P or que não perder
p ara ganhar?” Q uer ela dizer, e a criança de três anos rá ­
pido a compreende, que se a mais velha ceder o brinque­
do à mais nova, o bebê logo se fartará, procurando outra
coisa, quando então a que foi aconselhada terá o seu

223
brinquedo de volta, em bora o tenha cedido. O u entí
quer ela dizer tam bém que aceitando um papel malquii
na brincadeira de criado-patrão que as crianças lhe est
oferecendo há de “ vencer” sem dúvida, através da d
versão que irão ter. “ Perder p ara ganhar” torna-se um,
lógica grandem ente respeitada na vida japonesa, mesmo
quando já se é crescido.
Além das técnicas de advertência e provocação, a de
distrair a criança, desviando-lhe a atenção do seu objeto,
tem lugar de destaque na educação infantil. M esmo a
contínua doação de balas é geralm ente tid a como parte da
técnica de distração. X m edida que a criança chega à ida­
de escolar, são utilizadas técnicas de “cu ra” . Se um garo-
tinho tem acessos de m au gênio, é desobediente ou
barulhento, a m ãe leva-o a um santuário xintô ou budista.
A atitude de m ãe se traduz no seguinte: “Vamos p ara
obter auxílio” . T rata-se, às vezes, de um a boa excursão, e
o sacerdote encarregado d a cura conversa seriam ente com
o menino, perguntando-lhe o dia do nascim ento e os seus
problem as. Recolhe-se p ara orar, regressando a fim de
anunciar a cura, às vezes extirpando a travessura sob a
form a de um verme ou inseto. Purifica-o e m anda-o p ara
casa liberto do m al. “ D u ra algum tem po” , dizem os ja ­
poneses. Até mesmo o castigo mais severo sofrido pelas
crianças japonesas é considerado “ rem édio” . Consiste em
queim ar um pequeno cone de pó, o m o x a , sobre a pele da
criança, o que deixa cicatriz perm anente. A cauterização
através do m o x a é um antigo e difundido remédio do leste
asiático que era tam bém usado tradicionalm ente no Ja p io
para curar dores e sofrimentos. Pode tam bém curar m au
gênio e teimosia. U m gaíotinho de seis ou sete anos pode
ser “ curado” desta m aneira pela m ae ou avó. Poderá até
ser usado duas vezes num caso difícil, m as é m uito raro a
criança receber o tratam ento m o x a por travessura um a
terceira vez, Não é um castigo no sentido de “ Se você fizer
isso, dou-lhe um a su rra” . Fere bem mais, no entanto, do
que um a surra, e a criança aprende que não pode ser tra ­
vessa impunemente.
Além desses meios de lidar com crianças insubor­
dinadas, existem praxes p ara o ensino de habilidades
físicas necessárias. Observa-se grande ênfase por parte do
instrutor em conduzir fisicamente, com as próprias mãos,
a criança através dos movimentos. Esta deve ser passiva.
Antes que complete dois anos, o pai dobra-lhe as pernas

224
«posição de sentar correta, ^pernas dobradas, dorso do
, m irado p ara o chão. De início a criança acha difícil não
â r p ara trás, já que, em especial, um a parte in-
ifcpensáveltlo treino de sentar é a ênfase na imobilidade,
íã o deverá remexer-se nem m udar de posição. A m aneira
de aprender, dizem eles, é relaxar e ser passivo, sendo esta
passividade acentuada pela colocação das pernas do pai.
Sentar não é a única posição física que deverá ser
aprendida. H á tam bém o dorm ir. O pudor na posição de
um a m ulher dorm indo é tão forte no Japão quanto o de
andar nua nos Estados Unidos. Em bora os japoneses não
sentissem vergonha d a nudez no banho até que o governo
tentasse introduzi-la d urante a sua cam panha p ara
conquistar a aprovação dos estrangeiros, sua. sensi­
bilidade com relação às posições de dorm ir é m uito in­
tensa. A m enina tem de aprender a dorm ir estendida, de
pernas juntas, em bora o menino tenha m aior liberdade. Ê
um a das prim eiras regras a separar o treinam ento dos
meninos e das m eninas. Como quase todas as outras exi­
gências no Japão, é mais rigorosa nas classes superiores
do que nas inferiores, declarando a Sra. Sugimoto a
respeito de sua educação sam urai: “ Desde quando posso
lembrar-me, sem pre tive o cuidado de encostar-m e quieta
no meu travesseirinho de m adeira à noite . . . As filhas de
samurais aprendiam a nunca perder o controle da mente
ou do corpo — até mesmo durante o sono. Os meninos
podiam estirar-se segundo o caráter d a i , des­
cuidadam ente jogados. As m eninas, porém , deviam
curvar-se ao recatado e digno caráter k i n o j i , que significa
‘espírito de controle’.” * Certas mulheres contaram -m e
como suas mães ou amas arrum avam seus m em bros para
elas, quando as punham na cam a à noite.
No ensino tradicional da escrita, tam bém , o instrutor
pegava a mão da criança e fazia os ideogramas. Era p ara
“dar-lhe o toque” . A criança aprendia a sentir os m o­
vimentos controlados e rítmicos antes que pudesse
i reconhecer os caracteres e muito menos escrevê-los. Na
j m oderna educação de m assa este método de ensino é
menos acentuado, mas ainda ocorre. A mesura, o manejo
dos pauzinhos, o disparar de flechas ou o am arrar de um
travesseiro às costas em lugar de um bebê, podem ser to ­

* S ugim oto, E ts u In ag ak i. A D a u g h t e r o f t h e S a m u r a i. D oubleday


Page and C om pany, 1926, pp. 15, 24.

225
dos ensinados movendo-se as mãos d a criança e colocando
fisicamente o seu corpo na posição correta.
Exceto nas classes superiores, as crianças não es­
peram ir p ara a escola antes de brincar à vontade com as
outras crianças d a vizinhança. Nas aldeias organizam pe­
quenas turm as p ara brincadeiras antes dos três anos e
mesmo em cidades grandes e pequenas brincam com
assustadora liberdade, entrando e saindo de veículos em
ruas movim entadas. São seres privilegiados. Espairecem
pelas lojas, ouvindo as conversas dos adultos, jogando
am arelinha ou h a n d - b a l l . Juntam -se p a ra brincar no
santuário da aldeia, seguros sob a proteção do seu espírito
padroeiro. Meninos e m eninas brincam juntos até irem
p ara a escola e por dois ou três anos mais, no entanto os
laços mais estreitos costum am estabelecer-se entre
crianças do mesmo sexo e especialm ente d a m esm a idade.
Esses grupos de idades ( d o n e n ), especialm ente nas al­
deias, duram a vida inteira e sobrevivem a todos os outros.
Na aldeia de Suye M ura, “ à m edida que declinam os
interesses sexuais, as festas de donen passam a se consti­
tuir nos verdadeiros prazeres que restam na vida. Suye (a
aldeia) acha: “ Os donens são m ais chegados do que um a
esposa” . *
Essas turm as infantis pré-escolares são m uito livres
entre si. M uitas de suas brincadeiras são descaradam ente
obscenas segundo o ponto de vista ocidental. As crianças
sabem das coisas da vida tanto por causa da liberdade de
conversa dos adultos, quanto devido à proxim idade das
dependências em que vive um a fam ília japonesa. Além do
mais, suas mães geralmente cham am a atenção p ara os
órgãos genitais dos filhos quando brincam com eles e lhes
dão banho, mesmo quando se tra ta de meninos. Os ja ­
poneses não condenam a sexualidade infantil, a não ser
nos locais e com panhias errados. A m asturbação não é
considerada perigosa. As turm as infantis são tam bém
bastante livres no lançam ento de críticas uns para os
outros — que mais tarde seriam insultos — e na jactância
— que mais tarde d aria motivo a profunda vergonha. “As
crianças” , afirmam os japoneses, de olhar sorridente,
benevolentes, “ não sentem vergonha ( h a ji) .” E acres­
centam : “ Por isso é que são tão felizes.” Define-se aí o

* E m bree, Jo h n F. S u y e M u r a . p. 190.

226
grande abismo entre a criança e o adulto, pois, dizer de
um a pessoa crescida “ Ele não sente vergonha” é o mesmo
que considerá-lo destituído de decência.
Crianças em tal idade criticam os lares e as posses-
uns dos outros e se gabam especialmente dos pais. “ Meu
pai é mais forte do que o seu” , “ M eu pai é mais in­
teligente do que o seu” constituem m oeda corrente.
Trocam socos por causa dos respectivos pais. Esse tipo de
conduta afigura-se bem pouco digno de nota para os
americanos, ao passo que no Japão contrasta fortemente
com a conversa que as crianças ouvem em to m o de si. To­
do adulto refeíe-se ao próprio lar como “ m inha miserável
casa” e à do vizinho como “ sua augusta casa” ; toda re­
ferência à fam ília é como “ m inha pobre fam ília” , en­
quanto a do vizinho é “ sua nobre fam ília” . Os japoneses
reconhecem que durante m uitos anos da infância —
desde a época da form ação das turm as infantis de brinca­
deiras até o terceiro ano d a escola elem entar, quando as
crianças estão com nove anos — eles se ocupam cons­
tantem ente com tais pretensões individualistas. As vezes é
“Eu brincarei de senhor feudal e vocês de meus d e­
pendentes” , ou “ Não, não vou ser criado. Serei senhor
feudal” . O utras vezes são gabolices pessoais e deprepiação
dos outros. “ São livres de dizer o que desejarem. A me­
dida que a idade chega, descobrem que isto não é per­
mitido e então aguardam até serem solicitados e não mais
se jactam .”
A criança aprende em casa as atitudes com relação
ao sobrenatural. O sacerdote não lhe “ ensina” e,
geralmente, as experiências de um a criança, quanto à
religião organizada, se desenvolvem nas ocasiões em que
comparece a um a festa popular onde, ju ntam ente com os
demais que ali se encontram , é aspergida pelo sacerdote
como purificação. Algumas crianças são levadas a cultos
budistas, mas às vezes tal ocorre tam bém em festividades.
As experiências constantes e mais profundam ente arrai­
gadas da criança p ara com a religião são sempre as
observâncias familiares, centralizadas em torno dos
santuários budistas e xintós em seu próprio lar. O que
mais cham a a atenção é o santuário budista, com as tá ­
buas funerárias da família, perante as quais erguem-se
oferendas de flores, ram os de determ inada árvore e in­
censo. Diariam ente ali são colocadas oferendas de com i­
da, e os mais idosos fam iliares anunciam todas as

227
ocorrências d a fam ília aos ancestrais e inclinam-se
diariam ente diante do santuário, A noite são acesas ali
lam padazinhas. Ê m uito comum as pessoas dizerem que
não gostam de dorm ir fora de casa porque se sentem
perdidas sem aquelas presenças presidindo sobre a casa,
O santuário xintó geralm ente consiste num a simples p ra ­
teleira dom inada por um am uleto do tem plo de Ise.
Outros tipos de oferendas podem ser encontrados ali.
Igualm ente é de se notar o deus d a cozinha, coberto de
fuligem, podendo existir alguns amuletos presos às portas
e paredes. São proteções que tornam segura a casa. O
santuário das aldeias é tam bém um lugar seguro, pois os
deuses benevolentes protegem-no com a sua presença. As
m ães gostam que os filhos brinquem lá, pois é seguro. Na­
d a dentro do âm bito da experiência d a criança leva-a a
tem er os deuses ou m odelar a conduta de modo a sa­
tisfazer deuses justos ou severos. Deverão ser g ra­
ciosamente entretidos, em retribuição de seus benefícios.
Não são autoritários.
A séria em presa de ajustar um menino aos cir­
cunspectos padrões da vida adulta japonesa tão-somente
se inicia após ter ele freqüentado a escola por uns dois ou
três anos. Até essa ocasião aprendeu controle fisico e
quando se m ostrou insubordinado, teve a teimosia “cu ra­
da” e a atenção desviada. Foi discretam ente repreendido
e alvo de provocação. Entretanto, perm itiram -lhe que
fosse voluntarioso, a ponto de usar de violência contra
mãe. Fom entaram -lhe o pequenino e g o . Q uando começa
a ir à escola, não há grandes m udanças. Os três prim eiros
graus são co-educacionais e o professor, seja homem ou
m ulher, m im a as crianças, igualando-se a elas. Em casa e
na escola, porém, m aior ênfase é exercida quanto aos
perigos de meter-se em situações “ em baraçosas” . As
crianças são ainda m uito jovens p ara a “vergonha” , mas
precisam aprender a evitar sentirem-se “ em baraçadas” .
O menino da história, por exemplo, que gritou “lobo, lo­
bo” , quando não existia nenhum , “ enganou as pessoas.
Se você fizer um a coisa dessas, os outros não vão confiar
em você, o que é um fato em baraçoso” . M uitos japoneses
afirmam terem sido os seus colegas de escola que prim eiro
zom baram deles por cometerem erros e não os professores
ou pais. A verdadeira missão de seus responsáveis não
será, pois, nessa altura, lançarem mão do ridículo à lição

22 8
1

m oral de viver de acordo com o dever-giri-ao-mundo. As


obrigações que antes consistiam, quando a criança tinha
seis anos, na tem a devoção de um cão fiel — a história do
o n do cachorro bom está, como vimos, em um m anual de
leitura p ara crianças de seis anos — aos poucos vão se
transform ando em séries de restrições. “ Se você fizer isto,
se você fizer aquilo” , dizem os seus responsáveis, “ o
mundo rirá de você” . As regras são específicas e si-
tuacionais, grande núm ero delas pertinentes ao que
chamaríamos de etiqueta. Exigem a subordinação da
vontade de cada um aos deveres sempre crescentes p ara
com os vizinhos, fam ília e país. A criança tem de refrear-
se, reconhecer a sua dívida. Passa gradualm ente à posição
de devedor que deve cam inhar circunspecto, a fim de que
possa pagar o que deve.
Esta m udança de posição é com unicada ao menino
em crescim ento através de um a nova e séria extensão do
padrão das provocações no transcurso da prim eira in­
fância. Q uando chega aos oito ou nove anos, a fam ília po­
derá, em sóbria deliberação, rejeitá-lo. Se o professor
informar que ele tenha sido desobediente ou desrespeitoso
e lhe houver dado um a nota m á em com portam ento, a
família volta-se contra ele. Se for censurado por alguma
travessura por parte de algum lojista, “ o nome da fam ília
está desonrado” . A fam ília cerra-se num a falange acusa-
dora. Dois japoneses conhecidos meus, antes dos dez
anos. receberam dos pais a ordem de não voltar mais para
casa e sentiram-se envergonhados de procurar os
parentes. Tinha sido castigados pelos professores na
escola. Nos dois casos, ficaram m orando em dependências
anexas da casa, onde foram encontrados pelas mães, que
finalmente lhes providenciaram o retorno. Os meninos no
final da escola elem entar ficam às vezes confinados em
casa por k i n s h in , “ arrependim ento” , devendo ocupar-se
com a obsessão japonesa, a redação de diários. De
qualquer modo, a intenção d a fam ília é revelar que agora
considera o menino o seu representante no m undo e
voltam-se contra ele caso tenha sido censurado. Não se
aquilatou ao seu dever-giri-ao-mundo. Não pode esperar
apoio da família, nem do seu grupo de idade. Os colegas
de escola excluem-no por faltas e ele deverá desculpar-se
bem como fazer promessas, antes de ser readmitido.

229
“ Cum pre acentuar” , diz Geoffrey Gorer, “ ser bem
pouco comum sociologicamente o grau a que isto é levado.
Na m aioria das sociedades em que se revela atuante a
fam ília am pliada ou outro grupo social fracionado, o
grupo geralmente se u n irâ p ara proteger um de seus
' m em bros que esteja sob censura ou ataque de m em bros
de outros grupos. Contanto que seja m antida a aprovação
do próprio grupo, pode-se enfrentar o resto-do m undo
com a garantia de integral apoio, em caso de necessidade
ou ataque. Contudo, no Japão parece suceder o contrário:
só se está seguro do apoio do próprio grupo com a con­
dição de que a aprovação seja d ad a por outros grupos. Se
os de fora desaprovam ou censuram, o próprio grupo
volta-se contra a pessoa e age como agente punitivo, até
ou a menos que o indivíduo possa obrigar o outro grupo a
retirar a sua crítica. Através deste mecanismo, a apro­
vação do “ m undo exterior” assum e um a im portância
talvez sem paralelo em qualquer o u tra sociedade” . *
A educação da m enina até este ponto não difere em
espécie d a do m enino, por m ais que varie nos por­
menores. Há, contudo, m aiores restrições à irm ã do que
ao irm ão em casa. Impõem-lhe mais deveres — em bora o
garotinho tam bém possa servir de b ab á — e sempre lhe
cabe a parte menor em m atéria de presentes e*de aten­
ções. Não tem, tam pouco, os acessos de m au gênio dos
meninos. Desfrutou, porém , de um a liberdade m ara­
vilhosa p ara um a m enina asiática. Vestida de rubro,
brincou nas ruas com os meninos, brigou com eles, le­
vando a melhor m uitas vezes. Ela tam bém , como criança,
“não sentia vergonha” . Entre seis e nove anos aprende
gradualm ente suas responsabilidades p ara com “ o
m undo” no mesmo grau que seu irm ão e, em muito, a tra ­
vés das mesmas experiências. Aos nove anos, as classes da
escola são divididas em seções de meninos e de m eninas,
sendo que os meninos fazem grande alarde de sua nova
solidariedade masculina. Excluem as m eninas e opõem-se
a que as pessoas os vejam falando com elas. Tam bém as
m eninas são prevenidas pelas m ães de que tal amizade é
perigosa. Nesta idade elas costumam tornar-se birrentas,
arredias e difíceis de ensinar. As m ulheres japonesas
acham que se tra ta do fim da “troça infantil” . A infância

* Gorer, Geoffrey. J a p a n e s e C h a r a c t e r S t r u c t u r e . (Mimeografado),


Institute for International Studies, 1943, p. 27.

230
p ara as meninas term ina com um a exclusão. Por muitos e
muitos anos, nenhum cam inho lhes resta senão ‘‘dobrar
jicho com jicho” . A lição irá se prolongando, pelo noivado
e após o casamento.
U m a vez aprendidos o jicho e o dever-giri-ao-mundo,
os meninos, entretanto, ainda não adquiriram tudo o que
se impõe a um japonês adulto. “ Desde os dez anos” ,
dizem os japoneses, “ aprende ele o giri-devido-ao-nome” .
Querem dizer, sem dúvida, que aprendem que é um a
virtude ofender-se com um insulto. Deve aprender
tam bém as regras: quando entrar em acordo com o
adversário e quando adotar meios indiretos de lavar a
honra. Não creio que eles achem que o menino deva
aprender a agressividade sugerida pela conduta relativa
ao insulto. Os meninos, a quem foi perm itida na prim eira
infância tanta agressividade com relação às mães e que
brigaram com seus com panheiros de idade por tantos ti­
pos de calúnias e reclamações, pouco têm de aprender a
ser agressivos quando chegarem aos dez anos. Mas o có­
digo de giri-devido-ao-nome, ao serem os meninos in­
cluídos sob as suas disposições na adolescência, canaliza a
sua agressividade p ara formas aceitas e proporciona-lhes
m aneiras específicas de aproveitá-la. Como vimos, os ja ­
poneses habitualm ente voltam a agressividade contra si
próprios, ao invés de usar de violência contra os outros.
Até mesmo os meninos de escola não fazem exceção.
P ara os meninos que continuam na escola depois dos
seis anos do curso elem entar — uns 15% d a população,
em bora a proporção na população m asculina seja m aior
— a ocasião em que vão se tom ando responsáveis pelo
giri-devido-ao-nome é atingida quando, de súbito, são
expostos à feroz competição do exame vestibular para a
escola m édia e à concorrência dos alunos em todas as m a­
térias. Não há experiência gradual que valha até aí, pois a
competição é reduzida ao mínimo, quase se des-
vanècendo, na escola elem entar e em casa. A nova ex­
periência repentina contribui para to rn ar a rivalidade
am arga e absorvente. A competição por lugar e a suspeita
de favoritismo campeiam. Esta competição, porém, não
aparece tanto nas histórias d a vida de pessoas quanto a
convenção existente na escola m édia dos meninos mais
velhos atorm entarem os menores. As classes mais
adiantadas da escola m édia tiranizam as mais jovens,

231
subm etendo-as a vários tipos de trotes. O brigam -nas a
executar acrobacias ridículas e hum ilhantes. As animosi-
dades são por demais com uns, pois os m eninos japoneses
não levam essas coisas na p u ra brincadeira. Um garoto
m ais jovem que foi forçado a rastejar diante de um ve­
terano e a cum prir incum bências servis odeia o seu
to rtu rad o r e planeja vingança. O fato d a vingança ter de
ser adiada torna-a ainda mais em polgante. Constitui um
giri-devido-ao-nome e é considerada um a virtude. As
vezes ele consegue, através d a influência de família, fazer
o seu carrasco ser despedido do emprego anos mais tarde.
O utras vezes, aperfeiçoa-se em jiujitsu ou esgrima e
hum ilha-o publicam ente num a rua d a cidade, após a saí­
d a da escola. O fato é que, a menos que chegue algum dia
a tirar desforra, conserva o “sentimento de ter deixado
algo por fazer” , o que constitui o âmago da pugna ja ­
ponesa do insulto.
Os meninos que não vão p a ra a escola m édia podem
deparar com o mesmo tipo de experiência no seu
treinam ento m ilitar. Em tem po de paz, um entre quatro
rapazes estava servindo e os trotes m inistrados aos
recrutas do prim eiro ano pelos do segundo eram ainda
mais rigorosos do que nas escolas m édias e superiores.
N ada tinham a ver com os oficiais do exército e, afora as
exceções, nem mesmo com os oficiais sem designação. O
prim eiro artigo do código japonês era de que qualquer
apelo aos oficiais significava desprestígio. O assunto era
resolvido entre os recrutas. Os oficiais consideravam-no
um método de “endurecer” os soldados, mas não se
envolviam. Os pertencentes ao segundo ano passavam aos
do prim eiro os ressentimentos acum ulados no ano an ­
terior e comprovavam a sua “dureza” através do talento
em inventar humilhações. Amiúde se considera os con­
vocados como tendo saído do serviço m ilitar de personali­
dades m udadas, como “verdadeiros chauvinistas” , não
consistindo tanto a m udança em lhes terem porventura
ensinado qualquer teoria do estado totalitário e tam pouco
certam ente devido a qualquer imposição de chu ao
Im perador. A experiência de ter sido obrigado a executar
acrobacias ridículas é m uito m ais im portante. Os rapazes
educados p ara a vida fam iliar à m aneira japonesa e
acendradam ente im buídos de a m o u r - p r o p r e facilmente
podem tornar-se brutalizados num a situação dessas. Não

232
toleram o ridículo. O que interpretam como rejeição
possivelmente os transform ará por seu turno em bons
tortur adores.
O caráter dessas situações japonesas atuais, na escola
m édia e no Exército, se baseia, é claro, em antigos cos­
tum es japoneses acerca do ridículo e do insulto. Não
foram as escolas m édia e superior assim como o Exército
que originaram a reação japonesa a eles. É fácil verificar
como o código tradicional de giri-devido-ao-nome faz os
trotes doerem m ais acerbam ente no Japão do que na
América. Ê igualmente condizente com os padrões an ­
tigos o fato de que cada grupo que sofreu trote passará, no
devido tem po, o castigo p a ra um grupo de vítimas, não
sendo elim inada, porém, a preocupação do rapaz em
ajustar as contas com o verdadeiro torturador. O bode
expiatório não figura tão periodicam ente entre os cos­
tum es populares do Japão quanto em tantos países oci­
dentais. Na Polônia, por exemplo, onde aprendizes e
mesmo jovens ceifeiros sofrem duros trotes, o ressen­
tim ento não se volta contra os autores do trote e sim
contra a tu rm a seguinte de aprendizes e ceifeiros. Os ra ­
pazes japoneses buscam , sem dúvida, essa satisfação,
contudo estão antes de mais nada interessados na pugna
pelo insulto. Os atingidos “ sentem-se bem ” quando
conseguem ajustar as contas com os torturadores.
Na reconstrução do Japão, os líderes desejosos em
empenhar-se pelo futuro do seu país fariam bem em
voltar especial atenção p ara os trotes e o costume de obri­
gar os rapazes a executarem acrobacias difíceis em escolas
de pós-adolescentes e no exército. Seria bom que en­
fatizassem o espírito escolar, mesmo o “ elo da velha
escola” , a fim de acabar com as diferenças entre as classes
superiores e as mais atrasadas. No exército deveriam proi­
bir o trote. A inda que os recrutas do segundo ano
insistissem num a disciplina espartana quanto às suas
relações com os do prim eiro ano, como o. fizeram os
oficiais japoneses de todos os postos, esta sua atitude não
se constituiria num insulto no Japão. O hábito do trote o
é. Se nenhum rapaz mais velho na escola ou no exército
pudesse im punemente obrigar a um mais jovem a abanar
a cauda como um cachorro, im itar um a cigarra cantando
ou ficar de pernas p ara o ar apoiado sobre a cabeça,
enquanto os demais comem, constituiria isso um a

233
m udança m uito m ais efetiva na reeducação do Japão do
que contestações da divindade do Im perador ou a
eliminação de m aterial nacionalista dos m anuais es­
colares.
As mulheres não aprendem o código do giri-devido-
ao-nome, não tendo as m odernas experiências d a escola
m édia e do exército que têm os rapazes. Tam pouco
passam por experiências análogas. O seu ciclo de vida é
m uito m ais estável do que o dos irm ãos. Desde as
prim eiras lem branças foram treinadas p a ra aceitar o fato
de que os meninos ganham prioridade, atenção e
presentes a elas negados. A regra de vida que lhes cabe
respeitar nega-lhes o privilégio d a auto-afirm ação. To­
davia, como bebês e crianças, com partilharam com os
irmãos da vida privilegiada das crianças no Japão.
Usaram vestes rubras especiais quando pequenas, cor que
evitarão quando adultas, até obterem novamente per­
missão, ao alcançarem o segundo período privilegiado,
aos sessenta anos. No lar poderão ser cortejadas como os
irmãos, na disputa entre a mãe e a avó. Seus irmãos e
irm ãs, além do mais, exigem que um a irm ã, como
qualquer outro m em bro d a família, “ goste m ais” deles.
As crianças pedem-lhe p ara dem onstrar a sua preferência
deixando-os dorm ir com ela, cabendo-lhe am iúde dis­
tribuir seus favores, desde as avós às criancinhas de dois
anos. Os japoneses não gostam de dorm ir sozinhos, po­
dendo um a cam inha de criança ser posta à noite ao lado
da de um adulto escolhido. A prova de que “você gostou
mais de m im ” naquele dia consiste am iúde em estarem as
camas dos dois arrastadas um a junto d a outra. As
m eninas têm direito a compensações, mesmo d urante o
período em que são excluídas dos grupos de brincadeiras
dos meninos, aos nove ou dez anos de idade. Sentem-se
atraídas por novos tipos de penteados e, dos catorze aos
dezoito anos, esses penteados estão entre as coisas mais
esmeradas no Japão. Atingem a m aioridade quando po­
dem usar seda, ao invés de algodão, e quando são en­
vidados todos os esforços para provê-las de roupas que
lhes realcem os encantos. Nesse sentido conseguem as
m eninas algumas satisfações.
Igualm ente, a responsabilidade pelas restrições que
lhes são exigidas é depositada diretam ente sobre elas e
não investida em algum progenitor arbitrariam ente

234
autoritário. Os pais exercem suas prerrogativas não a tra ­
vés de castigos corporais, mas sim através de sua ex­
pectativa calm a e constante de que a m enina corres­
ponderá ao que dela se espera. Vale citar um exemplo
extremo desse treinam ento por revelar tão bem o gênero
de pressão não-autoritária, outro dos característicos da
educação menos severa e privilegiada. Desde a idade dos
seis anos, a pequena Etsu Inagaki aprendeu a decorar os
clássicos chineses, ensinados por um sábio erudito
confuciano.

D urante a m inha lição de duas horas, exceto quanto às mãos e lá­


bios, ele nem por milímetros se moveu. Fiquei eu sentado diante dele na
esteira, em posição igualmente correta e imóvel. A certa altu ra m e movi.
Foi em meio a uma lição. Por algum a razão, agitei-me. balançando o
corpo ligeiramente, perm itindo que o meu joelho dobrado escorregasse
um pouco do ângulo certo. Um vislum bre de surpresa passou pelo rosto
do meu instrutor. Em seguida, com toda a calm a, porém, de ar severo,
disse ele: “ Senhorinha, ê evidente que a sua atitude m ental de hoje não
está apropriada ao estudo. Deve retirar-se p ara o seu quarto e m editar.”
Meu coraçãozinho quase morreu de vergonha. N ada eu podia fazer.
Curvei-me hum ildem ente diante do retrato de Confúcio e depois perante
meu mestre, recuando, a seguir, respeitosamente p ara fora da sala, fui
vagarosamente apresentar-m e ao meu pai, como sem pre fazia, no final
de minha lição. Meu pai mostrou-se surpreso, já que a hora ainda não
chegara e o seu instintivo com entário "Q ue rápida foi a sua lição!” soou
como um toque mortal. A lem brança daquele mom ento dói até hoje
como a ferida. *

E a Sra. Sugimoto sintetiza um a das mais carac­


terísticas atitudes entre fam iliares do Japão, ao referir-se,
em outro trecho, a um a avó:

Serenam ente esperava ela que todos procedessem conforme ela


aprovasse; não havia repreensão nem discussão, apenas a sua ex­
pectativa, branda e consistente como a seda, m antendo a pequena
família nos caminhos que lhe pareciam certos.

Um a das razões por que esta “ expectativa, branda e


consistente como a seda” pode ser tão eficaz se prende a
que a educação seja tão explícita quanto a todas as artes e
habilidades. O h á b i t o é que é ensinado, não apenas as re ­
gras. Quer seja o uso correto dos pauzinhos na infância,
as m aneiras adequadas de entrar num a sala, a cerimônia
do chá ou a massagem posterior na vida, os movimentos

* Sugimoto, Etsu Inagaki. A D a u g h te r o f th e S a m u r a i. Double-


day Page and C om pany, 1926, p. 20.

235
são executados reiterada e literalm ente sob as mãos dos
adultos, até se tornarem autom áticos. Estes não acham
que as crianças irão “ pegar” os hábitos corretos quando
chegue a época de empregá-los. A Sra. Sugimoto n arra
como pu n h a a m esa p ara o m arido, após haver noivado
aos catorze anos. Nunca vira o futuró m arido. Ele se
encontrava nos Estados Unidos e ela em Echigo, mas
vezes sem conta, sob as vistas da m ãe e d a avó, “cozinhei a
comida de que meu irm ão nos disse que M atsuo gostava
especialmente. Sua m esa foi colocada ju n to à m inha e
providenciei p ara que fosse servida sempre antes d a
minha. D este modo aprendi a estar atenta ao conforto de
meu m arido em perspectiva. M inha avó e m inha m ãe
falavam sempre como se M atsuo estivesse presente e eu
cuidava do traje e do com portam ento como se assim
ocorresse. Assim aprendi a respeitá-lo e à m inha posição
de esposa” .*
O rapaz tam bém recebe cuidadoso treinam ento do
hábito, através do exemplo e da imitação, em bora menos
intensivo do que o da moça. U m a vez tenha “aprendido” ,
não se aceita desculpa algum a. Contudo, após a
adolescência, num im portante estágio de sua vida, ele é
deixado em grande parte entregue à própria iniciativa. Os
seus responsáveis não lhe ensinam hábitos de cortejar. O
lar é um círculo de onde está excluída toda a conduta
amorosa, sendo extrem a a segregação de meninos e
m eninas não aparentados, desde os nove ou dez anos. O
ideal do japonês é o de que os pais lhe arranjarão um
casam ento antes que esteja realm ente interessado em
sexo, sendo portanto conveniente que um rapaz seja
“ acanhado” na sua conduta junto às moças. Nas aldeias
verifica-se um a grande quantidade de provocações quanto
ao assunto, o que de fato torna os rapazes “ acanhados” .
Mas eles tentam aprender. Antigam ente, e mesmo
recentem ente nas aldeias mais isoladas do Japão, muitas
moças, às vezes a grande maioria, engravidava antes do
casamento. Essa experiência pré-m atrim onial era um a
“ zona livre” , não relacionada com a parte séria d a vida.
Os pais deviam arranjar os casam entos sem referência a
tais casos. Hoje em dia, porém, conforme declarou um ja ­
ponês ao Doutor Em bree, em Suye M ura, “ Até mesmo

* A D a u g h te r o f th e S a m u r a i. p. 92.

236
um a criada tem educação suficiente p ara saber que deve
conservar a sua virgindade” . Ademais, a disciplina dos
rapazes que vão p ara a escola m édia é rigorosamente
orientada contra qualquer tipo de associação com o sexo
oposto. A educação japonesa e a opinião pública
procuram evitar a fam iliaridade pré-m atrim onial entre os
sexos. Em seus filmes, são considerados “ m aus” os ra ­
pazes que revelam sinais de estarem à vontade com um a
jovem; os bons são aqueles que, aos olhos americanos,
mostram-se bruscos e até mesmo indelicados p ara com
um a moça bonita. E star à vontade com um a moça sig­
nifica que esses rapazes “ andaram por aí” ou fre­
qüentaram gueixas, prostitutas ou artistas de café-
concerto. A casa das gueixas é a “ m elhor” m aneira de
aprender porque “ ela o ensina. É só o hom em relaxar e
apenas observar” . Não precisa ter medo de revelar-se
desajeitado, sendo que não se espera ten h a relações
sexuais com a gueixa. Mas não são muitos os rapazes ja ­
poneses capazes de custear um a ida à casa de gueixas. Po­
dem ir aos cafés e observar como os homens lidam com as
moças, no entanto isto não constitui o tipo de educação
que aprenderam a aspirar em outros campos. Os rapazes
conservam por longo tempo o seu tem or ao desaire. O
sexo é um dos poucos setores de suas vidas onde têm de
aprender algum novo tipo de conduta sem a tutelagem
pessoal de responsáveis acreditados. Famílias de posição
providenciam p ara o jovem par, na ocasião do casamento,
“livros de noivos” e quadros com muitos retratos por­
menorizados, pois, conforme disse um japonês: “ Pode-se
aprender nos livros da mesma m aneira como se aprendem
as regras p ara fazer um jardim . O seu pai não lhe ensina
como fazer um jardim japonês; é um passatem po que se
aprende quando se é mais velho”. A justaposição de sexo
e jardinagem como duas coisas que se aprendem dos li­
vros é interessante, m uito em bora a m aioria dos jovens ja ­
poneses aprenda o com portam ento sexual de outras
m aneiras. Seja como for, não aprendem através de m e­
ticulosa tutelagem dos adultos. Esta diferença de
treinam ento assinala p ara o rapaz a opinião japonesa de
que o sexo é um setor afastado da parte séria da vida
presidida pelos mais velhos e para a qual educam m e­
ticulosamente seus hábitos. É um setor de auto-satisfação
por ele dom inada com muito receio de constrangim ento.

237
São dois setores com regras diferentes. Após o casam ento
ele poderá desfrutar de prazeres sexuais alhures, sem n a ­
da de sorrateiro, e, assim procedendo, não infringe os
direitos d a esposa nem ameaça a estabilidade do
casamento.
A esposa não tem o mesmo privilégio. O seu dever
consiste na fidelidade ao marido. E la teria de ser sorra­
teira. Mesmo quando possa ser tentada, são com ­
parativam ente poucas as mulheres que vivem no Japão
com o isolamento suficiente p ara perm itir um caso
amoroso. As m ulheres consideradas nervosas ou instáveis
são tidas como portadores de h y s t e r i . “ O problem a mais
freqüente das m ulheres prende-se não à sua vida social, e
sim à sexual. M uitos casos de loucura e a m aioria dos de
h y s t e r i (nervosismo, instabilidade) são claram ente devidos
a desajustam entos sexuais. U m a moça deverá receber o
que o m arido lhe vá d ar de satisfação sexual.” * A
m aioria das doenças das m ulheres, afirm am os fazen­
deiros em Suye M ura, “ começa no ventre” e depois sobe à
cabeça. Q uando o m arido volta o seu interesse p ara fora
de casa, ela poderá recorrer ao autorizado costume ja ­
ponês d a m asturbação, dando as m ulheres grande valor
aos tradicionais utensílios p a ra tal propósito, desde as
aldeias campesinas aos lares dos poderosos. Nas aldeias,
ademais, permitem-lhe certas exuberâncias de conduta
erótica, um a vez tenha tido filho. Antes de ser mãe, é
incapaz de um gracejo a respeito de sexo, mas depois, e à
m edida que vem a idade, a sua conversa num a reunião
mista é repleta deles. Além disso, diverte ela a todos com
danças sexuais bastante livres, sacudindo p ara a frente e
para trás os quadris, ao acom panham ento de canções
irre v e re n te s. “ T a is d e sem p e n h o s p ro v o cam in ­
variavelmente gargalhadas estrepitosas” . Aliás, em Suye
M ura, quando os recrutas eram recebidos nos arredores
da aldeia, de volta do serviço militar, as mulheres vestiam-
se de homens, diziam gracejos obscenos e fingiam violar
mocinhas.
Por conseguinte, quanto mais m odestam ente nas­
cidas as mulheres japonesas, tanto m ais lhes são con­
cedidos certos tipos de liberdade concernentes a assuntos
sexuais. Devem elas respeitar muitos tabus durante a

* Em bree F. S u y e M u r a . p. 175.

238
maior parte de suas vidas, não existindo, porém, nenhum
que lhes exija negar que conhecem as coisas da vida.
Q uando apraz aos homens, m ostram -se obscenas. Do
mesmo modo, m ostram -se assexuadas. Q uando atingem a
idade m adura, poderão desprezar os tabus e, se forem de
origem modesta, tornar-se tão licenciosas quanto os
homens. Os japoneses visam a conduta adequada às
várias idades e ocasiões, m ais do que a consistência dos
caracteres, com a “ m ulher p u ra ” e a “ sirigaita” do Oci­
dente.
O homem tam bém tem as suas exuberâncias, como
tam bém as zonas em que é exigida grande restrição. Be­
ber em com panhia masculina, especialm ente com as­
sistência de gueixas, é um a satisfação dás m ais aprecta-
das. Os japoneses gostam de ficar ligeiramente ébriõs, nàò
havendo regra que solicite de um hom em agüentar im ­
perturbável a ingestão do que beba. Relaxam as suas ati­
tudes form ais após pequenas doses de s a k e e gostam de sé
apoiar uns nos outros, com m aior intim idade. Raram ente
se m ostram violentos ou agressivos quando embriagados,
embora bs mais intratáveis possam tornar-se belicosos.
Afora essas “zonas livres” como a bebida, nunca deverão
os homens mostrar-se, como dizem eles, inesperados. Re­
ferir-se a alguém, em meio à condução séria de sua vida,
como inesperado é o mais próximo que um japonês chega
de um a imprecação, à exceção da palavra “ idiota” .
As contradições assinaladas no caráter japonês pelos
ocidentais são compreensíveis dada a sua orientação na
infância, que produz um a dualidade em sua perspectiva
de vida, onde nenhum dos lados pode ser desprezado.
Através de sua experiência de privilégio e de equilíbrio
psicológico na prim eira infância, eles conservam em meio
a todas as disciplinas da vida ulterior, a lem brança de
um a vida mais despreocupada, quando “ não sentiam
vergonha” . Não precisam p intar um céu no futuro, já^o
têm no passado. Reform ulam a infância com a sua
doutrina da bondade^inata do homem, da benevolência
dos seus deuses e da incomparável excelência de ser ja ­
ponês. O mais fácil para eles é basear a sua ética em
interpretações extremas da “ semente de Buda” em cada
homem e de todos eles transform arem -se em kam i por
morte, o que lhes confere positividade e certa auto­
confiança. Sublinha-lhes a freqüente disposição de

239
em preender qualquer tarefa, por mais acim a que possa
parecer de sua capacidade. Sublinha-lhes a sua prontidão
em opor o seu julgam ento até mesmo ao próprio Governo,
testem unhando-o através do suicídio. O casionalm ente os
leva à m egalom ania de massa.
G radualm ente, completos seis ou sete anos de idade,
impõe-se-lhes a responsabilidade d a circunspeção e do
“ sentir vergonha” , apoiada pela m ais drástica das
sanções: a de que a própria fam ília se voltará co n tra eles
se falharem ? Não se trà tã de um a pressão de disciplina
prussiana? porém, é inevitável. D urante o seu privilegiado
período inicial, preparou-se o terreno p ara tal evolução,
tanto através da ineludível educação de hábitos e atitudes
infantis, como m ediante a provocação dos pais, a am ea­
çarem de rejeição a criança. Essas experiências prem a­
turas preparam a criança para aceitar grandes restrições
impostas, ao lhe dizerem que o m undo há de rir dela e re ­
jeitá-la. Am ortalha ela então os impulsos que antes tão li­
vremente expressou, não por serem m aus e sim por ina­
dequados no momento. Está, agora, ingressando na vida
séria. A m edida que lhe vão negando os privilégios d a
infância, asseguram-lhes as recompensas de um a idade
adu lta cada vez mais excelente, porém , jam ais ver­
dadeiram ente se desvanecem as experiências daquele
primitivo período. Recorre largam ente a elas na sua
filosofia de vida. Igualm ente a elas se reporta em sua
licença quanto aos “sentimentos hum anos” . E de novo as
experim enta por toda a idade adulta, nas suas “ zonas li­
vres” de existência.
H á um a notável continuidade ligando os períodos
inicial e posterior d a vida da criança, qual seja, a grande
im portância em ser aceita por seus semelhantes. É isto, e
não um padrão absoluto de virtude, que nela é incutido.
Na prim eira infancia a m ãe a levava p ara a sua cama, ao
atingir a idade em que fosse capaz de pedir; como sinal de
ascendência na afeição m aterna, contava as balas que
recebia juntam ente com os irmãos e irmãs; rápido
observava um a vez fosse omitido, indagando até mesmo à
irmã mais velha: “ Você gosta m a i s de m im ?” Num perío­
do posterior pedem-lhe p ara renunciar mais e mais às sa­
tisfações pessoais, sendo a recom pensa prom etida a de
que será apoiada e aceita pelo “ m undo” . O castigo
consistirá no m undo rir dela. Está claro ser esta uma

240
sanção invocada na educação infantil de m uitas culturas,
porém, no Japão é ela excepcionalmente grave. A rejeição
pelo “ m undo” foi dram atizada p ara a criança através da
provocação dos pais, am eaçando livrar-se dela. Por toda
a sua vida, o ostracismo é m ais tem ido do que a violência,
daí m ostrar-se ela alérgica a am eaças de situações ri­
dículas e rejeição, mesmo quando apenas as invoca na
mente. Por haver poucas possibilidades de isolamento na
comunidade japonesa, passa a não ser fantasia alguma,
aliás, que “ o m undo” saiba praticam ente tudo o que uma
criança faz, podendo rejeitá-la, caso desaprove, Até
mesmo a construção da casa japonesa — as delgadas
paredes que perm item a passagem de sons, habitualm ente
corridas d urante o dia — torna a vida privada ex­
trem am ente pública para os que não podem ter m uro e
jardim .
Certos símbolos usados pelos japoneses ajudam a
elucidar os dois lados de seu caráter, estribados na
descontinuidade de sua educação infantil. O lado erigido
no período mais antigo é o do “ ser sem vergonha” , tes­
tando eles até que ponto o conservaram ao fitarem no
espelho os próprios rostos. O espelho, dizem eles, “ reflete
a pureza eterna” . Não alim enta a vaidade, nem reflete o
“ ser perturbador” . Reflete as profundezas da alma. A
pessoa deveria ver ali o seu “ser sem vergonha” . No es­
pelho ela vê os próprios olhos como a “ p o rta” d a alma e
isto a ajuda a viver como um “ ser sem vergonha” . Vê ela
ali a imagem idealizada dos pais. Conta-se de homens que
trazem sempre consigo um espelho p ara tal propósito,
fala-se até mesmo de um que instalou um espelho especial
no seu santuário doméstico a fim de contemplar-se e
examinar a alm a, sacralízando-se e adorando-se. Era
desusado, mas tratava-se, contudo, de apenas um pe­
queno passo a dar, pois em todos os santuários domésticos
xintós figuram espelhos como objetos sagrados. D urante a
guerra, a rádio japonesa transm itiu um hino especial de
louvor p ara um a classe de alunas que com prara um es­
pelho. Não se cogitava fosse um sinal de vaidade, sendo
antes apresentado como um a nova forma de dedicação a
serenos propósitos nas profundezas de suas almas. Olhar
nele constituía um rito externo, a testem unhar a virtude
de seu espírito.

241
Os sentimentos japoneses concernentes ao espelho
originam-se do tem po antecedente ao “ ser observador”
haver sido incutido na criança. Eles não vêem o “ser
observador” no espelho. Ali os seus seres m ostram -se
espontaneam ente bons, conforme eram na infância, sem a
guia d a “ vergonha” . O mesmo simbolismo atribuído por
eles ao espelho constitui igualmente a base de suas idéias
de “ perita” autodisciplina, em que se treinam com tan ta
persistência a fim de elim inar o “ ser observador” e
recuperar a retidão d a prim eira infância.
A despeito de todas as influências que um a p ri­
vilegiada prim eira infância exerce sobre os japoneses, as
restrições do período subseqüente, quando a vergonha
passa a ser a base d a virtude, não são apenas encaradas
como privações. Como vimos, o auto-sacrifício vem a se
constituir num dos conceitos cristãos mais amiúde
contestados por eles: repudiam a idéia de que se estejam
sacrificando. Ao invés disso, mesmo em casos extremos,
os japoneses falam de m orte “voluntária” em pagam ento
de chu, ko ou giri, o qüe~pãra eles não parece se en­
quadrar na categoria de auto-sacrifício. U m a morte
voluntária dessas, dizem eles, alcança um objetivo que a
própria pessoa almejou. De outro m odo teria sido um a
“ jnorte de cão” , o que p ara eles significa u m a m orte inútil
e não o que em nosso idiom a se entende como m orte na
sarjeta. Linhas menos extremas de conduta, ademais, que
para nós se denom inam de auto-sacrifício, em japonês
pertencem à categoria d a dignidade. A dignidade (jicho)
quer dizer sempre restrição, que, aliás, é tão valiosa
quanto aquela. G randes coisas som ente podem ser al­
cançadas através do autodom ínio, sendo que a ênfase
am ericana sobre a liberdade como requisito indispensável
à consecução jam ais lhes pareceu, com as suas ex­
periências diferentes, como sendo adequada. Aceitam
como principal doutrina em seu código a idéia de que
através do autodom ínio tornam -se eles m ais valiosos. De
que outro modo conseguiriam controlar suas perigosas
individualidades, cheias de impulsos, prontas a irrom ­
perem, desordenando um a vida decente? Como disse um
japonês:

Q u an to mais cam adas de verniz sao lançadas sobre a base, através


de diligente trabalho pelos anos afora, tanto mais valioso resulta o la-
queado como obra acabada. Assim é com um povo . . . Diz-se dos

242
russos: “ Raspe um russo que por baixo encontrará um tártaro .” Com
igual justiça se poderia dizer dos japoneses: “ Raspe um japonês, tire to ­
do o verniz, que encontrará um p irata.” E ntretanto, não deve ser es­
quecido que no Japão o verniz é um produto valioso, um subsidio ao
artesanato. Nada tem ele de ilegítimo, não se tra ta de um reboço a cobrir
defeitos. Pelo menos, vale tanto quanto a substância que adorna.*

As contradições da conduta m asculina japonesa, tão


patentes para os ocidentais, verificam-se devido à des-
continuidade dç sua criação, que lhes deixa na cons­
ciência, mesmo após todo o “envem izam ento” por que
passam , a m arca profunda de um período em que foram
como pequenos deuses no seu pequeno m undo, quando
tinham a liberdade de satisfazer até mesmo às suas
agressões, e quando todas as satisfações pareciam -lhes ao
alcance. Devido a este dualismo profundam ente arrai­
gado, oscilam eles, quando adultos, dos excessos do am or
romântico à mais completa submissão à família. Podem
entregar-se aos ócios e prazeres, por mais compromissos
que tenham . O seu treino de circunspeção torna-os um
povo amiúde tímido em suas ações mas, no entanto, são
valentes, a ponto de tem erários. Ainda que se revelem no­
tavelmente submissos em situações hierárquicas, tal não
significa que sejam de pronto dóceis à um controle de
cima. A despeito de toda a sua cortesia, são capazes de
conservar arrogância. Mesmo aceitando um a fanática
disciplina no Exército, não deixam por isso de ser
in su b o rd in a d o s . Em se m o stra n d o a rd e n te m e n te
conservadores, não há dúvida de que se revelam atraídos
por caminhos novos, como vêm sucessivamente d e­
m onstrando na sua adoção dos costumes chineses e da
cultura ocidental.
O dualism o de seus caracteres origina tensões às
quais diferentes japoneses respondem de diferentes
m aneiras, embora cada um esteja elaborando a própria
solução do mesmo problem a essencial de reconciliar a
espontaneidade e aceitação experim entadas na prim eira
infância com as restrições que prometem segurança mais
tarde na vida. Muitos têm dificuldades em resolver este
problem a. Alguns asseguram-se conduzindo suas vidas
como pedantes, tem endo intensam ente qualquer encontro
espontâneo com a vida. T anto m aior é o receio, já que a

*1 Nohara, Komakichi. T h e T ru e F a c e o fJ a p a n . Londres, 1936, p.


50.

243
espontaneidade não constitui fantasia e sim algo que
outrora experim entaram . Conservam-se distantes e, uma
vez aderindo às regras de que se apossaram , parece-lhes
ter se identificado com tudo o que se refere à autoridade.
Outros são mais desligados. Tem em a própria agressi­
vidade que represam n a alm a, recobrindo-a com um a
delicada conduta superficial. Costum am ocupar os
pensam entos com minúcias triviais, a fim de afastar a
consciência dos seus sentimentos verdadeiros. M ostram -
se m aquinais no desem penho de um a rotina disciplinada,
fundam entalm ente sem sentido p ara eles. Outros, mais
absorvidos pela prim eira infância, sentem um a angústia
devoradora frente a tudo que lhes é exigido como adultos
e tentam aum entar a sua dependência quando não mais
adequada. Sentem que qualquer fracasso constitui um a
agressão contra a autoridade e qualquer esforço os coloca
em grande agitação. Situações imprevistas impossíveis de
serem governadas pelo hábito são apavorantes para eles.*
São estes os perigos característicos a que estão ex­
postos os japoneses, quando a sua angústia concernente à
rejeição e censura revela-se excessiva p ara eles. Q uando
não se acham oprim idos, dem onstram em suas vidas tanto
a capacidade de gozá-las como o cuidado de não pisar nos
pés dos demais, o que lhes foi incutido pela educação. Ê
um feito assaz notável. A sua prim eira infância pro-
porcionou-lhes positividade, sem despertar nenhum
opressivo sentimento de culpa. As restrições posteriores
foram impostas em nome da solidariedade p ara com os
semelhantes e as obrigações são recíprocas. Existem
“ áreas livres” assinaladas, onde a vida impulsiva pode ser
satisfeita ainda, por mais que as outras pessoas venham a
interferir com os seus desejos em determ inados assuntos.
Os j aponeses sempre foram famosos pelo prazer que
extraem das coisas simples: contem plação do florescer
das cerejeiras, a lua, os crisântemos ou a neve recém-
caída, a guarda de insetos engaiolados em casa, p ara ouvi-
los “ can tar” , escrever versinhos, fazer jardins, a rrü m ãr as
flores e beber o chá cerimonial. Não se trata, pois, de ati­
vidade dê um povo profundam ente perturbado e agressi­
vo. Tam pouco se entregam com relutância a seus-

* Casos baseados em lestes de Rorschach, m inistrados em ja ­


poneses do campo de recolocação de guerra pela Dra . Dorothea Lei-
ghton e analisados oor Francês Holter.

244
prazeres. U m a comunidade rural japonesa nos tempos
felizes, anteriores ao em barcar do Japão na sua desastrosa
Missão, poderia mostrar-se, nas suas horas de ócio, tão
alegre e eufórica como a de qualquer outro povo e, nas
suas horas de trabalho, tan to mais laboriosa.
Mas os japoneses exigem muito de si. A fim de evitar
as grandeTãm eaças de ostracismo e difam ação, têm de
abrir m ão de satisfações pessoas que se acostum aram a
apreciar. Nos negócios im portantes da vida, devem pôr
debaixo de chaves tais impulsos. Os poucos que violam
esse padrão correm o risco de perder até mesmo o respeito
próprio. Os que se respeitam (jicho) traçam o seu curso
não entre “bom ” e “ m au” , mas sim entre “ homem es­
perado” e “ homem inesperado” , imergindo as suas exi­
gências pessoais na “expectativa” coletiva. São estes os
homens bons que “sentem vergonha (haji)” e são con­
tinuam ente circunspetos, os que honram suas famílias,
suas aldeias e o seu país. As tensões assim geradas são
enormes, expressando-se num nível elevado de aspiração
que fez do Japão um líder no Oriente e um a grande po­
tência no m undo. Constituem elas, porém , um grande
esforço p a ra o indivíduo. Os homens devem estar sempre
vigilantes tem endo cair ou que alguém deprecie seus
desempenhos num rum o de ação que lhes custou tanta
abnegação. As vezes há os que explodem nos atos mais
agressivos. São levados a eles não quando os seus princí­
pios ou a sua liberdade são desafiados, como acontece
com os americanos, mas sim quando pilham algum
insulto ou difam ação. Entram aí em erupção os seus lados
perigosos, atiçados contra o detrator, se for possível ou,
então, contra si mesmos.
Os japoneses pagaram um preço elevado por seu mo­
do de viver, recusando a si próprios pequenas liberdades,
com que contam os americanos, tão incondicionalmente
quanto o ar que respiram. Devemos lem brar-nos que,
agora que os japoneses visam à d e - m o k - r a - s i e desde a sua
derrota, o quão inebriante poderá ser p ara eles agir
simples e inocentemente conforme se queira. Ninguém
expressou melhor isto do que a Sra. Sugimoto, des­
crevendo o jardim plante-com o-quiser que lhes deram na
escola missionária de Tóquio, p ara onde foi enviada, a fim
de aprender inglês. Os professores deixaram que cada
menina tivesse um pedaço de terreno inculto e as
sementes que quisesse.

245
Este jardim plante-com o-quiser forneceu-m e um sentim ento in ­
teiram ente novo de direito p esso al. . . O próprio fato de que um a felici­
dade dessas pudesse existir no coração hum ano constituía um a surpresa
para mim . . . Eu. sem violação algum a da tradição, sem m ancha al­
gum a p ara o nome de família, sem choque algum p ara meus pais, p ro ­
fessores, gente da cidade, sem prejuízo p ara ninguém no m undo, estava
livre p ara agir. *

Todas as outras m eninas plantaram flores. Ela


dispôs-se a plantar . . . batatas.

Ninguém im agina a sensação de arrojada liberdade que me deu este


ato disparatado . . . O espírito da liberdade veio bater-m e à porta.

E ra um novo mundo.

E m m inha casa havia um a parte do jardim tid a como inculta . . .


Mas alguém sempre se achava aparando os pinheiros ou cortando a se­
be, sendo que todas as m anhãs Jiya lavava as pedras de pisar e, após
varrer debaixo das árvores, espalhava cuidadosam ente agulhas novas de
pinheiros, apanhadas na floresta.

Este estado selvagem sim ulado comparava-se, p ara


éla, à sim ulada liberdade de vontade em que fora educa­
da. E o Japão inteiro estava repleto dela. Todo penedo
m eio-enterrado dos jardins japoneses foi cuidadosam ente
escolhido, transportado e instalado sobre um a plataform a
oculta de pedrinhas. Sua colocação é cuidadosam ente
calculada com relação ao rio, à casa, aos arbustos e às
árvores. Do mesmo modo, os crisântem os são cultivados
em vasos e preparados p ara as exposições florais anuais,
com cada pétala perfeita separadam ente disposta pela
mão do cultivador e amiúde m antida no lugar por um a
m inúscula arm ação de aram e invisível inserida na própria
flor.
O arrebatam ento da Sra. Sugimoto quando teve a
oportunidade de dispensar a arm ação de aram e foi
venturoso e inocente. O crisântem o cultivado no vasinho,
submetido à disposição meticulosa de suas pétalas, desco­
briu a alegria pura de ser natural. Mas hoje em dia entre
os japoneses, a liberdade de ser “ inesperado” , de con­
testar as sanções de haji (vergonha), poderá abalar o
delicado equilíbrio de seu modo de viver. Sob um a nova
disposição terão de ir se inteirando de novas sanções. E a

* A D a u g h te r o f th e S a m u r a i. pp. 135-136.

246
m udança é custosa. Não é fácil elaborar novas pressuposi­
ções e novas virtudes. O m undo ocidental nem poderá
supor que os japoneses cheguem de pronto a assumi-las e
assimilá-las, nem irá im aginar que o J a p io não acabe ela­
borando u m a ética mais livre e menos rigorosa. Os nisseis
dos Estados Unidos já perderam o conhecimento e a p rá ­
tica do código japonês e nada na sua ascendência os
prende rigidam ente às convenções do país de onde vieram
seus pais. Portanto, os japoneses do Japão podem,
igualmente, num a era nova, organizar um a nova m aneira
de viver que não exija os antigos requisitos da restrição
individual. Os crisântemos podem ser belos sem as ar­
mações de a ra m e e a drástica poda.
~ Nesta transição para um a m aior liberdade psíquica,
os japoneses dispõem de certas antigas virtudes tra ­
dicionais que podem ajudá-los a conservar a estabilidade.
U m a delas é aquela auto-responsabilidade, por eles
expressa como a sua consideração pela “ferrugem do meu
corpo” —- aquela figura de linguagem que identifica o
próprio corpo com um a espada. Assim como aquele que
utiliza a espada é responsável pelo seü refulgente brilho,
assim tam bém cada hom em deverá aceitar a res­
ponsabilidade pela conseqüência de seus atos. Deverá ele
reconhecer e aceitar todas as conseqüências naturais de
sua fraqueza, falta de persistência, ineficácia. A auto-
responsabilidade é interpretada de form a m uito mais
drástica no Japão do que na América livre. Neste sentido
japonês, a e sp a d a torna-se, não um símbolo de agressão,
mas sim um a analogia do homem ideal e auto-
responsável. N enhum a balança funcionará m elhor do que
èsta virtude, num a disposição que respeita a liberdade
individual, um a vez que a educação infantil japonesa e a
filosofia de conduta inculcaram -na como parte do E s­
pírito Japonês. Hoje em dia o Japão propôs-se “ pôr de la­
do a espada” no sentido ocidental. No seu sentido ja ­
ponês. conservam eles com tenacidade inabalável a sua
preocupação em m anter uma espada íntim a, livre da
ferrugem que sempre a ameaça. Na sua fraseologia de
virtude, a espada constitui um símbolo que eles podem
conservar num m undo mais livre e mais* pacífico.

247
13. O S JA PO N ESES D E S D E O D IA D A V IT Ó R IA

Os americanos têm boas razões p ara se orgulhar do


seu papel na adm inistração do Japão desde o D ia da Vi­
tória. 0 plano de ação norte-am ericano ficou estabelecido
na diretriz de Estado-G uerra-M arinha, transm itido pelo
rádio a 29 de agosto, e foi adm inistrado com h abi­
lidade pelo General Mac A rthur. Os excelentes motivos
para tal orgulho têm sido am iúde obscurecidos pelas
críticas e louvores partidários na im prensa e no rádio
americanos, com pouca gente sabendo o suficiente acerca
da cultura japonesa p ara poder certificar-se se d e­
term inada política era desejável ou não.
A grande questão na época da rendição do Japão era
a natureza da ocupação. Iriam os vencedores utilizar o

249
governo existente, até mesmo o Im perador, ou seria ele li­
quidado? Iria haver um a adm inistração de cidade-por-
cidade, província-por-província, com os oficiais do Go­
verno M ilitar dos Estados Unidos no comando? Os sis­
tem as na Itália e na A lem anha levaram à instalação de se­
des locais do G.M .A., como partes integrantes das forças
de combate, colocando a autoridade p ara assuntos
domésticos locais nas mãos de adm inistradores aliados.
No Dia da Vitória, os encarregados do G.M .A. no Pacífico
ainda esperavam instituir um governo desses no Japão. Os
japoneses não sabiam tam bém que responsabilidade p e­
las próprias questões teriam perm issão de conservar.
A Proclam ação de Potsdam estabelecera apenas que
“ pontós do território japonês a serem designados pelos
Aliados serão ocupados a fim de assegurar os objetivos
básicos que aqui estamos expondo” e que deverá ser
elim inada p ara sempre “ a autoridade e influência d a ­
queles que enganaram e transviaram o povo do Japão no
sentido de empreenderem a conquista do m undo” .
A diretriz Estado-G uerra-M arinha confiada ao
general Mac A rthur incluía um a grande decisão sobre
essas questões, totalm ente apoiada pelo seu Q uartel
General. Os japoneses iriam ser responsáveis pela a d ­
m inistração e reconstrução de seu país. “ O C om andante
Supremo exercerá a sua autoridade através do mecanismo
governamental japonês e de órgãos, inclusive o Im ­
perador, na m edida em que isto satisfatoriam ente fa­
voreça os objetivos dos Estados Unidos. O governo ja ­
ponês terá a permissão, sob as suas instruções (do general
Mac Arthur), de exercer os poderes norm ais de governo
em questões de adm inistração dom éstica” . A a d ­
m inistração do Japão por parte do general Mac A rthur é,
portanto, de todo diférente d a da A lem anha ou Itália. É
exclusivamente um a organização de comando, utilizando
o funcionalismo japonês, do topo à base. Dirige os seus
comunicados ao Governo Im perial Japonês e não ao povo
japonês ou aos residentes de algum a cidade ou província.
Süa função é estabelecer as metas a serem alcançadas
pelo governo japonês. Se um M inistro japonês julgá-las
irrealizáveis, poderá apresentar a sua renúncia, e, se a sua
causa for boa, poderá conseguir a m odificação d a diretriz.
Este tipo de adm inistração constituía um audacioso
passo. As vantagens deste plano de ação do ponto de vista

250
dos Estados Unidos são bastante claras. Como disse o
general H illdring na ocasião:

A s vantagens obtidas através do governo nacional são imensas. Se


não existisse governo japonês disponível p a ra nosso uso, teríam os de
operar diretam ente toda a com plicada m áquina necessária para a
adm inistração de um país de setenta milhões de habitantes. Este povo
difere de nós em língua, costumes e atitudes. M ediante a limpeza e a
utilização do mecanismo do governo japonês como um instrum ento,
estaremos economizando o nosso tem po, a nossa m ão-de-obra e os
nossos recursos. Em outras palavras, estamos exigindo dos japoneses
que façam a sua própria limpeza de casa, mas as especificações for­
necemos nós.

Q uando esta diretriz estava sendo traçada em


W ashington, entretanto, muitos am ericanos ainda
tem iam que os japoneses fossem se m ostrar intratáveis
e hostis, configurando-se um país de vingadores alertas
que sabotassem quaisquer program as de paz. Esses
temores não comprovaram serem justificados. E residem
as razões na curiosa cultura do Japão, m ais do que em
quaisquer verdades universais, sejam elas políticas ou
econômicas, acerca de países derrotados. Provavelmente
em nenhum outro país como no Japão teria compensado
tanto um a política de boa fé. Aos olhos dos japoneses
removeu esta do puro fato da derrota os símbolos da
hum ilhação, desafiando-os a pôr em execução um a nova
política nacional, cuja aceitação somente foi possível
precisamente devido ao caráter culturalm ente con­
dicionado dos japoneses.
Nos Estados Unidos discutimos interm inavelm ente
acerca de condições de paz rigorosas e brandas. A questão
verdadeira não é serem rigorosas ou brandas. O problem a
consiste em utilizar a dose certa de rigor, nem mais nem
menos, que irá romper artigos e perigosos padrões de
agressividade e estabelecer novas metas. Os meios a serem
escolhidos dependem do caráter do povo e da ordem
social tradicional do país em questão. O autoritarism o
prussiano, im plantado como está na fam ília e na vida
cívica cotidiana, torna necessários certos tipos de con­
dições de paz p ara a Alemanha. Diretrizes sábias de paz
teriam de diferir das do Japão. Os alem ães não se consi­
deram , como os japoneses, devedores do m undo e dos
séculos. Lutam, não p ara pagar um a dívida incalculável e
sim p ara evitar serem vítimas. O pai é um a figura autori­

251
tária e, como qualquer outra pessoa de posição superior,
ele é quem, segundo a expressão, “ compele o respeito” .
Ele é quem se sente am eaçado se não o obtiver. Na vida
alemã, cada geração de filhos revolta-se na adolescência
contra os pais autoritários e se considera, por fim, rendida
à idade adulta, a um a vida m onótona e pouco excitante,
que identifica com a dos pais. O ponto alto da existência
perd u ra como sendo os anos de S t u r m u n d D r a n g da re­
volta adolescente.
O problema da cultura japonesa não é o autori­
tarism o grosseiro. O pai é um a pessoa que tra ta seus
filhos jovens çom respeito e tern u ra tidos como ex­
cepcionais, na experiência deste hemisfério, pelos
observadores ocidentais. De vez que a criança japonesa
tem como certos determ inados gêneros de real com ­
panheirism o em relação ao pai, dele se orgulhando
abertam ente, um a simples m udança de voz da parte deste
leva a criança a cum prir os seus desejos. Nada tem o pai,
pois, de excessivamente rigoroso com os filhos e a
adolescência não é um período de revolta contra a autori­
dade paterna. É antes uma época em que as crianças
tornam -se representantes responsáveis e obedientes da
fam ília perante os olhos julgadores do mundo.
Dem onstram respeito aos pais “ por costum e” , “ por
educação” , isto é, constituem eles um objeto de respeito
que é um símbolo despersonalizado de hierarquia e da
conduta de vida conveniente.
Tal atitude, aprendida pela criança desde as
prim eiras experiências com o pai, elabora-se num padrão
para toda a sociedade japonesa. Os que são alvo das mais
profundas provas de respeito por sua posição hierárquica
não exercem caracteristicam ente poder algum arbitrário.
Os que se encontram no topo da hierarquia tipicam ente
não exercem a autoridade verdadeira. Do Im perador para
baixo, conselheiros e forças ocultas operam nos bas­
tidores. U m a das mais precisas descrições destes aspectos
da sociedade japonesa foi fornecida pelo líder de uma das
sociedades superpatrióticas do tipo do Dragão Negro a
um repórter de um jornal inglês em Tóquio, nos
primórdios da década de 30. “A sociedade” , disse ele, re­
ferindo-se evidentemente à japonesa, “ é um triângulo
controlado por um alfinete em um dos cantos” .* O

* Citado por U pton Close. B e h in d th e F a c e o fJ a p a n . ! 942. p. 136.

252
triângulo, em outras palavras,, jaz na m esa p ara todos
verem. O alfinete é invisível. As vezes, o triângulo está
p ara a direita, outras, p a ra esquerda. G ira num eixo
que nunca se revela. Tudo é feito, como costum am dizer
os ocidentais, “com espelhos” . C ada esforço é feito p ara
reduzir ao mínimo a aparência de autoridade arbitrária,
fazendo cada ato assem elhar-se a um gesto de fidelidade
ao símbolo de categoria, continuam ente desligado do
verdadeiro exercício do poder. Q uando os japoneses
identificam de fato um a fonte de poder a descoberto,
consideram -na tal qual ao agiota e ao n a r i k i n , como
exploradora e indigna do seu sistema.
Os japoneses, considerando o seu m undo desta
m aneira, são capazes de encenar revoltas contra a ex­
ploração e a injustiça, sem jam ais se tornarem re­
volucionários. Não se propõem a rasgar em pedaços a
contextura do mundo. Podem instituir as mais completas
m udanças, como fizeram no período Meiji, sem contudo
aspergir sobre o sistema. D enom inaram -na Restauração,
um “ m ergulho” no passado. Não são revolucionárips e os
escritores ocidentais que basearam suas esperanças em
movimentos ideológicos de m assas no Japão, que durante
a guerra exageraram a am plitude do movimento clan­
destino japonês, contando que passasse a liderar na
rendição e que desde o Dia da Vitória profetizaram o
triunfo da política radical nas urnas, incorreram em grave
incompreensão da situação, errando em seus próprios
prognósticos. O prim eiro-m inistro conservador, o Barão
Shidehara, expressou-se com m aior precisão quanto aos
japoneses ao form ar o seu gabinete em outubro de 1945:

O governo do novo Japão tem um a form a dem ocrática que respeita


a vontade do povo . . . Desde os antigos tempos, em nosso país, o Im ­
perador fez da sua vontade a vontade do povo. É este o espírito da
Constituição do Im perador Meiji e o governo dem ocrático de que falo
pode ser considerado verdadeiram ente um a manifestação do seu es­
pírito.

Tal expressão de dem ocracia parecerá menos do que


nada para os leitores norte-am ericanos, m as não há dúvi­
da de que o Japão conseguirá mais prontam ente am pliar a
zona das liberdades civis e estru tu rar o bem -estar de seu
povo na base dessa identificação do que na da ideologia
ocidental.

253
O Japão, sem dúvida, há de fazer experiências com os
mecanismos políticos d a democracia, m as as m edidas oci­
dentais não constituirão instrum entos dignos de con­
fiança capazes de m odelar um m undo melhor, como
acontece nos Estados Unidos. As eleições populares e a
autoridade legislativa de pessoas eleitas criarão tantas d i­
ficuldades quanto as resolverão. Q uando essas d i­
ficuldades proliferarem, o Japão m odificará os métodos
sobre os quais nos apoiamos p ara alcánçar a democracia.
Erguer-se-ão, então, vozes am ericanas p ara proclam ar
que a guerra foi em vão. Acreditam os na retidão dos
nossos instrumentos. Q uando muito, pelo menos, as elei­
ções populares hão de ser periféricas à reconstrução ja ­
ponesa como nação pacífica, por m uito tem po ainda.
Desde a últim a década do século passado, quando
prim eiro teve experiência de eleições, o Japão qão m udou
tão fundam entalm ente, a ponto de não poderem ter
ocorrido algumas das antigas dificuldades então delinea­
das por Lafcadio Hearn:

Não havia realm ente anim osidade pessoal naquelas furiosas d is­
putas eleitorais que custaram tantas vidas; pouco antagonism o pessoal
havia naqueles debates parlam entares cuja violência assom brava os
estrangeiros. As lutas políticas não eram de fato entre indivíduos, mas
entre interesses de clãs ou de partidos. Os devotados sectários de cada
clã ou partido é que somente entendiam a nova política como um novo
tipo de g u e rra— um a guerra de lealdade a ser com batida por dedicação
ao Hder.*

Em eleições mais recentes, na década de 20 deste


século, os aldeões costumavam dizer antes de lançarem
seus votos: “ Meu pescoço está limpo p ara a espada” , um a
expressão que identificava a disputa com os antigos a ta ­
ques dos samurais privilegiados contra o povo. Mesmo
hoje em dia, todas as implicações de eleições no Japão d i­
ferirão das dos Estados Unidos, isto se verificando mesmo
independente de estar ele ou não em preendendo perigosas
políticas agressivas.
A verdadeira força do Japão, por ela podendo ser
usada p ara reconstruir-se como nação pacífica, reside na
sua capacidade de dizer a respeito de determ inada rota de
ação “ Esta falhou” e, em seguida, lançar as energias em

* J a p a n : A n I n te r p r e ta iio n , 1904, p. 453.

254
outros canais. Os japoneses têm um a ética de alternativas.
Tentaram conquistar a sua “ posição devida” na guerra e
perderam . Poderão, agora, pôr de lado esse rum o, pois to­
d a a sua educação os condicionou p ara possíveis
m udanças de direção. Os países com éticas mais
absolutistas precisam convencer-se de que estão lutando
por princípios. Q uando se rendem aos vencedores,
declaram “ perdidos os direitos com a nossa derrota” e a
sua dignidade exige que trabalhem p ara fazer esse “direi­
to” vencer na próxim a vez. Ou então, baterão no peito,
confessando a sua culpa. O s japoneses não precisam fazer
nem um a coisa nem outra. Cinco dias depois do Dia da
Vitória, antes de qualquer americano haver desem ­
barcado no Japão, o grande jornal de Tóquio, o M a i n i c h i
S h i m b u n estava pronto a falar de derrota e das m udanças
políticas por ela acarretadas, dizendo “Tudo foi, porém,
p a ra o bem e p ara a definitiva salvação do Jap ão ” . O edi­
torial acentuava que ninguém deveria, esquecer por um
.m omento que eles haviam sido com pletam ente derro­
tados. Já que os seus esforços p ara edificar um Japão
baseado na pura força haviam fracassado inteiram ente,
dali por diante deveriam eles trilhar o cam inho de um a
nação pacífica. O A s a h i , outro grande jornal de Tóquio,
naquela mesma sem ana considerou a anterior “ fé ex­
cessiva na força m ilitar” por parte do Japão como “ um
erro sério” de sua política nacional e internacional. “ A
antiga atitude, com a qual ganharíam os tão pouco e so-
freríamos tanto, deveria ser abandonada por um a nova,
enraizada na cooperação internacional e no am or à paz” .
O ocidental verifica esta oscilação quanto àquilo que
considera princípios e acha suspeito. Trata-se, no entanto,
de um a parte integrante da conduta de vida no Japão, seja
nas relações pessoais ou internacionais. O japonês consta­
ta ter feito um “ erro” seguindo um a linha de ação que
não atingiu a sua finalidade. Q uando ela falha, ele a
coloca de lado como causa perdida, pois não está con­
dicionado a adotar quaisquer causas perdidas. “ Não
adianta” , diz ele, “ querer m order o próprio um bigo” . Na
década de 30 deste século, o m ilitarism o foi o meio
aceito através do qual pensaram eles conquistar a ad ­
m iração do m undo — adm iração a ser baseada no seu po­
derio arm ado — e aceitaram todos os sacrifícios exigidos
por esse program a. Em 14 de agosto de 1945, o Im ­
perador, a voz autorizada do Japão, comunicou-lhes que

255
haviam perdido. A nuíram a tudo o que este fato im ­
plicava. Significava a presença de soldados americanos,
portanto eles os acolheram . Significava o fracasso de sua
dinástica aventura, portanto estavam prontos a levar em
consideração um a Constituição que proscrevia a guerra.
Dez dias depois do Dia da Vitória, o seu jornal, o
Y o m iu r i-H o c h i, prontificava-se a escrever sobre o
“Começo de um a nova arte e um a nova cu ltu ra” ,
proclamando “a necessidade de haver um a firme con­
vicção em nossos corações de que a derrota m ilitar nada
tem a ver com o valor da cultura de um a nação. A derrota
militar deverá servir como um estímulo . . . (pois) nada
menos do que a derrota nacional foi necessária p ara que o
povo japonês verdadeiram ente voltasse p a ra o m undo as
suas mentes, a fim de ver objetivamente as coisas, como
de fato são. Todo irracionalism o que vem deform ando a
m entalidade japonesa deverá ser eliminado por meio da
análise franca . . . é preciso coragem p ara encarar esta
derrota como um fato consttmado, (jnas precisamos) pôr
nossa fé na cultura nipônica de am an h ã” . Haviam te n ­
tado um a linha de ação e fracassado. Hoje haveriam de
em preender as artes pacíficas da existência. “ O Jap ão ”,
repetiam os seus editoriais, “ precisa ser respeitado entre
as nações do m undo” e o dever dos japoneses consistia em
merecer tal respeito num a base nova.
Esses editoriais jornalísticos não constituíam apenas
a voz de alguns intelectuais. A gente comum de uma rua
de Tóquio e de um a rem ota aldeia dão a mesma meia-
volta. Afigurou-se incrível p ara as tropas am ericanas de
ocupação como aquela gente amistosa era a mesma que
ju rara lutar até à morte com lanças de bam bu. A ética ja ­
ponesa encerra m uita coisa que os americanos repudiam ,
entretanto, as experiências destes durante a ocupação do
Japão têm constituído uma dem onstração excelente de
como um a estranha ética possa ter aspectos favoráveis.
O governo americano do Japão sob o general Mac
A rthur adm itiu esta aptidão japonesa de seguir um novo
rumo, sem estorvá-lo com a insistência em em pregar
técnicas de humilhação.
Teria sido aceitável culturalm ente, de acordo com a
ética ocidental, se assim houvéssemos procedido, pois
constitui um princípio dá ética ocidental serem a
hum ilhação e o castigo meios socialmente eficazes para
provocar num transgressor a convicção do pecado. Tal

256
reconhecim ento conduz então a um prim eiro passo de sua
reabilitação. O s japoneses, como vimos, form ulam de
outro modo a questão. A sua ética torna a pessoa res­
ponsável por todas as implicações de seus atos, bastar-lhe-
' iam as conseqüências naturais de um erro p ara convencê-
lo de sua inconveniência, estando aí incluídas até mesmo
um a derrota num a guerra total. Não se trata, porém, de
situações que os japoneses delas se ressintam como
hum ilhantes. No léxico japonês, um a pessoa ou nação
hum ilha a um a outra por difam ação, derrisão, desprezo,
menoscabo e insistência sobre símbolos de desonra.
Q uando os japoneses se julgam hum ilhados, a vingança
torna-se um a virtude. Por m ais que a ética ocidental
condene tal princípio, a eficácia d a ocupação am ericana
do Japão dependerá do comedimento neste ponto. Pois os
japoneses separam a derrisão, de que se ressentem ex­
trem am ente, das “ conseqüências naturais” , que, segundo
os termos de sua rendição, incluem coisas como a des­
m ilitarização e até mesmo a imposição espartana de
indenizações.
O Japão, na sua única grande vitória sobre um a
grande potência, dem onstrou que, mesmo como vencedor,
foi capaz de evitar cuidadosam ente hum ilhar um inimigo
derrotado quando este finalm ente se rendeu, não tendo
ele julgado que a outra nação de si tenha escarnecido.
Existe um a famosa fotografia da rendição do exército
russo em Port A rthur em 1905 que é conhecida de todos
os japoneses. Nela os russos aparecem usando suas es­
padas. Vencedores e vencidos podem ser distinguidos
apenas por seus uniformes, pois os russos não se achavam
privados de suas armas. O conhecido relato japonês dessa
rendição revela que quando o general .Stoessel, o
com andante russo, dem onstrou disposição em aceitar as
propostas japonesas de rendição, um capitão japonês e
um intérprete dirigiram-se ao seu quartel-general levando
comida. “Todos os cavalos, com exceção do pertencente
ao general Stoessel, haviam sido m ortos e comidos,
portanto, o presente de cinqüenta frangos e cem ovos
frescos trazidos pelos japoneses foi de fato bem recebido” .
O encontro entre o general Stoessel e o general Nogi foi
m arcado para o dia seguinte. “ Os dois generais aper-
taram -se as mãos. Stoessel expressou sua adm iração pela
coragem dos japoneses e . . . o general Nogi elogiou a

257
prolongada e corajosa resistência russa. Stoessel ex­
pressou as suas condolências ju n to a Nogi pela perda de
seus dois filhos na cam panha . . . Stoessel presenteou o
seu belo cavalo branco árabe ao general Nogi, mas este
respondeu que por mais que estimasse recebê-lo como seu
das mãos do general, prim eiro deveria ser presenteado
ao Im perador. Prometeu, no entanto, que se a ele fosse
entregue de volta, conforme tinha todos os motivos p ara
acreditar que viesse a sê-lo, cuidaria dele como se sempre
houvesse sido seu” .* Todos no Japão conheceram a estre­
baria que o general Nogi construiu p ara o cavalo do
general Stoessel n a frente de sua casa — por muitos
considerada mais ostentosa do que a sua própria casa,
tendo se tornado inclusive parte do mausoléu do general
Nogi, após a sua morte.
Dizem que os japoneses m udaram m uito desde
aquele d ia da rendição russa até os anos de sua ocupação
das Filipinas, quando a sua brutal ação destruidora e
crueldade ficaram conhecidas pelo m undo todo. Para um
povo com a rigorosa ética situacional dos japoneses, no
entanto, não vem a ser esta uma conclusão necessária. Em
prim eiro lugar, o inimigo não capitulou após B ataan; tra-
tou-se apenas de um a rendição local. Mesmo quando os
japoneses, por seu turno, renderam -se nas Filipinas, o Ja ­
pão ainda estava combatendo. Em segundo lugar, os j a ­
poneses nunca julgaram que os russos os tivessem
“ insultado” nos primeiros anos deste século, ao passo
que, com relação à política dos Estados Unidos, cada ja ­
ponês foi educado nas décadas de 20. e de 30 no sentido de
considerá-la como um “m enosprezo ao Japão” ou, se­
gundo a sua expressão, como “ pretendendo tratá-lo igual
às fezes” . Esta foi a reação do Japão ao Ato de Exclusão,
ao papel desem penhado pelos Estados Unidos no Tratado
de Portsm outh e nos acordos da Paridade Naval. Os ja ­
poneses foram estimulados a encarar do mesmo modo o
crescente papel econômico dos Estados Unidos no Ex-
trem o-O riente e as nossas atitudes raciais com relação
aos povos não .brancos do m undo. A vitória sobre a Rússia
e a vitória sobre os Estados Unidos nas Filipinas exem-

♦ Citado de um relato japonês, por U pton Close. B e h i n d t h e F ace


1942, p. 294. Esta versão da rendição russa não precisa ser li­
o fJ a p a n ,
teralm ente verdadeira para ter im portância cultural.

258
plificam, portanto, a conduta japonesa nos seus dois
aspectos mais opostos: havendo insultos e não havendo.
A vitória final dos Estados Unidos modificou de novo
a situação p ara os japoneses. A sua derrota final acarre­
tou, como de hábito na vida japonesa, o abandono dos
caminhos que vinham seguindo. A ética peculiar dos ja ­
poneses perm itiu-lhes lim par o quadro-negro. O plano de
ação dos Estados Unidos e a adm inistração do general
Mac A rthur evitaram que fossem escritos novos símbolos
de hum ilhação no quadro-negro apagado, lim itando-se
simplesmente a insistir nas coisas que aos olhos dos ja ­
poneses são as “ conseqüências n aturais” d a derrota. Deu
resultado.
A conservação do Im perador foi de grande im ­
p o rtân cia.'F o i bem conduzida. Foi o Im perador quem
prim eiro visitou o general Mac Arthur, e não este a ele, o
que constituiu um a lição objetiva para os japoneses, cuja
força é difícil p ara os ocidentais avaliarem. Diz-se que
quando foi sugerido ao Im perador que rejeitasse sua di­
vindade, protestou ele que seria um em baraço pessoal
despojar-se de algo que não tinha. Os japoneses, declarou
ele sinceramente, não o consideravam um deus no sentido
ocidental. O Quartel-G eneral de M ac A rthur, entretanto,
instou-lhe que a idéia ocidental de sua pretensão de d i­
vindade e ra tn â para a reputação internacional do Japão,
tendo q Im perador concordado em aceitar o cons­
trangim ento que lhe iria causar a rejeição. Ele discursou
no dia do Ano Novo e pediu que lhe fossem traduzidos to ­
dos os comentários da im prensa m undial sobre a sua
mensagem. Após tê-los lido, enviou um a mensagem ao
Q uartel-G eneral do general M ac A rthur declarando-se
satisfeito. Os estrangeiros obviamente não haviam en­
tendido antes e ele estava contente de ter falado.
O plano de ação dos Estados Unidos, além do mais,
perm itia aos japoneses certas satisfações. A diretriz Esta-
do-Exército-M arinha especifica que “serão dados in­
centivo e aprovação ao desenvolvimento de organizações
de trabalho, indústria e agricultura, constituídos num a
base dem ocrática” . O trabalho japonês organizou-se em
m uitas indústrias e as antigas ligas de agricultores, em
atividade nas décadas de 20 e 30 deste século, estão no­
vamente se articulando P ara muitos japoneses esta
iniciativa que agora podem tom ar para m elhorar a sua
condição constitui um a prova de que o Japão conquistou

259
algo, como conseqüência desta guerra. Um corres­
pondente americano n a rra a respeito de um grevista de
Tóquio que ergueu o olhar p ara um soldado americano,
dizendo, com um sorriso largo: “ Japão v e n c e , não?” As
greves atuais no Japão em m uito se assemelham às antigas
Revoltas de Camponeses, em que a alegação dos
agricultores era sempre de que os impostos e corvéias a
que eram submetidos interferiam com a produção ade­
quada. Não se tratava de lutas de classe no sentido oci­
dental, nem de tentativa de m udar o sistema. Atualm ente,
através do Japão, as greves não atrasam a produção. A
form a preferida consiste nos trabalhadores “ocuparem a
fábrica, continuando a trab alh ar e fazendo a direção
desprestigiar-se, aum entando a produção. Os grevistas de
um a mina de carvão da M itsui excluiu dos poços todo o
pessoal da direção e intensificou a produção diária de 250
toneladas p ara 620. Os trabalhadores das m inas de cobre
de Ashio trabalharam durante um a “ greve” , aum entaram
a produção e dobraram os próprios salários.” *
O governo de um país derrotado é, sem dúvida, d i­
fícil, por maior bom senso que revele o plano de ação
aprovado. No Japão, os problemas de alimentação, h a ­
bitação e reconversão são inevitavelmente cruciais. H a­
veriam de ser pelo menos igualmente cruciais num go­
verno que não fizesse uso de pessoal adm inistrativo ja ­
ponês. O problema dos soldados desmobilizados, tão
temido pelos adm inistradores americanos, antes do
térm ino da guerra, é certam ente menos am eaçador do que
seria se não houvessem sido conservados os funcionários
japoneses. Não é, contudo, facilmente resolvido. Os ja ­
poneses estão a par d a dificuldade, tendo os seus jornais
se referido com emoção, no outono passado, acerca de
quão amargo era o ferm ento da derrota p ara os soldados
que haviam sofrido e perdido, rogando-lhes que não
deixassem que isto interferisse com o seu “julgam ento”.
O exército repatriado revelou, de modo geral, notável
“julgam ento” , mas o desemprego e a derrota lançam
alguns soldados no antigo esquem a das sociedades secre­
tas com objetivos nacionalistas. Podem facilmente se
ressentir contra a sua presente situação. Os japoneses não
mais lhes conferiam seu antigo e privilegiado s t a t u s . O
soldado ferido costumava andar vestido de branco e as

* T im e , 18 de fevereiro de 1946.

260
pessoas inclinavam-se diante dele nas ruas. Mesmo um
recruta de tem po de paz era hom enageado com festas de
despedida e de recepção no seu povoado. Havia bebida,
comida, danças e trajes regionais, ocupando ele o lugar de
honra. Agora o soldado repatriado não é alvo de tais
atenções. Sua fam ília reserva-lhe um lugar e nad a mais
que isso. E m m uitas cidades, grandes e pequenas, ele é
tratado com frieza. Sabendo-se quão am argam ente
encaram os japoneses tal m udança de conduta, é fácil
im aginar a sua satisfação em reunir-se aos velhos cam ara­
das, rem em orando os passados tempos quando a glória do
Japão era confiada às mãos dos soldados. Alguns de seus
companheiros de com bate, além disso, dir-lhe-ão como já
há soldados japoneses de m ais sorte lutando com os Alia­
dos em Java, Shansi e M anchúria. Por que haverá ele de
desanim ar? H á de conseguir lutar novamente, garantem -
lhe. As sociedades secretas nacionalistas são instituições
m uito antigas no Japão; elas “ lim pavam o nom e” do J a ­
pão. Homens condicionados a achar que “ o m undo os­
cila” , enquanto restar algo á ser feito p ara tais sociedades
clandestinas. A violência esposada pelas mesmas — as do
gênero Dragão Negro e O ceano Negro — não é outra
senão a aliada pela ética japonesa ao giri devido ao nome
e o longo esforço do governo japonês p ara enfatizar o
gimu à custa do giri devido ao nome terá de ser contínuo
nos anós vindouros, caso se queira erradicar a violência.
Exigirá m ais do que um apelo ao “julgam ento” . Exi­
girá uma reconstrução da economia japonesa que pro­
porcionará subsistência e “ lugar devido” aos homens ora
nos seus vinte e trin ta anos. Os japoneses regressam,
sempre que se verificam dificuldades econômicas, às suas
antigas aldeias agrícolas e às m inúsculas fazendas que so­
brecarregadas de dívidas e em muitos lugares do ônus de
arrendam ento, não mais podem sustentar m uitas bocas.
A indústria tam bém deverá ser propulsionada, pois o
ressentim ento contra a divisão d a possessão com os filhos
mais jovens acaba enviando a todos, com exceção dos
mais velhos, a tentarem a sorte n a cidade.
Os japoneses têm diante de si um a estrada árdua,
não há dúvida, mas se o rearm am ento não for prescrito no
orçamento estatal, terão eles oportunidade de elevar o seu
padrão de vida nacional. Um país como o Japão que
despendeu m etade da sua renda nacional em arm am ento
e forças arm adas, durante a década antecedente a Pearl

261
H arbor, poderão lançar as bases de um a economia sa­
lutar se elim inar tais despesas e progressivamente re ­
duzir suas requisições dos agricultores. Conforme vimos,
a norm a japonesa de divisão de produtos agrícolas era de
60% para o agricultor, com 40% pagos em impostos e
arrendam entos. Verifica-se aí um grande contraste com
outros países produtores de arroz como Burm a e Sião,
onde 90% constituía a proporção tradicional entregue ao
cultivador. E sta requisição enorm e sobre o agricultor no
Japão foi o que finalm ente possibilitou o financiam ento
d a m áquina de guerra nacional.
Q ualquer país europeu ou asiático que não se arm ar
durante a p róiim a década terá um a vantagem potencial
sobre os que se estão arm ando, pois a sua riqueza poderá
ser utilizada para construir um a economia saudável e
próspera. Nos Estados Unidos pouco levamos em conta
esta situação nas nossas políticas asiáticas e européias,
pois sabemos que não iríamos em pobrecer este país com
dispendiosos program as de defesa nacional. Nosso país
não foi devastado. Não somos fundam entalm ente um país
agrícola. Nosso problem a crucial é a superprodução
industrial. Aperfeiçoamos a produção em m assa e equi­
pam ento mecânico, a ponto de a nossa população não
conseguir achar emprego, a menos que ponham os em
ação grandes program as de arm am ento, produção
supérflua, bem -estar e serviços de pesquisa. A necessi­
dade de investimento lucrativo p ara o capital é igual­
mente crítica. Esta situação é com pletam ente diferente
fora dos Estados Unidos. É diferente até mesmo na E uro­
pa Ocidental. A despeito de todas as exigências de in­
denizações, um a Alem anha sem perm issão de rearm ar-se
poderá, por volta de um a década, te r estabelecido as bases
de um a econpmia sadia e próspera, o que seria impossível
na França se a sua política for de increm ento ao poderio
militar. O Japão poderá beneficiar-se ao máximo de um a
vantagem similar sobre a China. A m ilitarização é um a
m eta atual da China e as suas ambições são apoiadas
pelos Estados Unidos^ O Japao, se não incluir a m ili­
tarização no seu orçamento, poderá se prover, caso
queira, por meio de sua própria prosperidade sem grande
tardança, tornando-se indispensável no comércio do
Oriente. Poderá basear sua economia nos lucros da paz e
elevar o padrão de vida do seu povo. Um Japão assim

262
pacífico poderia alcançar um lugar de honra entre as n a ­
ções do m undo e os Estados Unidos m uito poderiam
auxiliar se continuassem a utilizar a sua influência em
apoio de um tal program a.
O que os Estados U nidos não podem fazer — o que
nenhum país de fora poderia fazer — é criar por decreto
um Japão livre e democrático. Isto nunca foi conseguido
em nenhum país dom inado. Nenhum estrangeiro poderá
decretar, p ara um povo que não tem os seus hábitos e
pressuposições, um modo de vida elaborado de acordo
com a sua própria imagem. Os japoneses não podem ser
obrigados, através de leis, a aceitar a autoridade de
pessoas eleitas e a desprezar a “ devida posição” es­
tabelecida no seu sistema hierárquico. Não podem ser
obrigados, por meio de legislação, a adotar os contatos
hum anos livres e naturais a que estamos acostum ados nos
Estados Unidos, a ter um a exigência im perativa de ser li­
vre, um a ânsia própria a cada indivíduo em escolher a
própria com panheira, o próprio emprego, a casa em que
m orará e as obrigações que irá assumir. Os próprios ja ­
poneses, no entanto, são bastante claros quanto às
m udanças em tal direção por eles tidas como necessárias.
Os seus homens públicos vêm declarando desde o Dia
da Vitória que o Japão deve estim ular seus homens e
mulheres a viver as próprias vidas e a confiar nas próprias
consciências. Está claro que não o expressam, mas todo
japonês compreende que estão é contestando o papel da
“vergonha” (haji) no Japão e abrindo esperanças de um
novo increm ento de libertação entre os seus com patriotas:
libertação do tem or da crítica e do ostracismo do
“ m undo” .
Pois as pressões sociais no Japão, por mais volun­
tariam ente que sejam- acolhidas, exigem dem ais do in-
víduo. Obrigam -no a ocultar as suas emoções, a renunciar
aos seus desejos e a erigir-se no representante em evi-
d ê n ria d e um a família, organização ou país. Os japoneses
dem onstraram ser capazes de se sujeitar a toda auto-
disciplina exigida por tal norm a. Mas o peso sobre eles é
demasiado. Ê dem asiado o que são obrigados a reprimir.
Temendo aventurar-se num a vida .menos dispendiosa
para suas psiques, foram conduzidos pelos m ilitaristas
para um rum o em que os gastos interminavelmente se
amontoam. Tendo pago um preço tão elevado, tornaram -

26.1
se orgulhosos e desdenhosos de povos com éticas mervos
exigentes.
Os japoneses deram o prim eiro grande passo na d ire
ção da m udança social ao identificarem a guerra agressiva
como um “erro” e um a causa perdida. Esperam adquirir
sua passagem de retorno a um lugar respeitado entre as
nações pacíficas. O m undo terá de ser pacífico. Se a
Rússia e os Estados Unidos passarem os anos vindouros
arm ando-se para atacar, o Japão utilizará nessa guerra o
seu conhecimento. Mas, adm itir isto não chega a con­
testar a possibilidade inerente de um Japão pacífico. As
motivações dp Japão são circunstanciais. H á de procurar
o seu lugar no seio de um m undo em paz se as cir­
cunstâncias o perm itirem . Se não, o será dentro de um
m undo organizado como um campo arm ado.
Presentemente o Japão reconhece o m ilitarism o como
um a luz que se apagou. H á de procurar ver se em outros
países do m undo assim tam bém terá acontecido. Se não
tiver, o Japão poderá reacender o seu ardor guerreiro e
dem onstrar a eficiência de sua Contribuição. Caso tenha-
se apagado nos demais, poderá ele se dispor a comprovar
quão bem aprendeu a lição de que as aventuras dinásticas
imperialistas não conduzem à honra.

264
GLOSSÁRIO *

a i, amor; especificamente, o am or de um superior por um dependente.


a r ig a to , obrigado; “ esta coisa diflcil".
b u r a k u , um povoado de umas quinze casas; o distrito de um a aldeia.
b u s h i d o , “ o procedimento dos sam urais” . Term o popularizado neste
século designando ideais tradicionais de conduta japonesa. O Doutor

Inazo Nitobe, em B u s h i d o , a a l m a d o J a p ã o , especifica como Bushi­


do: retidão ou justiça, coragem, benevolência, polidez, sinceridade,
honra, lealdade e autodomínio.
c h u , fidelidade ao Im perador.
d a i m i o , um senhor feudal.

(»■ ) As traduções literais estão entre aspas.


Q uando não houve indicação de acento, deve-se atribuir igual valor
a todas as sílabas. Os acentos m arcados são toscas aproximações apenas
destinadas a auxiliar leitores de fala inglesa.

265
donen, companheiros de idade.
e ta , uma classe de párias, de um período pré-Meiji.
g e is h a . g u e i x a , cortesã especialm ente treinada c alvo de prestigio ele­
vado.
g L integridade.
g i m u , um a categoria de obrigações japonesas. V ideQ uadro, p. 101.
g ir i, um a categoria de obrigações japonesas. Vide Q uadro, p. 101.
g o , unidade de m edida de capacidade; menos do que um a ideara.
h a j i, vergonha.
h a r a k í r i ou s e p p u k u , suicídio de acordo com o código dos sam urais. Se-
ppuku 6 o term o mais elegante.
h y s t e r i nervosismo e instabilidade. G eralm ente em pregado com relação
às mulheres.
i n k y o , o estado de afastam ento formal d a vida ativa.
h s e i , americano de ascendência japonesa nascido no lapão. Vide Nissei.
is s h in , restaurar, buscar no passado. U m slogan d a R estauração Meiji.
j e n (chinês), boas relações hum anas, benevolência.
j i c k b , dignidade; circunspeção. “ D obrar jicho com jicho” , ser ex­
trem am ente circunspeto,
j i n (escrito com o mesmo caráter que o chinês yen), obrigação fora do có­
digo obrigatório. Vide, porém, "conhecendo jin ", p. 1 2 2 , nota.
j i n g i (variante de jin), um a obrigação fora do código obrigatório.
jir lk i, “ auto-auxllio” , treinam ento espiritual que depende ex­
clusivamente dos poderes hum anos disciplinados de cada um. Vide
tariki.
j u d o , um a form a de jiujitsu. Luta japonesa.
j i u j i t s u . lu ta japonesa.
k a b u k i , dram a popular. Vide NÔ.
k a g u r a , danças tradicionais executadas em santuários xintós.
k a m i , cabeça, fonte. Term o xintó designando divindade.
k a m i k à z e , “ vento divino” . O furacão que repeliu e emborcou a frota
invasora de Gêngis Cã no século X III. Os pilotos de aviões suicidas na
Segunda G uerra M undial eram denom inados E squadrilha
Kamikaze.
k a t a j i k e n a í . obrigado; "estou ofendido” .
k i n o d b k u , obrigado; “ este sentim ento venenoso” .
k i n s h i n , arrependim ento. Período de recolhim ento, a fim de remover “a
ferrugem do corpo” .
k o , devoção filial.
k o a n (pronuncia-se k o - a n ) , problem as sem resposta racional, propostos
pelo culto Zen p ara os que se acham em treinam ento.
k o - o n , obrigação para com o Im perador, o Estado.
m a g o k o r o , “ sinceridade” .
m a k o t o , “ sinceridade".
M e iji , Período, reinado do Im perador Meiji, 1868-1912. Designa o
começo da era m oderna no Japão.
m o x a , folhas pulverizadas de certa planta, queim adas em cone, sobre a
superficie do corpo, com finalidades curativas. C ura achaques e
tendências às travessuras, por parte das crianças.
m u g a , eliminação do ser observador alcançada por aqueles que
observaram treinam ento.
n a r ik in , n o ti v e a u r ic h e . “ Um peão promovido a rainha” (xadrez).

266
n ir v ím a (sânscrito), libertação final d a alm a d a tran sm ig rsçio ; estado de
não-ser; absorção no divino,
N i s s à , am ericano dè ascendência japonesa nascido nos E stados Unidos.,
Vide Issei.
n ô , d ram a clássico. Vide kabuki.
n i t s h i mestre.
o n , um a categoria de obrigações contraídas. Vide quadro, p. 101.
o y a , pais.
r o n in , nos tem pos feudais os sam urais dependentes que, devido a ig­
nomínia, m orte ou desonra de seu suserano se haviam tornado
hom ens sem chefe.
s a k e (pronuncia-se s a - k e ) , cerveja de arroz, a principal bebida alcoólica
dos japoneses.
s a m u r a i , nos tem pos feudais, os guerreiros, homens que m anejavam
duas espadas. Abaixo deles estava a gente comum: agricultores,
artesãos e comerciantes.
satori, ilum inação budista.
s e p p ú k u ou h a r a tír i, suicídio por perfuração do abdom e. Nos tempos
feudais era privilegio exclusivo dos nobres e sam urais.
s h u y o , autodisciplina; treinam ento m ental.
s o n n o j o i , "R estau rar o Im perador e expulsar os bárbaros (ocidentais)” .
Slogan d a R estauração Meiji.
s u m i m a s í n , obrigado; desculpe; “ isto nunca term ina” .
s u t r a (sànscrito), breve coleção de diálogos e aforismas. O s discípulos de
G autam a B uda escreveram tais sutras no idiom a coloquial de sua
època (PalO.
t a i s e t s u . Lei Superior.
t a r i k i , “ auxílio de outro” . Bênção espiritual, ação de graças. Vide jiriki.
t o n a r i g u m i pequenos grupos com unitários de cinco a dez famílias.
X ò g u m , em período prê-Meiji, o verdadeiro governante do Japãó; a
sucessão era hereditária, contanto que a fam ília perm anecesse no p o ­
der. O Xògum era sem pre em possado pelo Im perador.
y o g a (sànscrito), form a de filosofia e exercício ascético, predom inante na
ín d ia desde os primeiros tem pos históricos.
z a i b a t s u , grandes empresas; m em bros prestigiosos d a hierarquia
econômica.
Z e n , culto budista originário da C hina e relevante no Japão desde o
século X II. E ra um culto das classes superiores dos governantes e
guerreiros e contrasta ainda com os grandes cultos budistas târskis, de
grande núm ero de partidários.

267
INDICE

A d o ção , 66, 106, 117. A u sterid ad e, 80, 153-155, 202,


A d v ertên cia, im p o rtâ n c ia da 206.
— , 30-31. A u to -ero tism o , 160, 226, 237.
a i , 91. A u to -resp eito , 186-188, 230,
A le m a n h a , co n traste s e c o m ­ 242, 245.
p araçõ es co m a — , 33-34, A u to -sacrifício , 195-197, 242.
53, 85, 116, 126, 142-143, B anho, 152-153, 217.
145, 251-252. B élgica, 77.
A m am en taçã o , 216, 219-220. B enkei, 119-120.
A n d a r, aprendendo! a — , 218. B ode e x p iató rio , 233.
A n tro p o lo g ia, m étodos d o es­ B o rto n , H u g h , 61n.
tu d o c u ltu ra l em — , 13-23. B o t c h a n , u m a n o v ela, 94-95.
a r i g a t o , 93. B udism o, 54, 70, 78, 79-80,
A rro z frio , p aren te s, 106. 151, 162, 178, 199-208,
A sak aw a, K a n ic h i, 102-103n. 227-228.

269
bu raku , 74-75. E m b ree , J o h n E ., 13, 75n.,
b u s h id o , 149, 266. 204, 226n., 236, 238n.
C asam e n to , 104-105, 116-118, E m b riag u ez, 160, 239.
134-135, 158, 178, 237-239. E r a M eiji, 69-85, 108, 109,
C a sta, 54-55, 57-62, 64-68, 70, 159, 253.
128. E scolas, 75-76, 101, 132-133,
C h in a , c o n traste s e c o m p a ra ­ 231-232.
ções, 48-49, 102-103, 105, E sp a n h a, 126.
115, 118, 127, 156, 157, E sp elh o , sím b o lo d o — , 241,
162, 177-178, 183, 192. 242.
C h in a, em p réstim o s japoneses E sp írito v e r s u s m a té ria n a
à _ 48, 54-55, 207. id eo lo g ia ja p o n esa, 27-30,
C hinês, In cid en te, 51, 85, 164. 38, 154, 155, 195.
C hoshji, Quest*ão. V e r Q u estão E stad o s U n id o s, c o n traste s
C hoshu. cu ltu ra is e an alogias, 9, 23,
c h u , 101, 102, 108, 109, 163, 25-26, 28, 31-32, 37-38,
170-172, 175, 177, 178, 179, 45-46, 84-85, 87-«8, 90,
180-182. 98-109, 111-112, 122, 127,
C ircu n sp ecção , 186, 242-243, 129, 131, 133, 141-142,
245, 263. 152, 154-157, 160-161, 163-
C oisas odiosas, p ro v é rb io das -164, 168, 170, 177, 184,
três — , 105. 186, 189-190, 194-198, 209,
C o m e r, 155. 211, 214-215, 233, 245,
C o m ercian tes e fin an cistas, 256, 262.
57-58, 60, 65-67 , 70, 71, E stilita, S ão S im eão, 206.
81-84. E studos estatísticos n as ciên ­
C o m p etição , 132, 133, 231. cias sociais, 22.
C o n stitu ição M eiji, 72. e t a , 57.

C o n trad içõ es n o c a rá te r ja p o ­ F a la r , a p re n d e n d o a , 218.


nês, 9-10, 167, 169, 242- F a m ília , 47-54, 90-91, 95-98,
-244. 103, 108, 116-119, 133,
C u id a d o s m édicos n o E x ército 157-158, 215, 221-223, 252-
japonês, 38. -253.
C u lp a , 188-189, 211, 244. F a ra g o , L adislas, 133n.
d a im io , 32, 56, 60, 62, 64, F a rle y , M iria m S., 84n.
67, 69, 119-121, 139, 171, F azen d e iro s, 59-61, 67, 70,
176. 71-72, 81.
D esm am e, 216, 220. “F e rru g e m d o c o rp o ” , 169,
D e v o ta m e n to filial, 48, 90-91, 174, 198-199, 247.
101-107, 163, 178, 222. F eu d alism o , 55-68, 90-91,
d o n e t i , 226. 101-107.
D o s s i e r s , 75. F ilm es jap o n eses, 15, 85, 103,
D o u d , cor. H a ro ld , 154. 143, 164-165, 176-177.
E ckstein, D o u to r G ., 123-124, F o ra -d a-le i, 57, 70.
155. F o rç a s A rm a d a s , 80-82, 84,
E d ito s Im p eria is, 178-182, 261.
186. F ra n ç a , co n traste s e c o m p a ra ­
E isai, p rim itiv o sacerd o te zen, ções co m a — , 50-77, 145.
204. F ru s tra ç ã o e agressão, 195-
E lio t, Sir C h arles, 200n_, -196.
204n., 209n. F u n e rais, 123-124.

270
G eisha, 156-159, 237, 238-239. — , 15-16, 63-64, 135-136,
G en ealogias no J a p ã o p ré- 218.
-M eiji, 49. Im p e ra d o r, 32-36, 55-56, 62-
G e r t j i , C o n t o d e , 156. -64, 69, 81, 89-90, 108-113*
g i , 122, 171, 180. 130, 259.
G iffo rd , E . W ., 64n. ín d ia, 200-203.
gim u, 100-116, 170, 175*177, In d u s tria liz a ç ã o d o Ja p ã o , 82-
179-180, 261. -83.
g iri, 101, 115, 148, 163, 167- ir ü c y o , 50.
-168, 170-177, 179-181, Intejrm ediário, 134, 135, 185.
229-232, 261. I s s e i , 185.
G la tty , C o ro n el H a ro ld W ., i s s h i n , 68.
39. Itá lia , 126.
g o , 118. Ito , P rín cip e, 73.
G o re r, G eo ffrey , 218n., 230.
Ja c tâ n c ia n a in fân cia, 226-
G o v e rn o Jap o n ês, críticas a o
-227.
— , d u ra n te a g u e rra , 36-37;
j e n (c h in ê s ), 102-103, 162.
e s tru tu ra d o — , 73-78.
jich o , 186-188, 242, 245; “d o ­
G reves desde o D ia da V itó ­
b ra r j i c h o c o m j i c h o " , 189,
ria , 260.
231.
G u e rra , C am p o s de R ecolo-
j i n , 102, 103n., 168.
cação, 184.
j i n g i , 62-63.
G u e rra , o rç a m e n to de despe­
j i r í k i , 204.
sas com a rm a m e n to nq J a ­
j u d o , 198.
p ã o an tes da g u e rra , 27-28,
j u j i t s u , 198.
261.
G u e rra , ra z õ e s do J a p ã o p a ra k a b u k i, 119, 209.
e n tra r n a — , 26, 43-44, K ag aw a, T o y o h ik o , 210.
46-47, 147-148. k a g u r a , 119.
G u e rra ru sso -jap o n esa, 257- k a m i , 239.
-258. k a m i k p z e , 28.
k a t a j i k e n a i , 93, 94.
h a ji, 93, 190, 208, 211-212,
K id o , M arq u ês, 73.
226, 239, 245, 263.
k i n o d o k u , 92-93.
H a m ilto n , A lex an d e r, 46.
k i n s h i n , 229.
h f t r a k i r i , 143.
k o , 101-107, 118, 163, 167-
H a rris, T o w n sen d , 63.
-168, 170, 177.
H e a rn , L afc ad io , 254.
,k o a n , 206-208.
H ideyoshi, 58.
k O r o n , 89-90, 111, 210.
H ie ra rq u ia no Ja p ã o , 26-27,
43-68, 70*85, 91, 125-126, L eighton, D o u to ra D o ro th e a ,
181, 185, 221, 243, 255, 244n.
263. L o rry , H illis, l l l n .
H igiene, tre in a m e n to de — , L ow ell, P erciv al, 153ti.
216, 218, 240. M a c A rth u r, G e n e ra l D o u g las,
H illd rin g , G e n e ra l, 251. 249, 256, 259-260.
H o la n d a , 77. m a g o k o r o , 181'.
H o lte r, F ra n c ê s , 244n. m a k o t o , 181-186.
H o m o ssex u alism o , 159-160. M al, p ro b le m a do — , 160-
H u ll, C o rd ell, 44-45. -163, 169-170, 211.
h y s t e r i , 238.
M a n d ch ú ria, 82.
ley asu , 56-57, 140. M a rk in o , Y o sh io , 136, 137n.,
Ilh as d o P acífico , p aralelo s 186.
com a c u ltu ra jap o n esa nas M aso q u jim o , 140, 142, 231.

271
M cC an in , A lm ira n te G eo rg e ' P re s e n te a r n o Ja p ã o , 122-123.
S., 37. P risio n eiro s de g u e rra ja p o ­
M eiji, E ra . V e r E r a M eiji. neses, e x tre m a co o p eraç ão
M in am o to , Y o rito m o , 56. com os exércitos am erica­
M in am o to , Y o sh itsu n e, 119. nos, 41-42, 146; en trev istas
M ishina, Sum ie Seo, 191, com — , 33-37, 41-42.
192. P riv a ç ã o d a c rian ça q u a n d o
“M o rte de c ão ” , 242. d o n ascim en to do p ró x im o
M o rto , a lta r d a fa m ília p a ra filh o , 223, 224.
o — , 50, 228. P ro stitu ta s, 157-159.
“M o rto , aq u ele q u e vive co ­ P ro v o c a r u m a c ria n ç a, 220-
m o se já estivesse — ” , 210. -221, 229, 240-241.
M o to o ri, N o rih a g a , 162.
Q u estão C h o sh u , Í48-149.
m o x a , 224.
Q u estão N a m a m u g a , 148-149.
m uga, 199, 205, 208-209.
M u lh eres, 51, 53, 127, 177, R en d ição , p o lític a d a — dos
214-215, 222, 230, 234-239. jap o n eses n a S egunda G u e r­
N a m a m u g a , Q uestão. r a M u n d ial, 39-41.
V e r Q u estão N am a m u g a .
R espeito, e tiq u e ta do — , 46-
r t a r i k i n , 84, 253.
-48, 222.
N ascim en to , 2 Í6 . R e sta u ra ç ã o M eiji, 68, 69-85,
N a tsu m e , Soseki, 94. 109, 253.
N ietzsch e, ■ 203. R evoltas cam p o n e sas, 61-62,
n i r v a n a , 200-201.
71, 260.
N isei, 185, 247. R id ícu lo , 31-32, 189, 219-221,
N ito b e, In a zo , 138. 229, 231-234, 240-241.
r o n i n , 118, 139, 170-176, 184.
n ô , 119, 204, 209.
N o g i, G e n e ra l, 257-2.58. R o n in , C o n to d o s Q u a r e n ta e

N o h a ra , K o m a h ich i, 107n., 139.


S e te ,
156n., 243n. R o sch ach , testes de — , 244n.
N o rm a n , H e rb e rt, 59n., 73n., R ússia, 141.
83n., 148n. S acrifício d as fo rç a s a rm a d a s
n u s h i , 101. jap o n esas, 37-40.
“O b rig ad o ” em jap o n ês, 93- Saigo, T a k o m o ri, 31, 71.
-94. s a k e , 239.
o y a , 101. s a m u r a i , 49, 56, 58-60, 66,
O k a k u ra , Y o sh isab u ro , 138, 67, 70-71, 102, 119-120,
139n. 128, 139, 159, 204, 254.
O k u m a, C o n d e S hinenobu, S ansom , S ir G eo rg e, 55n.,
181-182n., 186. 141, 169.
on, 88-101, 104, 112, 116, s a t o r i , 201, 203, 205, 208.
118, 125-126, 133, 163, S enhores E x te rn o s, 57, 69.
165, 181-182, 188, 191, s e p p u k u , 172, 174-175.
229. Sexo, 156, 168.
o n , j i n , 88, 101, 121.
“S ex to " S entido, 203, 211.
P a c to T rip a rtid o , 44. S h id eh ara, B arão , 253.
P e rry , C o m o d o ro , 63, 67. s h u y o , 197-198, 206, 214.
P o lô n ia, 233. Sião, 60, 72, 127, 262.
P o lícia, 76, 77. , “S in cerid ad e”, 137-138, 173,
P o lig am ia, 158. 181-186.
P o p u lação , lim itação v o lu n tá ­ S o b ren o m es no J a p ã o pré-
ria d a — , 59, 60. -M eiji, 49.

272
S ogra, 104-105, 107, 117, ' T o cq u ev ille, A lexis de, 45, 46,
221 , 222 . 130.
son n oj o i , 68, 69. t o n a r i g u m i , 74.
S ono, 154, 195, 216, 225. T ran se, 202-203.
S pencer, H e rb e rt, 73. T ra n sm ig ra ç ã o , 201.
Stoessel, G e n e ra l, 257-258. T ro te , 232.
Sucessão d in ástica n o Ja p ã o ,
U y ed a, P ro fe sso r, 83n.
110.
S ugim oto, E tsu In ag ak i, 225n., V erg o n h a, 93, 188*192, 211,
235-236, 245-246'. 226, 240-242, 245.
S uicídio, 130, 142-144, 171- X in tó , 55, 78-80, 178, 228.
-172, 174-175, 242. X ógum , 32, 56-57 , 62-65 , 67,
s u m i m a s e n , 93.
69, 72, 108-109, 119, 148.
S usanow o, 162.
S usuki, D . T ., 183, 2 0 8 n ,‘ Y am ash ito , G e n e ra l, 31.
Y o g a , 200-204.
s u t r a , 190.

ta i s e ts u , 181. W atson, W. P etrie, 154n.


T im e , 260n. W ilson, Ja m es, 64n.
t a r i k i , 204. Z a i b a t s u , 82-84.
T a x a de n a ta lid a d e , 215-216. Z en, cu lto , 183, 199-204.
T éd io , 141, 143-145. Z anga, 220-222, 224, 231.

273
COLEÇÃO DEBATES

1 . A P e r s o n a g e m d e F ic ç ã o , A . R o sen feid , A . C ân d id o ,
D écio d e A . P rad o , P a u lo E m ílio S. G om es.
2 . I n f o r m a ç ã o . L i n g u a g e m . C o m u n i c a ç ã o , D écio P ig n atari.
3 . O B a la n ç o d a B o s s a , A u g u sto d e C am pos.
4 . O b r a A b e r t a , U m b e rto Eco.
5 . S e x o e T e m p e r a m e n t o , M a rg a re t M ead.
6 . F im d o P o v o J u d e u ? , G eorgeS F ried m an n .
7 . T e x t o / C o n t e x t o , A n a to l R osenfeid.
8 . O S e n t i d o e a M á s c a r a , G e rd A . B ornheim .
9 . P r o b l e m a s d e F ís ic a M o d e r n a , W . H eisenberg, E . S chroe-
dinger, M ax B orn, P ierre A uger.
10. D i s t ú r b i o s E m o c i o n a i s e A n t i - S e m i t i s m o , N . W . A ck erm an
e M . Jah o d a.
11. B a r r o c o M i n e ir o , L o u riv al G o m es M achado.
12. K a f k a : p r ó e : o n tr a , G ü n th e r A nders.

275
13. N ova H is tó r ia e N ô v o M undo, F ré d é ric M au ro .
14. A s E s tr u tu r a s N a r r a tiv a s , T zv eta n T o d o ro v .
15. S o c i o l o g i a d o E s p o r t e . , G eorges M ag n an è. .
16. A A r t e n o H o r i z o n t e d á P r o v á v e l , H a ro ld o de C am p o s.
17. O D o r s o d o T i g r e , B enedito N u n es.
18. Q u a d r o d a A r q u i t e t u r a n o B r a s i l , ‘N esto r G o u la rt R eis
F ilho.
19. A p o c a l í p t i c o s e I n t e g r a d o s , U m \> erto E co.
20. B a b e l & A n t i b a b e l , P a u lo R ónai.
21. P l a n e j a m e n t o n o B r a s i l , B etty M indlin L afer.
22. L i n g ü í s t i c a . P o é t i c a . C i n e m a , R o m a n Jak o b so n .
23. L S D , Jo h n C ash m an .
24. C r í t i c a e V e r d a d e , R o lan d BártheS;
25. R a ç a e C i ê n c i a I, J u a n C o m as e ou tro s.
26. S h a z a m l , Á lv a ro de M oya.
27. A s A r t e s P l á s t i c a s n a S e m a n a d e 2 2 , A ra c y A m aral.
28. H i s t ó r i a e I d e o l o g i a , F ran cisco Iglésias.
29. P e r u : D a O l i g a r q u i a E c o n ô m i c a à M i l i t a r , A rn a ld o P e-
d ro so D ’H o rta .
30. P e q u e n a E s t é t i c a , M ax Bense.
31. O S o c i a l i s m o U t ó p i c o , M a rtin B uber.
32. A T r a g é d i a G r e g a , A lb in Lesky.
33. F i l o s o f i a e m N o v a C h a v e , S usanne K. L anger.
34. T r a d i ç ã o , C i ê n c i a d o P o v o , L uís d a C â m a ra C ascudo.
35. O L ú d i c o e a s P r o j e ç õ e s d o M u n d o B a r r o c o , A ffonso
À vila.
36. S a r t r e , G erd A . Bornheirri.
3 7 . P l a n e j a m e n t o U r b a n o , L e C o rb u s ie r,
3 8 . A R e l i g i ã o e o S u r g i m e n t o d o C a p i t a l i s m o , R. H . T aw ney.
3 9 . A ' P o é t i c a c ie M a i a k ó v s k i , B óris S ch n aid erm an .
4 0 . O V i s í v e l e o I n v i s í v e l , M erleau -P o n ty .
4 1 . A M u l t i d ã o S o l i t á r i a , D av id R iesm an.
4 2 . M a i a k ó v s k i e o T e a t r o d e V a n g u a r d a , A . M . R ipellino.
4 3 . A G r a n d e E s p e r a n ç a d o S é c u l o X X , J. F o u rastié.
4 4 . C o n t r a c o m u n i c a ç ã o , D é cio P ig n atari.
4 5 . U n i s s e x o , C h a rles W inick.
4 6 . A A r t e d e A g o r a , A g o r a , H é rb e rt R ead.
4 7 . B a u l i a u s — N o v a r q u i t e t u r a , W alte r G ropius.
4 8 . S i g n o s e m R o t a ç ã o , O ctavio Paz.
4 9 . A E s c r i t u r a e , a D i f e r e n ç a , Jacq u es D errid a.
5 0 . L i n g u a g e m e M i t o , E rn st C assirer
5 1 . A s F o r m a s d o F a l s o , W aln ice G alv ão .
5 2 . M i t o e R e a l i d a d e , M ircea E liade.
5 3 . O T r a b a l h o e m M i g a l h a s , G eorges F rie d m an n .
5 4 . A S i g n i f i c a ç ã o n o C i n e m a , C h ristian M etz.
5 5 . A M ú s i c a H o j e , P ie rre Boulez.
5 6 . R a ç a e C i ê n c i a II, L . C. D u n n e o u tro s.
5 7 . F i g u r a s , G é ra rd G en ette.
5 8 . R u m o s d e u m a C u l t u r a T e c n o l ó g i c a , A . M oles.
5 9 . A L i n g u a g e m d o E s p a ç o e d o T e m p o , H ugh L acey.
6 0 . F o r m a l i s m o e F u t u r i s m o , K ry sty n a P ó m orska.

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61. O C r is â n te m o e a E s p a d a , R u th B enedict.
62. E s té tic a e H is tó r ia , B e m a rd B erenson,
63. M o r a d a P a u l i s t a , Lviis Saya.
64. E n t r e o P a s s a d o e ó F u t u r o , H a n n a h A ren d t.
65. P o l í t i c a C i e n t í f i c a , D á rc y M . de A lm eid a e ou tro s.
66. A N o i t e d a M a d r i n h a , S ergjo M iceli.
67. 1 8 2 2 : D i m e n s õ e s , C a rlo s G u ilh e rm e M o ta e o u tro s.
6 8. 0 K i t s c h , A b ra h a m M oles.
69. E s t é t i c a e F i l o s o f i a , M ikel D u fren n e.
70. S i s t e m a d o s O b j e t o s , Je a n B au d rillard .
71. A A r t e n a E r a d a t i i á q u i n a , M axw ell F ry.
72. T e o r i a e R e a l i d a d e , M a rio B unge.
73. A N o v a A r t e , G re g o ry B attcock.
7 4 . O C a r t a z , A b ra h a m M oles.
7 5 . A P r o v a d e G o e d e l , E rn e st N ag el e Ja m e s R . N ew m an.
A O p e r a ç ã o d o T e x t o , H a ro ld o de C am pos,

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SÍMBOLO S.A. INDÚSTRIAS GRÁFICAS
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Telefones 516173 517188 52 9347
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