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TRADUÇÃO, VERSÃO
E INTERPRETAÇÃO
EM INGLÊS
Introdução
A questão ética perpassa o trabalho do tradutor diariamente. A todo
momento, o profissional da tradução se depara com situações nas quais
precisa posicionar-se, ou seja, escolher entre aquilo que acha certo ou
errado, melhor ou pior. A cada escolha, ele(a) precisa estar ciente de suas
possíveis implicações.
Neste capítulo, você vai estudar o conceito de ética e como ele se
aplica à tradução. Refletindo sobre a função social da tradução ao longo
da história, você poderá situar o trabalho do tradutor dentro dos debates
sobre ética. Você também verá alguns exemplos práticos que demons-
trarão a necessidade da reflexão constante a respeito de uma postura
ética, pois não há respostas prontas nem definitivas em relação à ética
na tradução.
é, acima de tudo, um sujeito, alguém que atua sobre a realidade em que vive,
que tem valores, ideias, pensamentos, ideologias, etc. Cada tradutor, na sua
época, irá interpretar os textos de maneira diferente, a partir daquilo que o
torna sujeito no mundo. Os textos, por sua vez, também não são ideias fixas
e absolutas; estão inseridos em um determinado contexto comunicativo e são
envolvidos por toda uma rede de significações.
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Não existe, portanto, uma tradução que seja a reprodução exata de um texto
em outra língua, o que faz com que a função do tradutor precise ser mais bem
analisada. Se a figura do tradutor é tão importante no processo tradutório,
uma grande responsabilidade está depositada nele. Segundo Bohuanovsky
(2001, p. 54):
[...] no âmbito das discussões teóricas sobre tradução mais recentes, a “fide-
lidade” na tradução não é mais entendida como a tentativa de “reproduzir”
o texto de partida, mas está sendo relacionado à inevitável interferência por
parte do tradutor, à sua interpretação e manipulação do texto. O tradutor é
entendido como um sujeito inserido num certo contexto cultural, ideológico,
político e psicológico — que não pode ser ignorado ou eliminado ao elaborar
uma tradução. O tradutor tornou-se “visível.
A tradução deve ser vista como um tertium datum que “soe estrangeiro” ao
leitor e que apresente uma opacidade que o impeça de parecer uma janela
transparente aberta para o autor ou para o texto original: é essa opacidade
— um uso da linguagem que resiste à leitura fácil de acordo com os padrões
contemporâneos — que tornará visível a intervenção do tradutor, seu confronto
com a natureza alienígena de um texto estrangeiro (VENUTI, 1995, p. 118).
Deontologia é um termo que foi cunhado pelo filósofo e economista inglês Jeremy
Bentham no século XIX. O termo designa o estudo ou a ciência daquilo que deve ser
feito para garantir o bem-estar dos homens. Observe a definição de Lazzarini:
Oliveira (2015) afirma que, em nosso dia a dia, oscilamos entre posturas
deontológicas e consequencialistas. Portanto, vemos que a ética não é um
conjunto pronto e universal de regras a serem seguidas, ela é um fazer contí-
nuo, diário, é uma construção. É o indivíduo quem julga e decide, no contexto
em que vive, o que é certo ou errado a partir de seus próprios valores e das
negociações (discussões) que se dão no âmbito das relações sociais.
Ética na tradução
A ética é um tema extensamente discutido dentro dos Estudos da Tradução.
Historicamente, autores como Antoine Berman, Lawrence Venuti e Friedrich
Schleiermacher propuseram ideias sobre essa questão que até hoje são alvos
de polêmica em estudos acadêmicos.
Antoine Berman (1942-1991) foi um tradutor, historiador e teórico da
tradução francês. Uma das questões discutidas pelo autor é a importância da
presença do outro, do estrangeiro no texto traduzido. Falando do contexto es-
pecífico da tradução literária, Berman critica a chamada tradução etnocêntrica,
cujos princípios giram em torno da valorização da cultura de chegada. Essa
abordagem defende que as marcas da língua e da cultura de partida devem ser
apagadas na tradução, de modo que o leitor não sinta nenhum estranhamento
durante a leitura. Na tradução etnocêntrica, portanto, o estrangeiro tem uma
conotação negativa.
Berman rejeita essa abordagem e defende uma tradução que seja fiel ao que
ele chama de letra do original, em oposição à fidelidade ao sentido do texto.
Muito se discute sobre o que seria essa fidelidade à letra, pois sua definição
não é absolutamente clara em seu livro “A tradução e a letra ou o albergue do
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Vemos, então, que Venuti propõe que a tradução pode ser um ato de resis-
tência diante das desigualdades. Na era da globalização, a cultura estaduni-
dense é muito valorizada e, mais do que isso, age de forma hegemônica, isto
é, de modo a dominar as outras culturas. Atualmente, os Estados Unidos são
uma grande potência mundial não apenas econômica, mas também militar,
cultural e política. Como podemos ver diariamente nos noticiários, as decisões
tomadas pelas autoridades estadunidenses tendem a influenciar diferentes
partes do mundo, afetando, inclusive, os rumos de guerras e outros conflitos
internacionais.
Com a tradução acontece a mesma coisa. A cultura estadunidense é hoje
referência para o que acontece em outros países: o cinema, a música, o teatro, a
literatura, entre outros elementos culturais partem frequentemente dos Estados
Unidos para tomar forma em outras culturas. O contrário, no entanto, é bem
menos comum, já que o povo estadunidense não tem o hábito de consumir
produtos culturais estrangeiros com tanta frequência.
Nesse sentido, a tradução assume um papel muito importante, pois, se, por
um lado, Venuti denuncia que o trabalho dos tradutores costuma corroborar
a dominação da cultura estadunidense, por outro lado, ele aponta que existe
uma “luz no fim do túnel”. A solução estaria no ato de valorização das culturas
estrangeiras nas traduções, o que aproxima bastante o argumento do autor
da visão de Antoine Berman em relação à convivência entre o nacional e o
estrangeiro, entre as diferenças culturais.
Tanto as concepções de Berman quanto as de Venuti a respeito do fazer
tradutório envolvem uma ideia de ética, isto é, uma valoração sobre o que
é mais adequado ou menos adequado dependendo da situação em que o
tradutor se encontra. Ambos os casos são desdobramentos das ideias de Frie-
drich Schleiermacher (1768-1834), filósofo alemão cujo trabalho, até hoje,
gera discussões nos Estudos da Tradução. Vejamos o que esse autor afirma a
respeito das possibilidades de abordagem do tradutor:
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Mas, agora, por que caminhos deve enveredar o verdadeiro tradutor que queira
efetivamente aproximar estas duas pessoas tão separadas, seu escritor e seu leitor,
e propiciar a este último, sem obrigá-lo a sair do círculo de sua língua materna,
uma compreensão correta e completa e o gozo do primeiro? No meu juízo, há
apenas dois. Ou bem o tradutor deixa o escritor o mais tranquilo possível e faz
com que o leitor vá a seu encontro, ou bem deixa o mais tranquilo possível o
leitor e faz com que o escritor vá a seu encontro. Ambos os caminhos são tão
completamente diferentes que um deles tem que ser seguido com o maior rigor,
pois, qualquer mistura produz necessariamente um resultado muito insatisfa-
tório, e é de temer-se que o encontro do escritor e do leitor falhe inteiramente
(SCHLEIERMACHER, 1813 apud HEIDERMANN 2010, p. 57-58, grifos meus).
Na prática
Na prática, tanto o tradutor quanto o intérprete se deparam diariamente com
decisões que precisam tomar — desde uma escolha simples entre dois vocábulos
até a opção por uma postura ideológica que pode afetar diretamente a vida de
outras pessoas. Vamos ver alguns exemplos a esse respeito?
Hazar Alkheder (2013) realizou um estudo sobre a tradução do livro de
autoajuda The Secret, de Rhonda Byrne (2006), para o árabe. A pesquisadora
afirma que, quando se tratava de referências religiosas, o profissional procurou
fazer adaptações que acomodassem o texto à religião islâmica. Versículos
bíblicos foram traduzidos como old wisdom (sabedoria antiga), por exemplo.
Mas por que o tradutor optaria por fazer essas adaptações? E a ética, onde fica?
Bem, em primeiro lugar, precisamos entender um pouco melhor o contexto
em que a tradução foi produzida. A começar, o mundo árabe tem normas de
publicação bastante rígidas, em especial nos países em que o regime político é
mais estrito. Nessas regiões, a tradução é, muitas vezes, vista como uma forma de
“invasão inimiga” que poderia servir à dominação dos países ocidentais sobre o
Oriente. Além disso, existe a questão da força da religião islâmica nesses países.
Nesse sentido, elementos da cultura ocidental (estadunidense, em particular) são
considerados polêmicos e, às vezes, até proibidos na cultura árabe.
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Prenzlauer Alle no 63, casa 3, quarto 13. Bilhete de Fritz Jaujoks para sua mãe.
Preso junto com outros adolescentes aos 23.11.1945, com 16 anos de idade, foi
levado aos porões do serviço secreto soviético na Prenzlauer Alle. Depois de
semanas de interrogatórios noturnos, foi transferido em meados de fevereiro
de 1946 para o cárcere judicial de Berlin-Lichtenberg. Pouco antes do final
da pena, permitiram-lhe escrever a sua mãe pedindo o envio de objetos de
primeira necessidade. Em sua carta, manifesta também o desejo de receber
pão, apesar da proibição de pedir víveres. A intérprete não traduziu essas
palavras. Assim a carta chegou até a mãe (OLIVEIRA, 2015, p. 94).
A tradutora do alemão para o russo omitiu uma palavra (Brot = pão), e esse
gesto tem implicações éticas. Por um lado, a profissional deixou de servir a seu
contratante, pois ele precisaria de um documento em russo para controlar as
ações dos presos que estavam sob sua ordem – era função dele garantir que as
regras do regime fossem seguidas. Por outro lado, a tradutora agiu em solida-
riedade ao garoto e à sua mãe, na medida em que ela percebeu que a inclusão de
um vocábulo poderia gerar problemas ao garoto na prisão e, ao mesmo tempo,
também poderia fazer com que a carta não chegasse a seu destino.
Nesse caso, a tradutora colocou-se em uma situação de risco, pois poderia
ser punida se fosse descoberta. Ela, porém, escolheu assumir o risco, fez uma
opção e ficou de um dos lados da história. Seu ato, portanto, foi um ato ético,
já que ela estabeleceu prioridades que julgou serem mais justas ou corretas
diante de uma determinada situação.
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Últimas considerações
Paulo Oliveira (2015) alerta para as responsabilidades que envolvem a profissão
do tradutor e suas decisões cotidianas, entendendo que o profissional sempre
precisará assumir uma postura diante de sua realidade:
Como vimos, a questão ética na prática tradutória está longe de ter uma
resposta definitiva — nem é esse seu propósito, aliás. O que podemos inferir
é que todos os dias o tradutor ou o intérprete se deparará com situações dentro
das quais precisará fazer escolhas. Para cada escolha, existem consequências
e implicações, e é nesse contexto que entra a ética do tradutor.
12 Tradução e ética
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Disponível em: <https://veja.abril.com.br/mundo/democratas-querem-que-tradutora-
-deponha-sobre-encontro-trump-putin/>. Acesso em: 02.ago.2018.
Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.