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OFICINA DE

TRADUÇÃO, VERSÃO
E INTERPRETAÇÃO
EM INGLÊS

Aline Gomes Vidal


Tradução e ética
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Descrever o desenvolvimento sobre o pensamento da tradução ao


longo da história.
 Identificar as diferentes visões sobre a tradução e a mudança do
pensamento ético no desenvolvimento das sociedades humanas.
 Reconhecer os conceitos básicos sobre a ética na tradução.

Introdução
A questão ética perpassa o trabalho do tradutor diariamente. A todo
momento, o profissional da tradução se depara com situações nas quais
precisa posicionar-se, ou seja, escolher entre aquilo que acha certo ou
errado, melhor ou pior. A cada escolha, ele(a) precisa estar ciente de suas
possíveis implicações.
Neste capítulo, você vai estudar o conceito de ética e como ele se
aplica à tradução. Refletindo sobre a função social da tradução ao longo
da história, você poderá situar o trabalho do tradutor dentro dos debates
sobre ética. Você também verá alguns exemplos práticos que demons-
trarão a necessidade da reflexão constante a respeito de uma postura
ética, pois não há respostas prontas nem definitivas em relação à ética
na tradução.

Reflexões sobre a tradução ao longo da história


A tradução é uma prática muito antiga: em seus primórdios, a interpretação
estava ligada às transações comerciais dos mais diversos tipos; quanto à
tradução escrita, os primeiros registros datam do século XVIII a.C. Já as dis-
cussões teóricas a respeito das práticas começaram bem depois e, na tradição
ocidental, as primeiras reflexões nesse sentido são atribuídas a Cícero (106-43
a.C.) (Figura 1) (HURTADO ALBIR, 2001).
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Figura 1. Estátua de Cícero em Roma.


Fonte: Andrea Izzotti / Shutterstock.com.

Como disciplina, os chamados Estudos da Tradução surgiram apenas na


segunda metade do século XX e, desde então, diferentes enfoques teóricos têm
sido discutidos. Hurtado Albir (2001) aponta cinco enfoques possíveis dentro
da disciplina: 1) linguísticos; 2) textuais; 3) cognitivos; 4) comunicativos e
socioculturais; e 5) filosóficos e hermenêuticos (p. 127-128). Essa classificação
não pode ser entendida como absoluta, mas como uma tendência dentro dos
Estudos da Tradução. É possível, por exemplo, que um estudo linguístico
passe por debates comunicativos e socioculturais, entre outras combinações.
Porém, em geral, cada estudo tem um foco mais evidente.
Do ponto de vista prático, muito se discute sobre o que seria considerado
uma “boa tradução”. Certamente você já deve ter pensado ou ouvido falar que
uma tradução competente seria aquela que consegue proporcionar uma leitura
fluida e natural para o leitor. Entretanto, a definição de “boa tradução” não
é tão simples assim. Muitos estudiosos já se debruçaram sobre essa questão
e não há consenso sobre um padrão a ser seguido, mas há debates nos quais
os tradutores precisam mergulhar, a fim de analisar cada caso dentro de seu
contexto.
Uma das observações que precisamos ter em mente é o fato de que o tradutor
não é um mero transcodificador de palavras e significados (visão logocêntrica)
ou um botão que, ao ser pressionado, dispara as respostas corretas. O tradutor
Tradução e ética 3

é, acima de tudo, um sujeito, alguém que atua sobre a realidade em que vive,
que tem valores, ideias, pensamentos, ideologias, etc. Cada tradutor, na sua
época, irá interpretar os textos de maneira diferente, a partir daquilo que o
torna sujeito no mundo. Os textos, por sua vez, também não são ideias fixas
e absolutas; estão inseridos em um determinado contexto comunicativo e são
envolvidos por toda uma rede de significações.

Muitas vezes, o tradutor se vê em situações conflituosas em que precisa tomar decisões


em contextos que nem sempre são agradáveis. Neste artigo, Alicia Miralles ressalta a
importância de discutir aspectos éticos da prática tradutória entre os profissionais em
formação para que eles possam se preparar para a realidade do mercado de trabalho.

https://goo.gl/gXhsvp

Não existe, portanto, uma tradução que seja a reprodução exata de um texto
em outra língua, o que faz com que a função do tradutor precise ser mais bem
analisada. Se a figura do tradutor é tão importante no processo tradutório,
uma grande responsabilidade está depositada nele. Segundo Bohuanovsky
(2001, p. 54):

[...] no âmbito das discussões teóricas sobre tradução mais recentes, a “fide-
lidade” na tradução não é mais entendida como a tentativa de “reproduzir”
o texto de partida, mas está sendo relacionado à inevitável interferência por
parte do tradutor, à sua interpretação e manipulação do texto. O tradutor é
entendido como um sujeito inserido num certo contexto cultural, ideológico,
político e psicológico — que não pode ser ignorado ou eliminado ao elaborar
uma tradução. O tradutor tornou-se “visível.

A tradução está, portanto, longe de ser uma atividade puramente técnica.


Tanto o conceito de fidelidade quanto o conceito de visibilidade do tradutor
fazem parte de discussões importantes dentro dos Estudos da Tradução e têm
sido frequentemente revisitados.
A ideia de fidelidade refere-se à relação que o tradutor estabelece com o
texto de partida. Em uma visão logocêntrica, o papel do tradutor seria o de
transpor um texto de uma língua para outra sem alterações. O problema dessa
abordagem é, primeiramente, o entendimento de que os textos possuem um
4 Tradução e ética

sentido único e inequívoco. Outro problema seria a ideia de falta ou perda na


tradução, que coloca o texto traduzido sempre como algo inferior ao chamado
original.
Sob essa perspectiva, o tradutor deveria ser uma espécie de “mão invisí-
vel” que, de forma neutra, levaria o texto original ao leitor de outra língua.
O tradutor deveria, então, evitar todo e qualquer tipo de marca que pudesse
identificar a sua atuação, causando algum tipo de estranhamento no leitor.
Autor muito discutido dentro dos Estudos da Tradução, Lawrence Venuti
(2002) defende que a fluência ( fluent translations), característica buscada
por muitas traduções, geraria um falso efeito de transparência para o leitor,
apagando os vestígios do estrangeiro, do outro, no texto traduzido. Em opo-
sição à visão logocêntrica, Venuti defende a importância da visibilidade do
tradutor. Em suas palavras:

A tradução deve ser vista como um tertium datum que “soe estrangeiro” ao
leitor e que apresente uma opacidade que o impeça de parecer uma janela
transparente aberta para o autor ou para o texto original: é essa opacidade
— um uso da linguagem que resiste à leitura fácil de acordo com os padrões
contemporâneos — que tornará visível a intervenção do tradutor, seu confronto
com a natureza alienígena de um texto estrangeiro (VENUTI, 1995, p. 118).

De acordo com Arrojo (1986, p. 42), “[...] se pensamos a tradução como um


processo de recriação ou transformação, como podemos falar em fidelidade?
Como poderemos avaliar a qualidade de uma tradução?”. Afinal de contas,
quando se é fiel, se é fiel a algo (um valor, um conceito, por exemplo) ou a
alguém. Então, a quem ou ao que o tradutor deve ser fiel? Por qual motivo?
Com qual finalidade? Se for para falar em fidelidade na tradução, todas essas
questões precisam ser levadas em consideração.
O tradutor coloca línguas e culturas em relação umas com as outras. Não
traduzimos apenas textos, traduzimos discursos (SOBRAL, 2008, p. 73). Ve-
mos, com isso, que o trabalho do tradutor vai muito além da tradução “palavra
por palavra” e envolve não apenas a materialidade linguística dos textos, mas
também o seu contexto de produção, de recepção e de circulação. E porque
é nesse contexto que se insere a discussão a respeito da ética na tradução,
vamos falar um pouco sobre isso?
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Sobre o conceito de ética


Falar sobre ética é falar sobre nossos valores, atitudes e posturas diante da
vida, de nosso trabalho, etc. A ética, portanto, está ligada a concepções sobre
o que vem a ser positivo ou negativo, correto ou incorreto, bom ou ruim. Não
se trata de algo exato e absoluto, mas de ideias e valores que cultivamos.
Do ponto de vista específico da tradução, a ética se dá, em princípio, a
partir das valorações pessoais do tradutor, incluindo sua visão de mundo
(ideologias), sua visão do papel social de sua profissão, etc. Por outro lado,
existe a “patronagem” de que fala André Lefevere (1992) e que diz respeito às
instâncias que diretamente interferem no trabalho do tradutor: cliente, editora,
remuneração, prazos, etc. Mas o que é ética? O que quer dizer ser ético? “Em
se tratando de ética, um bom caminho para chegarmos a um entendimento
adequado do que está realmente em jogo passa por uma investigação do con-
ceito propriamente dito, como pressuposto para aplicá-lo ao caso específico
da tradução” (OLIVEIRA, 2015, p. 72-73).
O termo “ética” tem origem na palavra grega éthos, cujo significado tem
duas variantes. Éthos refere-se a hábitos ou costumes, mas também pode
significar constituição de caráter. Essas definições não são opostas, uma sofre
influência da outra quando, por exemplo, os hábitos de um grupo ditam as
regras ou normas que deverão ser seguidas por cada indivíduo. É o caso da
ética profissional, como ocorre na ética médica, na ética científica (em expe-
rimentos, por exemplo) e também na ética na tradução (OLIVEIRA, 2015).
Os hábitos vão sendo consolidados ao longo do tempo a ponto de servi-
rem como justificativa para determinadas ações ou posturas. A adesão a um
costume pode ocorrer espontaneamente ou por meio de procedimentos, com
os quais uma pessoa pode ser persuadida, convencida ou seduzida a aderir a
um comportamento ou hábito (OLIVEIRA, 2015, p. 74).
Com isso, formam-se sistemas de ética cujos princípios podem ser pautados
em uma base deontológica ou consequencialista. No primeiro caso, o foco
seria nos valores a priori, ou seja, os deveres que acreditamos ser legítimos,
em especial nas práticas profissionais, em que podem aparecer na forma dos
chamados “códigos de ética”. Já a abordagem consequencialista tem como
base os efeitos ou impactos que as nossas atitudes podem gerar.
6 Tradução e ética

Deontologia é um termo que foi cunhado pelo filósofo e economista inglês Jeremy
Bentham no século XIX. O termo designa o estudo ou a ciência daquilo que deve ser
feito para garantir o bem-estar dos homens. Observe a definição de Lazzarini:

a Deontologia, em verdade, é a ciência do que é justo e conveniente que


o homem faça, do valor a que visa e do dever da norma que dirige o
comportamento humano, no que coincide a Deontologia com a ciência da
moralidade da ação humana ou com a ética (LAZZARINI, 1996, p. 58).

Oliveira (2015) afirma que, em nosso dia a dia, oscilamos entre posturas
deontológicas e consequencialistas. Portanto, vemos que a ética não é um
conjunto pronto e universal de regras a serem seguidas, ela é um fazer contí-
nuo, diário, é uma construção. É o indivíduo quem julga e decide, no contexto
em que vive, o que é certo ou errado a partir de seus próprios valores e das
negociações (discussões) que se dão no âmbito das relações sociais.

Ética na tradução
A ética é um tema extensamente discutido dentro dos Estudos da Tradução.
Historicamente, autores como Antoine Berman, Lawrence Venuti e Friedrich
Schleiermacher propuseram ideias sobre essa questão que até hoje são alvos
de polêmica em estudos acadêmicos.
Antoine Berman (1942-1991) foi um tradutor, historiador e teórico da
tradução francês. Uma das questões discutidas pelo autor é a importância da
presença do outro, do estrangeiro no texto traduzido. Falando do contexto es-
pecífico da tradução literária, Berman critica a chamada tradução etnocêntrica,
cujos princípios giram em torno da valorização da cultura de chegada. Essa
abordagem defende que as marcas da língua e da cultura de partida devem ser
apagadas na tradução, de modo que o leitor não sinta nenhum estranhamento
durante a leitura. Na tradução etnocêntrica, portanto, o estrangeiro tem uma
conotação negativa.
Berman rejeita essa abordagem e defende uma tradução que seja fiel ao que
ele chama de letra do original, em oposição à fidelidade ao sentido do texto.
Muito se discute sobre o que seria essa fidelidade à letra, pois sua definição
não é absolutamente clara em seu livro “A tradução e a letra ou o albergue do
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longínquo” (2008). De acordo com o autor, para além do sentido, o tradutor


deveria entender seu ofício como uma atividade ética, poética e pensante,
como melhor esclarece Ferreira (2009, p. 01):

O ético aqui pode significar a busca de vínculo o mais próximo possível


com a “verdade” (tal como expressa na letra do texto), enquanto o poético
corresponderia ao elemento ao mesmo tempo criativo e fundamentalmente
calcado na materialidade das palavras (é na poesia que letra e sentido criam
vínculo o mais dificilmente dissolúvel). O pensante, para Berman, seria
privilegiar a reflexão (e o trabalho) sobre o texto (como unicidade, como
letra) em detrimento da concepção (antifilosófica) de categorias estáticas e
irremediavelmente separadas (“corpo” e “alma”, “letra” e “sentido”).

Vemos, aqui, a complexidade do argumento do autor em relação à prática


tradutória. Segundo Simone Petry (2018, p. 174), a ética defendida por Berman
está pautada em um “[...] discurso de defesa por uma convivência radical”. Isso
quer dizer que o trabalho do tradutor partiria da ideia de compartilhamento
das diferenças, da relação entre o nacional e o estrangeiro; daí a importância
atribuída pelo autor à presença do outro no texto traduzido.
De forma semelhante, o estadunidense Lawrence Venuti faz uma distinção
entre dois tipos de abordagem tradutória: domesticação (domestication) e
estrangeirização ( foreignization). A estrangeirização caracterizaria as tra-
duções que procuram valorizar a cultura e o espírito estrangeiros, deixando
visíveis suas marcas no texto. Essa seria uma forma não apenas de aproximar
o leitor da cultura de partida, mas também de deixar claro que se trata de uma
tradução. O mesmo não acontece quando o tradutor torna o texto mais fluído,
gerando, no leitor, uma ilusão de que ele teria sido produzido originalmente
na língua de chegada (já falamos anteriormente sobre Venuti e o conceito de
visibilidade do tradutor).
Já a domesticação seria a abordagem segundo a qual o tradutor procura
apagar as diferenças culturais, fazendo com que o texto tome as vestes da língua
de chegada. Isso significa dizer que as estruturas gramaticais, o vocabulário,
as expressões idiomáticas, as discursividades, enfim, tudo o que compõe um
texto deve estar de acordo com as normas e os valores da cultura de chegada.
Cabe ao tradutor, nesse caso, fazer todas as adaptações necessárias para que,
em seu texto, não conste nenhum tipo de elemento que possa tornar a leitura
desconfortável para o leitor.
Venuti faz uma crítica que é bastante pertinente ao contexto anglo-ame-
ricano, no qual as traduções que ele chama de fluentes são bastante comuns.
A distinção que o autor faz entre as abordagens domesticadoras e estrangei-
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rizantes não tem um intuito apenas classificatório, trata-se de uma crítica a


uma prática habitual no campo da tradução dentro de um contexto específico.
Vejamos o que o autor defende:

Quero sugerir que, na medida em que a tradução estrangeirizante busca conter


a violência etnocêntrica da tradução, é altamente desejável, hoje em dia, uma
intervenção cultural estratégica na atual conjuntura internacional […]. A
tradução estrangeirizante em inglês pode ser uma forma de resistência contra
o etnocentrismo e o racismo, contra o narcisismo e o imperialismo culturais,
em favor de relações geopolíticas democráticas (VENUTI, 1995, p. 20).

Vemos, então, que Venuti propõe que a tradução pode ser um ato de resis-
tência diante das desigualdades. Na era da globalização, a cultura estaduni-
dense é muito valorizada e, mais do que isso, age de forma hegemônica, isto
é, de modo a dominar as outras culturas. Atualmente, os Estados Unidos são
uma grande potência mundial não apenas econômica, mas também militar,
cultural e política. Como podemos ver diariamente nos noticiários, as decisões
tomadas pelas autoridades estadunidenses tendem a influenciar diferentes
partes do mundo, afetando, inclusive, os rumos de guerras e outros conflitos
internacionais.
Com a tradução acontece a mesma coisa. A cultura estadunidense é hoje
referência para o que acontece em outros países: o cinema, a música, o teatro, a
literatura, entre outros elementos culturais partem frequentemente dos Estados
Unidos para tomar forma em outras culturas. O contrário, no entanto, é bem
menos comum, já que o povo estadunidense não tem o hábito de consumir
produtos culturais estrangeiros com tanta frequência.
Nesse sentido, a tradução assume um papel muito importante, pois, se, por
um lado, Venuti denuncia que o trabalho dos tradutores costuma corroborar
a dominação da cultura estadunidense, por outro lado, ele aponta que existe
uma “luz no fim do túnel”. A solução estaria no ato de valorização das culturas
estrangeiras nas traduções, o que aproxima bastante o argumento do autor
da visão de Antoine Berman em relação à convivência entre o nacional e o
estrangeiro, entre as diferenças culturais.
Tanto as concepções de Berman quanto as de Venuti a respeito do fazer
tradutório envolvem uma ideia de ética, isto é, uma valoração sobre o que
é mais adequado ou menos adequado dependendo da situação em que o
tradutor se encontra. Ambos os casos são desdobramentos das ideias de Frie-
drich Schleiermacher (1768-1834), filósofo alemão cujo trabalho, até hoje,
gera discussões nos Estudos da Tradução. Vejamos o que esse autor afirma a
respeito das possibilidades de abordagem do tradutor:
Tradução e ética 9

Mas, agora, por que caminhos deve enveredar o verdadeiro tradutor que queira
efetivamente aproximar estas duas pessoas tão separadas, seu escritor e seu leitor,
e propiciar a este último, sem obrigá-lo a sair do círculo de sua língua materna,
uma compreensão correta e completa e o gozo do primeiro? No meu juízo, há
apenas dois. Ou bem o tradutor deixa o escritor o mais tranquilo possível e faz
com que o leitor vá a seu encontro, ou bem deixa o mais tranquilo possível o
leitor e faz com que o escritor vá a seu encontro. Ambos os caminhos são tão
completamente diferentes que um deles tem que ser seguido com o maior rigor,
pois, qualquer mistura produz necessariamente um resultado muito insatisfa-
tório, e é de temer-se que o encontro do escritor e do leitor falhe inteiramente
(SCHLEIERMACHER, 1813 apud HEIDERMANN 2010, p. 57-58, grifos meus).

A frase destacada na citação de Schleiermacher é bastante mencionada em


trabalhos acadêmicos sobre tradução e serve para comparar a concepção que o autor
desenvolveu no século XIX às ideias discutidas mais contemporaneamente a partir
dos textos de Berman e Venuti principalmente. Historicamente, podemos dizer que
as ideias do autor alemão serviram como base para uma discussão que, a partir
dos anos 1990, multiplicou-se nos Estudos da Tradução, marcada especialmente
pela dicotomia domesticação versus estrangeirização postulada por Venuti.

Na prática
Na prática, tanto o tradutor quanto o intérprete se deparam diariamente com
decisões que precisam tomar — desde uma escolha simples entre dois vocábulos
até a opção por uma postura ideológica que pode afetar diretamente a vida de
outras pessoas. Vamos ver alguns exemplos a esse respeito?
Hazar Alkheder (2013) realizou um estudo sobre a tradução do livro de
autoajuda The Secret, de Rhonda Byrne (2006), para o árabe. A pesquisadora
afirma que, quando se tratava de referências religiosas, o profissional procurou
fazer adaptações que acomodassem o texto à religião islâmica. Versículos
bíblicos foram traduzidos como old wisdom (sabedoria antiga), por exemplo.
Mas por que o tradutor optaria por fazer essas adaptações? E a ética, onde fica?
Bem, em primeiro lugar, precisamos entender um pouco melhor o contexto
em que a tradução foi produzida. A começar, o mundo árabe tem normas de
publicação bastante rígidas, em especial nos países em que o regime político é
mais estrito. Nessas regiões, a tradução é, muitas vezes, vista como uma forma de
“invasão inimiga” que poderia servir à dominação dos países ocidentais sobre o
Oriente. Além disso, existe a questão da força da religião islâmica nesses países.
Nesse sentido, elementos da cultura ocidental (estadunidense, em particular) são
considerados polêmicos e, às vezes, até proibidos na cultura árabe.
10 Tradução e ética

Você já pensou nas implicações que existem para um em relação a uma


tentativa de levar adiante ideias que são proibidas por lei em seu país? Sem
contar que o próprio tradutor pode ser, de fato, islâmico, o que acarretaria
consequências para ele do ponto de vista de sua ética religiosa. Nesse caso,
de que lado fica a ética do tradutor? É uma situação polêmica e difícil de ser
resolvida, não é mesmo? Poderíamos dizer, inclusive, que uma abordagem
domesticadora, isto é, que tende a apagar aspectos culturais estrangeiros,
pode ser entendida como um ato de resistência diante do domínio da cultura
estadunidense ao redor do globo.
Outra situação é descrita por Paulo Oliveira (2015) em um artigo científico
em que o pesquisador descreve uma viagem que fez a Berlim, onde visitou
uma exposição que visava preservar a memória do distrito de Prenzlauer Berg.
Durante o regime nazista e, depois, durante a invasão soviética, os prédios da
administração local do distrito eram utilizados para alojar presos políticos.
Nessa exposição, o autor encontrou o seguinte relato:

Prenzlauer Alle no 63, casa 3, quarto 13. Bilhete de Fritz Jaujoks para sua mãe.
Preso junto com outros adolescentes aos 23.11.1945, com 16 anos de idade, foi
levado aos porões do serviço secreto soviético na Prenzlauer Alle. Depois de
semanas de interrogatórios noturnos, foi transferido em meados de fevereiro
de 1946 para o cárcere judicial de Berlin-Lichtenberg. Pouco antes do final
da pena, permitiram-lhe escrever a sua mãe pedindo o envio de objetos de
primeira necessidade. Em sua carta, manifesta também o desejo de receber
pão, apesar da proibição de pedir víveres. A intérprete não traduziu essas
palavras. Assim a carta chegou até a mãe (OLIVEIRA, 2015, p. 94).

A tradutora do alemão para o russo omitiu uma palavra (Brot = pão), e esse
gesto tem implicações éticas. Por um lado, a profissional deixou de servir a seu
contratante, pois ele precisaria de um documento em russo para controlar as
ações dos presos que estavam sob sua ordem – era função dele garantir que as
regras do regime fossem seguidas. Por outro lado, a tradutora agiu em solida-
riedade ao garoto e à sua mãe, na medida em que ela percebeu que a inclusão de
um vocábulo poderia gerar problemas ao garoto na prisão e, ao mesmo tempo,
também poderia fazer com que a carta não chegasse a seu destino.
Nesse caso, a tradutora colocou-se em uma situação de risco, pois poderia
ser punida se fosse descoberta. Ela, porém, escolheu assumir o risco, fez uma
opção e ficou de um dos lados da história. Seu ato, portanto, foi um ato ético,
já que ela estabeleceu prioridades que julgou serem mais justas ou corretas
diante de uma determinada situação.
Tradução e ética 11

Mais recentemente, foi noticiado na imprensa internacional que os democratas que


fazem oposição ao presidente Donald Trump no congresso dos Estados Unidos pediram
que a intérprete Marina Gross fosse intimada a depor diante dos congressistas. O intuito
é fazer com que ela exponha o que foi discutido entre o representante estadunidense
e Vladimir Putin, presidente russo, no encontro que ocorreu em julho de 2018 em
Helsinque, na Finlândia. O encontro ocorreu a portas fechadas e, além dos líderes, apenas
seus intérpretes estiveram presentes e, portanto, conhecem o conteúdo da reunião.
Para os parlamentares, o depoimento da intérprete (bem como anotações que ela
possivelmente fez) podem ajudar a esclarecer o que ocorreu. A fala de Gross pode ter
implicações tanto do ponto de vista político mais geral quanto do ponto de vista da
ética tradutória. Como funcionária de Estado, ela tem um compromisso em relação
a seu contratante que, provavelmente, inclui sigilo em relação ao que ela ouve e
interpreta. Por outro lado, quais seriam as consequências dessa reunião para seu país
e até para o resto do mundo? Estamos diante de um impasse que só a intérprete
poderá julgar como resolver.
Na matéria a seguir, você encontrará detalhes sobre quem é a intérprete de Trump
e sobre essa a polêmica envolvendo interpretação e política.

https://goo.gl/dTybr1

Últimas considerações
Paulo Oliveira (2015) alerta para as responsabilidades que envolvem a profissão
do tradutor e suas decisões cotidianas, entendendo que o profissional sempre
precisará assumir uma postura diante de sua realidade:

Além de respeitar as normas consolidadas de sua profissão e engajar-se em


seu aprimoramento, também cabe ao tradutor ir além ou ficar aquém delas,
chamando para si a responsabilidade quando os códigos existentes não derem
conta de todos os aspectos envolvidos (OLIVEIRA, 2015, p. 95).

Como vimos, a questão ética na prática tradutória está longe de ter uma
resposta definitiva — nem é esse seu propósito, aliás. O que podemos inferir
é que todos os dias o tradutor ou o intérprete se deparará com situações dentro
das quais precisará fazer escolhas. Para cada escolha, existem consequências
e implicações, e é nesse contexto que entra a ética do tradutor.
12 Tradução e ética

1. O pesquisador Lawrence Venuti longo do capítulo, em que


defende a existência de uma sentido uma tradução pode
diferenciação entre duas abordagens ser considerada ética?
tradutórias: domesticação e a) Berman defende a tradução fiel
estrangeirização. Qual é a crítica à letra em oposição à fidelidade
feita pelo autor em relação à ao sentido, entendendo que
abordagem domesticadora? a última reduziria a tradução
a) A abordagem domesticadora é a um único aspecto do texto.
uma proposta que negligencia Além disso, para o autor, as
a cultura do texto de chegada, marcas do que é estrangeiro à
deixando o enfoque para a cultura de chegada precisam
cultura do texto de partida. estar presentes na tradução.
b) A domesticação mostrou-se b) Para Berman, tradução ética
negativa ao longo da história seria aquela segundo a qual
da tradução por ser uma o tradutor se colocaria como
abordagem preconceituosa homem ou mulher leal aos
que serve aos movimentos valores de seus contratantes.
extremistas de direita. c) Referindo-se especificamente
c) No contexto estadunidense, à tradução literária, Berman
são mais comuns as traduções entende que a ética se
domesticadoras, o que atesta e dá na medida em que o
fortalece a hegemonia da cultura tradutor respeita os aspectos
dos Estados Unidos na era da poéticos do texto.
globalização, pois as propostas d) A tradução ética, de acordo
estrangeiras acabam ficando com Berman, estaria ligada à
apagadas ou minimizadas. invisibilidade do tradutor, o
d) Nos Estados Unidos, a qual deveria fazer o possível
maioria das traduções é para tornar o texto de chegada
estrangeirizadora. Para fluído e sem marcas que
Venuti, essa abordagem teria exponham a presença da
uma conotação negativa, cultura estrangeira no texto.
pois representa a submissão e) Berman defende uma postura
da cultura estadunidense ética do tradutor no contexto
em relação às demais. específico das situações
e) Venuti defende a abordagem extremas, como as zonas de
estrangeirizadora por saber guerra, por exemplo. Ele entende
que, nos Estados Unidos, os que é nesse cenário que o
estrangeirismos são mal vistos tradutor precisa tomar decisões
pelo público leitor em geral. éticas, ao contrário do que
2. Considerando a proposta de ocorre nas situações cotidianas.
Antoine Berman discutida ao
Tradução e ética 13

3. A fidelidade é um conceito muito a) O tradutor se torna visível


discutido nos Estudos da Tradução, quando seu nome é incorporado
embora não haja consenso à capa de suas traduções. No
a respeito da sua definição e corpo do texto, sua ação é mais
extensão. Dentro da chamada visão limitada e não há muito o que
logocêntrica, hoje muito criticada fazer para que haja visibilidade.
nos debates acadêmicos, o que b) O tradutor que se faz visível é
representa a fidelidade do tradutor? aquele que impõe sua visão
a) A abordagem logocêntrica é de mundo ao leitor, ditando
defendida por Venuti dentro expressamente aquilo que
do contexto da cultura considerada certo e errado.
estadunidense porque considera c) O conceito de visibilidade foi
a importância da transposição desenvolvido por Antoine
de sentidos na tradução. Berman e está ligado à presença
b) A visão logocêntrica está de elementos estrangeiros
focada essencialmente no no texto traduzido, o que
sentido das palavras. Dessa faz com que o trabalho do
forma, o tradutor seria apenas tradutor fique mais evidente,
um técnico e sua função seria valorizando a profissão.
transpor mecanicamente um d) Ao contrário do que ocorre
texto de uma língua para outra. com as traduções fluentes, a
c) A fidelidade do tradutor está partir do momento que fica
ligada à sua relação com claro para o leitor que ele está
o contratante de acordo diante de um texto traduzido,
com a visão logocêntrica, fica evidente a participação do
pois é o contratante que faz tradutor naquele trabalho, o
a ponte entre o texto e o que contribui para a valorização
profissional da tradução. dos profissionais da área.
d) Na visão logocêntrica, o enfoque e) O trabalho do tradutor se torna
é a tradução de discursos, não visível na medida em que ele
de palavras, considerando as consegue minimizar a presença
situações comunicativas em de elementos estrangeiros
que cada texto está inserido. no texto, o que prova que
e) O enfoque da visão logocêntrica ele é um bom tradutor.
é o significado das palavras, 5. Não há respostas prontas que
porém, isso se faz situando possam definir uma postura
os textos em seu contexto de ética universal na tradução. Que
produção, recepção e circulação. elementos, então, podem estar
4. De que maneira o fato do tradutor envolvidos na construção ética
se fazer “visível”, isto é, deixar do profissional da tradução?
marcas da sua ação no texto, a) Embora não haja uma resposta
pode contribuir para a valorização definitiva atualmente, é preciso
dos profissionais da área? que os tradutores se unam
em torno dessa questão e
14 Tradução e ética

construam, coletivamente, motivo, precisa ser legitimada


um código de ética que possa na prática diária dos tradutores.
ser seguido por todos. d) A tradução opera no campo das
b) O relativismo ético é um diferenças culturais. Sendo assim,
elemento perigoso, pois, em o trabalho do tradutor envolve
situações extremas, pode analisar os valores e normas em
levar a contradições cujas jogo no contexto em que ele se
consequências não temos insere, estabelecer prioridades
como medir. Por esse motivo, e procurar resolver os conflitos
cabe ao tradutor procurar em com os quais se depara.
códigos de ética de outras e) O conceito de ética é
áreas (como a ética médica, extremamente abstrato, de
por exemplo) subsídios para modo que, para o tradutor, é
a construção de uma ética difícil transpô-lo à prática. Por
em seu campo de trabalho. esse motivo, é preciso que os
c) A ética na tradução é uma prática tradutores em formação estudem
subversiva, isto é, está sempre todos os casos relatados
na contramão dos hábitos de postura ética e sigam as
considerados corretos pela soluções propostas pelos
maioria das pessoas. Por esse tradutores mais experientes.

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Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para
esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.

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