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Ciência e Dialética em Aristóteles

do estado ou disposição produtiva acompanhada de razão”.335 Por


outro lado, como nenhuma arte ou técnica (tšcnh) há que não seja uma
›xij produtiva acompanhada da razão, assim como não há ›xij algu-
ma dessa natureza que não seja uma tšcnh, é idêntica a arte ou técni-
ca a um estado ou disposição produtiva acompanhada de razão verda-
deira.336 Se, consideramos, por sua vez, as partes da alma racional,
vemos que ao conhecimento das coisas necessárias corresponde a
parte científica (tÕ ™pisthmonikÒn), que tem na sabedoria (sof…a) sua
virtude, enquanto ao conhecimento das coisas contingentes corres-
ponde a parte calculadora (tÕ logistikÒn) ou opinativa (doxastikÒn), cuja
virtude é a sabedoria prática ou prudência (frÒnhsij).337 E, na quali-
dade de “estado ou disposição prática verdadeira acompanhada de
razão, concernente às coisas boas e más para o homem”,338 a frÒnhsij
não é ciência, uma vez que o objeto da ação é contingente339 e que a
ação concerne sempre às coisas singulares;340 por outro lado, a tarefa
principal do homem prudente (frÒnimoj) é a boa deliberação, “mas nin-
guém delibera sobre as coisas que não podem ser de outra maneira”.341

5.3 Os elementos teóricos das ciências práticas e poiéticas

Mas, se assim é, em que sentido pode o filósofo falar-nos de ciên-


cias práticas e de ciências poiéticas? Parece-nos que o caminho para a

335 Ét. Nic. VI, 4, com., 1140a1-5. A produção distingue-se da ação, por exemplo, na medida
em que o fim (tšloj) da produção é diferente dela própria e se encontra na coisa produzi-
da, enquanto a ação boa (eÙprax…a) é, ela própria, seu próprio fim, cf. ibidem, 5, 1140b6-7.
336 Cf. ibidem, 4, 1140a6 seg. E falar, portanto, de ciência “poiética” eqüivale a fazer a
cientificidade penetrar no domínio da própria tšcnh.
337 Cf. Ét. Nic. VI, 1, 1139a6 seg.; 11, 1143b14-7 (e acima, cap.I, n.71); 5, 1140b24 seg.; 7,
1141a16-20.
338 Ibidem, 5, 1140b4-6.
339 Cf. ibidem, l. 2-3. Por certo, a prudência também não é arte, pois são diferentes os gêne-
ros da ação e da produção (cf. ibidem, l. 3-4) e o problema moral não se coloca, imediata-
mente, para as artes, em si mesmas moralmente indiferentes, cf. ibidem, l. 22-4. De qual-
quer modo, porém, uma vez que, na produção, também se persegue um fim (ainda que
não seja imanente à atividade produtiva), comanda ao intelecto poiético o intelecto que é
“em vista de algo” (›nek£ tou) e prático, cf. ibidem, 2, 1139a36 seg.
340 Cf. ibidem, 7, 1141b16; VI, 8, 1142a23-5; cf., também, III, 1, 1110b6-7.
341 Ét. Nic. VI, 7, 1141b10-1; cf., também, 1, 1139a12-4.

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solução da aporia deve principiar pela consideração dos textos em que


opõe o filósofo os fins que elas perseguem àquele que visa o saber teó-
rico: “com efeito, o fim da ciência teórica é a verdade, o fim da ciência
prática, a ação (œrgon); e, de fato, mesmo se eles examinam como se
comportam as coisas, os homens práticos não consideram o eterno,
mas o que é relativo e momentâneo”.342 E, mostrando que a Política,
suprema e arquitetônica, é a ciência do Bem Supremo para o ho-
mem,343 a Ética Nicomaquéia aponta-nos, também, como fim (tšloj) da
ciência política, “não o conhecimento, mas a ação”.344 Nem é por ou-
tra razão que o estudo de uma tal ciência nada encerra de útil ou pro-
veitoso para o homem jovem, naturalmente inclinado a seguir suas
paixões;345 inexperiente nas ações da vida, também não pode ele ser
um bom ouvinte de lições de Política, cujos argumentos têm seu ponto
de partida naquelas ações e a elas concernem.346 Alguns capítulos
adiante, a Ética testemunhará de si própria nestes termos: “Uma vez,
pois, que o presente tratado não tem em vista a contemplação (qewr…a),
como os outros (não é, com efeito, para saber o que é a virtude que
indagamos, mas para que nos tornemos bons, uma vez que, de outro
modo, nenhuma utilidade haveria nele), é necessário examinar o que
concerne às ações e como devemos praticá-las”.347 Ora, se se lêem
esses textos com atenção, a luz que projetam sobre o conjunto dos
escritos éticos e políticos de Aristóteles permite-nos ilações que po-
derão ajudar-nos a compreender a questão, que nos preocupa, da
cientificidade do saber prático e poiético. Pois não se trata, em verda-
de, de recusar a presença de elementos teóricos nas ciências da práti-
ca e da produção: a especulação sobre o Bem Supremo, no livro I da
Ética, ou a que concerne à natureza da virtude, no livro II, ou toda a
reflexão sobre a natureza do Estado e sobre as constituições políticas,

342 Met. a, 1, 993b20-3; lemos, com Ross, a l. 22: ¢ll’Ö prÒj ti.
343 Cf. Ét. Nic., I, 3, 1094a18 seg.
344 Ibidem., 1095a5-6.
345 Cf. ibidem, l. 4 seg.
346 Cf. ibidem, l. 2-4.
347 Ét. Nic. II, 2, com., 1103b26-30.

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na Política, para tomar alguns poucos exemplos, constituem suficien-


te evidência do caráter também teórico de tais ciências. Nem constitui
objeção contra o que avançamos o fato de o próprio filósofo ter-nos,
desde o início da Ética, prevenido de que se não pode buscar a mesma
exatidão em todos os discursos348 e de que, porque “é próprio do ho-
mem cultivado buscar a exatidão, em cada gênero, tanto quanto a na-
tureza da coisa o admite”,349 é preciso, no que concerne aos objetos
de que a Política se ocupa, contentar-se em mostrar a verdade “de ma-
neira grosseira e esquemática (paculîj kaˆ tÚpJ)”.350 Pois a mesma
passagem, ao lembrar351 a grande diversidade de opiniões e as diver-
gências a respeito das “coisas belas e justas, sobre que a Política in-
daga”, diversidade e divergências estas de tal monta que fazem tais
coisas “parecer ser apenas por convenção, mas não por natureza”,
implicitamente já reconhece – e o restante do tratado o confirmará
amplamente − que se propõe a Política estudar, algo que é, por nature-
za. Não surpreenderá, por certo, um comportamento necessário de seu
objeto, mas, tão-somente, freqüente (æj ™pˆ tÕ polÚ) e é preciso que nos
contentemos, se falamos de coisas apenas freqüentes e partimos de pre-
missas freqüentes, em ter conclusões que compartilham essa mesma
natureza;352 o freqüente, porém − já o sabemos353 −, não se alinha ao
lado da contingência, mas é, antes, uma necessidade estorvada e im-
pedida. Em outras palavras, digamos que a complexidade do univer-
so das ações humanas e a intervenção constante e poderosa da contin-
gência, que, mais do que no mundo físico, nele se dá continuamente,
não obstam a que, com a exatidão que a matéria comporta, venha dele
ocupar-se uma ciência que o estudará “teoricamente”. E algo de aná-
logo deveria poder dizer-se a propósito do saber que concerne à pro-
dução e à técnica.

348 Cf. Ét. Nic. I, 3, com., 1094b11 seg.


349 Ét. Nic. I, 3, 1094b23-5.
350 Cf. ibidem, l. 19-21.
351 Cf. ibidem, l. 14 seg.
352 Cf. ibidem, l. 21-2; acima, III, 4.6 e n.230.
353 Cf., acima, III, 4.6.

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5.4 O homem, a contingência e os limites da cientificidade

E, entretanto, malgrado seus inegáveis elementos teóricos, ciên-


cias práticas e poiéticas não se dirão teóricas. É, que, contrariamente
ao saber em que se não visa se não o mesmo saber, com posse do ob-
jeto que se nos dá à alma e se contempla, as ciências práticas e poiéticas
se adquirem para a produção e para a ação a que, de algum modo, ins-
trumentalmente, se subordinam; dada a relativa precariedade de seus
objetos, em que apenas não sucumbe a necessidade ante a contingên-
cia, em que a freqüência e a constância com dificuldade se divisam, sob
a interferência continuada de causalidades acidentais, por isso mes-
mo, não nos interessam tais ciências pela sua própria cientificidade,
isto é, em virtude de sua “teoricidade”, mas ao contrário, enquanto
requisitos indispensáveis à nossa inserção feliz no mundo da ação e
da produção efetivas, nesse domínio da contingência em que empreen-
demos ações singulares e produzimos coisas singulares, em condições e cir-
cunstâncias particulares e determinadas.354 Se o saber científico prá-
tico e poiético respeita à contingência, não é, então, porque, sob
qualquer prisma que seja, possa a contingência tornar-se objeto de
ciência – uma tal eventualidade exclui-se por definição –, mas porque
o freqüente que tal saber conhece se não busca conhecer se não para
melhor enfrentar a contingência que a mesma freqüência implica355 e
para homem inserir-se melhor nela. E, destarte, é subordinado o æj
™pˆ tÕ polÚ ao ™ndecÒmenon, o universal ao particular, a ciência à ação e
à produção, isto é, às condições de vida. Resta, de qualquer modo, que

354 E, desse modo, os silogismos que concernem às ações a praticar (silogismos práticos) utili-
zam, como premissa maior, a mesma definição do Bem Supremo (cf. Ét. Nic. VI, 12, 1144a31-
3) ou um princípio geral a ela subordinado, portanto, uma proposição estudada e conheci-
da pela Ciência da ação humana, mas vão buscar suas premissas menores, que exprimem
os pontos de aplicação daqueles princípios, nos resultados de uma deliberação opinativa
que julga e discerne as coisas particulares, na esfera da contingência, cf. Da Alma III, 2,
434a16 seg.; Ét. Nic. VII, 3, 1146b35 seg.; cf., também, Aubenque, La prudence chez Aristote,
1963, p.139-43. Aubenque (cf. loc. cit., p.139, n.3) estabelece, com razão, a analogia entre
o “silogismo da ação” e o “silogismo da produção”, que se pode reconstituir a partir de
alguns textos aristotélicos da Metafísica e do tratado Das Partes dos Animais.
355 Cf., acima, III, 4.2.

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ciências da ação e da produção com ação e produção se não confun-


dem, obviamente;356 mas possuindo-as, pode o homem aristotélico,
agindo e produzindo, trabalhar de pautar sua vida pelo conhecimen-
to do que sempre ou no mais das vezes é, até o extremo limite em que
ainda não triunfa o que sempre pode ser de outra maneira. Com as
noções de ciência prática e de ciência poiética, estendeu assim, o filó-
sofo, até o extremo limite do que lhe permita a coerência sistemática
da doutrina, a noção de ciência, recuperando para a cientificidade aque-
les mesmos domínios da técnica e da arte que o platonismo tão seve-
ramente desqualificara.357

356 Mas também não acompanharemos Zeller, quando pretende que a tripartição das ciências
em teóricas, práticas e poiéticas concerne, também, à filosofia e que se pode, por conse-
guinte, falar de filosofias práticas e de filosofias poiéticas, cf. Die Philosophie der Griechen,
1963, II, 2, p.177-8, n.5.
357 Como nota Goldschmidt (cf. “Le système d’Aristote”, 1958-59, curso inédito, p.17), há,
no platonismo, uma constante “condenação” das técnicas, sempre contrapostas à filosofia
e à moral, enquanto a oposição entre ciências teóricas e práticas, pode dizer-se que, de
algum modo, remonta a Platão. O livro VII da República exclui, como se sabe, do número
dos estudos capazes de atrair a alma do devir para o ser, juntamente com a ginástica e a
música, as técnicas artesanais (tšcnai b£nausoi), cf. Rep.VII, 521c2b; e b£nausoj tem, quase
sempre, em Platão, um sentido nitidamente pejorativo, cf. os exemplos coligidos por E.
des Places, in Lexique de la langue philosophique et religieuse de Platon, t. XIV das ŒuvresComplètes
de Platon, Collection des Universités de France, Paris, “Les Belles Lettres”, 1964, 1ère partie,
p.97, v. b£nausoj.

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