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1.

2
Acredito que há justiça nas conclusões de Lassalle a respeito da insuficiência da análise do
conceito de demonstração legada por Aristóteles enquanto cânon para a construção do saber.
Para justificar essa afirmação, recorrerei, primeiramente, a uma exposição da estrutura
axiomática-dedutiva fornecida pelos tratados lógicos do Estagirita.
Na formalização sistemática do conceito de demonstração apresentada nos Segundos
Analíticos, a primeira da qual se tem notícia, o objetivo do autor era fornecer as notas para a
produção de conhecimento seguro em sentido estrito. O termo técnico utilizado para a nomeá-lo
corresponde a epistêmê, cujo equivalente moderno, a parte das implicações contemporâneas ao
uso da palavra, correspondente a ciência. Desse modo, a epistême trata-se de um corpo de
conhecimento sobre algum assunto expresso enquanto séries sistemáticas de deduções que
partem de primeiros princípios fundacionais. A noção de ciência aristotélica, portanto, se
assenta ela mesma sobre o ideal de demonstração – que procede por raciocínio dedutivo a partir
de premissas indemonstráveis, mas também verdadeiras, imediatas, primeiras e explicativas da
conclusão, comportando uma forma silogística responsável por garantir a verdade das
proposições em questão a partir das relações lógicas conservadas por meio de um termo médio
universal no interior da cadeia inferencial.
A noção de apodeixis ou demonstração, como podemos ver, é central no
empreendimento epistêmico prescrito nos Segundos Analíticos. Com efeito, uma demonstração
é estabelecida como uma “dedução que nos faz conhecer”. Entretanto, diferentemente das
deduções ordinárias, aquelas identitárias da apodeixis devem ser, antes de tudo, válidas. Isto
quer dizer que a conclusão deve seguir-se necessariamente das suas premissas – ou seja, deve
ser impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Além disso, as premissas
devem ser sabidamente corretas, não-mediadas, causais e anteriores à conclusão; além de
indemonstráveis, como já dissemos, no intuito de evitar uma regressão ao infinito. Esse fator
diferencia a demonstração de um mero raciocínio dedutivo, cujo único requisito é sua validade –
i.e., que a conclusão seja consequência lógica das premissas.
Aqui, esbarramo-nos na primeira polêmica relevante frente à estrutura demonstrativa
erigida por Aristóteles. Pois existem, ao menos, três modos de concebermos as noções da dita
anterioridade proposicional das premissas em relação à conclusão na série inferencial: (1) A
goza de anterioridade epistêmica em relação à B, se A é mais óbvia ou certa que B; (2) A pode
ser causalmente anterior a B, se A causa B e nunca o contrário; e (3) A pode ser logicamente
anterior a B, se A é utilizado, de algum modo, como premissa da qual B decorre. De todo modo,
parece seguro asserir que a apodeixis só produz conhecimento em sua conclusão ao importa-lo
das premissas, o que institui a necessidade destas últimas possuírem credenciais epistêmicas de
ordem superior àquelas da conclusão – quer dizer, devem ser “mais inteligíveis” e “mais bem
conhecidas”.
Tal estatuto epistêmico das premissas impele a demonstração a fazer uso de alguns
pontos de partida que jamais possam ocupar a posição de produto final do seu procedimento
específico. Tratam-se das proposições indemonstráveis, que ocupam três classes distintas: as
hipóteses, entendidas como afirmações de existência – uma suposição de que algo é; as
definições, que visam estabelecer o que este-algo é; e os axiomas, i.e., leis gerais responsáveis
pela exposição dos princípios pelos quais toda a linguagem é estabelecida (p.e., o princípio de
não-contradição), assim como os princípios particulares de investigações específicas.
No que tange a ideia de ciência aristotélica, o Filósofo é claro no tipo de conhecimento
pelo qual é caracterizada – o conhecimento científico não é senão o conhecimento das causas
daquilo que é e não poderia ser de outra maneira. Assim sendo, nada pode ser conhecido por
vias científicas a não ser aquilo que não pode vir a ser de outro modo, i.e., que envolve o status
de necessidade em sua existência. Portanto, obter conhecimento <<científico>> de p, enquanto
um episódio necessário na ordem dos fatos naturais e de acordo com as prescrições
demonstrativas dos Segundos Analíticos, é conhecer o porquê de p ser verdadeiro – isto é, é
fornecer uma resposta à questão “por que p é o caso?”. A resposta assumirá uma forma mais ou
menos similar ao que segue: “porque q e r, logo p”, onde as premissas q e r têm de ser
verdadeiras e a conclusão p uma consequência lógica das mesmas. Assim, adquirir
conhecimento científico não é apenas “saber” de um fato incidentalmente – antes, é ter
compreensão explicativa causal de um fato, é conhecer, precisamente, por que ele é um fato.
O programa científico formal, erigido sobre as bases do ideal aristotélico de
demonstração segundo as prescrições canônicas nas obras lógicas do Filósofo encontra uma
gama de dificuldades quando falamos em construção do saber. Em primeiro lugar, como citado
acima, o conhecimento genuíno adquirido pela ciência versaria apenas sobre aquilo que não
pode ser de outro modo (necessário) – o que exclui o status epistêmico em relação ao
conhecimento das contingências do mundo. Dado que a maior parte de ocorrências factuais são
contingentes, a ciência assim concebida se vê gravemente empobrecida. Além disso, não é o
caso que possamos desvelar axiomas de disciplinas particulares como a física ou biologia do
mesmo modo como os encontramos na lógica – autoevidentes, inequívocos e finais. Na verdade,
axiomas específicos a ciências singulares, como a zoologia ou a botânica, por exemplo, carecem
de exemplos claros por parte de Aristóteles. Com efeito, em grande parte das questões
relevantes ao empreendimento epistêmico, exigir premissas imediatas, indemonstráveis e
necessárias resultaria apenas em esclarecimentos triviais em função da proteção arbitrária da
forma demonstrativa em detrimento do conteúdo científico em questão.
Dado o presente contexto, surge outro objeto de acalorada discussão a respeito da
exegética aristotélica no que tange ao seu entendimento das ciências: os tratados lógicos dos
Segundos Analíticos subscrevem, stricto sensu, o suposto modelo apodítico canônico de qual
toda ciência deve necessariamente se adequar? Ou, em vez disso, apenas oferecem uma
descrição formal da estrutura da empresa científica? Não nos é clara a época exata do
pensamento de Aristóteles no qual a obra em questão compreende – se num período tardio ou
primário; tampouco o quanto o ideal de definições formais presentes influenciara na própria
investigação científica engendrada pelo Estagirita. A possibilidade de que Aristóteles tenha
revisto a sua própria definição de demonstração ao longo de sua atividade intelectual, também,
não pode ser descartada – com efeito, outras definições de raciocínios dedutivos-
demonstrativos, que não assumem compromisso com premissas indemonstráveis ou com a
forma silogística da demonstração, foram legadas em parte de suas demais obras. Talvez, no fim
das contas, a sua posição prática, no que diz respeito ao seu engajamento no empreendimento
epistêmico, seja um tanto quanto moderada em relação às prescrições exigidas para a formação
de um corpo genuíno de conhecimento científico – como nos sugerem as suas pesquisas no
campo das disciplinas naturais.
Em outras palavras, queremos dizer que os componentes rigorosamente formais
axiomático-demonstrativos presentes nos Segundos Analíticos sequer refletem o real
procedimento do qual Aristóteles se utilizou na construção do saber científico no que diz
respeito às ciências naturais – pelo contrário, a noção de demonstração é ela mesma
flexibilizada em prol da fluidez das investigações científicas aristotélicas e não o contrário,
como a normatividade dos tratados lógicos do Estagirita indicam. Assim, a demonstração nestas
ciências particulares é adequada de maneira mais livre, comportada às exigências específicas do
objeto das disciplinas investigadas em vez do comprometimento dogmático com o estatuto
silogístico das premissas indemonstráveis e imediatas.
Portanto, concordo com a afirmação de Lassalle segundo o qual o ideal demonstrativo
presente nos Segundos Analíticos não é suficiente para dar conta das nuances presentes nas
investigações científicas segundo seus mais variados gêneros específicos. Com efeito, as
exigências normativas em questão sequer são incorporadas por Aristóteles ele mesmo, segundo
o material que dele dispomos e que, por isso, podemos avaliar – quer dizer, tais exigências não
somente carecem de adequação à ciência contemporânea a Aristóteles como ele mesmo delas
não se utiliza. Assim, embora os tratados em questão sejam absolutamente paradigmáticos e
geniais, acredito que não possam servir, ao menos exclusivamente, como modelo para uma boa
ciência.
BIBLIOGRAFIA:
BARNES, J., Aristotle, Cambridge, 1995.
LASSALLE, A.C, “Acerca del concepto de demonstración en Platón y Aristóteles”, Méthexis
XVIII (2005), 89-95.
LLOYD, G., Le savoir grec: dictionnaire critique, Paris, 2011.

2.2
Para respondermos à questão proposta, convém, de modo anterior, que esbocemos aqui a ideia
leibniziana de Characteristica generalis e suas singularidades subjacentes. A partir dessa
apresentação genérica, assim como uma exposição da concepção de álgebra contemporânea a
Leibniz, identificaremos quais peculiaridades presentes nas noções de característica geral têm
sua origem na matemática algébrica.
Uma consideração inicial que vale a pena ser levantada antes de prosseguirmos em
nossa resposta é a de que tanto a característica geral quanto a álgebra, para Leibniz, tratam de
um tipo singular de conhecimento – o conhecimento simbólico. Esse tipo de conhecimento é
oposto àquele produzido pelo pensamento intuitivo, i.e., que lida com o próprio conteúdo da
experiência, manipulando as ideias correspondentes aos objetos empíricos. O pensamento
simbólico, por sua vez, trata meramente dos signos que representam esses objetos da
experiência, retendo apenas as suas relações formais abstratas – configurando, portanto, o
conhecimento simbólico. Dito isso, passemos ao tratamento da questão proposta.
O projeto de uma característica geral deve ser entendido enquanto uma forma
inovadora de compreendermos o método e aplicação de procedimentos metodológicos no
empreendimento científico e filosófico como um todo. Tal forma consiste numa estrutura a ser
ocupada com o conteúdo advindo da organização categórica do conhecimento, possibilitando-
nos a avaliar os conhecimentos já obtidos bem como derivar novas proposições verdadeiras
destes últimos. Ambos os processos de ajuizamento e derivação proposicionais decorrem de
operações cuja execução se assenta sobre as bases de regras e leis responsáveis por fornecer as
notas de transformações formais tramadas no interior de arcabouços conceituais – que, por sua
vez, constituiriam o fator organizador dos conteúdos informativos. Caso confirmada a
possibilidade de representar de maneira simbólica tais estruturas <<formais>>, obter-se-ia um
ganho epistemológico de extremo valor que corresponde ao aperfeiçoamento da lógica, em
termos de sua extensão, a todos os domínios do saber humano – i.e., uma vez encontradas as
estruturas básicas, enunciadas as leis operacionais e determinadas as regras de formalização do
conhecimento concreto em função de tais estruturas básicas, reduz-se todos os procedimentos de
investigação a um cálculo formal onde o pensamento ele mesmo é engendrado
algoritmicamente.
Desse modo, segundo aquilo que nos é oferecido por Leibniz, a ideia de Characteristica
generalis se apresenta como uma linguagem formal simbólica encarregada de oferecer um
compêndio de instruções sensíveis e exatas ao raciocínio humano – quer dizer, o próprio
pensamento seria conduzido por operações formais regradas, executadas em termos de
expressões simbólicas elas mesmas. Assim, entende-se a característica geral como uma
linguagem exata, entretendo estruturalmente a possibilidade de preencher conceitos via
definições rigorosas. Além disso, representa analiticamente as estruturas envolvidas nas
questões eleitas enquanto objeto de uma investigação epistêmica qualquer, permitindo-nos,
portanto, a apreender essas mesmas estruturas conceituais em virtude da própria formatação
simbólica pelo qual são representadas – logo, eliminam-se as dificuldades que um
empreendimento desta espécie leva consigo na medida em que se utiliza das ambiguidades e
frouxidão conceitual das línguas naturais, ao mesmo tempo em que constitui um novo
instrumento sensível capaz de aprimorar a faculdade da razão.
Tal singularidade elencada acima – a saber, a de que a forma simbólica identitária da
Characteristica generalis represente as estruturas envolvidas nas questões tomadas enquanto
conteúdo de uma investigação qualquer – conduz-nos irremediavelmente a uma linguagem que
expresse visualmente as formas conceituais das coisas as quais trata. Essa condicional somente
pode ser satisfeita eficientemente mediante o uso de uma notação, que aqui representará não
apenas uma necessidade para as pretensões da linguagem, mas também um aprimoramento
metodológico de elevada ordem. Explico: o uso da notação permite manter-nos firmes no curso
do raciocínio, bem como na revisão dos passos já engendrados e a correção dos erros de cálculo.
Assim, a escrita fixa a estrutura ao mesmo tempo em que nos permite submetê-la a um conjunto
de transformações regradas, possíveis em função da constância e permanência da estrutura
simbólica ante os olhos. Posto isso, além de vincular-se com o cálculo e o pensamento
operacional, a característica geral mantém íntima relação com a grafia.
A partir do grosseiro esboço exposto acima da ideia de característica geral legada por
Leibniz, fica claro que tal conceito corresponde a um projeto de linguagem artificial perfeita
que, para fins de conhecimento científico em sentido lato, substituiria o uso das línguas naturais
– uma espécie de método universal do empreendimento epistêmico compreendido em termos de
uma formalização simbólica regrada. Portanto, as singularidades formativas dessa linguagem
poderiam ser traduzidas brevemente enquanto um procedimento cego (uma vez que não lida
propriamente com o conteúdo das formas lógicas e sim com os seus representantes simbólicos),
mecânico, algorítmico e necessariamente gráfico (visual). Como assim veremos, tais
singularidades são precisamente aquelas que poderíamos discriminar como importadas da
matemática algébrica para a idealização do projeto leibniziano.
Acredito ser útil que apresentemos, aqui, um background da álgebra que estava
disponível à época de Leibniz e seu desenvolvimento até então. A partir desta exposição, que
terá como objetivo uma descrição da matemática algébrica para que visualizemos de modo mais
acurado os paralelos entre a álgebra e Characteristica generalis, seguiremos para o último
movimento de nossa resposta – a saber, a mera discriminação dos elementos importados da
primeira para a formação programática da última.
O surgimento da geometria analítica, fruto de uma síntese entre os métodos algébricos e
geométricos, significara uma mudança substancial na história do pensamento matemático. Tal
gênese fecundara as condições propícias para o predomínio do pensamento abstrato, já presentes
na subjugação da geometria pela álgebra no interior da geometria cartesiana. Entretanto, os
esforços que culminaram no aparecimento da geometria algébrica não se esgotam naqueles
empregados pelos seus inventores nominais – Descartes e Fermat. Com efeito, a invenção de
um método de análise mediante a utilização de uma notação especial para a resolução de
problemas algébricos já remonta rudimentarmente à antiguidade grega. Não obstante, é com
Diofanto que encontramos o primeiro registro do emprego de uma notação simbólica na
resolução de equações numéricas.
Todavia, é nos séculos XVI e XVII que encontramos um significativo aprimoramento
do pensamento algébrico, tributário de formulações de métodos gerais de equações de terceiro e
quarto grau. Tais formulações representaram um avanço cabal na teoria geral de equações e na
investigação de funções polinomiais. Prestou-se cada vez mais atenção à introdução de
simbolismos exatos e claros, responsáveis por simplificar as operações algébricas, resgatando,
portanto, a técnica de Diofanto.
Contudo, foi com Vietè que as letras começaram a ser utilizadas de maneira sistemática
a fim de expressar genericamente as quantidades. A nova álgebra de Vietè que, posteriormente,
viria a influenciar Descartes, dividia-se em dois segmentos: a logística speciosa e logística
numerosa. A primeira se ocupava de cálculo de tipos, isto é, equações expressas de maneira
geral (simbólica); já a segunda, ocupava-se com cálculo de números stricto sensu. Logo,
“álgebra” deve ser vista como uma disciplina associada ao processo de abstração pelo qual um
dado problema é traduzido para uma linguagem capaz de expressar por diagramas os termos e
operações quantitativas envolvidos – isto é, a resolução equacional torna-se um procedimento
mecânico de manipulação regrada de símbolos, onde se visualiza nos próprios símbolos as
relações em questão.
A introdução de uma notação literal revolucionou o modo de tratamento de problemas
algébricos – resgatando, por meio da álgebra, a noção de análise dos antigos matemáticos
gregos, entendida como a arte da invenção matemática, Vietè inscreveu à matemática algébrica
o paradigma de fundação de um método inventivo apodítico geral. Essa arte, como era
entendida pelos gregos, é tributária de uma composição de dois métodos pelos quais os
geômetras chegavam à solução de problemas e demonstração de teoremas. Estes métodos são o
de síntese e análise. Este deve ser compreendido enquanto um procedimento que parte daquilo
que se deseja obter tomando-o como algo já estabelecido, obtendo proposições previamente
conhecidas mediante consequências extraídas da hipótese eleita como o ponto de partida;
enquanto aquele necessita ser entendido como a inversão do procedimento analítico de tal modo
que, na síntese, o ponto de partida é aquele cuja análise tomaria enquanto ponto de chegada. Em
outras palavras, poderíamos identificar a síntese como um método construtivo, onde se constrói
soluções; e a análise como regressivo, onde se supõe que as soluções desconhecidas são
conhecidas, usando-as nas operações como se assim o fossem <<conhecidas>> até que se
chegue a um resultado conhecido que determine a solução.
O procedimento de “busca regressiva”, que caracterizamos como analítico, foi de
enorme influência nas concepções de método matemático nos séculos XVI e XVII devido aos
seus frutíferos resultados. A união dos métodos algébricos e geométricos que, como já
dissemos, foram responsáveis pelo nascimento da geometria analítica, contribuíra para que a
álgebra fosse tomada como uma espécie de continuação da chamada “análise dos antigos” –
com efeito, análise e álgebra tornaram-se quase que como termos intercambiáveis. O poder e
força explicativa do método algébrico, assim como a certeza e segurança característicos de seus
procedimentos específicos, assentados na utilização de expressões simbólicas, conduzira a
revitalização de um projeto cuja origem também pode ser encontrada na antiguidade clássica – a
saber, o projeto de uma “matemática geral”, que toma a álgebra como paradigma para seu
avanço e visa estender ao alcance de tal matemática universal o tratamento das formas de
entidades em geral, sem restringir-se ao escopo das relações quantitativas. Tal projeto teve
defensores de grande calibre durante a modernidade, como Descartes e o próprio Leibniz.
Entretanto, vale aqui um esclarecimento: da maneira como expusemos, parece que a ideia de
matemática geral se assemelha àquela que já descrevemos, correspondente a Characteristica
generalis. Não obstante, no que tange à exegética leibniziana, tal afirmação não é verdadeira. O
projeto de matemática geral por parte de Leibniz restringe-se ao aperfeiçoamento da álgebra
(compreendida pelo racionalista como a “lógica das matemáticas”) vigente no que diz respeito à
notação, método, alcance e conteúdo. Seu escopo é delineado apenas por aquele das relações
quantitativas – uma espécie da ciência da magnitude ou da quantidade em geral, identificada
intimamente com a álgebra no sentido de um cálculo de quantidades genéricas, finitas ou
infinitas. A característica geral, por outro lado, trata-se da ciência das formas, acabando por
subordinar a matemática geral devido ao seu objeto de estudo ser mais primordial e de maior
alcance.
Dito isso, a álgebra, enquanto disciplina da qual Leibniz poderia importar
peculiaridades para o seu projeto de característica geral, i.e., a matemática algébrica que se
encontrava disponível para este movimento, no séc. XVII, deve ser entendida como a ciência
geral da quantidade abstrata, cujo método é caracterizado enquanto um cálculo operacional e
simbólico necessariamente escrito via notação, apto a tratar e representar relações quantitativas
mediante fórmulas gerais elas mesmas. A sua capacidade de abstração a projetara enquanto uma
matemática capaz de ocupar uma posição de máxima generalidade, entendida enquanto teoria
universal algorítmica das relações quantitativas. Além disso, também era vista como uma
continuação metodológica da análise dos geômetras gregos, conquistando, assim, a credencial
de técnica da invenção matemática onde, por meio dela, poder-se-ia procurar por um paradigma
da invenção demonstrativa. Por fim, os avanços nos domínios matemáticos proporcionados pela
álgebra acabaram por dar vazão a um projeto que transfere a extensão de seus procedimentos ao
todo do conhecimento humano, a fins de criação de uma lógica operatória das formas em geral –
e, como vimos, servira de modelo para que se assentassem as bases da criação de uma
linguagem racional simbólica creditada por reduzir todos procedimentos de investigação
epistêmica a um cálculo.
Desse modo, tanto o matemático quanto aquele investigador que detém a posse do
arcabouço teorético da característica geral, tal qual entendida por Leibniz, são conduzidos na
demonstração pela própria estrutura da questão, o que só é possível em virtude da utilização de
estruturas simbólicas sensíveis – responsáveis por capturar as relações fundamentais e as
submeter a operações formais mediadas pelas regras calculatórias da linguagem, sem que se
precise atentar ao conteúdo dos objetos envolvidos mas tão somente aos seus representantes
simbólicos – que permitem operar com os esquemas conceituais dos objetos e descobrir, assim,
suas propriedades ocultas, mediante conclusões alcançadas em virtude de sua forma. O
raciocínio ele mesmo pelo qual se chega às conclusões desejadas encontra-se atrelado em
termos de uma estrutura de derivação simbólica cujos passos podem ser examinados
formalmente mediante provas de correção, também algorítmicas, graças à permanência visual
de tal estrutura por meio do recurso técnico da notação.
Sem mais delongas, passemos ao último movimento de nossa resposta. Como já dito
acima, o conhecimento simbólico é aquele fornecido pelo pensamento simbólico – a saber, o
que se ocupa não das ideias que correspondem às coisas, mas dos signos que as representam. O
pensamento envolvido nos procedimentos característicos das disciplinas da álgebra e da
característica geral é desse tipo (simbólico). Cronologicamente, existe uma anterioridade no
surgimento da primeira em relação à segunda, donde esta última importa três peculiaridades
principais para sua formação programática. São elas os próprios aspectos constitutivos desse
dito pensamento simbólico que, num primeiro momento, apareceram com o desenvolvimento da
matemática algébrica e suas práticas. Segue tais peculiaridades importadas:
i – aspecto computacional ou calculatório, caracterizado pela manipulação regrada de signos
artificiais que representam objetos físicos ou quantidades;
ii – aspecto ectético ou expressivo, que opera por uma espécie de “raciocínio visual“, onde é
possível visualizar na própria estrutura simbólica ela mesma as relações em questão; e
iii – aspecto psicotécnico, de acordo com o qual se abrevia e simplifica os processos inferenciais
graças à configuração simbólica da linguagem, que descarrega operações cognitivas, como o
uso da memória.
BIBLIOGRAFIA:
ESQUISABEL, O.M., “¿Lenguage racional o ciencia de las fórmulas? La pluradimensionalidad
del programa leibniziano de la característica general”, Manuscrito, XXV (2), October.
ESQUISABEL, O.M, “El álgebra y el arte combinatório leibniziano”, Revista Latinoamericana
de Filosofia, XXVI (2), Primavera.

3.1
Respondo. Primeiramente, para que tenhamos uma compreensão mais adequada do problema,
gostaria de lançar mão de uma noção, consideravelmente conhecida, do que se pode entender
por análise, segundo o qual é entendida enquanto esclarecimento conceitual por meio de seu
desmembramento ou decomposição, donde se discrimina os elementos fundamentais do
conceito bem como suas partes derivadas. Ainda que possamos encontrar acepções distintas
dessa a qual oferecemos, geralmente, ainda assim, elas comungam entre si de uma característica
que será útil, aos nossos propósitos, que chamemos atenção – a saber, que em qualquer
definição de análise conceitual, pressupõe-se que o conteúdo elegido enquanto objeto de seu
empreendimento metodológico nos seja dado de modo anterior. Pontuado tal característica
universal da concepção de análise, passemos adiante em nossa resposta.
A tese maior do Idealismo Transcendental nos postula que o conhecimento próprio ao
ser humano é o de aparências (fenómenos) e não das coisas elas mesmas. No que tange às
aparências, existem duas classes distintas de representações fenomênicas acessíveis à mente
humana: intuições e conceitos. Os primeiros se tratam de dados sensoriais por meio do qual os
objetos nos estão dispostos, i.e., representações ímpares e imediatas capturadas pela percepção
do Homem. Os últimos, em contraste às representações particulares identificadas com as
intuições, dizem respeito à universalidade – quer dizer, representações gerais que se referem a
objetos por intermédio das intuições, pelos quais tais objetos podem ser pensados. A faculdade
vinculada às intuições é chamada de Sensibilidade; já a dos conceitos é nomeada de
Entendimento. Tanto as intuições quanto os conceitos, no que diz respeito ao seu acesso
cognitivo, podem ser a posteriori (empíricos) ou a priori (puros; necessários e universais). Como
o que nos interessa, aqui, diz respeito aos conceitos, passemos a um exame mais detalhado da
classificação de seus tipos.
Como dissemos, conceitos são os meios pelos quais podemos pensar os objetos, sendo o
seu conteúdo as próprias intuições. Tal matéria conceitual pode ser ela mesma dada ou não
dada, ao passo que, no que tange à sua forma, todos seriam igualmente não dados. Assim,
conceitos a priori dados dizem respeito à filosofia (como o conceito de causalidade) e os não
dados à matemática (como o conceito de lúnula); já os conceitos a posteriori dados seriam os
conceitos empíricos em sentido frouxo (como o conceito de gato ou alce) e os não dados
referentes a conceitos de projetos (como o conceito de projetos de um artefato qualquer ou algo
que o valha). Sendo assim, vimos que os conceitos asseguram realidade objetiva apenas na
medida em que se possa apontar a intuição que lhe corresponde – caso contrário, tais conceitos
seriam lacunares e nada diriam sobre o mundo ao qual experenciamos. Portanto, para Kant, os
únicos objetos do conhecimento são os objetos da experiência humana.
É importante ressaltar o peso que tais afirmações implicam a corpos teóricos que
tenham a pretensão de alcançar conhecimento. Endossar que episódios epistêmicos se dão
apenas na dimensão da experiência, e, além disso, que o conhecimento que obtemos é de
aparências e não de coisas-em-si, representara um ataque fulminante na direção da metafísica
tradicional da ontologia clássica (ciência do ente enquanto ente) assim como da psicologia,
teologia e cosmologia racionais (expressas em proposições como “A alma é imortal”, “Deus é
puro ato”, etc. etc.). No intuito de salvaguardarmos tal status epistemológico à matemática, cabe
a tarefa de identificar as intuições que correspondem aos seus conceitos próprios.
A identificação de realidade objetiva advinda do conhecimento matemático, uma vez
que seus objetos não estão dispostos em meio a itens empíricos, retém-se nas credenciais
distintas fornecidas por Kant a esse tipo de corpo teórico. Ele nos diz que a matemática é um
conhecimento caracterizado pela construção de conceitos, diferentemente da filosofia, que se
dá pela esquematização destes. Entender a matemática enquanto um conhecimento via
construção conceitual significa dizer que a prova da realidade objetiva de seus conceitos é
tributária de um procedimento que apresente a priori a intuição que lhe corresponda. Em outras
palavras, construir um conceito é produzir sua respectiva intuição pura (a priori), i.e., que não
se valha de um modelo retirado de qualquer experiência; e que, enquanto intuição, será ela
mesma singular, mas tomada como construção de uma representação universal (i.e., o conceito),
deve expressar <<na representação>> uma validade universalmente aplicável a todas as
intuições possíveis que sejam passíveis de agrupamento ao conceito.
Desse modo, o conteúdo dos conceitos matemáticos é estabelecido pelas suas
definições, contendo em si uma intuição a priori uma vez que dizem respeito à forma (espaço e
tempo) dos fenômenos – razão pelo qual são possíveis de ser. As definições serão responsáveis
por prover as coordenadas da aplicação do conceito à experiência. Portanto, em vez de
extrairmos da experiência as intuições correspondentes ao conceito, o caminho é inverso – se dá
a gênese à intuição empírica por meio das notas presentes nas definições conceituais postuladas
a priori pelo Entendimento. Sendo assim, a maneira de provarmos a realidade dos objetos
matemáticos como lúnulas, triângulos e círculos é trazendo lúnulas, triângulos ou círculos ao
terreno sensorial.
Portanto, a análise conceitual por si só não nos é capaz de oferecer genuíno
conhecimento matemático simplesmente por tal método pressupor conteúdo dado a ser
analisado, o que, como vimos, não ocorre com a matemática – como não é o caso de
encontrarmos lúnulas, triângulos, círculos, etc. etc. in natura, seus conceitos são obtidos por
composição arbitrária a priori e imediata de suas notas. Na esfera conceitual da matemática, não
há conteúdo anterior à definição e, uma vez estabelecida, não há discussão possível acerca da
matéria do conceito – não há nada a ser desvelado: o conteúdo do conceito se encerra em suas
coordenadas definitórias. Sendo assim, mesmo se fosse o caso de análise conceitual prover
algum conhecimento matemático, ela teria um papel não mais do que coadjuvante, uma vez que
aquilo que lhe garante as credenciais epistemológicas de correspondência à realidade objetiva se
dá por meio de um procedimento de construção conceitual.
BIBLIOGRAFIA:
LASSALLE, A.C, “Por construção de conceitos”. In: KLEIN, J. T. (Org.) Comentários às obras
de Kant: Crítica da Razão Pura. Florianópolis: NEFIPO, 2012.
KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Mourujão. 8ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Goulbenkian, 2001.

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