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21/09/2022 09:08 ‘Minha Casa Minha Vida constrói, hoje, as favelas de amanhã’, diz Antonio Risério - Época

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Sociedade

ÉPOCA • SOCIEDADE • 1101

‘Minha Casa Minha Vida constrói, hoje, as favelas de


amanhã’, diz Antonio Risério
No recém-lançado “A casa no Brasil”, antropólogo e escritor baiano interpreta o país por meio
de suas moradias e diz que os condomínios fechados estimulam o desdém das pessoas a
suas cidades

Jan Niklas
09/08/2019 - 06:00
/ Atualizado em 16/09/2019 - 09:47

Foto: André Teixeira / Agência O Globo

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1. Em seu livro, o senhor analisa um arco histórico que vai da oca


tupi às atuais habitações do Minha Casa Minha Vida e aos luxuosos
condomínios fechados. Por que pensar a casa brasileira? Como
nossas moradias ajudam a interpretar o Brasil?

Pensar a cidade e a casa, em perspectiva histórica e socioantropológica, é


fundamental para o entendimento de nós mesmos. Escrevendo em meados do
século XIX, (o arquiteto francês) Viollet-le-Duc já dizia que a casa é certamente
o que melhor caracteriza “os costumes, os gostos e os usos de um povo”. Mas não
se trata só de especificidades culturais. A casa é também o objeto construído
onde mais acintosamente se expressa a desigualdade social. Entre o barraco de
madeira e a cobertura de luxo, isso diz muito de nós mesmos. O sociólogo Louis
Wirth está certíssimo quando diz que uma civilização pode ser julgada pelas
condições mínimas de moradia que tolera.

2. É possível falar em “a” (no singular) casa brasileira?

No livro, digo que não existe a casa romana — o domus não é a mesma coisa que
a insulae —, assim como não existe a casa medieval ou a casa brasileira. Tudo
isso tem de ser encarado em termos plurais. Não posso confundir uma casa-
grande senhorial com um flat ou um loft. Ao mesmo tempo, parafraseando
Gertrude Stein, uma casa é uma casa é uma casa. As necessidades básicas da
espécie humana, às quais a casa responde, permanecem no tempo e no espaço:
comer, dormir, fazer sexo etc. É o que faz com que as casas variem muito, mas
sejam sempre reconhecíveis como tais.

3. Além da miscigenação étnica e cultural, também houve uma


miscigenação da arquitetura da casa no Brasil? Que elementos
arquitetônicos ilustram esse sincretismo?

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A casa que os portugueses trouxeram para cá era já sincrética, misturando traços


romanos e árabes, dos muxarabis à azulejaria. Aqui, essa casa se rendeu ao
influxo tupi, que já tinha a bela e eficaz arquitetura das grandes malocas
vegetais. Até os elementos se misturaram. Quando Tomé de Sousa construiu
Salvador, as casas traziam cobertura de palha e cipó em lugar da pregaria.
Tivemos, ainda, embora bem mais diluída, uma pequena influência negro-
africana. O tipo de moradia mais persistente na história da casa brasileira é o
mocambo. Ele está desde nas palhoças coloniais até nos barracos de favelas. É
também um exemplo de total sincretismo afro-luso-ameríndio.

4. O modelo colonial da casa-grande e senzala ainda é o que melhor


explica nossa formação social e as desigualdades que ainda
persistem na forma como se habita o Brasil hoje?

É uma das abordagens possíveis. O próprio Gilberto Freyre seguiu adiante


analisando outra dupla: sobrados e mocambos. Eu poderia escrever “coberturas
e lajes”. O que se vê aí é o óbvio: temos de falar da casa brasileira e de seu papel
em nossas configurações histórico-culturais a partir de seus modelos extremos.
Do construto mais sofisticado do estamento social dominante ao construto mais
precário dos estamentos sociais dominados e mesmo marginalizados.

5. Os tipos de moradia do período colonial influenciaram no


processo de mestiçagem — tanto em sua possibilidade de criação de
laços afetivos quanto em relações violentas entre brancos e mulheres
negras e indígenas?

Tipos de moradia não deixam de afetar condutas eróticas. A reclusão


muçulmana das mulheres da classe dirigente, que praticamente só tinham
contato com outras mulheres, facilitou transgressões da ideologia sexual então
dominante. Diversos historiadores apontaram isto: o enclausuramento
favorecendo relações sexuais e amorosas entre amigas ou entre senhoras e suas

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escravas. De outra parte, é claro que a casa-grande permitia um domínio


completo do senhor sobre todas as coisas, inclusive as do sexo. Ao mesmo
tempo, ao contrário do que reza a fantasia de Freyre convertida em dogma nos
atuais discursos racialistas, a mestiçagem brasileira foi um processo
essencialmente popular, acontecendo na periferia pobre das vilas, nas pequenas
lavouras, nas comunidades pesqueiras, nos arredores dos engenhos etc. O
estamento senhorial era numericamente insignificante. A mestiçagem correu
solta foi em meio à vasta maioria da população. Agora, o que realmente favorecia
a mestiçagem não era a casa, mas o desenho urbano de nossas vilas e cidades,
que era apertado e promíscuo. Afinal, herdamos o urbanismo islâmico-medieval
que vigorava em cidades portuguesas.

6. No livro, o senhor fala que o Brasil entrou tardiamente no modelo


da casa burguesa, que privilegia a intimidade do núcleo familiar. Por
que isso ocorreu e que reflexos observa em nossa cultura a partir
disso?

Na Europa, apesar do individualismo renascentista com seus primeiros reclamos


de privacidade, a casa burguesa só começa mesmo a se desenhar no século XVII
— principalmente na Holanda de Rembrandt, então vivendo sua “idade de
ouro”. No Brasil, evidentemente, isso demorou a acontecer. Mesmo no século
XIX, vivíamos numa sociedade escravista. Seria estranho uma casa burguesa
numa ordem escravocrata. Então, nossa transição para o lar burguês, com seu
agenciamento espaço-temporal protetor da intimidade, vai se processar no
Ottocento. É aí que os escravos começam a ser retirados do espaço doméstico e
as famílias abastadas, tocando piano e falando francês, encenam estar vivendo já
no modelo burguês de moradia. Em termos culturais, Machado de Assis é o
romancista desse novo mundo doméstico burguês, que vai se desenhando em
casas ricas pousadas em chácaras na periferia do Rio de Janeiro.

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Na avaliação de Risério, o Minha Casa Minha Vida segue o caminho da mediocridade e do desrespeito à população mais
pobre ao reproduzir o modelo dos projetos habitacionais do regime militar. Foto: Silva Junior / Folhapress

7. No livro, o senhor fala das representações dos espaços da cidade e


dos lares cariocas em Lima Barreto e Machado de Assis. Que moradia
da época cada um desses escritores pode simbolizar e por quê?

Já observei que Machado foi o romancista das casas ricas do Rio. Ele pouco fala
da cidade e menos ainda da população mais pobre. Seu tema é a classe
dominante, centrado na relação homem-mulher, carregada pelas cores do
adultério. Seus personagens vivem em espaços periféricos, chácaras
deslumbrantes e, quando estão na cidade, circulam pelos meios ricos. Digo
sempre que, às virtudes da rua, Machado preferia os vícios caseiros. E, dentro da
chácara, ele retrata os ricos. É um recorte social nítido, com o romancista se
concentrando em pessoas que ocupam “elevado lugar na sociedade”. Enfim, em
matéria de geografia urbana, Machado é o romancista da expansão rica do Rio,
na segunda metade do século XIX. Lima Barreto, ao contrário, não só encara
diretamente a questão racial e está atento para a ascensão social dos mulatos
naquela época, como abre o foco sobre um espectro amplo, abordando as

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diversas classes sociais. É por isso mesmo que ele lança luz sobre a vida nos
cortiços, onde, aliás, mora um personagem como Ricardo Coração dos Outros, o
violonista e compositor de modinhas de Triste fim de Policarpo Quaresma.
Agora, aviso que faço leituras sociológicas. Nada disso é juízo valorativo.
Machado é nosso grande escritor. E gosto demais de Lima Barreto.

8. O senhor afirma que em grandes cidades como o Rio de Janeiro a


cultura da moradia foi se transformando a partir da destruição de
moradias e remoção com a justificativa do progresso. Que
consequências esse processo trouxe?

No Rio, a partir da reforma de Pereira Passos, os pobres — em sua maioria,


pretos e mulatos — começaram a ser maciçamente expulsos dos espaços centrais
da cidade. Da Praça Onze etc. E isso vai engrossar o caldo das favelas, hoje
ridiculamente tratadas como “comunidades” (por influência católica, no início,
com suas “comunidades eclesiais de base”), quando facções criminosas trocam
tiros dentro delas. Ainda no Rio, na gestão de Carlos Sampaio, o Morro do
Castelo, onde se plantou o marco histórico da fundação da cidade, foi destruído.
Na verdade, temos uma paradoxo: a cidade colonial-escravista não segregava; a
segregação socioespacial, no Brasil, vai acontecer com a modernização
capitalista dos centros urbanos. Vamos ver isso no Rio, em Salvador, em
Curitiba etc. Entre nós, a expansão e a modernização urbanas implicaram
segregação e exclusão. Daí que hoje a gente viva em cidades estilhaçadas, onde
cada pessoa parece pertencer não a um corpo cívico inteiro, mas a um espaço
distinto. É a fragmentação social e territorial, não raro fazendo coincidir linhas
de classe e cor, que impede a construção de uma identidade cívica geral e a
tessitura de um discurso comum para e sobre a cidade.

9. As relações entre o Brasil rural e urbano também influenciaram os


tipos de moradia dentro dessas duas regiões?

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Há uma coisa de que a gente costuma não se lembrar. Na Europa, foi o campo
que gerou a cidade. No Brasil, ao contrário, foi a cidade que criou o campo. Foi
preciso construir Salvador para que os canaviais se expandissem pelo
Recôncavo. No Rio, foi preciso expulsar os franceses e consolidar a cidade de São
Sebastião para que o campo se configurasse como realidade socioeconômica. Na
moradia, o jogo entre campo e cidade se mostra de várias formas. Vejamos as
casas térreas do segmento intermediário da população colonial. Essas casas se
construíam nos moldes da arquitetura vernacular lusitana. Vamos ver isso nas
casas rurais mais modestas, mas também nas casas térreas dos núcleos urbanos,
residência típica de pequenos e médios comerciantes e de funcionários públicos
subalternos. É interessante ver a identidade dessas moradias. Já a casa-grande
se verticalizou no sobrado urbano. Aí vamos ter, de resto, o início da
verticalização das cidades brasileiras, com sobrados de cinco, seis andares
surgindo no Recife e na Bahia. Eles só não se projetaram mais alto por questões
construtivas e porque naquela época não existiam elevadores. Mas a
verticalização não é um processo moderno, está presente já no mundo colonial.

10. Que tipo de sociedade a lógica contemporânea dos condomínios


fechados simboliza?

É claro que o condomínio fechado representa a adoção da engenharia de guerra


para fins residenciais, com suas cercas elétricas, guaritas, alarmes etc. Mas o
mais importante é o que isso produz. Vivendo num espaço reduzido, que é
relativamente limpo e seguro, as pessoas acabam voltando as costas à cidade. É
por isso que o que mais se desenvolve, nesses condomínios, é a
irresponsabilidade cívica. Além disso, com o estreitamento uniclassista, ocorre
um empobrecimento das relações interpessoais. E, ainda, o bloqueio de uma
coisa fundamental na vida urbana, que é o acaso. De outro ângulo, como, nesses
condomínios, a limpeza das ruas e o cuidado com parques e jardins, entre outras
coisas, passa a ser responsabilidade da administração dos condôminos, e não
mais da administração pública, podemos dizer que o condomínio fechado
representa uma vitória pontual do neoliberalismo, um triunfo localizado da
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propriedade privada e do mercado sobre o Estado. E tudo isso acaba fazendo


com que aquelas pessoas não deem a mínima bola para o conjunto da cidade,
fechando-se antes no conforto do enclave antiurbano e antissocietário.

11. O senhor afirma que o programa habitacional petista Minha Casa


Minha Vida é um novo processo de favelização. Por quê?

Ainda em inícios da década de 50, numa reunião da Fundação Casa Popular,


criada na década anterior por Getulio Vargas, o arquiteto Affonso Reidy foi ao
grão da questão. Um conjunto residencial popular tem de ser planejado e
construído com vistas ao bem-estar de quem vai morar ali. Logo, as coisas não se
resumem a fazer um número X de casas. O conjunto precisa contar com serviços
comuns, transporte, escola, assistência médica, áreas de lazer e esporte etc. Se os
serviços não existem e se o núcleo habitacional é plantado na periferia, ele vai
inevitavelmente se favelizar. Foi o que vimos, no passado, com a Cidade de Deus.
E é o que começamos a ver agora com os conjuntos do Minha Casa Minha Vida
— com este nome ridículo de programa de auditório na televisão —, que, em vez
de retomar a extraordinária experiência iniciada no governo de Vargas, preferiu
seguir o caminho da mediocridade e do desrespeito do BNH (Banco Nacional da
Habitação) criado pela ditadura militar. É por isso que digo e repito que o
Minha Casa Minha Vida constrói, hoje, as favelas de amanhã.

12. Quais os maiores desafios para o problema da moradia no Brasil


hoje e que soluções o senhor propõe?

O problema hoje não é apenas brasileiro, mas planetário. Na República, Platão


faz a distinção entre a cidade natural e a cidade do excesso. A cidade natural é a
que atende rigorosamente a nossas necessidades reais. A cidade do excesso se
forma a partir de falsas necessidades, da acumulação ilimitada de riqueza. Platão
faz seus personagens discutirem isso. Mas o que acho é que o tempo da escolha
entre a cidade natural e a cidade do excesso está passando. Não podemos

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continuar consumindo descontroladamente os recursos naturais do mundo. É


por isso que, tanto no plano do urbanismo quanto no plano da arquitetura
residencial, temos de caminhar obrigatoriamente para pensamentos e soluções
ecossociais.

De outra parte, no caso específico do Brasil, temos de acabar com o déficit


habitacional. Não conheço quem discorde de que todo mundo tem direito a ter
um lugar onde morar. Se os governos e o empresariado conjuntamente
quisessem, eles liquidariam rapidamente a carência habitacional brasileira, até
porque os números do déficit coincidem com o número de imóveis ociosos hoje
existentes no país. Mas nada se faz. O empresariado capricha muito mais na
construção de apartamentos para automóveis, na perversão social e humana do
edifício-garagem, do que na construção de casas para gente. É impressionante. E
nossos governantes, em sua maioria, atuam como agentes do setor imobiliário,
representantes da burguesia da construção civil. Temos de dar um jeito nisso,
pelo simples fato de que nenhuma cidade estará bem se sua população estiver
mal.

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