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Analise Psicológica (1989),1-2-3 0111): 23-31

Fundamentos gerais Etologia

A. BRACZNHA VZEZRA (*)

Uma primeira palavra para agradecer ao rentes da irradiação evolutiva de um traço a


ISPA por ter dado a palavra à Etologia, na partir de um antepassado comum, sendo de
pessoa do primeiro presidente eleito da postular para ela uma base filogenética sub-
Sociedade Portuguesa de Etologia, no jacente a uma evolução.
âmbito das comemorações do 25: aniversá- De facto, um traço ancestral [seja morfo-
rio da Escola. A nossa Sociedade acabou de lógico, etológico, ou morfo-etológico (I)]
nascer, num terreno adverso; lembra, de pode radiar a partir de um tronco inicial e
certo modo, uma planta do deserto: uma sob o efeito de pressões ecológicas diversi-
pequena quantidade de .húmus é preciosa ficadas exercendo-se, por exemplo, sobre
para o seu desenvolvimento inicial. populações alopátricas. Reciprocamente,
O que hoje me pedem, é uma introdução idênticas pressões evolutivas podem criar
de base, destinada aos não iniciados, e na analogias de órgãos e comportamentos em
qual enuncie a essência e algo da origem espécies não directamente aparentadas, de
desta disciplina da Biologia a que K. Lorenz modo a que se desempenhem de funções
tem chamado «a nossa ciência)). A Etologia comuns: assim, por exemplo, os Mamíferos
estuda comparativamente os comportamen- mirmecófagos desenvolvem, em geral, man-
tos dos animais, num quadro de referência díbulas alongadas e línguas longas e protrác-
pós-darwinista. Atende à acção dos animais, teis destinadas à captura das formigas: o
em todas as fases do seu desenvolvimento, equiduo, o grande formigueiro, o tamanduá,
nos seus meios-ambientes naturais. - o pangolim, o oricteropo, sofreram todos
((Fundamenta-se no facto de que há meca- esta convergência adaptativa, ilustrada pela
nismos do comportamento que evoluem em analogia morfológica referida, sem que os
filogénese exactamente como o fazem os unam próximas afinidades taxonómicas.
órgãos, de modo que o conceito se lhes pode A selecção natural incide nos fenótipos,
aplicar tal como às estruturas morfológicas» e exerce-se sobre os órgãos, as funções, os
(Lorenz, 1981, p. 101). Por homologia deve substratos bioquímicas do metabolismo e
entender-se um certo grau de semelhança
(entre órgãos, ou esquemas motores) decor- (') Pode uma modificação morfológica, de confi-
guração, dimensões ou c6r particulares, evoluir para
(*) Rofessor na Universidade Nova de Lisboa. realçar um comportamento ou o tornar expressivo.
também as estruturas externas dos organis- vam antiquíssimas atitudes humanas relati-
mos e os seus comportamentos, cujo valor vamente ao conhecimento dos comporta-
adaptativo face a um meio mutante é actua- mentos dos animais: Lorenz agiu, em grande
lizado por evoluções e inflecções dos pró- parte, trazendo animais jovens para a sua
prios comportamentos. Darwin (1872) intimidade e acompanhando as fases do seu
compreendera-o, e deve ser considerado o desenvolvimento (como tinham feito os
fundador histórico dos estudos etológicos homens neolíticos, autores da primeira cria-
comparativos; mas o seu texto - que lan- ção de estirpes domésticas e detentores da
çava as bases teóricas da Etologia, e mesmo chave do processo de ((selecção artificial)));
da Etologia humana - não teve repercussão enquanto Tinbergen interveio nos eco-
experimental imediata, e a Etologia objecti- -sistemas naturais, surpreendendo momen-
vista, após alguns trabalhos precurssores dis- tos fulgurantes das inter-acções dos animais
persos, veio a constituir-se e a adquirir (como tinham feito os paleolíticos), ou
identidade apenas no início do século XX. questionando-os com o seu método das
Os primeiros trabalhos sistemáticos que lhe negaças, elegante e não directivo, susceptí-
dizem respeito a Ottis Whitman, que descre- vel de analisar os componentes causais e
veu e comparou comportamentos dos motivacionais dos comportamentos.
Colurnbídeos; a Wallace Craig, seu discípulo, Em diversos países europeus a Etologia
que distinguiu entre fases apetencial e con- proporcionava então trabalhos originais: em
sumatória das actividades instintivas; a Inglaterra, William Thorpe desenvolveu estu-
Oskar Heinroth, atento observador dos Ana- dos, hoje clássicos, de entomologia, e orni-
tídeos, a quem se deve uma descrição do tologia, sempre atento aos comportamentos
fenómeno do imprinting nestes animais; a numa atitude comparativa; na Holanda,
Karl Von Frisch, decifrador metódico do diversos investigadores (entre eles Makkink,
comportamento das abelhas do mel; a Julian Adriaan Kortland, Gérard Baerends) conti-
Huxley, que realizou notáveis trabalhos de nuaram a investigação etológica; na Alema-
campo em ornitologia (v. as cerimónias de nha, criou-se a Escola de Seewisen, perto de
corte do Grande mergulhão de crista) e uma Starnberg, sob a influência de K. Lorenz; em
reflexão teórica sobre a evolução e os seus França, Pierre-Paul Grassé, zoólogo de
mecanismos. mérito reconhecido, centrou os seus traba-
Entretanto, outros contributos se inspira- lhos sobre comportamentos das térrnitas. Em
vam na teoria e método da Etologia. Assim, 1937 criou-se o Zeitschrift für Tierpsycho-
Morton Wheeler dedicou-se a investigações logie primeira revista consagrada a trabalhos
pormenorizadas sobre o comportamento de Etologia. Em 1949, urna reunião europeia
social de formigas; o fisiologista Erich Von congregou raras dezenas de estudiosos do
Holst delineou uma série de experiências comportamento animal, empenhados em
fisiológicas destinadas a apoiar as teses eto- caracterizar a noção de «instinto» e os seus
lógicas da endogenia de muitos e ancestrais componentes, e em sistematizar outros con-
comportamentos; Heini Hediger, no Jardim ceitos centrais da Etologia Histórica, tais
Zoológico de Basileia, fez leituras etológicas como ((comportamento apetitivo)), ((activi-
dos comportamentos dos animais captivos; dade consumatória», ((padrão fixo de
Otto Kholer, de orientação gestáltica, pro- acção)), adesencadeador específico)), ((acti-
vou a existência, nas Aves, de um sentido vidade deslocada)). Em 1951, N. Tinbergen
numérico apré-linguística)). Os trabalhos de publicou o seu livro The Study of Instinct,
Konrad Lorenz e Nikolaas Tinbergen tiveram que continha a primeira exposição global e
maior sucesso no mundo científico do que sistemática da ciência etológica e correlati-
os dos seus predecessores. Ambos retoma- vos métodos, ilustrada com exemplos dos
seus engenhosos trabalhos. Em 1951, a cáte- de uma evolução morfocomportamental
dra de Comportamento Animal criada em conjugada, que transformou a sua função
Munique começou a ser leccionada (por motora do vôo, primordial, em função estri-
Erich von Holst, com a colaboração de Kon- dulatória, subsequente, desde que os animais
rad Lorenz). Em 1973, a atribuição do pré- se adaptaram a vida subterrânea. Assim, são
mio Nobel de Fisiologia a Von FriscH, homólogas as asas das espécies afins dos gri-
Lorenz e Tinbergen levou a um largo reco- los que permanecem voadoras e as tegmina
nhecimento do valor da Etologia, cujos tra- daqueles, como homólogos são o compor-
balhos de campo e ensino universitário se tamento voador de umas e estridulatório das
multiplicaram desde então. outras. Em GryIIus campestris, a causalidade
O que realmente caracteriza a Etologia imediata da estridulação consiste em sensa-
desde o seu início histórico é que o animal, ções genitais influídas pelo ambiente (tem-
ou conjunto de animais em estudo, devem peratura, humidade, luminosidade) que
ser considerados na totalidade das suas desencadeiam no sistema nervoso central o
acções e inter-acções c observados no seu comportamento do «canto», com as várias
mundo próprio: foi aí que os comportamen- estridulações especializadas (de presença,
tos adquiriram valor funcional e encontram rivalidade e corte); a causalidade filogené-
sentido adaptativo. A precaridade de certas tica deve procurar-se na evolução de com-
observações no campo (animais nocturnos, portamentos dos antepassados voadores: o
subterrâneos, vivendo em eco-sistemas impe- ritmo motor das tegmina idêntico ao do
netráveis, etc.) e a necessidade de ensaiar movimento das asas das espécies voadoras
capacidades comportamentais de certas espé- descendentes do antepassado comum,
cies, récomendam o recurso ao ((laboratório dependendo de impulsos endógenos prove-
natural», onde, no entanto, são criadas con- nientes do segundo gânglio torácico (no que
Nções tão próximas quanto possível das que se refere à estridulação de base, pois que as
o animal encontra nos seus eco-sistemas suas variações especializadas, de presença,
naturais. Algumas variáveis poderão ser aqui corte e rivalidade, resultam da modulações
manipuladas, de modo a que se observe cla- pelo cérebro do grilo); a função destes sons
ramente a gama de respostas produzidas e diz respeito ao papel adaptativo dos compor-
se precise a influência causal de cada uma tamentos que permitem, v. a intolerância
delas. I espacial e o acasalamento, que se inscrevem
O âmbito da Etologia objectivista abrange no comportamento reprodutor dos animais;
quatro ordens de questões, intimamente- - a ontogénese, enfim, pode ser descrita a par-
encadeadas, que N. Tinbergen enunciou tir da observação metódica das várias meta-
(Tinbergen, 1972-73): morfoses parciais sofridas pelos grilos.
(i) Causalidade imediata dos comporta- Numa espécie australiana, por exemplo (in
mentos; Broom, 1981) verificam-se dez mudas,
(ii) A sua causalidade remota, referida à manifestando-se o ritmo-base da estridula-
sua história natural filogenética; ção a partir da sexta muda e os ritmos espe-
(iii) A sua função; cializado~a partir da oitava, embora sejam
(iv) O seu desenvolvimento ontogenético. então, uns e outros, desprovidos de função.
Os etólogos objectivistas aperceberam-se
Tomemos como exemplo o comporta- do carácter rígido e estereotipado das coor-
mento de estridulação do grilo (Gryllus cam- denações motoras da maior parte dos ani-
pestris). Tiata-se de um Ortóptero áptero mais. O conjunto desses blocos comporta-
descendente de antepassados voadores; as mentais produzidos da mesma forma e em
asas, reduzidas e rugosas (tegmina) decorrem resposta aos mesmos estímulos do meio
(estímulos-sinais desencadeadores) constitui os machos nupciais sempre executam), desde
o etograma de uma dada espécie: inclui os um extremo mais simples até outro mais ela-
esquemas motores fixados de modo a asse- borado, comparando os comportamentos
gurar o sucesso genético dos organismos, em homólogos diversificados ponto a ponto nas
ligação estreita com o meio-ambiente que espécies actuais aparentadas, que ilustram a
frequentam. Se este se modifica, incidindo evolução diacrónica da parada (Reuter, 1913,
diferentemente em populações alopátricas de in Eibl-Eibesfeldt, 1972).
uma espécie originária, pode então resultar Quando os animais de uma espécie soli-
uma radiação adaptativa envolvendo a evo- tária eclodem de um ovo depositado em
lução de comportamentos (certas espécies, pontos onde não se encontram congéne-
de idêntica morfologia exterior, só diferem res - como é caso de muitos Insectos e
pelo comportamento, o que permite a deno- outros não-Vertebrados - muito do seu
minação de eto-espécies). Os novos aspectos comportamento resulta da descodificação,
do comportamento evoluído, que especiali- pelos seus centros nervosos, de instruções
zam e complexificam o comportamento ini- filogenéticas contidas no genoma. As ((expe-
cial e o adaptam a diversas funções, podem riências de privação)), que separavam preco-
observar-se em várias espécies aparentadas cemente os animais sociais do convívio com
taxonomicamente, e permitem reconstituir o os congéneres, visavam distinguir os com-
seu itinerário evolutivo e avaliar as idades portamentos inatos aprendidos, dicotomi-
sucessivas da sua diferenciação filogenética. zando assim a sua proveniência. Mas tal
Os insectos Asilídeos (Empididae) acasalam- separação foi criticada metodologicamente
-se na sequência de uma parada ritual. A e refutada: o mais fixo e repetitivo dos com-
fêmea, carnívora e mais forte do que o portamentos pode ser interferido por
macho, pode, a aproximação nupcial deste, influências ambientais (o próprio genoma se
tomá-lo por presa e devorá-lo, o que acon- encontra rodeado de materiais que consti-
tece eventualmente com a espécie Empis tri- tuem, naturalmente, um nível físico-químico
gramma. Desta pressão selectiva resultou um do ambiente (a temperatura de incubação
comportamento deste táxone, que se pode dos ovos dos Crocodilos, por exemplo, deter-
seguir na sua evolução ao longo das espécies mina a percentagem de machos e fêmeas que
afins: os machos de Empis borealis e Empis eclodem); enquanto os comportamentos
tessellata capturam uma presa antes do aca- aprendidos o são em>onsequência de ~recei-
salamento e ofereceram-na a fêmea, fecun- tas» filogenéticas para aprender, que servem,
dando-a enquanto come; os machos de por seu lado, estratégias adaptativas.
Empis poplita e de Hilara quadrivittata Ernst Mayr (1976), com a sua distinção
tecem, com fieiras sericígenas dos seus tar- entre programas abertos e programas fecha-
sos anteriores, um casulo em volta da presa, dos, proporcionou um modelo claro que per-
o que exige da fêmea maior dispêndio de mite entender em complementaridade estas
esforço e tempo para alcançar a negaça duas vertentes do comportamento. As espé-
nutritiva; em Hilara maura, o conteúdo não cies de programa fechado (representadas pela
tem valor alimentar, reduzindo-se a um frag- grande maioria das que existem presente-
mento vegetal; no extremo desta série evo- mente na biosfera) dispõem de escassa mar-
lutiva situa-se Hilara sartor: o macho tece gem de modelação dos seus comportamentos
um balão sem conteúdo, que serve de estí- - o que não significa que não possam ope-
mulo atractivo para a fêmea, sem nada lhe rar modificações em resposta a alteração das
proporcionar. Podemos, assim, delinear o situações exteriores. Karl von Frisch (1960)
curso deste comportamento de oferenda referiu as suas observações de uma abelha
(completado por uma dança ritualizada que solitária cortadora de folhas, do género
Megachile. A fêmea grávida constrói um xas de aprendizagem, e foram trabalhos
ninho cilíndrico numa árvore carcomida; sobre ratos e pombos que proporcionaram
recorta então, com as mandihlas especia- o corpo experimental para o desenvolvi-
lizada~,várias folhas de roseira, em oval, mento das teorias da aprendizagem. Ao
aplica-as contra o abdómen e transporta-as longo da segunda metade do século XX
para o ninho, que com elas em forma de desenrolou-se um debate entre posições teó-
dedal. Junta ali reservas alimentares de mel ricas inatistas e ambientalistas que acabou
e pólen, e põe um ovo; após o que corta por orientar inúmeras experiências no domí-
novas folhas em círculo, segundo um novo nio do desenvolvimento e da psicologia com-
esquema, e fecha o ninho com elas. Uma parada. Os zoólogos, mais interessados nos
fêmea observada, que dispunha apenas de comportamentos próprios das espécies,
um ninho anfractuoso entre traves rígidas, interessavam-se mais, em geral, pela perspec-
ao tentar fechar a entrada não conseguiu tiva filogenética; os psicólogos, sociólogos
fazê-lo com as folhas redondas, e, incapaz e antropólogos culturalistas, atentos as dife-
de conceber outro corte, acabou por tapar renças individuais e as influências do meio
a abertura, de modo imperfeito, é certo, inse- sobre essa diferenciação, adoptaram em prin-
rindo nela, sagitalmente, as repetidas folhas cípio teses constructivistas e ambientalistas.
que cortara, como folhas de um livro. Eis Dentro da própria Etologia se desenharam
como um insecto dotado de um programa perspectivas mais propensas a admitir as
fechado (não há sobreposição de gerações, influências do meio exterior sobre os com-
e os comportamentos reprodutores de cada portamentos dos animais: a tradição zooló-
indivíduo têm de estar integralmente previs- gica da etologia europeia, contrapôs-se assim
tos no genoma) dispõe ainda assim de sufi- uma linha de investigação, sobretudo de pro-
ciente abertura do programa para, não veniência norte-americana (representada por
conseguindo embora cortar as folhas em Lehrman, Beach, Schneirla, Kuo), atenta a
quadrado, improvisar uma solução face à complexidade do comportamento nas suas
situação nova que se lhe depara. múltiplas influências causais.
Inversamente, a espécie humana, de larga Desde a década de 20 que Jacob von Uex-
abertura programática, mantém enraizados kull(1921) proporcionara um «esquema fun-
comportamentos ancestrais rígidos (másca- cional» capaz de correlacionar os animais
ras mímicas das emoções, automatismos e com o seu mundo de um modo adaptativo.
reflexos não condicionados, esquemas moto- Modificámos esse esquema (fig. 1) para
res estereotipados - como os movimentos demonstrar como os passos do processa-
de espreguiçar-se e bocejar) e tendências mento de informações pelo sistema nervoso
várias de ordem mais genérica (hierárquicas, central conduzem das sensações percebidas
miméticas, de intolerância espacial flexível, aos movimentos úteis, eles próprios agentes
etc.) que pertencem a sua história natural, de modificação do meio. O espectro senso-
isto é, ao estreito ângulo de programa rial de cada organismo pode apreender, do
fechado que nela persiste como um resíduo ambiente, uma banda de informação na qual
de programa fechado que nela persiste como se recortam os alvos e configurações expres-
um resíduo filogenético, susceptível de a sivos, que têm particular significado para a
dotar de universais de comportamento e de espécie (Merkmale), que funcionam, durante
uma gramática não verbal de comportamen- os estados apetitivos, como estímulos-sinais
tos expressivos. desencadeadores. 'Iàis estímulos foram com-
Os Vertebrados amniotas (Répteis, Mamí- parados a imagem de uma chave, que, exclu-
feros e Aves) compreendem a maior parte siva para uma dada fechadura, é necessária
das espécies dotadas de capacidades comple- e suficiente para a abrir. O mecanismo inato
de desencadeamento (IRM, do inglês ainnate homeostase fisiológica (os eixos ortogonais
releasing mechanism))) provoca, então, uma contribuem para preservar o que Wynne-
resposta motora estereotipada, que tem um -Edwards chamou ((homeostase social))):
valor na economia funcional do sujeito no um, diz respeito às necessidades de alimen-
seu meio natural. taçáo dos tecidos, e inclui os aparelhos diges-
tivo, circulatório e respiratório; o outro,
FIGURA 1 reúne as várias instâncias reguladoras do
Esquema tuncionai, modificado a partir de meio interno, e integra as glândulas endócri-
J. von Uexkiili nas, o sistema nervoso autónomo, o sistema
imunitário e a pele.

FIGURA 2
Esquema de reguiaç6o de um organismo animal

Podemos esquematizar um organismo


situado no seu habitat pela intersecção de
diversos eixos efectores, fisiológicos e etoló-
gicos (fig. 2): o eixo horizontal correlaciona
o indivíduo com o meio, ligando as mensa-
gens recolhidas pelos órgãos dos sentidos, A selecção natural actua sobre o fenótipo
por mediação do sistema nervoso central, no seu mundo, e, quando a regulação de
com os impulsos que comandam o sistema
uma função dada sofre transformações filo-
músculo-esquelético e dirigem o movimento. genéticas, podem inter-agir as evoluções da
O trabalho da Etologia situa-se a este nível
morfologia, fisiologia e comportamento:
efector (a Neuro-etologia estuda a ligação
todo o organismo se afeiçoa à lógica adap-
entre os centros nervosos e os movimentos, tativa, face às pressões ecológicas que se
pelo que o seu objecto de estudo se inscreve exercem sobre a sua população. Tomemos o
também neste eixo). Um segundo eixo, ver-
exemplo do parasitismo de nidificação, incu-
tical, conduz dos órgãos reprodutores - e bação e cuidados com a prole conhecido em
por intermédio de influências neuro-
relação a certas espécies de cucos - como
-endócrinas (elas próprias influenciadas por
Cuculus canorus: esta adaptação implica
variáveis do ambiente) - aos comportamen- especializações morfológicas, fisiológicas,
tos da reprodução, e correlaciona diacroni-
etológicas e psicológicas equilibradamente
camente o organismo com a população: é a
inter-dependentes, de modo que as modifi-
este nível que operam os mecanismos selec-
cações filogenéticas que a asseguram interes-
tivos - a inérciafilogenética, conservadora,
sam a globalidade do organismo no seu
e a pressão ecológica, transformadora -
mundo, perante a função que se transformou
sob efeito da variação do meio e em virtude [a partir de antepassados que nidifica-
da triagem que exerce sobre os caracteres de
vam (I)]. Assim:
expressão genética, implicando sucesso
reprodutivo diferencial em relação aos con- (I) As espécies parasitas evoluem normalmente a
géneres. Os dois eixos oblíquos representa- partir de antepassados não parasitas, e espécies taxo-
dos no esquema destinam-se a manter a nomicamente afins podem testemunhar dos compor-
(i) A silhueta dos animais em voo desencadeando um reflexo estereotipado de
assemelha-se à de um pequeno rápace, cons- expulsão. Os ovos da ave hospedeira, as suas
tituindo um estímulo-sinal configuracional crias já eclodidas, ou qualquer negaça colo-
que assusta as pequenas aves no choco e as cada experimentalmente no interior do
pode afuguentar do ninho, deixando o ninho, levam o pequeno cuco a encaixá-los
campo aberto para a postura parasita das entre os cotos erguidos das asas e o dorso,
fêmeas. enquanto, apoiando-se sobre as patas e a
(ii) A fêmea sofre um adiamento, de regu- cabeça hiper-flectida, executa movimentos de
lação fisiológica, da postura, de modo a recuo até junto ao bordo do ninho por sobre
depositar os ovos - um, apenas, em cada o qual arremessa o corpo estranho, de modo
ninho - no momento mais propício da a ficar sozinho.
reprodução das aves parasitadas. (vi) A mucosa faríngea, de cores vivas, do
(iii) Cada fêmea parasita exclusivamente recém-nascido, exibida com o bico aberto
os ninhos de uma espécie dada, que é pre- quando os pais de adopção voltam ao ninho
cisamente aquela de cujo ninho proveio. Os com alimentos, constitui para estes um
ovos de cada «totem» aproximam-se, em estímulo-sinal supru-natural que os leva a ali-
tamanho e cor, dos da espécie parasitada. mentar apenas a cria parasita (ainda quando
Quando as populações «totémicas» são sim- haja crias naturais ainda vivas em volta do
pátricas, podem dar-se cruzamentos entre ninho) com a totalidade dos alimentos des-
progenitores de dois «totems», e os ovos tinados as diversas crias naturais, cujo
híbridos retomam aspectos diferentes dos da número habitual, nas espécies parasitadas,
espécie parasitada (o que constitui eventual é de 5 a 6. Assim, o jovem cuco desenvolve-
desvantagem selectiva, mas retira a este fenó- -se rapidamente, duplicando de peso ao fim
meno o papel de possível motor de espe- de três dias.
ciação). (vii) A cria do sexo feminino sofre um
(iv) O desenvolvimento do embrião está «imprinting» a espécie hospedeira, de modo
acelerado, de modo que a eclosão precoce que, na maturidade e quando da postura,
(12 ou 13 dias) permite ao recém-nascido procure os seus ninhos.
desembaraçar-se dos pseudo-irmãos, condi- (viii) As crias, que não sobrepõe a sua
ção, para ele, de sobrevivência. geração com a dos progenitores, não têm a
(v) O dorso glabro do cuco recém-nascido experiência dos congéneres. Por isso, a ges-
está provido de receptores sensoriais extre- talt que lhes permite mais tarde reconhecer
mamente sensíveis aos estímulos tácteis, que os indivíduos da própria espécie está profun-
fazem com que a presença de qualquer damente enraizada no seu programa gené-
objecto dentro do ninho não seja tolerada, tico, engramada no seu sistema nervoso
central, manifestando-se um dia nos com-
tamentos ancestrais. De facto, das 130 espécies actuais portamentos de corte e acasalamento.
de Cuculiformes s6 cerca de 50 desenvolveram para- O chapim americano Molothrus ater,
sitismo de nidificação, com graus diversos de especia- parasita de ninhos tal como Cuculus cano-
lização de uma espécie para outra. Os cucos
Crofophaga,sociais, ilustram um grau inicial do que rus, foi estudado por King e West (1977, in
teria sido o abandono progressivo dos trabalhos de Bonner, 1980), que criaram fêmeas em iso-
nidificação: constroem um grande ninho comunitário lamento e observaram que, quando da matu-
onde as fêmeas fazem a postura, sendo a incubação ração sexual, elas adoptam a postura de
e os primeiros cuidados com a prole assegurados por cópula em resposta imediata a vocalização
machos, que se alternam nessa tarefa. Coccyzus ame-
ricanus nidifica a maior parte das vezes, mas episo- dos machos, que nunca ouviram. Não sendo
dicamente recorre a ninhos de outras espécies para possível a aprendizagem destes sons no
fazer a postura. ninho, nem após a eclosão, deve concluir-se
que tal padrão de resposta ao estímulo-sinal niente nos processos de aprendizagem. Inú-
sonoro para a corte é inato (o que não sig- meras objecções epistemológicas foram sus-
nifica que não sofra influências ambientais: citadas por este problema da dicotomia
assim, por exemplo, as fêmeas respondem inato-adquirido, que, por outro lado, não é
com mais excitação ao canto de machos tam- ideologicamente neutro. Há que reconhecer
bém criados em isolamento, fenómeno de hoje que, quaisquer que sejam as limitações
que não se conhece a explicação). É de da distinção e o mal-fundado da sua formu-
admitir a intervenção de uma informação lação, ela teve o papel de motor heurístico
genética que sensibiliza o cérebro auditivo, que orientou grande parte da investigação no
de modo não ambíguo, para o padrão espe- domínio do comportamento animal ao
cífico do canto, desencadeando em resposta longo das décadas de 60 e 70.
o comportamento ritualizado de oferta Ao moderar os Encontros de Royaumont
sexual, que permite o acasalamento, a sin- quando do debate Chomsky-Piaget - em
cronia dos comportamentos masculinos e que se defrontaram inatistas e construtivis-
femininos, e a consumação. tas - Piattelli-Palmarini (1979) afirmou a
Em espécies de aves não parasitas de certa altura, comentando a tese chomskyana
ninhos, os padrões canoros podem ser rigi- de existência no cérebro humano de ((estru-
damente e integralmente hereditários, ou turas profundas» responsáveis por uma «gra-
totalmente aprendidos; ou enfim conter uma mática generativa», que, se o pequeno
matriz inalterável, frase musical de carácter cérebro de uma aranha contém o esquema
rígido, suposta inata, que se aperfeiçoa, da forma da teia e dos movimentos e fases
complexifica ou sofre variações pela expe- da sua tecelagem, o cérebro humano, que
riência da audição do canto dos congéneres integra 10 'O neurónios e 10 l4 sinapses,
(Brown, 1975); casos há em que, para que o poderia perfeitamente conter inscrito o dis-
animal integre no seu canto variações apren- positivo neuronal da linguagem.
didas, tem de ouvir cantar a si próprio o Nos Úítimos vinte anos desenvolveu-se, em
padrão fixo, além de se ter impregnado, vários centros europeus e norte-americanos,
ouvindo, em fase precoce da ontogénese, o o estudo da Etologia humana - e são de
canto de congéneres especializados num dos destacar as contribuições de Eibl-Eibesfeldt
dialectos locais (Marler e Thmura, 1964, in (Percha, Starnberg), que procurou provar a
Ruwet, 1969). Nalgumas espécies, provou-se existência de ((universais de comporta-
haver assimetria morfo-funcional dos hemis- mento» em Homo sapiens; de Blurton-Jones
férios cerebrais relacionada com o canto, que e Montagner, estudando os comportamen-
se acentua na estação da corte e declina em tos sociais das crianças; de Ekman e Friesen
seguida (Nottebohm, 1981). (Universidade da Califórnia) que demonstra-
O livro de Konrad Lorenz (1965) Evolution ram a invariância trans-cultural de sete más-
and Modification of Behavior, continha a caras mímicas humanas. Grande volume e
tentativa de dialectizar e distinguir experi- importância tomaram, entretanto, os traba-
mentalmente as vertentes inata e adquirida lhos no domínio da Primatologia social.
dos comportamentos, e demarcar desse Numerosas espécies de Primatas foram estu-
modo a identidade da Etologia objectivista. dadas no terreno, com pormenor, tendo a
Nos estudos de comportamento, sempre os maior parte dos primatólogos ligado o seu
zoólogos têm manifestado propensão para trabalho a uma espécie determinada. Merece
valorizar a «endogenia» dos padrões moto- especial relevo o estudo dos Antropóides
res comuns a cada espécie, enquanto os psi- superiores, pela sua contribuição para o
cólogos acentuam as diferenças individuais desenvolvimento de outras disciplinas (Psi-
e se interessam pela «psicogenia» interve- cologia comparada, Antropologia física,
Páleo-antropologia, Linguística compara- BIBLIOGRAFIA
tiva, etc.). A partir dos trabalhos percurso-
res de Jane Goodall com Chimpanzés, Diane BONNER, J. Y. (1980). The Evolution of Culture
in Animals, Princeton: Princeton University
Fossey com Gorilas e Biruté Galdikas com Press.
Orangotangos (foi o célebre páleo-antropó- BROOM, D. M. (1981). Biology of Behaviour, Cam-
logo Louis Leakey quem lhes sugeriu as bridge: Cambridge University Press.
observações de campo dos Pongídeos, pela BROWN, J. L. (1975). The Evolution of Behavior,
sua urgência e significado que assumiam New York: Norton & Company.
para a compreensão do próprio Homem e DARWIN, Ch. (1872). The Expression of the Emo-
tions in Man and Animals, London: Appleton.
das suas origens), muitos investigadores EIBGEIBESFELDT, I. (1972). Ethologie, biologie
norte-americanos, europeus e japoneses cla- du comportement, Jouy-en-Josas: Naturalia et Bio-
rificaram comportamentos daqueles animais, logia.
que são os nossos mais próximos parentes na FRISCH, K. VON (1960). ((0mundo prodigioso dos
actual biosfera. Insectos)) - Triângulo, 4 (6): 206-218.
Assim, a Etologia, após os seus desenvol- LORENZ, K. Z. (1965). Evolution and Modification
vimentos no decurso de mais de meio século of Behavior, Chicago: Chicago University Press.
LORENZ, K. Z. (1981). The Foundations of Ethology,
e as suas especializações recentes, situa-se Wien & New York: Springer.
hoje numa encruzilhada inter-disciplinar - MAYR, E, (1976). Behavior Programs and Evolution-
entre as ciências da natureza e as ciências do nary Strategies, in: Evolution and the Diversity
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Fisiologia, a Genética do comportamento e NCYTTEBOHM, E. (1981). Laterality, seasons and
a Sociobiologia, por outro com a Psicologia space govem the learning of a motor skill - Zknds
in Neurosciences, May, 81: 104-106.
comparada, a Sociologia animal e humana, PIATTELLI-PALMARINI, M. (1979). in: Théones du
as ciências da linguagem e as teorias da langage. Théories de I'apprentissage. Le débat entre
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Antropologia física, sem no entanto perder tement, Bruxelles: Dessart.
a sua identidade. A sua perspectiva não pode TINBERGEN, N. (1951). The Study Instinct, Oxford:
deixar de ser filogenética de filiação neo- Clarendon Press.
TINBERGEN, N. (1972/73). The Animal in its World,
-darwinista; a sua essência comporta a arti- 2 vols., London: George Allen & Unwin.
culação íntima de um modelo teórico com UEXKÜLL, J. von (1921). Umwelt und Innenwelt der
um método de observação e registo dos com- Tiere, 2 A@ Berlim.
portamentos.

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