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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de Letras Modernas

Estudos Linguísticos e Literários em Inglês

Discurso e Ensino: Identidade e Heterogeneidade no Discurso


Pedagógico de Língua Estrangeira

Profa. Dra. Marisa Grigoletto

Nathália Horvath Simões

n. USP: 5674888

TEORIA(S) E PRÁTICA(S) NA POLÍTICA EDUCACIONAL DO LIVRO


DIDÁTICO DE INGLÊS – Uma reflexão sobre os editais de PNLD de Língua
Estrangeira Moderna para os anos finais do ensino fundamental 1

Introdução

O livro didático tem sido objeto de discussão em diversos setores da


sociedade, como a academia, a mídia, o governo, os professores, as editoras
de livros didáticos, etc.2, e levantado diferentes questões, dentre as quais
mencionamos algumas apenas a título de exemplo, como a importância ou não
do uso de livros didáticos e suas consequências, a qualidade desses livros e
sua relevância para o aluno e para o professor - em termos de ensino e

1
Utilizamos todos os editais de PNLD de Língua Estrangeira Moderna para os anos finais do ensino
fundamental presentes até a data do artigo: 2011, 2014 e 2017.
2
Para discussão mais aprofundada sobre o discurso do livro didático de inglês, recomenda-se a leitura
da tese O discurso sobre o livro didático de inglês: a construção da verdade na sociedade de controle
(BRAGA, 2014) em que a autora discute o discurso de verdade do livro didático de inglês, articulando
três segmentos: o discurso oficial do edital de PNLD 2011 e de outros documentos referentes a ele, o
discurso midiático sobre o livro didático e o discurso de professores da rede pública antes e após a
utilização dos livros aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático.

1
aprendizagem e formação (cidadã)3, a relação do conteúdo dos livros didáticos
com teorias de linguagem e aprendizagem discutidas na academia, as
representações e estereótipos apresentados e reforçados por esses livros e o
uso do livro didático como facilitador das aulas do professor, mas também
como autoridade na apresentação das novas abordagens de ensino.

Sabemos que essas questões partem de múltiplas vozes em contextos e


realidades diferentes e motivados diferentemente, portanto, dentro desse
esboço apresentado e para evitar simplificações, buscaremos nos concentrar
em um recorte de discursos sobre o livro didático de inglês (LDI) de duas áreas
distintas do discurso acadêmico, a Linguística Aplicada e a Análise do Discurso
de linha pecheutiana, e o discurso oficial do governo através dos editais do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de língua estrangeira moderna
(LEM) para os anos finais do ensino fundamental.

Para uma análise mais completa, seria necessário discutir as condições


históricas de cada um dos objetos com os quais estamos lidando e também as
condições que motivam nossa análise. Nas palavras de Michel Foucault
(1982:209), “precisamos de uma consciência histórica da nossa circunstância
presente”4. Entretanto, o presente artigo tem como objetivo apenas
problematizar a relação entre teorias linguísticas e de ensino de língua
estrangeira e suas críticas ao livro didático ou supostas aplicações nele através
de políticas educacionais a partir da perspectiva da análise do discurso 5 e de
abordagens pós-estruturalistas. Nossa hipótese é que o diálogo entre esses
objetos de análise, sendo dois deles perspectivas teóricas que muito
contribuem para suas respectivas áreas, poderia enriquecer as discussões
sobre o livro didático de inglês no Brasil. Longe de abordar todas as questões
envolvidas a fundo, busca-se primordialmente refletir sobre o cenário complexo
em que se encontra o livro didático de inglês atualmente e levantar possíveis
questões para estudos posteriores.

3
O termo formação cidadã ou formação de cidadania é frequente no discurso dos editais de PNLD e
documentos oficiais relacionados a ele.
4
Tradução nossa.
5
Busca-se utilizar a perspectiva da Análise do Discurso (AD) tanto como ferramenta quanto como objeto
de análise.

2
Para tanto, selecionamos dois artigos escritos na perspectiva da Análise
do Discurso de linha pecheutiana que analisam publicações e propostas de
prática de ensino da Linguística Aplicada e análise de livros didáticos (A
escamoteação da heterogeneidade e O olhar da ciência e a construção da
identidade do professor de língua6), dois artigos de Linguística Aplicada que
discutem o PNLD (O lugar de aprender língua estrangeira é a escola: o papel
do livro didático7 e Políticas de ensino e aprendizagem de línguas adicionais no
contexto brasileiro: o caminho trilhado pela ALAB 8) e, por fim, os editais do
PNLD de língua estrangeira moderna para os anos finais do ensino
fundamental de 2011, 2014 e 2017.

Ponto de partida: A Análise do Discurso

A perspectiva da análise de discurso surge historicamente em um


contexto de mudança da concepção de sujeito, história e língua, não mais
vistos como transparentes, únicos e completos, dentro das respectivas áreas
da psicanálise, marxismo e linguística, e concebe, consequentemente, seu
objeto de estudo “na conjunção desses três modos de “opacidade”: a do
sujeito, a da língua e a da história”(ORLANDI, 2001:99) como efeito de sentido
entre locutores. Sendo assim, o discurso não existe previamente, mas se
realiza como prática simbólica na combinação da materialidade linguística com
a social, ou nos termos de Michel Pêcheux ([1988] 2008), constitui-se como
estrutura e como acontecimento.

Semelhantemente nessa perspectiva, sentido e sujeito se constituem no


discurso, ou seja, a língua não existe isolada como um sistema fixo do qual um
sujeito único e indiviso se utiliza para criar sentido. “A ideologia interpela o

6
Ambos os artigos foram escritos por Maria José Rodrigues Faria Coracini e fazem parte do livro O
desejo da teoria e a contingência da prática, em que a autora atua também como organizadora.
7
Autoria de Miriam Lúcia dos Santos Jorge e Adriana Maria Tenuta e presente no livro Inglês em escolas
públicas não funciona? Uma questão, múltiplos olhares.
8
Autoria de Christine Siqueira Nicolaides e Rogério Casanovas Tilio e presente no livro Política e políticas
linguísticas.

3
indivíduo em sujeito e este submete-se à língua significando e significando-se
pelo simbólico da história” (ORLANDI, 2001:100).

Dialogando com a cadeia enunciativa de Mikhail Bakhtin e o conceito de


heterogeneidade de Jacqueline Authier-Revuz, Pêcheux defende dois
esquecimentos que criam a ilusão de um sujeito-origem e de um sentido único.
Segundo ele, no primeiro esquecimento, o sujeito esquece que sua fala provém
de falas anteriores e tem a ilusão de ser ele a origem de seu dizer. Já no
segundo, há a ilusão de um sentido único das palavras, como se o sentido
existisse fora do social e da história. Podemos conceber, portanto, sujeito e
discurso como constitutivamente heterogêneos.

Com base no conceito de heterogeneidade constitutiva do sujeito e do


discurso, no livro O desejo da teoria e a contingência da prática, Maria José
Coracini analisa livros didáticos e publicações e pesquisas da área da
Linguística Aplicada buscando problematizar como essa teoria seria ou não
aplicada em propostas de práticas de ensino. Segundo ela, a heterogeneidade
constitutiva de todo discurso e de todo texto, como materialização desse
discurso, “não parece tão evidente assim, quando se trata de discutir,
descrever ou propor práticas de ensino-aprendizagem ou métodos de
investigação no discurso dominante da Linguística Aplicada” (2003:253).
Selecionamos alguns problemas pontuados pela autora que, acreditamos,
também dialogam de alguma forma com os editais de PNLD, mas que serão
desenvolvidos posteriormente:

1. A noção de sujeito: o cognitivismo da Linguística Aplicada implica


uma noção de sujeito cartesiano, racional e totalmente
consciente de suas ações e aprendizagem;
2. A (não) existência de conflito : a falta e o conflito são vistos como
problemas que precisam ser resolvidos e não como constituintes
do sujeito e da linguagem;
3. A representação do professor: o professor é, na maioria das
vezes, apresentado como um profissional que precisa de
formação continuada e reciclagem;

4
4. O Manual do professor (MP): o MP apresenta todas as etapas da
aula, como se o professor não tivesse capacidade de elaborar
suas aulas sozinho;
5. O Livro didático (LD): a principal crítica da autora é que o LD se
apresenta como verdade inquestionável e não dá margem à
dúvida. Sua hipótese é de que o discurso pedagógico é
atravessado por uma visão científica em que é preciso comprovar
o que se diz. Segundo ela, isso se dá pela estrutura visual e
escolha de imagens, pelas atividades que aceitam apenas uma
resposta correta, pelo uso de estruturas simples (no “nível do
aluno”), além da ausência de referências a obras de onde as
informações foram extraídas.

A partir dessas considerações, buscaremos analisar de que forma elas


se manifestam ou não nos editais de PNLD de língua estrangeira e como esses
estão relacionados à Linguística Aplicada, pensando na ligação complexa entre
teoria e prática. Coracini (2003:207), ao falar sobre a constituição do sujeito-
professor no discurso da ciência e dos materiais didáticos, afirma que a
identidade do professor se constitui no conflito entre teoria e prática, em que a
teoria se configuraria como lugar de desejo por apresentar uma completude,
enquanto a prática se realizaria como o lugar da falta, do problema. Nesse
sentido, pretendemos refletir sobre as relações entre teoria como completude e
prática como falta.

O Programa Nacional do Livro Didático: da teoria para uma prática


(política)?

“O Programa Nacional do Livro Didá tico (PNLD) tem como principal objetivo subsidiar o
trabalho pedagó gico dos professores por meio da distribuiçã o de coleçõ es de livros didá ticos
aos alunos da educaçã o bá sica. Apó s a avaliaçã o das obras, o Ministério da Educaçã o (MEC)
publica o Guia de Livros Didá ticos com resenhas das coleçõ es consideradas aprovadas”.9

9
Disponível em < http://portal.mec.gov.br/index.php?
Itemid=668id=12391option=com_contentview=article>. Acesso em 16 de julho de 2015.

5
Com o objetivo de compreender melhor o panorama em que se encontra
o livro didático de inglês produzido no Brasil, é relevante retomar brevemente
alguns fatos importantes sobre sua relação com as políticas públicas e com a
academia. Embora tenham existido diversas ações governamentais
relacionadas ao subsídio de livros didáticos desde 1937, o PNLD foi criado
posteriormente em 1985 com o intuito de centralizar no governo federal o
planejamento, a compra e a distribuição de material didático para todos os
alunos matriculados na rede pública de ensino.

É interessante notar que, inicialmente no programa, a escolha dos livros


subsidiados pelo governo era feita pelos professores sem qualquer tipo de
exigência ou mediação. No Plano Decenal de Educação para Todos, lançado
em 1993 pelo MEC em convênio com a UNESCO, UNICEF e Banco Mundial,
menciona-se a necessidade de melhoria dos materiais didáticos e a
capacitação do professor para escolha e seleção desses materiais 10. Em 1994,
as obras escolhidas pelos professores passaram por avaliação de profissionais
escolhidos pelo MEC que pontuaram erros conceituais, metodológicos e
editoriais. (KANASHIRO, 2008).

Com a reforma educacional em 1996, o governo passa também a avaliar


os livros adquiridos e o processo de escolha dessas obras se torna
responsabilidade do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE), ganhando uma periodicidade trienal por segmento educativo 11. Seis
anos depois, os livros passam a ser avaliados por universidades públicas em
convênio com o Ministério da Educação a partir de critérios estabelecidos em
edital. Os livros didáticos de língua estrangeira moderna só passam a fazer
parte do programa em 2009, no PNLD 2011 para os anos finais do ensino
fundamental.

10
O artigo de SCAFF (2000), O Guia de livros didáticos e sua (in)utilização no Brasil e no Estado de Mato
Grosso do Sul, discute a relação entre políticas públicas e organismos internacionais na escolha de uma
política sobre o material didático. Disponível em <
http://www.ufmt.br/revista/arquivo/rev15/Scaff.html>. Acesso em 16 de julho de 2015.
11
Braga (2014) questiona em sua tese a decisão de uma periodicidade trienal por segmento educativo,
já que tanto os alunos de ensino fundamental dos anos iniciais, quanto os alunos de ensino fundamental
dos anos finais jamais estudariam os cinco ou quatro anos de seu ciclo com uma única coleção e não
haveria continuidade no processo de aprendizagem.

6
É assim que se inicia a relação entre as políticas educacionais do LD de
inglês e a academia. A participação de autores e editoras no programa
acontece através de um edital publicado, aproximadamente, quatro meses
antes da entrega das coleções para avaliação. A partir da leitura dos editais, é
possível perceber um diálogo entre alguns critérios e perspectivas teóricas
sobre aprendizagem, aprendizagem de língua estrangeira e conceito de língua,
embora não haja referência bibliográfica ou fonte. No caso específico dos livros
didáticos de língua estrangeira, a perspectiva teórica mais adequada para lidar
com questões relativas ao mundo “real” e problemas de ordem mais prática,
como o ensino de inglês na escola pública, seria a Linguística Aplicada. Dessa
forma, ressaltamos algumas relações entre essa perspectiva e(m) trechos do
edital.

1. A noção de sujeito:

“De outra parte, os progressos efetuados nas ú ltimas décadas nos campos das teorias da
aprendizagem e da psicologia cognitiva nã o podem ser esquecidos. Para formar cidadã os
participativos, conscientes, críticos e criativos, em uma sociedade cada vez mais complexa,
é preciso levar os estudantes a desenvolverem mú ltiplas habilidades cognitivas. A
apresentaçã o de conceitos e procedimentos sem motivaçã o prévia, seguida de exemplos
resolvidos como modelo para sua aplicaçã o em exercícios repetitivos é danosa, pois nã o
permite a construçã o, pelo estudante, de um conhecimento significativo e condena esse
estudante a ser um simples repetidor de procedimentos memorizados. Assim, o ensino que
ignore a necessidade da aquisiçã o das vá rias habilidades cognitivas e se dedique
primordialmente à memorizaçã o de definiçõ es, procedimentos e à resoluçã o de exercícios
rotineiros de fixaçã o nã o propicia uma formaçã o adequada para as demandas da sociedade
atual.” (BRASIL, 2015:39)

Semelhantemente ao sujeito da Linguística Aplicada, o sujeito-aluno descrito


no edital é visto como um sujeito racional e consciente de suas habilidades e
capaz de agir sempre de forma racional.

2. A (não) existência de conflito.


“Para alcançar todos esses objetivos, a obra didá tica deve veicular informaçã o correta,
precisa, adequada e atualizada. É preciso que a obra didá tica contribua com o trabalho do
professor no sentido de propiciar aos estudantes oportunidades de desenvolver
ativamente as habilidades envolvidas no processo de aprendizagem. Além disso, a obra
didá tica, como mediador pedagó gico, proporciona, ao lado de outros materiais pedagó gicos

7
e educativos, ambiente propício à busca pela formaçã o cidadã , favorecendo a que os
estudantes possam estabelecer julgamentos, tomar decisõ es e atuar criticamente frente à s
questõ es que a sociedade, a ciência, a tecnologia, a cultura e a economia.” (BRASIL,
2015:40)

O edital prescreve uma obra didática idealizada que, além de proporcionar aos
alunos desenvolver suas habilidades, tem função de formação crítica e cidadã
por si só, sem considerar o trabalho do professor e a participação dos alunos,
que aqui também aparecem idealizados. Nesse trecho do edital, não há lugar
para o conflito ou para o problema:

“Aprender uma língua estrangeira tem como um de seus princípios proporcionar o acesso a
sentidos relacionados a outros modos de compreender e expressar-se no e sobre o mundo. [...]
É fundamental, portanto, compreender seu papel nesse segmento a partir da concepçã o de
língua como construçã o histó rica, para além da concepçã o de meio de comunicaçã o ou da mera
veiculaçã o de informaçõ es. Trata-se, pois, de afastar-se de uma concepçã o que simplifica
problemas, conflitos, divergências, para privilegiar o espaço de construçã o compartilhada de
conhecimento, o entendimento de que as manifestaçõ es de linguagem constituem prá ticas
sociais atravessadas por sentimentos, valores e saberes profundamente atrelados a processos
histó ricos de sociedades muito diversificadas.” (BRASIL, 2015:50)

Há, porém, momentos em que surge o reconhecimento do conflito e a não


simplificação do conceito de língua e do processo de aprendizagem. A língua é
aqui apresentada como construção histórica, se opondo a instrumento de
comunicação ou de informação, e também ao conceito de língua apresentado
nos editais anteriores, em que ela era vista como “portadora”, o que implicaria a
pré-existência de uma língua. Além disso, considera-se que não bastam
apenas o LD, o professor e os alunos no processo de aprendizagem, mas que
existem sentimentos e valores envolvidos nessa relação, além do contexto
social e histórico em que ela se dá.

3. A representação do professor.
“O PNLD acaba assumindo um caráter de curso de formação continuada de professores,
uma vez que, por falta de acesso a esse tipo de formação, grande parte dos professores
acaba escolhendo o livro didático a ser adotado intuitivamente – muitas vezes levando em
consideração apenas aspectos superficiais e equivocados, como seus conteúdos
gramaticais e aparência.” (NICOLAIDES; TILIO, 2013:295)

8
“Encontram-se, no edital no PNLD 2011, exigências específicas referentes ao manual do
professor (MP) que integra as coleções didáticas. Espera-se que esse MP contribua para a
formação do professor tanto do ponto de vista teórico-metodológico, quanto linguístico-
comunicativo. [...] Certamente, não se espera que o MP, por si só, assegure a formação
continuada do professor de inglês. No entanto, ele, muitas vezes, é o único recurso
pedagógico ou fonte bibliográfica disponível ao professor.” (SANTOS JORGE; TENUTA,
2014:129)

Como apontado por Coracini anteriormente, percebe-se uma ênfase na


necessidade da formação continuada do professor que, no PNLD, se daria
através do LD e do MP.

4. O Manual do professor.

“As concepçõ es atuais de ensino e aprendizagem, assim como as orientaçõ es para formaçã o
docente consideram que é preciso superar a dicotomia entre os que produzem e os que
ensinam os conhecimentos e repensar o papel do professor, valorizando sua competência
também como produtor do saber. Portanto, o Manual do Professor nã o deve ser um mero
roteiro para utilizaçã o do livro do estudante, com acréscimo de textos desarticulados da
proposta central da coleçã o.” (BRASIL, 2015:43)

O edital prescreve um MP que não explicite, passo a passo, o que o professor


deve fazer em sala de aula, valorizando a liberdade e conhecimento do
professor em utilizar o LD da forma que julgar mais adequada. Entretanto, há
de se fazer uma ressalva quanto à valorização do professor, que só acontece
na maneira como o livro didático se relaciona com ele, já que seu lugar no
programa de avaliação continua sendo o de objeto e não o de sujeito. Como
afirma Coracini (2003:199),

“Num patamar superior da escala hierárquica, encontra-se, pois, o autor-


pesquisador-formador, que desempenha a tarefa de conscientizar o professor do
que é importante ensinar e, sobretudo, das estratégias de aprendizagem oriundas
de pesquisas sobre os processos cognitivos; em seguida, o professor que, por sua
vez, tem a responsabilidade de motivar e interessar o aluno para que a
aprendizagem ocorra [...]”

9
5. O livro didático.

“O LD é importante, pois, muitas vezes, define o conteúdo do ano letivo, o


planejamento das aulas, as propostas de avaliação e os métodos e técnicas de ensino a
serem utilizados pelo professor. Assim sendo, a definição de padrões de qualidade
para o LD de língua estrangeira e a aplicação de critérios condizentes com esses
padrões na seleção dos livros a serem distribuídos pelo MEC, contribui para a garantia
da qualidade do que efetivamente acontece na sala de aula.” (SANTOS JORGE;
TENUTA, 2014:124)

“Outro princípio orientador a ser considerado diz respeito ao papel atribuído ao professor
nesse contexto. O material didá tico para o ensino de língua estrangeira tem funçã o
complementar à açã o do professor, constituindo-se como mediador pedagó gico. É este que,
a partir de sua experiência no meio de trabalho escolar, compromete-se com o
encaminhamento mais adequado para sua turma.” (BRASIL, 2015:50)

O livro didático é representado como o objeto que deve garantir o padrão de


qualidade da aula, e nesse sentido, ele teria “autoridade” do saber ao ser
utilizado, mas ao mesmo tempo, é também apresentado como um objeto que
deve ser questionado, não aparecendo como verdade absoluta que deve ser
seguida sem contestação pelo professor:

“registro da natureza da adaptaçã o efetivada nos textos (escrito e oral) e imagens,


respeitadas suas características de gênero de discurso, esfera e suporte, proporcionando
maior fidedignidade à s publicaçõ es originais;” (BRASIL, 2015:51)

Enquanto esse item do edital pode ser visto como um reforço ao olhar da
ciência de garantir fidedignidade aos textos originais e, portanto, ao LD, ele
também responde à crítica de Coracini ao pedir o registro da natureza da
adaptação dos textos utilizados, o que pressupõe a utilização de textos que
circulam no “mundo real”, e não frases isoladas e criadas para fins didáticos,
além da indicação de referências ou fontes:

10
“manifestaçõ es em linguagem verbal, nã o verbal e verbo-visual que favoreçam o acesso à
diversidade cultural, social, étnica, etá ria e de gênero manifestada na língua estrangeira, de
modo a garantir a compreensã o de que essa diversidade é inerente à constituiçã o de uma
língua e das comunidades que nela se expressam;“ (BRASIL, 2015:51)

“Quanto à s ilustraçõ es, devem: [...]

3. reproduzir adequadamente a diversidade étnica da populaçã o brasileira, a pluralidade


social e cultural do país;” (BRASIL, 2015:45)

Há, também, uma tentativa de inclusão da diversidade étnica, social, cultural,


etária, de gênero, e em outros trechos, também sexual da população brasileira
no sentido de romper com as críticas já solidificadas às representações de
padrões étnicos europeus, à valorização do homem, do heterossexual, do
branco e do rico em detrimento da mulher, do homossexual ou transexual, do
negro e do pobre. Como afirma Pennycook (2001:158), “a luta por uma
representação mais diversa de outras possibilidades pode ser vista como uma
luta por inclusão, lutando pela inclusão das mulheres em uma diversidade de
papéis, pessoas de origem social e étnicas diferentes, casais e pais gays e
lésbicos, famílias monoparentais, e assim por diante”: 12

“O que se percebe é que, se, por um lado, a adoção de bons livros didáticos por si só
não garante o sucesso no ensino e aprendizagem (RANGEL, 2007 apud. SANTOS
JORGE, TENUTA, 2014:127), nem signifique a solução de todos os problemas
relacionados à aprendizagem de LE no contexto da escola pública, por outro, a inclusão
do componente curricular língua estrangeira moderna no PNLD significa o incentivo
para a consolidação de outras políticas vinculadas à existência desse livro, tais como a
de produção bibliográfica, de projetos de formação para professores e de
fortalecimento das bibliotecas escolares.” (SANTOS JORGE; TENUTA, 2014:127)

Finalmente, embora o LD represente, ao longo do edital e de publicações que


se referem a ele, uma ferramenta essencial para a mudança na educação
brasileira, há reconhecimento por parte dos autores do artigo de que o livro
didático não garante o sucesso nas aulas do professor, na aprendizagem dos
alunos e nem mudança efetiva na educação brasileira.

12
Tradução nossa.

11
O gráfico abaixo busca representar a relação que se procurou
estabelecer ao longo desse artigo entre teoria e prática no caso das
especificações do LDI nos editais de PNLD. Os círculos em azul representam
teorias de linguagem e aprendizagem que aparecem no mesmo patamar de
teoria, embora a Análise do Discurso tenha um olhar teórico sobre a teoria da
prática da Linguística Aplicada enquanto representação discursiva, já essa
teoriza sobre a prática a partir de entrevistas, aplicação de questionários e
coletas de dados. O quadrado em amarelo, Políticas Educacionais, de formato
e de cor diferentes para representar outro setor, aparece como intermediário
por atuar diretamente na materialização das teorias na prática, no sentido de
estabelecer as regras de como a teoria será materializada. Porém, é importante
ressaltar que as Políticas Educacionais não provêm das teorias, embora sejam
influenciadas por elas e também as influenciem. Os retângulos, Livro didático
de inglês, papel do professor de inglês e papel do aluno, representam possíveis
materialidades da teoria e aparecem em verde, cor secundária, como junção e
resultado da(s) teoria(s) e das decisões políticas, que são representadas por
cores primárias.

Análise do
Discurso
Livro didático de
inglês

Políticas Papel do
Linguística
Educacionais professor de
Aplicada
(PNLD) inglês

Papel do aluno

Embora nossa análise não chegue a efetivamente trabalhar com a


prática (da sala de aula, do trabalho do professor com os outros alunos, ou com
livros didáticos aprovados), pode-se pensar em uma cadeia de teorizações

12
sobre a prática, que começa de um olhar científico sobre o discurso acadêmico
da importância do livro didático, o qual é usado para embasar medidas políticas
teóricas sobre uma possível materialização do livro didático e dos papeis que o
professor e aluno deveriam ter em relação a esse material didático. E essas
teorizações caminham, geralmente, para duas direções opostas: de um lado,
reforçam o discurso acadêmico-político sobre a necessidade do livro didático, e
do outro, desconstroem o discurso sobre a necessidade do livro didático de
viés político.

Nesse sentido, Foucault (1982), ao falar sobre a natureza do poder e as


relações de poder, explica que não há poder sem que haja a possibilidade de
resistência e escape. Sendo assim, o estabelecimento de um programa de
avaliação de livros didáticos que determina os livros que podem ser utilizados
na escola básica, justificando-se por critérios metodológicos e pedagógicos que
são apoiados por algumas abordagens da academia, tem como resistência a
essa força a análise discursiva dessas políticas educacionais e linguísticas.
Concomitantemente, o discurso da AD sobre materiais didáticos e suas
implicações na visão de professor, aluno e prática de sala de aula que, com
base em suas análises, pode acabar representando a prática de maneira
fatalista (já que nada do que se aplica é apresentado como efetivo ou coerente
com as propostas teóricas) é confrontado com algumas mudanças consoantes
com as teorias de língua, ensino e aprendizagem expostas aqui.

Embora essas forças possam parecer abstratas, Foucault (1982) discute


que o poder só existe quando pode ser exercido em alguém que tenha a
capacidade de agir e que, diante desse poder, tenha a possibilidade de reagir
ou responder a ele. Posto isto, enxergamos as relações de poder expostas
acima como ações de poder que se exercem nas ações de outros sujeitos
agentes. A ação de promulgação do edital age diretamente na ação de autores
e editores que precisam cumprir os critérios estabelecidos em suas coleções
didáticas, as quais, por sua vez, agem no trabalho do professor com seus
alunos em sala de aula e na decisão dele de seguir as propostas do livro ou
refutá-las.

13
De forma semelhante, as publicações em LA que reforçam a coerência
do programa com as propostas pedagógicas agem sobre pesquisadores e
professores que têm acesso a esse material no sentido de adotarem ou não a
proposta do governo. Principalmente porque, ao utilizar critérios de avaliação
que dialogam com pressupostos teóricos estudados na academia, o edital
adquire status de verdade científica, como afirma Foucault (2008:73), “a
verdade é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que a
produzem”, especialmente a instituição acadêmica e o Estado. O que,
consequentemente, tornaria mais difícil questionar uma medida política.
Kanavillil Rajagopalan (2005), ao falar especificamente sobre política e
planejamento linguístico, afirma ser um equívoco pensar que políticas
linguísticas sejam reguladas por descobertas e afirmações da linguística ou de
outras áreas da ciência formal. Segundo ele,

“quando alguém diz que ciência pode subsidiar ações políticas, a


ideia de subsídio precisa ser entendida com bastante reserva e consciência
das suas limitações. A ciência se guia pela razão; a política pelo bom
senso. E o bom senso político não se esgota na razão científica.”
(RAJAGOPALAN, 2005:139)

Por esse ângulo, pode-se aplicar o mesmo critério a uma política educacional
como o PNLD que, embora utilize fundamentos linguísticos, eles não deixam
de ser políticos e motivados por outros interesses além de educacionais.

Finalmente, os discursos de AD sobre a prática da sala de aula agem


diretamente sobre estudantes e pesquisadores da área de linguagens. Por um
lado, podem auxiliá-los a ter uma visão mais crítica das medidas políticas por
conta de seu viés histórico e social, e questionar, por exemplo, o papel do
professor no programa já que ele era, anteriormente, responsável por escolher
seu material didático, mas perdeu sua função para os avaliadores de
universidades públicas selecionadas pelo MEC, que seriam mais capazes de
realizar essa seleção. Essa perspectiva ajudaria a notar uma separação de
“conhecimentos”, ou, conforme Rancière ([2005] 2009:15), uma partilha do
sensível, que seria:

14
“o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo,
a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e
partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo
tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das
partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos
de atividade que determina apropriadamente a maneira como um
comum se presta a participação e como uns e outros tomam parte nessa
partilha.“

Isto é, embora haja participação do professor na escolha das coleções


didáticas, ela se restringe aos livros pré-selecionados por especialistas.
Embora Rancière não seja analista do discurso, a prática de análise dos
discursos ajuda a identificar essas questões.

Por outro lado, os discursos da AD podem desestimular a prática de sala


de aula e o estudo sobre essa prática. Longe de ignorar a relevância do olhar
sobre os discursos, importa também não repudiar uma teoria da prática.
Rajagopalan (2005) justifica a superioridade da Linguística Aplicada diante da
linguística teórica, ao lidar com questões de políticas linguísticas, e, pensamos
aqui, educacionais, no sentido de “exercer transgressões produtivas” na teoria
pensando na aplicação do mundo real. Apesar das críticas com relação à visão
de prática da Linguística Aplicada13, o esforço de fazer com que a teoria
dialogue com o mundo real pode trazer mudanças, funcionando também como
estratégia de resistência diante de livros didáticos já muito criticados.

No meio desse confronto de forças se encontra o LDI que, sem ignorar


razões políticas e históricas para estabelecê-lo como parte de uma política
pública, constitui a base e o roteiro do professor da escola pública e é, muitas
vezes, o único meio de contato do aluno com a língua inglesa. Os embates
teóricos atuam diretamente na prática de quem deseja atuar em sala de aula,
pesquisar sobre essa prática ou produzir livros didáticos que sejam mais
relevantes para a sociedade atual e mais coerentes com a forma de entender a
língua e o processo de ensino e aprendizagem.

13
Pennycook (2010:15) critica a forma como a Linguística Aplicada tem lidado com seu conceito de
prática, como o oposto à teoria. Para ele, a noção de prática não foi teorizada o suficiente. Não só o
ensino de língua, mas também a língua devem ser vistos como prática.

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Retomando Coracini, a ênfase nas teorias possivelmente se justifica pelo
desejo da completude do sujeito, que se decepciona ao olhar para a prática
que é falha e repleta de lacunas. Essas teorias se reconfiguram e se
reconstroem em novas propostas de prática(s) na tentativa suprir esses
espaços. Talvez, como afirma Pennycook (2010), seja preciso repensar a
prática como teoria no caso da Linguística Aplicada, mas do mesmo modo
repensar o trabalho com os discursos sobre a prática, que em algum momento
podem auxiliar a prática de sala de aula.

Considerações finais

Mesmo que o PNLD seja uma política linguística que ainda precise de
reformulações e pesquisas sobre seu funcionamento e que tenha implicações
políticas e históricas que já foram pontuadas por Cassiano (2007), Braga
(2014) e outros, um possível avanço seria no sentido de incentivar a produção
de livros que incluam a diversidade e a diferença, trabalhem com materiais
autênticos possivelmente mais relevantes para o aluno, incitem o
questionamento e a dúvida sobre seu conteúdo e permitam maior autonomia
ao professor no sentido de como o livro se direciona a ela/ele. Nesse sentido, o
artigo buscou problematizar como as relações entre a Análise de Discurso de
linha peuchetiana e a Linguística Aplicada poderiam ampliar nosso olhar sobre
o LDI diante desse programa. A AD contribui para uma visão não idealista do
programa, do livro e dos sujeitos participantes da relação de aprendizagem,
bem como das teorias de aprendizagem, problematizando a prática dessa
visão teórica. Em contrapartida, a LA tem um papel fundamental nas propostas
de ensino e aprendizagem que, no entanto, devem se manter sempre sob olhar
crítico e de reflexão, já que a prática é o lugar da não fixidez, da incompletude
e, evidentemente, do ser humano.

Bibliografia e Referências bibliográficas

16
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