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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Faculdade de Direito

Princípios jurídicos e regulação

Othon de Azevedo Lopes


São Paulo
2011
2

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Pós-Graduação Stricto Sensu
Doutorado em Filosofia do Direito

Princípios jurídicos e regulação

Tese a ser apresentada em banca no Programa de Pós-


Graduação da Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, na
área de concentração de filosofia do direito, como
requisito parcial, para a obtenção do título de Doutor
em Direito.

Autor: Othon de Azevedo Lopes


Orientador: Prof. Dr. Antônio Carlos Mendes
São Paulo-SP
2011
3

Othon de Azevedo Lopes

Princípios jurídicos e regulação

Tese a ser apresentada em banca no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de


Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, na área de
concentração de filosofia do direito, como requisito parcial, para a obtenção do título
de Doutor em Direito.

BANCA

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São Paulo
2011
4

À memória do meu irmão.


À memória do meu pai.
À minha mãe.
5

Agradecimentos

Ao amigo de longa data Márcio Iório Aranha

Ao amigo Francisco Ribeiro Todorov

À Ana Frazão

Ao Professor Paulo de Barros Carvalho

Ao Professor Antônio Carlos Mendes

Ao Professor Ademir Araújo Filho


6

Ora, onde mora o perigo


é lá que também cresce
o que salva
(Hölderlin)
7

Resumo: 1) Justificativa: o produtivismo contemporâneo valorizou o saber exato e


determinado em lugar de um conhecimento fluido e aproximativo. No âmbito do
direito, isso fez com que regras normalizadoras e entes autônomos para atender
necessidades técnicas de produção de utilidades públicas aflorassem no âmbito do
Estado Regulador. A configuração técnica e burocrática das agências reguladoras não
é garantia de legitimidade de suas decisões. Sua independência e sua neutralidade
vinculam-se principalmente à dinâmica do sistema econômico que objetiva, como
prestação, a certeza e a segurança referentes aos contratos e à propriedade alocados no
setor. São garantias de que a economia demanda ao sistema político-burocrático para
se engajar no dispensamento eficiente de utilidades de interesse público. O influxo de
imperativos do sistema econômico exigiu como prestação indispensável, por parte do
direito, uma capacidade normativa de conjuntura que não pode ser fornecida pelos
instrumentos clássicos do processo legislativo, dado o tempo de sua maturação e não
especialização. O que se tem nesse caso são demandas sistêmicas cognitivamente
absorvidas pelo direito, resultando em nova estruturação, que acabou criando novos
locais de produção normativa com sentido inovador para atender às necessidades de
uma sociedade crescentemente especializada e de um Estado com fortes missões
compensatórias. Todavia, em razão dos riscos e potenciais de coerção envolvidos na
regulação, não há sentido para se atribuir ao Executivo um poder amorfo e de difícil
controle. 2) Objetivos: há necessidade de delimitação da competência regulatória,
abrangendo: limites, conformações e diretrizes, assim como sua legitimação. 3)
Aspecto teórico metodológico: a regulação, pela especificidade dos bens e serviços
demandados e pela tecnicidade de sua produção, sob o ponto de vista hermenêutico-
filosófico, vale-se de uma linguagem especializada que pretende univocidade dos
signos e de sua sequência. Os princípios têm raízes na linguagem natural,
descortinando um mundo de vivências não encerráveis no mero cálculo e
propiciadores de um entendimento pelos indivíduos que os coloque além dos papéis
sociais restritos de clientes e consumidores. É marca da regulação a exacerbação do
tecnicismo e do economicismo. 4) Hipótese: O direito, visto sob uma feição
principiológica, suplanta a rigidez dos sistemas de conhecimentos de inspiração
matemática e conquista a unidade da razão no campo da formação de canais que
discursivamente em linguagem natural buscam estruturar o consenso social e conquista
legitimidade. 5) Síntese conclusiva: o direito é capaz de converter a razão calculadora
vinculada a conceitos precisos e determinados numa razão reflexiva efetuada por meio
de juízos. A possibilidade de transformar o saber da ciência e da técnica num
conhecimento prudencial e filosófico contido nos princípios fundamenta e legitima o
direito. De outro lado, é o sistema lógico-operativo de regras que possibilita ao direito
acoplar-se à economia e ao poder político-administrativo, produzindo comunicações
por eles assimiláveis com influência nos códigos específicos de uma Administração
regulada pelo poder e de um mercado regulado pelo dinheiro. Daí a possibilidade de o
direito traduzir expectativas do mundo da vida para esferas sociais sistemicamente
constituídas.

Palavras-chaves: princípios, regras, regulação, Estado de Direito, técnica, ciência,


economia, burocracia, legitimação
8

Abstract: 1) Reasons: The roots of independent authorities and regulation in the


regulatory state lie within the influence of the contemporary productivism on law, as it
brought forth a precise knowledge that displaced a more fluid and approximate one.
The techno-bureaucratic structure of the regulatory authorities does not guarantee,
though, the legitimacy of their decisions. Their independence and neutrality pay tribute
mainly to the economic system dynamics, which aims at assuring property and
contract rights in a given sector. Those rights are necessary for the political
bureaucratic system to render public interest utilities in a more effective way. The new
set of demands from the economic system led to crescent rule-making power in the
Executive branch due to the inability of the classical deliberative legislative process to
deal with issues that depends upon rapid and specialized decisions. Systemic demands
have been absorbed by the law, resulting in a new framework that created new
structures of rule-making process to face the needs of a society increasingly
specialized and a state that carries on a strong compensatory mission. In spite of that,
the risks and potential coercion involved in regulation point out to the danger of
attributing to the Executive branch an amorphous and curbless power. 2) Aims: it is
imperative to limit the regulatory institutional endowments that encompass three
dimensions: limits, conformations, guidelines and legitimation. 3) Theoretical aspect:
due to the specific services and goods demanded, and the technical characteristics of
the issues involved, from the point of the filosophical hermeneutics, the regulation
makes use of a specialized and unambiguous language. Principles have their roots in
the natural language, which opens up a world of experiences not possible to be
translated into formulas and able to create a more complex social relation that
surpasses a consumer-oriented social role. It is a distinctive sign of the regulation to
overestimate the economic and technical aspects. 4) Hipothesis: legal principles go
beyond the rigidity of the mathematical-based systems of knowledge, and bring unity
to the rationale of social consensus through the use of natural language. From the
perspective of principles, it is possible to curb the technicism and bureaucratic
excesses of the plethora of rules in each sector regulated by agencies, opening up a
space of legitimacy and allowing for a unified perception of the regulatory
phenomenon. 5) Conclusive synthesis: principles turn the mathematical rationale
dependent on precise concepts into a reflexive rationale fulfilled through
adjudications. Principles underpin and legitimate the law by transforming a technical-
scientific knowledge into a prudential and philosophical knowledge. On the other
hand, a legal logical system makes the structural coupling between law, economics and
political power possible, as it conveys recognizable messages that influence specific
codes of an agency regulated by political power, and a market regulated by money.
The relation between principles and regulation thus conceived makes the translation of
mundane expectations into specialized and systemic social spheres possible.

Keywords: principles, rules, regulation, rule of law, technology, science, economics,


bureaucracy, legitimacy.
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Sumário

Introdução.................................................................................................................................12
1.º Capítulo – A questão da regulação, da legalidade e dos princípios e de seus fundamentos
teóricos .....................................................................................................................................16
1.1 A crise das ciências e da técnica.....................................................................................18
1.2 Os pressupostos teóricos................................................................................................21
1.2.1 O horizonte linguístico como condição de possibilidade do conhecimento...........24
I.2.2 A linguagem e os sistemas de conhecimento ..........................................................27
1.3 A questão do legalismo e do normativismo ...................................................................32
1.4 O dever para além do positivismo e a crise do legalismo e emergência da regulação ...37
1.5 O direito como mediador/tradutor entre o mundo da vida e os sistemas do poder
administrativo-burocrático e da economia ...........................................................................46
1.6 O saber e a teoria no direito: para além da técnica e da ciência .....................................51
2.º Capítulo – A crítica da regulação ........................................................................................57
2.1 A irrupção da regulação..................................................................................................57
2.2 Noções sobre a regulação ...............................................................................................59
2.3 A gênese do legalismo e da regulação............................................................................63
2.3.1 O Estado Burguês Absolutista.................................................................................64
2.3.2 O Estado Burguês de Direito ...................................................................................68
2.3.3 O Estado Democrático de Direito............................................................................70
2.3.4 O Estado Social .......................................................................................................73
2.3.5 O Estado Social e Democrático de Direito..............................................................78
2.4 A perplexidade da regulação nos marcos do Estado Democrático de Direito................81
2.4.1 Os limites do texto constitucional para a regulação ................................................81
2.4.2 O embate entre o Estado Democrático de Direito e a regulação .............................83
2.4.3 O conflito entre o princípio da legalidade e a atividade regulatória........................85
2.5 O deslocamento do poder de produção normativa .........................................................87
2.5.1 A gênese da regulação .............................................................................................88
2.5.2 Soberania e poder disciplinar ..................................................................................90
2.6 Regulação e economia ..................................................................................................100
2.6.1 Teorias da regulação sob o ponto de vista econômico ..........................................100
2.6.1.1 Teoria do interesse público.............................................................................101
2.6.1.2 Teoria da captura ............................................................................................102
2.6.1.3 Teoria econômica da regulação ......................................................................103
2.6.2 Instrumentos de regulação .....................................................................................105
2.6.3 Concentração econômica e decisão democrática...................................................107
2.7 Regulação e técnica ......................................................................................................111
10

2.8 As agências reguladoras e a sua legitimação................................................................120


2.9 A regulação autorizada e seus riscos ............................................................................123
3.º Capítulo – A distinção entre princípios e regras ...............................................................133
3.1 Os princípios jurídicos e seus direitos ..........................................................................135
3.1.1 Os direitos, os deveres e a dignidade da pessoa humana.......................................135
3.1.2 A crítica ao modelo de deveres e direitos do positivismo .....................................136
3.1.3 Os princípios, as diretrizes políticas e as regras ....................................................137
3.1.4 A discrição.............................................................................................................140
3.1.5 A vinculatividade dos princípios ...........................................................................140
3.2 Os casos difíceis ...........................................................................................................143
3.2.1 Os princípios e as diretrizes políticas ....................................................................145
3.2.2 A tese dos direitos .................................................................................................146
3.2.3 Os direitos constitucionais.....................................................................................148
3.2.4 Os direitos levados a sério .....................................................................................149
3.2.4.1 O direito de desobedecer a leis e a normas administrativas? .........................151
3.2.4.2 Os direitos controversos .................................................................................155
3.3 Os princípios e a integridade ........................................................................................158
3.3.1 A legitimidade .......................................................................................................161
3.3.2 A fraternidade e a comunidade política.................................................................162
3.3.3 A integridade no direito.........................................................................................164
3.3.3.1 A cadeia do direito..........................................................................................165
3.3.4 A integridade e as leis............................................................................................168
3.3.5 A integridade e a Constituição ..............................................................................170
3.3.6 A integridade e a regulação autorizada..................................................................173
3.3.7 Ainda sobre o direito como integridade ................................................................176
3.4 A moral e a indeterminação dos princípios jurídicos ...................................................177
3.5 Os critérios distintivos entre princípios e regras ..........................................................179
3.5.1 O conteúdo.............................................................................................................180
3.5.1.1 As teorias distintivas fortes e as débeis ..........................................................180
3.5.1.2 A matéria ........................................................................................................182
3.5.1.3 A capacidade de explicação e a de justificação ..............................................182
3.5.1.4 O compromisso histórico................................................................................183
3.5.1.5 O caráter constitutivo e o constitucional ........................................................184
3. 5.1.6 A interação.....................................................................................................184
3.5.1.8 A linguagem ...................................................................................................185
3.5.2 A identificação.......................................................................................................185
3.5.2.1 A origem .........................................................................................................185
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3.5.2.2 A validade.......................................................................................................186
3.5.2.3 A especificação...............................................................................................187
3.5.2.4 A derrogação...................................................................................................187
3.1.2.5 A localização ..................................................................................................187
3.5.2.6 A demonstração ..............................................................................................188
3.5.2.7 A fundamentação............................................................................................188
3.5.3 A sintaxe................................................................................................................189
3.5.3.1 A estrutura lógica............................................................................................189
3.5.3.2 A colisão .........................................................................................................189
3.5.3.3 A sanção .........................................................................................................190
3.5.3.4 A completude do ordenamento.......................................................................190
3.5.4 A aplicação ............................................................................................................191
3.5.4.1 A determinação...............................................................................................191
3.5.4.2 Os tipos de razões ...........................................................................................191
3.5.4.3 A carga argumentativa....................................................................................192
3.5.4.4 O cumprimento ...............................................................................................192
3.5.4.5 As funções ......................................................................................................192
3.6 A regulação entre princípios, diretrizes políticas e regras............................................193
4.º Capítulo – Os princípios e a crítica da regulação aplicados a casos .................................200
4.1 O diploma de jornalismo e a proibição da regulação da profissão ...............................203
4.1.2 O caso conforme os princípios, os direitos e a crítica à regulação ........................208
4.2.1 O caso ....................................................................................................................211
4.2.2 O caso conforme os princípios, os direitos e a crítica à regulação ........................213
4.3 A qualificação do poder normativo dos entes reguladores como poder de polícia ......215
4.3.1 O caso ....................................................................................................................215
4.3.2 A regulação e o poder polícia ................................................................................216
4.3.2.1 O poder de polícia...........................................................................................216
4.3.3 A economia, a moral política e o direito na regulação ..........................................218
4.4 A ortotanásia.................................................................................................................220
4.4.1 O caso ....................................................................................................................221
4.4.1.1 A exposição de motivos, os consideranda e a Resolução CFM n.º 1.805/2006
....................................................................................................................................221
4.4.1.2 A decisão de tutela liminar e a sentença na ação civil pública n.º
2007.34.014809-3.......................................................................................................223
4.4.2 O caso conforme os princípios, os direitos e a crítica à regulação ........................226
Conclusão ...............................................................................................................................228
Bibliografia.............................................................................................................................243
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Introdução

A emergência da regulação como fenômeno de destaque nas instituições


jurídicas, políticas e na burocracia lança inequivocamente desafios para o Estado
Democrático de Direito. O volume de produção normativa estatal e seu crescente
deslocamento para âmbitos da Administração assinalam a necessidade da revisão e da
ressignificação não só do aparato jurídico-administrativo, mas principalmente do saber
jurídico.
A legalidade, na sua configuração clássica oriunda do Estado de Direito,
mostra como garantia constitucional seu esgarçamento, principalmente quando
defrontada com a regulação. A soberania popular que se manifesta precipuamente
pelos parlamentos, formando um eixo de conexão entre a vontade dos cidadãos e a
vontade estatal – vazada em leis formais, abstratas, genéricas, impessoais e oriundas
do processo legislativo – revela-se acanhada para o controle da atividade regulatória.
Em outras palavras, o controle procedimental e formal ínsito à legalidade e
à proeminência da lei não são adequados para frear, moldar e justificar a volúpia
regulatória oriunda de uma sociedade complexa que clama às instituições jurídico-
políticas por constantes prestações de normalização. A tarefa empreendida a partir
desses pressupostos é semelhante a verter o conteúdo de um oceano numa piscina.
Se há uma movimentação do poder normativo, e com ele das forças de
coerção e dominação estatais, sem dúvida surgem questões que exigem novo
instrumental e nova ótica de enfrentamento. Uma teoria jurídica apoiada em discursos
hierarquizantes e verificações de validade, preocupada com definições de pertinência
formal ao ordenamento jurídico, está com a sua capacidade de rendimento esgotada
em face dos difíceis problemas de validação e posicionamento normativo dos atos
editados pelos entes reguladores, que não raro se situam numa zona cinzenta de
conformação material aos limites legais.
Noutra frente, a regulação significa uma inundação de discursos
normalizadores, resultantes da pressão dos sistemas econômico, político-burocrático e
de seus instrumentos técnico-científicos. O resultado é que esferas sociais de vivência
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indiferenciadas acabem comprimidas e afogadas por regramentos que lhes são


completamente estranhos e ininteligíveis por sua origem em discursos especializados.
É a instauração de um claro conflito entre a linguagem natural, de um lado, e de outro
as linguagens técnicas e especializadas.
Disso resulta que outros horizontes do saber jurídico e da análise social
devem ser explorados. A regulação é a irrupção de poderes oriundos de discursos
técnico-científicos para a satisfação de imperativos burocráticos e econômicos. Então,
para o seu enfrentamento, o discurso jurídico deve ser impulsionado para além da
técnica e das ciências modernas, reposicionado como estruturante de um sistema de
conhecimento e ação que se articula a partir de outras virtudes intelectuais, como a
prudência e a filosofia.
Até porque ao direito lança-se um intrincado desafio, que é o de manter
discursos normativos que construam sentidos para indivíduos não detentores de saber
especializado. Isso resulta da ideia de dever que exige a possibilidade de compreensão
dos conteúdos conformadores de conduta. O sobrecarregado discurso especializado
das regras com estrutura hipotético-condicional não é intelectível para o indivíduo, que
em verdade vira objeto desse direito tecnicizado. Assim, se o direito deseja transcender
a mera força e a coerção, não pode simplesmente naturalizar uma contínua e volumosa
produção de regras sem prestar contas aos papéis sociais universalizantes de pessoa,
indivíduo e cidadão. Não há dúvida de que se trata de tarefa difícil e complicada.
Todavia, é possível recolher material armazenado nos vários âmbitos das
instituições jurídicas, para construir uma rede condutora de sentido que permita a
tradução dos discursos especializados para os discursos sociais indiferenciados. Isso
exige um reposicionamento na teoria jurídica da linguagem natural e dos princípios
jurídicos como eixos de formação dessa malha social de comunicação.
Como se vê, o cenário aqui exposto é de crise, com um difícil diálogo entre
as instituições legadas pelo “Estado de Direito” e pelo “Estado Democrático de
Direito” opondo-se ao “Estado Social” e ao “Estado Regulador”. A necessidade de
produção de prestações compensatórias para a amenização das debilidades sociais por
esses dois últimos paradigmas confronta-se com as garantias formais dos primeiros,
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resultando num déficit de legitimação proveniente do hermetismo da crescente


produção regulatória.
O caminho para entender a tensão inerente a essa crise foi o de primeiro
explicitar os seus pressupostos sociais e teóricos, colocando-se em destaque a forte
crítica empreendida contra os legados da modernidade por filósofos como Husserl,
Heidegger e Habermas, entre outros. O saber, com o fracionamento das ciências, ter-
se-ia degradado num mero cálculo e previsão produtivistas, retirando o sentido da
autonomia e da liberdade no mundo tecnológico, com a objetivação dos indivíduos e
das relações sociais.
A regulação é o reflexo culminante desse processo no âmbito do direito. Ela
é, de certo modo, o resultado da constituição de sistemas sociais como a economia e o
poder administrativo-burocrático, que se reproduzem de forma autônoma a partir do
dinheiro e do poder. O direito é instrumentalizado por esses sistemas para produzir
regras especializadas de normalização. A questão que se põe aí é uma
descaracterização das vivências sociais indiferenciadas baseadas em linguagem
natural, com a redução do papel de cidadão ao de um mero cliente ou consumidor de
bens fornecidos pelo Estado ou pelo mercado. É esse o tema do primeiro capítulo.
Seguindo a linha condutora da primeira parte do trabalho, o segundo
capítulo faz uma crítica da regulação. A opção não foi por uma abordagem descritiva
ou neutra do fenômeno. A regulação é uma fissura nas estruturas e instituições
jurídicas clássicas que submete a sociedade a uma sobrecarga de normatização sem
contar com a legitimação por meio do sufrágio. Ela revela uma movimentação dos
focos de coerção dentro das instituições jurídicas e políticas para acompanhar
imperativos dos sistemas econômico e político-burocrático. Embora constitua um
fenômeno inerente à sociedade complexa com seus âmbitos especializados e a seus
modos sistêmicos de integração, o poder regulatório é um desafio para o Estado
Democrático de Direito em termos de limitação e legitimação.
O terceiro capítulo procura densificar vias para o controle e a
fundamentação das competências regulatórias em termos de Estado Democrático de
Direito. A proposta aí assumida é a de que a distinção entre regras, princípios e
diretrizes políticas, bem como a explanação de sua inter-relação fornece elementos
15

para constituir um canal que permita reposicionar a atividade de produção de regras na


Administração, ao referi-la a uma constelação principiológica com alta capacidade
integradora e legitimatória.
Por último, o quarto capítulo preocupa-se com a regulação como questão de
razão prática, em que é imprescindível discutir espaços de liberdade e emancipação,
levando em consideração casos, especialmente os submetidos ao Judiciário. Assim, os
precedentes selecionados buscaram dar significação concreta ao excurso teórico,
focados a partir dos seus pressupostos, da crítica à regulação e da distinção entre
princípios e regras.
Em verdade, esse desenvolvimento do trabalho procurou situar o tema
numa dimensão reflexiva mais do que dar respostas fechadas sobre a relação entre
princípios e regulação. Não há no trabalho a ingenuidade da constituição de uma
sociedade que possa prescindir da técnica, da ciência, da burocracia ou mesmo da
regulação. As soluções inerentes à sociedade complexa estão nesses âmbitos que lhes
são constitutivos. Todavia, por sua natureza redutora e instrumentalizadora, todas
essas realidades implicam riscos.
É nesse ponto que se inicia a grande questão de como transcender esses
perigos inevitáveis. A resposta não é pronta e acabada, mas uma busca em que se está
disposto a pôr entre parênteses supostas verdades e certezas oriundas da ciência que
apoiam a racionalidade tecnológica. Não se trata de uma procura desorientada, pois
seu eixo está numa comunidade de princípios em que não existem respostas prontas, e
sim uma abertura institucional constante para decisões jurídicas que possam articular
com juízos de moral política um futuro melhor a partir do discurso dos direitos.
16

1.º Capítulo – A questão da regulação, da legalidade e dos princípios e de seus


fundamentos teóricos

O ideal de saber que se afirmou na Modernidade substitui um mundo


consideravelmente aproximativo, fluido, incompleto, por um que busca ser exato,
inteiramente determinado1. Foi a partir desse contexto que o direito da sociedade
contemporânea organizou-se, assumindo o paradigma instrumental teórico das ciências
modernas, que têm caminhado passo a passo com sua aplicação tecnológica.
No entanto, essa conformação epistêmica em que se valoriza o
conhecimento preciso sobre um objeto delimitado artificializa e controla âmbitos de
vivência social, dando lugar a um fenômeno denominado por pensadores como
geometrização do mundo da vida (Edmund Husserl2) ou colonização/tecnicização do
mundo da vida3 (Jürgen Habermas4). Isso aliado à crescente demanda das atividades
técnicas por produção normativa de padrões pelo direito na criação de marcos
regulatórios assinala que o direito e a política defrontam-se com uma necessidade de
produção formal de decisão e normalização que não raramente fortalece o sequestro
que os sistemas especializados exercem sobre âmbitos de vivência regidos pela
linguagem natural, como por exemplo relações de família ou de cidadania.
Ao lado da produção de regras, normas dotadas de estrutura com hipóteses
e consequências, dentre outras características, o direito formou-se e se reproduz a
partir de princípios jurídicos marcados pela abertura, pela plasticidade, pela
comunicabilidade e pela indução de consenso em razão de sua pretensão de
universalização.

1
GANDT, François. Husserl et Galilée – sur la crise des ciences européenens. Paris: Vrin, 2004, p. 13.
2
HUSSERL, Edmund. La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. Paris:
Gallimard, 2004.
3
Uma noção do que é o mundo da vida para Habermas pode ser extraída do seguinte trecho (HABERMAS,
Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II. Madri: Taurus, 2001, p. 194): No meu entender, a análise da forma
dos enunciados narrativos, um dos quais pioneiros foi A. C. Danto, e a análise da forma dos textos narrativos,
constituem um ponto de partida metodologicamente fecundo para a clarificação desse conceito “profano” de
mundo da vida que se refere à totalidade dos fatos socioculturais e que oferece, portanto, um ponto de
abordagem para a teoria da sociedade. Tradução livre, como em todas as citações na presente tese.
4
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II. Madri: Taurus, 2001, p. 395 e seg.
17

Se a linguagem especializada da ciência e da técnica jurídica distancia os


cidadãos do direito, principalmente vinculada a um sistema de regras, os princípios
jurídicos, pela sua proximidade da linguagem natural e do mundo da vida, possibilitam
estabelecer uma conexão entre o saber técnico-científico e cada um dos indivíduos,
bem como protegê-los contra abusos oriundos da técnica e da ciência. Na regulação, os
princípios criam acessos que suavizam o tecnicismo e os excessos burocráticos da
pletória normativa de cada setor fiscalizado e controlado por entes estatais. Embora
ainda seja precoce uma definição de regulação no presente trabalho, é possível
compará-la a um nó em que se identificam ao menos quatro cordões:
1) padrões de comportamentos que deveriam ser adotados por atividades
especializadas. Em inglês, esse sentido já era observado desde a Idade
Média para os profissionais liberais5;
2) atividade estatal que visa a suprir falhas de mercado6, sentido forte desde
o séc. XIX;
3) conjunto de medidas legislativas, administrativas e convencionais de que
se vale o Estado para delimitar a livre iniciativa e garantir a concorrência
para consecução de direitos sociais7;
4) oferta de um bem ou serviço de interesse público (public utilities) que,
em geral, exige capital e tecnologia intensivos.
O vocábulo regulação traz dentro de si uma tensão entre esses sentidos que
remetem a uma relação entre sistema político-burocrático, economia, direito, ciência e
técnica. A atividade regulatória é, portanto, um ponto sensível na relação do direito
com essas outras esferas. Dado isso, o objeto do trabalho será a exposição de uma
proposta de solidificação de um canal de princípios jurídicos como forma de evitar o
excessivo fechamento da regulação em torno de regras que favorecem a
tecnização/colonização do mundo da vida.

5
MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. A regulação como instituto jurídico. In: Revista de Direito Público da
Economia. Belo Horizonte: Fórum, n.º 4, pp. 183 e seg., out/dez, 2003.
6
JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p.
31.
7
ARAGÃO, Alexandre. As concessões e autorizações e o poder normativo da ANP. Revista de Direito
Administrativo, n..º 282. Rio de Janeiro: Renovar, p.262.
18

O cenário de reflexão do presente trabalho, porém, é de crise e de conflito


entre paradigmas. Por isso, a abordagem do tema terá como foco inicial, após a
exposição de pressupostos teóricos, a exposição das raízes dessa crise e também a
formulação de uma crítica aos elementos e acontecimentos subjacentes à regulação
como problema da sociedade complexa e do Estado Democrático de Direito.

1.1 A crise das ciências e da técnica

No começo do século XX, especialmente nas décadas de 20 e 30, ganhou


força na Alemanha um movimento de forte crítica à modernidade, especialmente ao
industrialismo, ao cientifismo, ao positivismo e ao tecnicismo8. Dois de seus principais
filósofos, Husserl e Heidegger, dedicaram várias obras ao tema9.
Husserl criticou a ciência moderna pela sua autonomização e, por
conseguinte, seu desligamento da unidade do saber. As sucessivas reduções que
acompanharam tais ciências as degradaram num saber-fazer de mero cálculo e
previsão desvinculados de sentido para o homem. É no mundo da vida, no qual o
conhecimento desconhece fronteiras e respeita o vago e o movimento contínuo do
experienciar, que se situa o verdadeiro saber10.
Heidegger, por sua vez, chamou a atenção para o pouco sentido que a
autonomia e a liberdade individuais têm no mundo tecnológico, em que indivíduos
tornam-se algarismos indistintos11, totalmente entregues à disposição12 de uma vontade
de poder. Nesse mundo, a produção seria inautêntica, transformando-se o trabalho em
mera reprodução.

8
É esse o contexto exposto por Michael E. ZIMMERMAN. Confronto de Heidegger com a modernidade.
Lisboa: Instituto Piaget, 1990.
9
Entre as obras de Husserl pode-se citar Meditações cartesianas (HUSERL, Edmund. Meditações cartesianas.
Trad. Frank de Oliveira. São Paulo: Madras, 2001) e A Crise das ciências européias e a fenomenologia
transcendental (HUSSERL, Edmund. La crise des sciences européenes et la phenomenology transcendantale.
Paris: Gallimard, 2004). De Heidegger: A questão da técnica (In HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências.
Petrópolis: Vozes, 2002).
10
GANDT, François. Husserl et Galilée. Sur la crise des sciences européenes. Paris: Lirairie Philosophique J.
Vrin, 2004.
11
ZIMMERMAN, Michael. Confronto de Heidegger com a modernidade. Lisboa: Instituo Piaget, 2001, p. 35.
12
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 28.
19

De igual modo, a ciência moderna ter-se-ia enclausurado numa teoria do


real13, que situa objetos operantes e operados para um processo produtivista e numa
atitude terrivelmente intervencionista. O objetivismo, o determinismo e o
produtivismo distanciaram a ciência do que é digno de ser perguntado, assim como de
um modo de produção que buscava ideais transcendentais como a justiça, a verdade e
a beleza, a tekné (técnica) da Antiguidade.
Ao contrário da Antiguidade, em que a produção técnica pressupunha além
da habilidade artesanal, o fazer das grandes artes e das belas artes14 como algo
poético15, a técnica moderna é uma produção que visa à exploração e ao
armazenamento de possibilidades, processando utilidades ao abrir e expor bens para
promover o máximo rendimento possível com o mínimo de gasto.16 Nessa ordem de
ideias, homem e instrumentos compõem-se, reduzindo o conhecer, a busca de verdade
e liberdade à disponibilidade e ao desafio da exploração utilitária. É aí que reside o
perigo.
Perigos e exacerbações do pensamento moderno expostos por esses autores
forneceram temas para reflexões de filósofos como Gadamer, Hannah Arendt17 e
Habermas. Habermas, em especial, produziu vasta bibliografia relacionada com tal
reposicionamento da ciência na sociedade contemporânea e também uma obra sobre o
direito denominada “Faticidade e Validade”18.

13
Idem. Ibidem. p.42.
14
Idem. Ibidem, p. 17.
15
É interessante destacar que a poesis da Antiguidade era algo mais amplo do que se concebe atualmente,
abrangendo mais do que juízos estéticos. Nesse sentido, Aristóteles (ARISTÓTELES. A poética clássica. Trad.
Jaime Bruna. 12ª Ed. São Paulo: Cutrix, 2005, pp. 21 e 22): Parece de modo geral, darem origem à poesia duas
causas, ambas naturais. Imitar é natural ao homem desde a infância e nisso se difere dos outros animais, em ser
o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos pela imitação – e todos têm o prazer em
imitar...
Outra razão é que aprender é sumamente agradável não só aos filósofos, mas igualmente aos demais homens,
com a diferença de que a estes em parte pequenina...
Desses trechos, extrai-se que é ínsito à poesia da antiguidade uma representação (imitação) que gera aprendizado
e esse aprendizado prazer.
16
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p.19.
17
Dentre outros: A condição humana. Lisboa: Relógio d’Água, 2001 e La crise de La culture. Trad. Patrick
Lévy. Paris: Gallimar, 1972.
18
HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed.,
2001.
20

Já no direito, especificamente, a via mais larga para a crítica ao


cientificismo e ao positivismo foi aberta por Dworkin em 196719 com o texto “É o
direito um sistema de regras” que fornece alguns rudimentos teóricos para situar as
questões aqui abordadas. O eixo central de seu ataque foi a exposição da distinção
entre princípios e regras. Para Dworkin, os princípios não podiam ser encaixados nos
sistemas positivistas de regras. Os princípios operavam de forma completamente
diferente das regras, não podendo, por sua dimensão de peso, submeterem-se às regras
de reconhecimento como teste para analisar sua integração ao sistema jurídico.
Os princípios eram, então, standards a serem observados como
requerimento de justiça e equidade ou outra dimensão moral. De um lado, as regras
são aplicadas no tudo ou nada, de forma que ou são inválidas ou se constrói uma
exceção. De outro, os princípios não determinam isoladamente a decisão, tendo uma
dimensão de peso, o que se demonstra com a colisão de princípios em que o de peso
maior se sobrepõe ao outro sem perder sua validade.
Essa distinção de Dworkin remete a duas concepções distintas de direito.
Uma primeira na qual o direito é um sistema de regras em que a objetividade, o
cálculo e a certeza dominam. Uma segunda em que o direito é um conjunto de
princípios marcado pela fluidez, pela abertura, pela imprecisão e por juízos também de
ordem moral, filtrados pelas instituições jurídicas.
O pensamento de Dworkin é fortemente influenciado pela hermenêutica
filosófica, especialmente por Gadamer, o que assinala uma conexão entre as críticas
entabuladas por Heidegger e Husserl à ciência e à técnica modernas e à teoria pós-
positivista de Dworkin no direito. Enquanto aquelas duas conformam um saber
distante do indivíduo por sua especialização, a abertura e a imprecisão inerentes aos
princípios atuam no direito aproximando-o do homem situado no mundo da vida como
esfera indiferenciada de vivência, em que o conhecimento ultrapassa os limites
ingênuos da objetividade. A superação de tais fronteiras não traz apenas incerteza ao
saber, mas sim possibilita a concepção de uma razão que não admite nenhuma

19
DWORKIN, R. M. Is Law a system of rules? In: DWORKIN, R. M. The Philosophy of Law. Oxford/Nova
Iorque: Oxford University Press, 1977.
21

separação em prática, teórica, estética20 dando-lhe um sentido pleno e global num


horizonte aberto ao perguntar.
Os princípios jurídicos conformam um modo de raciocinar que permite à
técnica e à ciência, inclusive a jurídica, assumir significado perante os indivíduos. O
direito, ao mesmo tempo em que se organiza como sistema sincrônico objetivo de
regras, de inspiração lógico-matemática, também apresenta a feição diacrônica de uma
comunidade de princípios em que se privilegia uma dimensão reflexiva do saber.
No universo da regulação há uma sobrecarga de dados e informações e uma
pretensão de organizá-los num marco regulatório, que nada mais é que um sistema de
regras dispostas a partir de saberes técnico-científicos com clara finalidade de garantir
os mercados e seus pressupostos de segurança nos contratos e na propriedade como
modo de produzir e disponibilizar utilidades públicas. Os princípios são um claro
contraste com toda essa disposição produtiva, formando um canal de comunicação
universalizável, mais próximo do cidadão e em que necessariamente, por sua
vaguidade, inserem-se debates de moral política.

1.2 Os pressupostos teóricos

A concepção teórica e metodológica da presente tese apoiar-se-á


basicamente na hermenêutica filosófica, sem dispensar abordagens que tenham
potencial crítico em relação ao tema. Em consequência, a atitude básica a ser assumida
será a de compreensão de fenômenos sociais linguisticamente mediados e resultantes
de uma construção histórica.
Noutro aspecto, a sociedade complexa é o cenário da investigação. Então,
levar-se-á em consideração que atualmente existem esferas colonizadas da linguagem
natural e do mundo da vida em que se reproduzem sistemicamente interesses21. Assim,
a perspectiva hermenêutica do trabalho será complementada por uma abordagem

20
HUSSERL, Edmund. La crise des sciences européenes et la phenomenology transcendantale. Paris:
Gallimard, 2004, p. 305
21
HABERMAS . Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001, p.
120.
22

sistêmica da sociedade, fundamentalmente com base na obra de Habermas e com


alguns aportes de Luhmann, que embora sejam marcos teóricos diferentes, podem ser
trabalhados de forma sinérgica.
Em função dos conflitos e tensões estruturais da mobilidade da distribuição
do poder normativo e de normalização nas estruturas estatais, será valiosa a
abordagem externa da linguagem como discurso que estrutura um jogo dinâmico de
dominação social. Com isso, na parte crítica do trabalho lançar-se-á mão da
abordagem genealógica de Foucault.22 Isso, no entanto, não significa uma adoção
definitiva dessa teoria, mas simplesmente sua incorporação como método de exposição
e como um degrau a ser superado, um obstáculo a ser removido, já que o compromisso
fundamental e final adotado como marco teórico é o da hermenêutica filosófica.
De igual modo, a perspectiva teórica adotada na tese não implica abandono
do aparato metodológico construído a partir da ideia moderna de ciências. De maneira
alguma se pretende transformar a tensão assinalada por Gadamer no título de sua
principal obra “Verdade e Método” em uma oposição absoluta e excludente em que a
busca da verdade opõe-se à concepção de método da Modernidade23. O próprio
Gadamer esclarece que jamais pretendeu refutar a concepção moderna de ciência, mas
sobretudo indicar os limites insuperáveis que essa encontra na sua pretensão de
certeza e objetividade24.
A partir dessa abordagem não se ignora, neste trabalho, a preocupação
metodológica imposta por um discurso científico que é fruto da modernidade. Por isso,
constitui parte do enfrentamento teórico de pesquisa o tratamento da ciência e da
técnica a partir do instrumental analítico constituído para o estudo dos sistemas na
sociedade contemporânea.

22
A bibliografia e a exposição dos pressupostos teóricos da genealogia serão abordados especificamente no
capítulo 2.
23
GADAMER, em Metafísica e Filosofia Pratica in Aristotele. Milão: Guerini e Associati, 2000, p. 64, explica
que a tensão entre verdade e método refere-se a outra polaridade que remete às diferentes concepções de ciência
pré-moderna e moderna, ou seja, de verdade e certeza. Enquanto que a concepção moderna de ciência busca a
certeza, a filosofia, em uma perspectiva hermenêutica, procura a verdade, como uma forma de liberdade
(errância) que se caracteriza como uma abertura para a coisa (HEIDEGGER. Sobre a essência da verdade. Trad.
Carlos Morujão. Porto: Porto Editora, 1995, p.55), o que leva a um incessante diálogo.
24
GADAMER (Op. cit. p. 64).
23

Todavia, a aproximação hermenêutica adotada na pesquisa impede a


redução de sua racionalidade às formas e aos procedimentos da modernidade25. A
postura de compreensão não se compadece com a pretensão de domínio e segurança
ingênuos derivados da adoção de um método como garantia de cientificidade.
Na visão hermenêutica, método não é algo abstrato em relação à
experiência concreta e tem o significado de regra que se precisa seguir em qualquer
indagação: não é mais do que o abrir-se à experiência viva26. Em outras palavras,
método é abertura de um caminho na floresta da experiência27.
A compreensão e o situar-se como atitudes hermenêuticas não se esgotam
no atingimento de um equilíbrio cosmológico por meio da teoria. São passos para a
aquisição de um saber-fazer como suporte de um projetar-se para o futuro, mas não os
únicos.
Não se pode esquecer que a compreensão (verstehen da tradição
hermenêutica alemã) convive com a explicação (erklären), de modo que o caminho
para busca de sentido e unidade na experiência passa necessariamente por
procedimentos, formas e análises construídos pelas ciências modernas e
contemporâneas.
De tal maneira, a abordagem metodológica e teórica da pesquisa a ser
desenvolvida pode ser bem compreendida a partir da dialética apontada por Ricoeur
entre explicação e compreensão e de sua máxima explicar mais para compreender
melhor28. Dentro de tal dialética, o método explicativo, típico das ciências oriundas da
modernidade, abre novos horizontes comuns de fatos, leis, hipóteses e verificações
para a compreensão de experiências intersubjetivamente construídas em sociedade.
Entretanto, esses novos horizontes tendem a distanciar-se dos indivíduos,
carecendo das lentes do compreender hermenêutico para serem visualizados pelos
indivíduos. No direito, são os princípios que abrem espaço para essa atitude
hermenêutica de compreensão. A pesquisa será, portanto, desenvolvida na exploração

25
A ênfase do pensamento contemporâneo em métodos e procedimentos pode ser bem compreendida a partir de
HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico — Estudos Filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2002, p. 44 e seg..
26
GADAMER (Op. cit. p. 99).
27
Idem. Ibidem.
28
RICOEUR. Teoria da interpretação. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 83 e seg.
24

de tal tensão entre o explicar e o compreender, em que a normatização da regulação


equilibrar-se-á com a abertura de sentido dada pelos princípios.

1.2.1 O horizonte linguístico como condição de possibilidade do conhecimento

Uma reflexão que coloca, de um lado, princípios marcados por sua abertura
e plasticidade, e de outro regras que têm uma pretensão de aplicação por meio de fatos
tipos, deve partir de uma reflexão sobre a própria linguagem. Nesse sentido, o mundo é
mundo apenas na medida em que vem à linguagem – a linguagem só tem sua
verdadeira existência no fato de que nela se representa o mundo29. Mundo e
linguagem são indissociáveis, de modo que na linguagem se representa o próprio
mundo de forma absoluta e abrangente, sem que esse primeiro possa ser transformado
em objeto da linguagem por não estar completamente dado. Não se pode olhar de fora
o próprio mundo constituído linguisticamente. O ser que pode ser compreendido é
linguagem30.
A linguagem natural fixa conceitos prévios que não estão como um todo
disponíveis a nenhum ser humano, à ciência ou mesmo ao poder. Habermas, com
precisão, traz a seguinte observação sobre esse horizonte prévio de sentido que
constitui o mundo da vida, no qual todos estamos inseridos: efetivamente, na medida
em que se refere a estruturas do mundo da vida, [a linguagem] tem que fazer explícito
um saber de fundo em que ninguém pode dispor pela sua vontade. Ao teórico, assim
como ao leigo, o mundo da vida lhe está dado como obra acabada em seu próprio
mundo da vida...31
Esse mundo da vida, consistente em um horizonte de sentidos que nos é
transmitido pela linguagem natural, constitui uma fonte de certeza, de pré-
compreensões e de dados autoevidentes. O saber que serve de horizonte, que sustenta

29
GADAMER Verdade e Método.Trad. Flávio Paulo Meuler. Petrópolis: Editora Vozes, 3ª ed., 1999.
p. 643.
30
Idem. Ibidem. p. 687.
31
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa II. Madri: Taurus, 2ª ed., 2001, p. 568.
25

tacitamente a prática comunicativa cotidiana, é paradigmático da certeza com que


nos é presente o transfundo que é o mundo da vida32.
No entanto, esse horizonte de sentidos não se mostra apenas como a origem
de certezas e evidências, já que, no cenário desse próprio mundo da vida surgem as
necessidades, os problemas e as insuficiências do presente. Ao mesmo tempo em que
essa linguagem natural nos transmite um mundo de segurança vindo do passado,
constitui um pano de fundo no qual se revelam as aporias e os problemas do aqui e do
agora. Esse horizonte torna possível, assim, uma fusão entre o passado e o presente. O
mundo do sentido transmitido abre-se ao intérprete só na medida em que ao mesmo
tempo aí se elucida o seu próprio mundo. O sujeito da compreensão estabelece uma
comunicação entre dois mundos; apreende o conteúdo objetivo do que é legado pela
tradição, ao aplicar esta última à sua própria situação33.
É a linguagem que permite o encontro entre a tradição e os homens do
presente como seus intérpretes vivenciais. São interpretações e apropriações de textos
ou fragmentos de textos do passado que tornam compreensíveis as experiências
humanas da própria vida. A linguagem não constitui o verdadeiro acontecer
hermenêutico como linguagem, como gramática nem como léxico, mas no vir à fala do
que foi dito na tradição, que é ao mesmo tempo apropriação e interpretação.34
Esse encontro entre passado e presente no horizonte de sentidos da
linguagem mostra-se como uma abertura de possibilidades para o futuro. Assim como
a linguagem nos fornece certezas ou problemas, é ela mesma que torna factível a
resposta de perguntas como formação de um projeto para o futuro. Mais uma vez
Habermas expõe essa outra característica da linguagem como meio para a afirmação
da própria liberdade: o que nos arranca à natureza é o único estado de coisas que
podemos conhecer segundo a sua natureza: a linguagem. Com a estrutura da
linguagem é posta para nós a emancipação35. A linguagem é, pois, uma possibilidade
de se elevar acima das coerções do mundo circundante, transformando-o em condição
de liberdade na articulação de novos sentidos.

32
Idem. Ibidem.
33
HABERMAS. Técnica e Ciência como “Ideología”. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 139.
34
GADAMER (Op. cit., p. 672).
35
HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como “Ideología”. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 145.
26

Outra característica a ser ressaltada é que, na linguagem, além de se


possibilitar a formação desse horizonte de sentidos como um acordo entre passado e
presente como condição de possibilidade e liberdade para o futuro, sua própria
utilização pela humanidade pressupõe um acordo de seus integrantes. A linguagem
como mundo é o solo comum, não palmilhado por ninguém e reconhecido por todos,
que une a todos os que falam entre si36. Apel bem sintetiza tal ideia37:
Um caminho possível para a determinação conceitual ora postulada parece-me
residir na comprovação de que se trata, na linguagem, de uma grandeza
transcendental em sentido kantiano; e mais exatamente de uma condição de
possibilidade e de validade do acordo mútuo e do acordo consigo mesmo, e
portanto também de possibilidade e de validade do pensamento conceitual, da
cognição objetual e do agir com sentido. Nessa perspectiva, pretendemos falar de
um conceito transcendental-hermenêutico de linguagem.

Para o aqui e o agora, a linguagem não é mera tradição, não é apenas um


dado, mas se mostra sobretudo como condição de possibilidade a um só tempo ideal e
real, como médium para afirmação de acordos no aqui agora e idealização de um
projeto para o futuro.
O próprio mundo e as dimensões que ele assume a partir de sua constituição
lingüística podem ser melhor entendidos a partir de três modelos de compreensão da
linguagem e sua conexão com a ação, expostos por Habermas38, para mostrar as
possibilidades oferecidas pela linguagem e sintetizá-las na teoria da ação
comunicativa. O modelo teleológico de ação concebe a linguagem como um meio pelo
qual os falantes se orientam ao seu próprio êxito, podendo influir uns sobre os outros
para levar o oponente a formar suas opiniões conforme seus interesses. O modelo
normativo concebe a linguagem como um meio que transmite valores culturais e é
portador de um consenso ratificado por um novo ato de entendimento. O modelo de
ação dramatúrgica pressupõe a linguagem como meio em que se dá a
autoescenificação, ou seja, a própria expressão do ser humano. Por último, como
superação da unilateralidade de todos esses outros modelos, Habermas concebe o
modelo comunicativo em que a linguagem se afirma como um meio de entendimento,

36
GADAMER (Op. cit. p. 647).
37
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia. Vol. II. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000, p.
379.
38
HABERMAS, Jürgen. Veritá e giustificazione. Trad. Mario Carpitella. Roma: Laterza: 2001, p. 137.
27

em que falantes e ouvintes se referem, a partir de um horizonte, para negociar


definições de situações que possam ser compartilhadas por todos.
Valer-se da linguagem, em seu cotidiano, coloca para o homem todas essas
dimensões. Em outras palavras, numa primeira dimensão passa a ser possível
influenciar, em uma visão egoístico-instrumental, o comportamento de terceiros.
Numa segunda, a linguagem, com suas tradições, já traz consigo valores e orientações
éticas. Numa terceira, a linguagem mostra-se como forma de expressão pessoal. Numa
última, a linguagem propicia o entendimento, dentro de um horizonte preconcebido,
como forma da sua própria superação.
Princípios e regulação confrontam-se numa tensão no que concerne à
linguagem. É que a regulação, pela especificidade dos bens e serviços demandados e a
tecnicidade de sua produção, vale-se de uma linguagem especializada que pretende
univocidade dos signos e de sua sequência39, numa redução da linguagem a mera
sinalização, comunicação e informação. Já os princípios deitam raízes na linguagem
natural, que é a de uso corrente e transmitida por tradições, descortinando um mundo
de vivências não encerráveis no mero cálculo e propiciadores de um entendimento
compartilhável pelos afetados pelo fenômeno regulatório.

I.2.2 A linguagem e os sistemas de conhecimento

Nas ciências sociais, todas as implicações expostas sobre a linguagem


mostram-se presentes. A impossibilidade de uso pelas ciências sociais de uma
linguagem que se desprenda totalmente da natural, como o fazem as ciências naturais
com a matemática, implica uma necessária aproximação com o mundo da vida e com
suas tradições.
Enquanto as ciências naturais podem reduzir parte da realidade a uma
linguagem totalmente artificial com alto grau de coerência e abstração, as ciências
sociais, ainda que formem conceitos específicos, não podem criar esse mundo artificial
e autorreferente, pois a utilização da linguagem natural as remete a toda vivência não

39
HEIDEGGER, Martin. Il linguaggio tramandato e linguaggio tecnico. Florença: Edizioni ETS, 1997, p. 52.
28

diferenciada da própria sociedade. Com isso, o saber social contido numa aplicação de
princípios jurídicos não pode ser reduzido a um sistema fechado.
Por isso, embora seja possível a objetividade nas ciências sociais, ela não
tem as mesmas características das ciências da natureza. Há, nesse sentido, uma grande
diferença entre a objetividade das ciências naturais e a objetividade da linguagem. Na
primeira, em que se pressupõe a existência de um observador neutro e imparcial, quer-
se eliminar os aspectos subjetivos do saber, tornando todas as experiências calculáveis,
domináveis e disponíveis.
Na segunda, porém, tal tarefa é impossível. Quando se apreende uma
experiência em linguagem, afasta-se da imediaticidade ameaçadora da própria
vivência, reduzindo sua complexidade em proporção, para torná-la comunicável.
Ocorre que esse distanciamento que se conquista com a linguagem não significa
desprendimento da própria vida, tornando-a objeto de completo controle. Muito ao
contrário, já que falar e escrever são expressões de compreensão do próprio ser
humanizado com todas as suas incertezas e imprecisões.
Embora a objetividade da linguagem e a pretendida pelas ciências naturais
afastem-se por essa tensão revelada por compreensão e dominação, tem seu ponto de
aproximação num elemento comum a esse mesmo binômio: a teoria. Na teoria há a
superação do interesse prático e pragmático, reduzindo tudo o que se encontra a
interesses concretos. Gadamer40 expõe com nitidez essa tensão por meio do conceito
antigo e moderno de teoria.
Na Antiguidade, a teoria era a forma mais elevada de ser homem, era
aproximar-se do cosmos. Na Modernidade, a ciência dividiu o saber em unidades de
experiência, objetos, como forma de tornar possível o seu domínio, apesar de não estar
imediatamente preocupada com a prática. A teoria da Antiguidade procurava a unidade
como forma de compreensão cosmológica. A da Modernidade constituiu diversas
ordens e ciências fracionadas como meio para o domínio.
Na Antiguidade, a teoria procurava a unidade a partir da própria linguagem
natural41, ao passo que a Modernidade fracionou o saber em várias linguagens

40
GADAMER (Op. cit. p. 688).
41
Aliás, a teoria grega concebia a coisa e a própria palavra em uma unidade.
29

científicas, inspiradas em modelos matemáticos. Enquanto a teoria grega se


preocupava com coisas dentro de uma cosmologia, a ciência moderna se preocupa com
objetos de conhecimento de um saber específico.
A compreensão pela linguagem natural não objetiva o mundo no sentido
das ciências modernas. Tal linguagem, ainda que formulada em termos abstratos,
significa uma abertura para o próprio mundo, e não uma redução de mundo como
ocorre na objetivação das ciências naturais. Somente o médium da linguagem, por sua
referência ao todo dos entes, pode mediar a essência histórico-finita do homem
consigo mesmo e com o mundo42.
A linguagem natural, que não pode ser completamente afastada pelas
ciências sociais, obriga-as a uma aproximação com o mundo da vida. Por isso, a
objetividade possível no conhecimento da sociedade não pode, de maneira alguma, ser
a de um observador neutro e imparcial, mas de um participante linguístico que, por
meio da reflexão, constrói uma teoria coerente para a compreensão do mundo.
Nas ciências sociais, a objetividade possível é a da própria linguagem, em
que a diversidade das experiências humanas é reduzida a unidades em palavras e
orações, que por sua vez só tem sentido se referidas à própria vida. O conhecimento
das ciências sociais conquista a coerência e a unidade por meio da linguagem como
razão, mas isso jamais significa a criação de um sistema idealizado e artificial pela sua
necessária ligação com o próprio mundo que a linguagem natural constitui e
representa.
Não há dúvidas de que continua sendo indescartável a necessidade de
unidade de razão, como ressalta Gadamer43. No entanto, nas ciências sociais, a razão e
a própria unidade só são possíveis dentro da linguagem natural e do mundo da vida. É
por isso que Apel considera que a filosofia da linguagem substitui a tradicional teoria
do conhecimento44. A linguagem como condição de possibilidade e validade do
conhecimento é uma das grandes descobertas da filosofia contemporânea.

42
Idem. Ibidem. p. 663.
43
GADAMER, Hans Georg. A razão na época da ciência. Trad. Ângela Dias. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1993, p. 24.
44
COSTA , Reginaldo. Ética do discurso e verdade em Apel. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 92.
30

Dentro desse contexto, principalmente para ciências sociais, não há mais


espaço para formulações de teorias construídas em sistemas fechados. Antes mesmo de
a filosofia ter centrado suas preocupações sobre a linguagem, Hartmann, expressando
um dos desdobramentos da fenomenologia, já defendia que:
o pensamento sistemático de hoje passa por outro caminho. Já não é pensamento
sistemático; muito melhor, deve designar-se como pensar problemático. Pensar
problemático não é assistemático. Também esse pretende chegar a uma visão de
conjunto. Sua meta deverá ser apresentar-se sempre como sistema. Só que não se
antecipa o sistema. Pretende-se deixar conduzir até lá. Sabe-se que há uma conexão
total com o mundo.45

A teoria, dentro de tal visão da linguagem e dos próprios sistemas, não só é


possível como desejável para a coerência e a unidade no pensamento e na razão. No
entanto, o que não mais se justifica são as teorias criadas como sistemas fechados e
autorreferentes, já que a linguagem é abertura para o mundo. As teorias, dentro das
ciências sociais, devem ser formuladas numa perspectiva de compreensão
hermenêutica que se entende não como uma posição absoluta, mas como um caminho
da experiência46.
Uma validade absoluta, objetiva e atemporal revela-se impossível e
ingênua. Toda teoria surge a partir da reconstrução do caminho de uma linguagem que
não se reduz ao juízo enunciativo nem a sua presumida validez objetiva, mas que
aponta sempre para a totalidade do ser. A totalidade não é um objeto; é o horizonte de
um mundo que nos rodeia e no qual vivemos47.
Diante de tal abertura da linguagem para o próprio mundo, o método como
garantia de certeza e objetividade revela seu esgotamento. O rigorismo procedimental
por si só não implica verdade ou mesmo aproximação desta, porque o saber não está
mais em sistemas fechados e completamente dominados, nos quais o apuro
metodológico pode possibilitar a reprodução de experiências.
As experiências vivenciais inerentes às ciências sociais são irrepetíveis em
sua singularidade, o que já revela a ingenuidade de seu completo domínio. O uso da
linguagem assinala que é possível unificar a compreensão da diversidade de tais

45
HARTMANN Nicolai. Autoexposición sistemática. Trad. Barnabé Navarro. Madrid: Tecnos, 1989, p. 7.
46
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis, Ed. Vozes, 2002, p.
576.
47
Idem. Ibidem. p. 577.
31

experiências dentro de uma perspectiva teórico hermenêutica, como bem expressa


Gadamer48:
Mas a hermenêutica filosófica estende sua pretensão mais além. Reivindica
universalidade. Fundamenta-a dizendo que a compreensão e o entendimento não
significam primária e originalmente um procedimento ensinado
metodologicamente, mas uma forma de realização da vida social humana, que em
última formalização representa uma comunidade de diálogo.

Por se desenvolver com o próprio uso da linguagem, o conhecimento


teórico assume todas as dimensões desta, ou seja, a instrumental, a ética, a expressiva e
a pragmático-consensual. Nenhuma teoria pode assim ser compreendida isoladamente
ou formar um sistema fechado, pois a própria linguagem, como seu médium, põe-na
em contato com um mundo no qual ela mesma está inserida.
Não é possível deixar de marcar que o cenário sobre o qual se constroem as
teorias atualmente é a sociedade supercomplexa, em que se desenvolvem diversas
linguagens e saberes, o que pode tornar uma teoria excessivamente abrangente pouco
convincente. Todavia, a pretensão de unicidade da razão subsiste pelo
compartilhamento de linguagens naturais, que formam com o mundo da vida uma
arena para a estruturação de consensos e dissensos.
Por último, não se pode deixar de demarcar que há na linguagem uma
tensão entre coerção e emancipação.49 Pela linguagem podem-se construir discursos de
dominação e autonomia. Com isso, embora não de forma definitiva e sobretudo como
suporte crítico, é válido abordar os jogos discursivos sociais que estruturam relações
de dominação, colocando em suspenso busca de consensos baseados na verdade e
abdicando da unidade da razão.
Isso, no entanto, de modo algum significa reconhecer que ideais
transcendentais como verdade, beleza e justiça não possam ser linguisticamente
construídos e que não seja possível buscar consensos sociais. Muito ao contrário, o
objetivo de se seguirem as diretrizes de Foucault50, na presente tese, valorizando as
relações de dominação e colocando entre parênteses a vontade de verdade e unidade
nos discursos, é buscar caminhos para ultrapassar tais limitações.

48
Idem. Ibidem. p. 297.
49
HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed.,
2001, pp. 71 e seguintes.
50
Como ressaltado, esses pressupostos metodológicos estão expostos no Capítulo 2.
32

Conclusivamente sobre a regulação e a linguagem, é sua marca a da


exacerbação do tecnicismo e do economicismo, com a utilização instrumental do
direito, que acaba por colonizar esferas de vivências indiferenciadas vazadas em
linguagem natural. O direito visto sob uma feição principiológica suplanta a rigidez
dos sistemas de conhecimentos de inspiração matemática e conquista a unidade da
razão no campo da formação de canais que discursivamente, em linguagem natural,
buscam estruturar o consenso.

1.3 A questão do legalismo e do normativismo

No início da Modernidade, as guerras religiosas do século XVI mostraram


aos pensadores da Idade Moderna que não havia uma organização natural da
sociedade51. A reforma afastara o Deus católico do Deus protestante. O pensamento
teológico não era mais capaz de estruturar a ordem como o fizera na Baixa Idade
Média. Era tarefa dos pensadores modernos, a partir de uma razão da consciência
individual abstrata, construir um direito ideal, como dever ser52.
Para tal projeto não eram suficientes apenas princípios. Mostrava-se
necessário um extenso programa de regras e leis sistematizadas e coerentes para
possibilitar uma ordem social efetiva, que se devia apresentar como uma
decomposição natural de uma sociedade constituída por homens iguais em dignidade,
que teriam de se respeitar mutuamente.
O direito devia ser eficaz e útil para assegurar a liberdade, a igualdade ou
mesmo a segurança e a propriedade dos indivíduos. Era o direito do jusnaturalismo
moderno, em que os únicos princípios evidentes estavam ligados ao homem como
portador de direitos naturais53.
O próprio Estado encontrava sua justificativa na vontade de todos os
indivíduos, sintetizada em leis gerais e abstratas nas quais se representava a vontade

51
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História — Lições Introdutórias. São Paulo: Max Limonad,
2002, p. 179.
52
VILLEY, Michel. Des delites et peines dans la philosophie du droit naturel classique. In: Archives de
Philosophie du Droit. Tomo 28, Paris: Editions Sirey, 1983, pp. 182-203, p. 181.
53
GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Lengua de los derechos. La formación del derecho público europeo
tras la revolución francesa. Madrid: Alianza Ediotorial, 2001, p. 55.
33

geral da nação54. Com isso, a lei mostrou-se, para os jusnaturalistas, como a garantia
formal da compatibilização de liberdades de indivíduos iguais por natureza.
Na Idade Contemporânea, o projeto moderno de ordem idealizada como
dever ser, após o primeiro iluminismo e as revoluções industrial e francesa, foi
concretizado por meio do movimento constitucionalista e codificador. A ordem social
não estava mais em costumes, em estudos doutrinários ou em leis esparsas, mas num
sistema organizado por Constituições e Códigos reunidos num mesmo ordenamento
jurídico para cada Estado Nacional. O direito como dever ser transformou-se em
realidade social por meio de leis positivadas55.
No campo do conhecimento, a valorização, pelo iluminismo, da razão
ligada à experiência, ao concreto e ao verificável foi exacerbada pelo positivismo, que
passou a conhecer tudo a partir de fatos, pretendendo desvincular-se de qualquer
concepção metafísica ou tradicional. O saber só era possível com base em verdades
verificáveis e demonstráveis, o que, aliado à Revolução Industrial, impulsionou a
sociedade do século XIX para crescentes funcionalização e especialização.
No ambiente do positivismo, a ordem jurídica não podia ser apenas dever
ser, mas afirmar-se como fato social, econômico, histórico ou como lei posta pelo
Estado, como uma vontade concreta da soberania. O direito só se afirmaria como
ciência social se fosse uma realidade e um conhecimento positivo baseado em fatos
sociais ou em leis positivas56.
O direito moderno, que se afirmara como um projeto de sistema de ação e
saber coerente, era impelido pelo positivismo a um domínio científico dos fatos,
fracionando-se em saberes e ramos autônomos. No século XIX, essa especialização de
conhecimento construiu abismos entre os diferentes ramos do direito. Embora ainda
estruturados sobre uma base comum, o conhecimento jurídico caminhou numa
progressiva diferenciação que obscureceu o conjunto e focou as diferenças entre cada
uma das novas áreas que se criavam no direito.
As escolas positivistas geraram uma tensão advinda de que, enquanto a
humanidade, a sociedade e o mundo moral do direito moderno haviam sido

54
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 48.
55
VILLEY, Michel. Leçons d’histoire de la Philosophie du Droit. Paris: Dalloz, 2002, p. 69 e seg..
56
Idem. Ibidem.
34

construídos a partir da ideia de liberdade e indeterminação, o ideal da ciência positiva


impunha reduções de tais realidades a leis causais, deterministas e logicistas.
A dinâmica do positivismo levou a que o direito e a ciência jurídica
progressivamente fossem se apoiando em conceitos e construções cada vez mais
abstratas e estruturadas segundo o modelo de uma lógica matematizada. Foi assim que
o positivismo-cientificista da escola das Pandectas afirmou-se no direito civil e
iniciou-se a dogmática do delito no direito penal, um gérmen que redundou no
neopositivismo e em seus sistemas estruturados em pura lógica.
O direito e a ciência jurídica pouco a pouco iriam perdendo o compromisso
com o seu conteúdo e transformando-se em pura forma. Os valores e a substância das
leis foram completamente relativizados e entregues ao poder político. No direito, o
poder político podia preencher esses modelos positivistas e neopositivistas com o
conteúdo que lhe aprouvesse, porque a objetividade típica das ciências naturais era
neutra e desconhecia valores. O limite da teoria era apenas o seu objeto; no caso do
direito, as normas, as leis positivas e os fatos, conforme a escola.
A teoria geral do direito direcionava-se a dar coerência e aplicabilidade à
vontade do poder político por meio de um sistema jurídico que tinha seus valores
determinados pela autoridade, qualquer que ela fosse. A teoria do direito transformara-
se em mera lógica e em conceitos vazios à espera de um poder para lhes dar sentido.
Era a teoria pura do direito, apartada de preocupações éticas, morais ou quaisquer
outras estranhas ao seu objeto.
Essa teoria pura do direito revelou-se emblemática do pensamento
neopositivista no direito. Especialmente, na América do Sul, Kelsen teve marcante
influência, levando Brimo a afirmar que nos países de tal continente Kelsen conta com
discípulos mais kelsenianos que ele mesmo57.
O objetivo da teoria pura do direito foi desenvolver uma ciência jurídica
livre de elementos estranhos advindos da ética, da política ou mesmo das ciências
naturais58. O conteúdo dessa teoria poderia ser qualquer um, já que a teoria pura do

57
BRIMO, Albert. Les Grands Courants de la Philosophie du Droit et de l´état. Paris: A. Pedone, 1978, p. 319.
58
WARAT (WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2ª ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris,
1995, p. 249) fala em 5 níveis de purificação: 1) política e ideológica; 2) antijusnaturalista; 3) antinaturalista ou
anticausalista; 4) intranormativa; 5) monista ou antidualista.
35

direito é uma teoria do direito positivo – do direito positivo em geral, não de uma
ordem jurídica especial. É teoria geral do direito, não interpretação de normas
jurídicas particulares, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da
interpretação59. Kelsen procurou métodos próprios para diferenciar a ciência do
direito das outras áreas do conhecimento, centrando-se apenas em seu objeto.
Para a teoria pura, revelou-se fundamental a oposição entre ser e dever ser.
Os conceitos jurídicos advêm do dever ser — sollen — e não no ser — sein. Assim,
um ato ou procedimento jurídico relevante não pode ser entendido apenas a partir do
espaço e do tempo, mas sim a partir de um sistema jurídico de normas como dever ser.
A ciência do direito consiste, para Kelsen, num sistema de normas a partir do qual os
atos são qualificados e se estabelece o seu sentido como lícito ou ilícito.
Normas jurídicas são descrições típicas de conduta que se apresentam como
pressupostos lógicos para a aplicação de uma sanção como penas ou atos de execução.
Em outras palavras, concebem-se as normas como mandamentos hipotéticos de
coação.
Para as normas jurídicas, não vale o princípio da causalidade, e sim o da
imputabilidade. Logo, o direito não se rege por regras do tipo se é A, é B, mas se é A,
deve ser B. A norma jurídica imputa, para Kelsen, uma sanção em decorrência de uma
conduta ou de um fato. A norma apenas indiretamente indica qual a conduta a ser
seguida, de modo a se evitar uma sanção a ser imposta pela autoridade.
O ilícito, por sua vez, nada mais é do que o pressuposto ou a condição para
a aplicação de uma sanção determinada pela ordem jurídica. Somente pelo fato de uma
ação ou omissão determinada pela ordem jurídica ser feita pressuposto de um ato de
coação estatuído pela mesma ordem jurídica é ela qualificada como ilícito ou delito60.
Um ato seria ilícito por se tratar de algo proibido e sancionável, mas não por se
caracterizar como algo reprovável socialmente61.
Para Kelsen, intimamente relacionado com o ilícito estava o conceito de
dever jurídico; eis que esse último pressupõe a existência de uma norma válida

59
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Batista Machado. 3ª ed. Coimbra: Armênio Amado —
Editor, sucessor, 1974, p. 17.
60
Idem. Ibidem. p. 166.
61
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes;
Brasília: Editora Universidade de Brasília, p. 56.
36

ordenando uma conduta. No que concerne às normas jurídicas, referem-se à conduta


de dois indivíduos, pelo menos: o indivíduo que comete ou pode cometer o delito e o
indivíduo que deve executar a sanção62.
Existe, assim, um dever de aplicar a sanção por um órgão do Estado e um
epifenômeno do dever ser da sanção63, consistente na conduta por meio da qual o
delito e a consequente sanção são evitados. A norma jurídica divide-se, assim, em duas
outras separadas por dois enunciados de dever ser: um no sentido de que o sujeito deve
observar certa conduta, e outra no de que um órgão do Estado deve executar uma
sanção no caso de a primeira ser descumprida. Por ser a norma que obriga a uma
conduta mera decorrência da que estabelece a sanção a ser aplicada por uma
autoridade, essa última seria uma norma primária, e a outra, uma norma secundária.
O dever jurídico assumiu em Kelsen um caráter instrumental, seja como
forma de evitar a sanção – norma secundária – seja como determinação da imposição
da sanção – norma primária. O dever não guardava qualquer relação com um impulso
para uma conduta prescrita:
Assim sucede com a suposição de que o dever jurídico é um impulso ínsito ao
homem, uma impulsão para uma conduta que ele sente como prescrita, a vinculação
por uma norma natural ou divina que lhe é inata e cuja observância a ordem
jurídica positiva se limita a garantir, estatuindo uma sanção. Ele não é, porém,
senão a norma jurídica positiva que prescreve a conduta deste indivíduo pelo fato
de ligar à conduta oposta uma sanção64.

Na concepção cientificista de Kelsen, a norma como objeto do estudo dos


juristas sobre textos editados pela vontade soberana é sobretudo uma ordem para a
imposição de uma sanção. A norma para Kelsen era, assim, assunto para especialistas
que a partir delas formulam proposições científicas de dever ser. Também não se
dirige diretamente para os cidadãos, sujeitos (subordinados) na terminologia
kelseniana, mas à autoridade que tem o dever de impor a sanção.
Essa concepção de direito fornecia instrumental para a organização e a
hierarquização de um sistema de normas a ser imposto pelas autoridades, ficando os
cidadãos em segundo plano. Todavia, o problema se potencializa quando se verifica
que a produção de normas pelo Estado segue um padrão de conveniência imediata dos

62
Idem. Ibidem. p. 63.
63
Idem. Ibidem. p. 65.
64
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Batista Machado. 3ª ed. Coimbra: Armênio Amado —
Editor, sucessor, 1974, p. 172.
37

interesses burocráticos. Sobre o tema, García de Enterría65 apresenta uma reflexão


claramente procedente:
Fica assim confessado de forma paladina que a Administração, com sua
omnipresente potestade regulamentária e como formuladora de projetos de lei,
introduz com normalidade novas normas de cuja necessidade e ainda de cujo
alcance real, por referência à regulação existente, não é sequer consciente, e pode
concluir-se agora que nem interessa ser. Parece como se a Administração vivesse
mais comodamente num mundo de incerteza normativa. O poder normativo atua
assim não correspondendo a uma necessidade objetiva e geral cuidadosamente
sopesada, mas por impulsos imediatos e apenas meditados, ou seja, para resolver
problemas concretos, sentidos normalmente mais que como uma necessidade
pública surgida na sociedade abstratamente considerada, pelo impulso imediato e
nada meditado, como vemos, dos serviços burocráticos.

O que se tem é o somatório de um sistema sintático que objetiva


operacionalizar o direito, deixando-o aberto a qualquer conteúdo, com um
descompromisso na elaboração de normas (regras) que atendem sobretudo a interesses
imediatos e irrefletidos da Administração. É evidente o distanciamento dessas normas
jurídicas dos indivíduos que são incapazes de conhecê-las diretamente, seja pela sua
inaptidão técnico-científica, seja por serem meros objetos de uma ordem de imposição
de sanções. Com o advento da regulação, o problema se agrava, porque o volume de
produção normativa oferece obstáculo cognitivo até mesmo para os especialistas. Que
dizer, então, do cidadão?

1.4 O dever para além do positivismo e a crise do legalismo e emergência da


regulação

O tema do presente trabalho diz respeito também à tecitura de um


ordenamento jurídico. Conforme a escola, os elementos que o constituem podem ser
leis, normas, regras, princípios etc. Todos eles têm em comum a composição de uma
ordem de sentido conformadora de condutas, ou seja, a ideia de dever. Por isso, para
delinear uma crise do normativismo, do legalismo e a crítica da emergente regulação,
uma linha mestra é a ideia dever.
Nesse sentido, a própria concepção de dignidade da pessoa humana, peça
central do Estado Democrático de Direito, impõe a valorização de uma adesão

65
GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Justicia y seguridad jurídica em um mundo de leyes desbocadas. Madri:
Civitas, 2000, p. 97.
38

voluntária a uma ordem obrigatória de sentidos ínsita ao dever. O dever não se reduz à
integração automática no todo, muito menos a uma completa sujeição ao poder da
autoridade que deve seguir um mandamento de coação (Kelsen). O dever revela-se
como adesão autônoma a uma ordenação. O dever não se pode articular apenas com a
mera coerção e muito menos pela brutalidade da força.
O direito não é idêntico a uma ordem de um poder dado. As relações
humanas não são apenas reguladas pela força, por um poder real e de fato. Existe algo
que obriga, no íntimo de cada indivíduo a uma ação. Se há algo da essência de uma
ordem de sentido conformadora de condutas, é a noção de dever. É a ideia de estar
obrigado. Como exposto por Kant, a ideia de dever é o núcleo da moral e constitui
algo que se pode conceber como intrinsecamente bom66. De igual modo, para esse
filósofo, os deveres jurídicos são em essência deveres morais 67.
Essa retomada de concepções iluministas não pode, todavia, ser ingênua
com a mera reedição de uma teoria do contrato social e seus desdobramentos. A
autonomia, no mundo contemporâneo, tem como cenário a sociedade complexa,
sendo, por isso, sobretudo jurídica, como ressaltou Habermas68.
O dever assume, desse modo, outras feições. Não pode ser apenas uma
adesão autônoma, incondionada e incoercível. Ele é uma internalização, uma aceitação
que claramente ocorre a partir do simbolismo da força domesticada pelo direito. Situa-
se em um dos pólos da tensão entre faticidade e validade do direito, só podendo ser
compreendido nesse equilíbrio dinâmico.

66
Nesse sentido, estão os seguintes trechos da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, Immanuel.
Fundamentação da metafísica dos costumes.São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 21): Nem neste mundo nem fora
dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação, a não ser uma só coisa; uma
boa vontade. Mais à frente (p. 24): mas para desenvolver o conceito de uma vontade digna de ser estimada em si
mesma e sem qualquer intenção ulterior, conceito este que já se encontra no bom senso natural e que mais
precisa ser esclarecido do que ensinado, que está sempre no cume de toda a apreciação de valor de nossas
ações e que constitui a condição de tudo o mais. Encarecemos o conceito de dever, que contém em si o de boa
vontade; muito longe de ocultá-lo e torná-lo incognoscível, antes fazem ressaltá-lo e aparecer com mais clareza.
(negrito nosso)
67
É o que se percebe do seguinte trecho (Kant, Immanuel. Doutrina do direito. Trad. Edson Bini. São Paulo:
Ícone, 1993, p. 31): Na legislação jurídica os deveres não podem ser mais que externos porque essa legislação
não exige que a ideia desses deveres, que é interna, seja por si mesmo o princípio determinante do arbítrio do
agente; e como, todavia, necessita motivos apropriados a uma lei, tem de buscar externos. A legislação moral,
ao contrário, exigindo em deveres atos internos, não exclui os externos, e sim, ao contrário, reivindica tudo o
que é dever em geral...
68
HABERMAS, Jürgen. Factidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed.,
2001, p. 192.
39

O dever, na sociedade complexa, assume compromissos com o resultado,


com uma ética que se refere a uma história, a um acontecer concreto69. O seu caráter
ideal só tem sentido se referido às exigências pragmáticas. O seu cenário não é a
comunidade ideal, representada no reino dos fins kantiano, mas o próprio mundo da
vida no qual estamos todos inseridos.
Essa nova realidade impõe o exercício da autonomia pública, assim
como confere a autonomia privada em uma sociedade complexa e pós-metafísica. Os
deveres assumem, então, uma feição mais ativa, exigindo que o cidadão decida a
própria democracia. Até mesmo os próprios direitos subjetivos, como liberdades,
passam a pressupor a ideia do dever para o seu próprio titular, como assinala o
espraiamento da concepção de função social. A autonomia é responsabilidade.
Em síntese, o dever na sociedade contemporânea apresenta-se coercível,
referido a resultados e em uma postura ativa. Isso não impede que o seu cerne esteja
numa internalização, numa compreensão, numa aceitação de uma ordem pelo
indivíduo, o que poderá ser melhor a partir da compreensão hermenêutica de Gadamer
e Heidegger.
Na hermenêutica filosófica, a compreensão é a atitude existencial básica.
A compreensão ocorre de maneira circular em que o ser apreendido lingüisticamente
pelo sujeito torna-se parte de sua subjetividade. A compreensão tem uma estrutura
circular em que pessoa e coisa, intérprete e texto, devem encontrar-se.
Esse círculo pressupõe um entendimento com a alteridade, com o
estranho. Compreender significa, de princípio, entender-se com os outros70. O
entendimento e o encontro não são estáticos, mas se desenvolvem em uma estrutura
dinâmica circular, em que os diferentes projetos de sentido devem corrigir-se para se
aproximar da verdade da coisa e do texto em sucessivo reencontro e reafirmação de
acordo. Trata-se, assim, de uma estrutura circular numa construção de sentido positiva,
como observa Heidegger:
Nele [no círculo] se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais
originário que, decerto, só pode ser apreendida de modo autêntico se a
interpretação tiver compreendido que sua primeira, única e última tarefa é de não

69
É dessa forma que Apel formula sua ética da responsabilidade (APEL, Karl-Otto. Teoria de la Verdad y Ética
del Discurso. Trad. Norberto Smilg. Barcelona: Paidós Ibérica, 1998, p. 147).
70
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método.Trad. Flávio Paulo Meuler. Petrópolis: Editora Vozes, 3ª ed.,
1999, p. 282.
40

se deixar guiar, na posição prévia, visão prévia e concepção prévia, por conceitos
ingênuos ‘chutes’. Ela deve, na elaboração da posição prévia, da visão prévia e
concepção prévia assegurar o tema científico a partir das coisas mesmas.
[...]
O círculo da compreensão pertence à estrutura de sentido, cujo fenômeno tem suas
raízes na constituição existencial da pre-sença enquanto compreensão que
interpreta71.

A ideia de dever pressupõe a apreensão de um texto de lei como


objetividade pelo sujeito, pelo intérprete. Essa estrutura bipolar entre objetividade e
subjetividade mostra a proximidade da ideia de dever com o círculo hermenêutico da
compreensão, revelado em Heidegger e urbanizado em Gadamer. Sem dúvida, o dever
é uma forma de compreensão entendida como o ser existencial do próprio poder-ser
da pre-sença [dasein] de tal maneira que, em si mesmo, esse ser abre e mostra a
quantas anda seu próprio ser72. Compreender não é apenas entender ou saber algum
significado, mas também um saber fazer, um poder ser ou, em uma síntese das duas
acepções, um ser entendido ou um saber como se situar73.
Aquele que compreende um texto, ou mais especificamente uma lei,
norma, regra ou mesmo um princípio, não apenas entende um novo significado como
adquire nova dimensão de projeto e liberdade. Compreender um texto ou alguma coisa
é estar situado diante de suas possibilidades como uma forma de apropriação. A
compreensão permite ao homem projetar-se para um destino, para uma meta.
A compreensão de um texto normativo, embora tenha a mesma estrutura
circular, não é apenas projeto, poder ser e possibilidades para a interpretação de uma
coisa ou um texto como expressões da verdade. O poder ser quando extraído de uma
norma – υόµος – transforma-se em dever ser, em projetos limitados e possibilidades
vinculantes. Heidegger observa que υόµος não é apenas lei, mas mais originariamente
a adjudicação oculta na destinação do ser74. Só esta é capaz de dispor o homem no
seio do ser. Só tal disposição é capaz de sustentar e vincular.
A norma é um texto que pressupõe um acordo vinculativo para sua
compreensão. Entender uma lei é apropriar-se dela como um limite para seu projeto e

71
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. Trad. de Márcia Sá Cavalcanti. Petrópolis: Editora Vozes, 2001,
p. 210.
72
Idem. Ibidem, p. 200.
73
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Trad. Paulo Cesar Duque Estrada. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, p. 41.
74
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Moraes, 1991, p.
42.
41

sua existência com os outros. A lei revela as barreiras que não podem ser transpostas
no relacionamento com a alteridade. O dever, em uma perspectiva hermenêutica, nada
mais é do que a compreensão vinculante de um mandamento como expressão da
verdade e da justiça.
Assim, a ordem legítima interiorizada pelo indivíduo na sua
personalidade possibilita a integração social75 a partir da ideia de dever como meio
para comunhão e entendimento com a própria sociedade. Embora o dever, na
sociedade contemporânea, apresente-se em clara tensão com a força, é um motivo de
ação que não resulta produzível a partir da mera violência, como acentua Habermas:
Mas como ingredientes de uma ordem jurídica legítima em conjunto se apresentam
com uma pretensão de validade normativa que se endereça a um reconhecimento
racionalmente motivado e que de algum modo insta ao destinatário que preste
obediência ao direito por dever, é dizer, por um motivo que não resulta produzível
por força76.

O dever, na sociedade contemporânea, apresenta-se fundamentalmente


como compreensão e adesão voluntária a uma ordem legítima. Essa concepção de
dever pressupõe a lei como algo totalmente diverso da norma kelseniana. A lei não
pode ser reduzida a um mandamento para imposição de sanção pela autoridade nem se
confundir com o objeto do estudo de uma classe especializada. A norma para
possibilitar uma adesão voluntária deve destinar-se à compreensão de todos os seus
destinatários.
Dentro de tal perspectiva hermenêutica, a norma não pode ficar disponível a
qualquer vontade. É que a compreensão pressupõe necessariamente coerência.
Gadamer77 concebe a coerência da seguinte forma:
Dando mais um passo. Acabei de dizer que toda compreensão pode ser
caracterizada como um conjunto de relações circulares entre o todo e suas partes. A
caracterização pela relação circular deve ser, no entanto, complementada por uma
determinação suplementar que eu expressarei de bom grado como a antecipação de
uma ‘coerência perfeita’. Essa coerência perfeita pode ser entendida, de início, no
sentido de uma antecipação de natureza formal; ela é uma ‘ideia’. No entanto, ela
se encontra sempre já operante quando se trata de realizar uma compreensão. Ela
significa que nada é de fato compreensível se não se mostrar efetivamente sob a
forma de um significado coerente [...]

75
PARSONS, Talcott. O Sistema das Sociedades Modernas. Trad. Dante de Moreira Leite. São Paulo: Pioneira,
1974, p. 17.
76
HABERMAS, Jürgen. Factidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed.,
2001, p. 93.
77
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Trad. Paulo Cesar Duque Estrada. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 65.
42

A compreensão exige um telos, uma finalidade. O discurso, inclusive


filosófico, mostra-se vazio se falta essa orientação a um fim78. Por isso, compreender é
buscar uma relação interior entre a intenção do texto e a verdade79. No caso do direito
e das normas, a compreensão pressupõe que ambos se dirijam à realização da justiça
para pessoas iguais em dignidade80.
Dessa verificação surge outro ponto a ser ressaltado: a compreensão da lei
orientada pelo telos da justiça. Como expressão da verdade é um diálogo, porque a
verdade é coisa que diz respeito diretamente a um discurso, diretamente a um diálogo,
não a uma proposição isolada. Isso explica a necessidade de uma concepção
procedimental e discursiva e sobre o direito, em que o questionamento seja articulado
estruturalmente.
Outra característica da norma é sua abertura textual. Mesmo a enunciação
com pretensões exaustivas inerentes à tipicidade penal, com a indicação das diversas
características da conduta infracional, objetivando linguisticamente a precisão possível
por meio da gramática, não deixa de ser uma forma jurídica estruturada sobre a
linguagem natural. Suas possibilidades de certeza são as mesmas da linguagem
humana. Por meio da enunciação típica se obtém a segurança possível em mundo
mediado pela linguagem. Efetivamente, embora o seu uso ofereça limites e garantias,
nada assegura de forma absoluta, pois sua interpretação está aberta dentro de um
horizonte de possibilidades e reconstruções.
Não há como superestimar a capacidade de fornecimento de certezas por
intermédio da linguagem como o fez o cientificismo no direito civil – escola das
pandectas – e no direito penal – teoria clássica do delito. Até a linguagem jurídica com
pretensões científicas e técnicas está dentro do horizonte de abertura textual da

78
GADAMER, Hans-Georg. Elogio de la Teoría. Trad. Anna Poca. Barcelona: Península, 2000, p. 65.
79
GADAMER, O problema da consciência histórica. Trad. Paulo Cesar Duque Estrada. Rio de Janeiro: Editora
Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 66.
80
O direito como integridade de Dworkin (DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefefferson Luiz
Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999) fornece uma concepção semelhante à do presente trabalho sobre o
direito. Na visão de Dworkin, a integridade é uma espécie de coerência (p. 263) em que o direito deve expressar
por um sistema único e harmonioso que objetive a atingir a justiça, a equidade e o devido processo legal na
proporção adequada (p. 483) numa comunidade em que a isonomia é a virtude soberana. Nas palavras de
Dowrkin (p. 483), a justiça diz respeito ao resultado correto do sistema político: a distribuição correta dos
bens, oportunidades e outros recursos. A equidade é uma questão da estrutura correta para esse sistema, a
estrutura que distribui a influência sobre as decisões políticas de maneira adequada. O devido processo legal
adjetivo é questão dos procedimentos corretos para a aplicação de regras e regulamentos que o sistema
produziu.
43

linguagem natural. O exagero na busca de uma certeza científica distancia a linguagem


das leis da inteligibilidade, assim como a multiplicidade de atos com caráter
normativo, não facilmente hierarquizáveis, fraciona o ordenamento jurídico de tal
modo que é duvidosa a possibilidade de sua reconstrução como um sistema de regras
coerentes.
O problema é que um requisito mínimo de qualquer ordem jurídica
racionalmente constituída está na sua comunicabilidade a seus obrigados81. O direito,
no Estado Democrático de Direito, destina-se a conformar e a orientar condutas, o que
só se faz possível caso os cidadãos possam compreender seus comandos textuais para
então internalizá-los mediante uma adesão voluntária. Aplicar castigos aos cidadãos a
partir de uma ordem jurídica ininteligível, pelo seu tecnicismo, sua multiplicidade e
sua dispersão, revela-se mera agressão e coisificação da pessoa humana.
É preciso ultrapassar o significado formal da lei apenas como enunciação
abstrata dotada de generalidade e imperatividade. A compreensão hermenêutica de lei
e de qualquer outra norma ou regra exige outras características. É necessário ir além da
mera forma. Assim, qualquer norma deve atender a exigências de conteúdo como
coerência, orientação à realização da justiça entre pessoas iguais em dignidade e ainda
preocupar-se com sua intelegibilidade em um discurso dirigido idealmente a todos os
sujeitos jurídicos.
É evidente que as leis e especialmente a regulação na sociedade
contemporânea marcadas por tecnicalização, especialização e pela preocupação de
legitimar o sistema político-burocrático criam sérias dificuldades para atender a tais
requisitos de compreensibilidade em um discurso universalista82. Um desafio que se
coloca para o direito contemporâneo é como tornar o ordenamento jurídico inteligível

81
Gilmar Ferreira MENDES (Questões fundamentais de técnica legislativa. Revista trimestral de direito público,
n.º 1993, p. 255) chama a atenção para a importância dessa comunicabilidade: A moderna doutrina
constitucional ressalta que a utilização de fórmulas obscuras ou criptográficas, motivadas por razões políticas
ou de outra ordem contraria princípios básicos do próprio Estado de Direito, como os da segurança jurídica e
os postulados de clareza e precisão da norma jurídica.
82
Aliás, a constituição e a formação social dos discursos, como assinalam os estudos de Foucault, contrasta
nitidamente com a idealização de um discurso universalizante voltado para o entendimento (Habermas).
Foucault (FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio.São Paulo:
Loyola, 1996. p. 9) ressalta que a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada
e redistribuída por certo numero de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos,
dominar sua acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.
44

e compreensível para possibilitar encará-lo como uma ordem de sentido conformadora


de condutas e definidora de deveres abertos a uma adesão autônoma.
A tecnicalização do direito e sua utilização instrumental e
descompromissada pela burocracia, sem dúvida construiu barreiras e limites
procedimentais para a institucionalização do discurso jurídico na sociedade complexa.
Foucault, com precisão, assinala que os discursos apresentam-se, na sociedade
contemporânea, com a formalização de procedimentos de interdição e exclusão. A
análise do discurso de Foucault, com a suspensão da sede de “verdade” ou mesmo de
“entendimento”83, permite encarar o discurso juridicamente constituído como uma
rede de exclusões, o que em última instância impede a busca da “verdade” e do
“entendimento”.
Em contraste com tal realidade da sociedade complexa e a apresentação
efetiva do discurso jurídico, a Constituição do Estado Democrático de Direito coloca-
se como um projeto unitário de sociedade e Estado em que se procura preservar a
autonomia e a dignidade dos cidadãos. O papel básico da Constituição é o de
estabelecer as condições necessárias para que os cidadãos possam entender-se sobre
quais são os seus problemas e como devem ser resolvidos84.
O espaço em que os sujeitos jurídicos se encontram institucionalmente para
o entendimento por legado da Modernidade encontra-se tripartido. O Estado ainda está
especializado funcionalmente em Executivo, Legislativo e Judiciário. Esses três
poderes constituem discursos com limites e dinâmicas próprias e, sem dúvida alguma,
os princípios têm um papel central na articulação e estruturação de tais discursos. A lei
e os atos normativos vazados como regra não podem ser o principal e exclusivo
veículo de comunicação entre os poderes do Estado e com a cidadania.
Como já ressaltado pelas teorias pós-positivistas, a Constituição é sobretudo
um arcabouço principiológico, de modo que o sentido completo das regras só se revela
quando referidas a princípios. Daí que a regulação como fenômeno inerente à

83
Foucault (Op. cit., p. 20) explica, no seguinte trecho, a nuvem de fumaça que o discurso que busca a verdade
cria sobre si mesmo embaçando a própria verdade por ele buscada: O discurso verdadeiro, que a necessidade de
sua forma liberta do desejo e livre do poder, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a
vontade de verdade que se impõe a nós há bastante tempo é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de
mascará-la.
84
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa II. Madri: Taurus, 2ª ed., 2001, p. 530.
45

sociedade complexa tenha que ser confrontada com os princípios, que têm potencial de
tradução para transformar o hermetismo tecnicista da regulação em uma ordem de
sentido para o cidadão inserido no mundo da vida, como esfera de vivência
indiferenciada, permitindo uma adesão autônoma aos deveres insertos na plêiade
normativa da sociedade complexa. É na fluidez dos discursos sobre princípios que se
concertam os direitos dos indivíduos e deveres das autoridades no Estado Democrático
de Direito.
46

1.5 O direito como mediador/tradutor entre o mundo da vida e os sistemas do


poder administrativo-burocrático85 e da economia

Como afirmado, o eixo teórico central da presente tese é a hermenêutica


filosófica. Embora não se excluam outros aportes, um ponto de apoio central será, por
sua amplitude, a obra de Habermas. O direito e sua formulação teórica na sociedade
contemporânea podem ser compreendidos a partir de duas obras de Habermas: “Teoria
da Ação Comunicativa”86 e “Faticidade e Validade”87.
A partir de tal concepção, as sociedades modernas não se integram apenas
por meio de valores, normas e processos de entendimento, mas também
sistemicamente, como ocorre com o mercado e o poder administrativo-burocrático
numa coordenação objetivante e instrumental intimamente relacionada com o saber da
ciência e da técnica. Acontece que ambos têm sua forma institucional conferida pelo
direito que os integra ao mundo da vida e ao resto da sociedade. Então, para
Habermas, o direito moderno:
está associado com os três recursos de integração social. Por meio de uma prática
de autodeterminação, que exige dos cidadãos o exercício comum de liberdades
comunicativas, o direito nutre em última instância sua capacidade de integração
social das fontes de solidariedade social. As instituições de direito público e privado
possibilitam, por outro lado, o estabelecimento de mercados e a organização do
poder estatal, pois as operações do sistema econômico e do sistema administrativo,
diferenciadas dos componentes sociais do mundo da vida, efetuam-se nas formas
que lhes empresta o direito88.

O direito permite mediação entre os dois principais sistemas sociais


estruturados tecnologicamente – o poder administrativo-burocrático e a economia – e
entre indivíduos autônomos inseridos na esfera indiferenciada do mundo da vida.
Nesse ponto, as sociedades capitalistas desenvolvidas ou em franco
desenvolvimento apresentam uma tendência à coisificação dos indivíduos. A economia

85
Embora Habermas utilize a expressão poder administrativo (Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez
Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed., 2001), optou-se pela expressão poder administrativo-burocrático, por
expressar melhor as tensões funcionais e operativas existentes nesse sistema.
86
HABERMAS, Jürgen .Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001.
87
HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed.,
2001.
88
Idem. Ibidem, p. 102.
47

e o Estado adentram com o dinheiro e a burocracia criando patologias no mundo da


vida. Essa colonização do mundo da vida ocorre a partir de quatro pressupostos:
- quando as formas tradicionais de vida estão já tão desarticuladas que pode
produzir-se uma profunda diferenciação dos componentes estruturais do mundo da
vida (cultura, sociedade e personalidade);
- quando as relações de intercâmbio entre subsistemas e mundo da vida acabam
reguladas por meio de papéis diferenciados (relativos ao trabalho em postos
laborativos organizados, à demanda das economias domésticas, às relações de
clientela com as burocracias públicas e à participação formal nos processos de
legitimação);
- quando as abstrações reais mediante as quais a força de trabalho dos empregados
se torna disponível e o voto dos eleitores mobilizados são aceitos pelos afetados em
troca de compensações conforme os sistemas;
- sendo financiadas tais compensações, em conformidade com as pautas próprias do
Estado Social, e canalizadas por meio daqueles papéis em que primariamente ficam
depositadas as esperanças privadas de autorrealização e autodeterminação
retiradas do mundo do trabalho e dos espaços público-políticos, ou seja, pelos
papéis de consumidor e cliente 89.

Nessa ordem de ideias, o Estado Social, quando bem sucedido com a


implantação das condições listadas, reforça a integração sistêmica, especialmente com
base no dinheiro e na burocracia, comunicando-se com os indivíduos em papéis
reduzidos de consumidores e clientes. O direito, no entanto, esteia-se na produção de
normas jurídicas vazadas em linguagem e no papel universalizante de cidadão.
Decorre que os sistemas existentes na sociedade, com códigos próprios
como o caso da economia, sejam mediados pelo direito com o mundo da vida, atuando
o primeiro como transformador e garantindo uma comunicação social global e
sociointegradora, uma vez que só na linguagem do direito podem circular no âmbito
de toda a sociedade mensagens de conteúdo normativo90.
Isso pode ser melhor compreendido quando se tem em mente que o direito
funciona como um meio conectado com o dinheiro e o poder, abrangendo áreas de
ação organizadas em termos de Direito Liberal91. As instituições jurídicas estão
inseridas num contexto social mais amplo, mantendo continuidade com normas éticas
e com sua estruturação coercitiva, podendo veicular mensagens captáveis pelos meios
sistêmicos referidos, isto é, pelo dinheiro e pelo poder.

89
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 503.
90
HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed.,
2001, p. 120.
91
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 517.
48

Para Habermas, somente o conceito moderno de direito, na forma de leis


abstratas e gerais que concedem a todos os mesmos direitos, mostra-se adequado para
a integração social de sociedades nas quais o sistema econômico ocupa uma posição
proeminente e em que os indivíduos agem guiados pelos próprios interesses.
A pluralidade de perspectivas que o direito da sociedade contemporânea
enfrenta, todavia, carrega o risco de que ele abarque interesses não filtrados do
mercado e do poder administrativo-burocrático que acabem recebendo a força
legitimadora do direito, a fim de dissimular ou encobrir que a capacidade de se
imporem é puramente fática, sem qualquer legitimidade. O direito empresta ao poder
ilegítimo uma aparência de legitimidade92.
Outro problema que os sistemas põem para o direito e para os indivíduos é
de inseri-los sempre em seus próprios interesses instrumentalizantes e tecnicizantes. O
cidadão, para o poder administrativo-burocrático e para a economia, torna-se apenas
um cliente ou um consumidor, deslocado dentro da lógica sistêmica a um papel
periférico de simples componentes da organização. Os sistemas, que são a economia e
a Administração, têm a tendência de cerrar-se em seus próprios entornos e só
obedecer aos seus próprios imperativos emergentes do dinheiro e do poder
administrativo93.
Para diminuir tal risco, as operações de integração sistêmica do mercado e
do poder administrativo-burocrático devem estar conectadas ao processo de integração
social que representa a praxe de autodeterminação dos cidadãos, nos termos da
compreensão que a comunidade jurídica tem de si mesmo em seu direito
constitucional.
As autonomias pública e privada assumem, desse modo, papel central
dentro do direito e da definição de cidadania. A primeira consiste basicamente em
direitos políticos para garantir a participação em todos os processos de deliberação e
decisão relevantes para a produção de normas94. A segunda é a concessão de
liberdades para se realizar um projeto individual. Em estrutura, ambas se assemelham,

92
HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed.,
2001, p. 103.
93
Idem. Ibidem. p. 144.
94
Idem. Ibidem. p. 193.
49

pois os direitos relativos ao exercício da autonomia política possuem a mesma


estrutura dos direitos que concedem aos indivíduos a liberdade de arbítrio. Os direitos
políticos são também liberdades subjetivas de ação. Em suma, no direito
contemporâneo e nas sociedades democráticas, ambas são cooriginárias e devem ser
compreendidas como equivalentes e reciprocamente pressupostas.
Em razão de os cidadãos afirmarem-se como sujeitos jurídicos, já não está
em suas mãos dispor acerca de que linguagem querem servir-se. Antes o código que
representa o direito vem dado aos sujeitos como a única linguagem que pode
expressar sua autonomia. A ideia de autolegislação deve-se fazer no próprio direito95.
O campo do exercício da autonomia é o do direito.
O direito moderno entendido positivamente apresenta-se como uma
pretensão de organização sistemática, bem como de interpretação vinculante e de
imposição coercitiva por órgãos competentes96. Esse direito não se mostra apenas
como uma forma de saber cultural, mas constitui um sistema de ação que estabelece e
operacionaliza instituições sociais.
O direito apresenta-se simultaneamente como um sistema de saber e de
ação. Pode ser entendido como um extenso texto de proposições e interpretações
normativas ou, como instituição, como um complexo de regras da própria ação na
sociedade. E, como no direito como sistema de ação se entrelaçam entre si motivos e
orientações valorativas, as proposições jurídicas têm uma eficácia prática, da qual
carecem os juízos morais97. O direito também é dotado de alta racionalidade por se
constituir em um saber teórico e dogmaticamente elaborado, elevado em nível
científico e entrelaçado como uma moral regida por princípios.
Muito embora o direito organize-se como um sistema de ação e
conhecimento, sua linguagem aproxima-se da natural, principalmente pelo seu
entrelaçamento com a moral. Foi uma herança do primeiro iluminismo o fato de as leis
se dirigirem a toda a comunidade de cidadãos, devendo ser-lhes compreensível e

95
Idem. Ibidem. p. 192.
96
Idem. Ibidem. p. 145.
97
Idem. Ibidem. p. 145.
50

inteligível. Por isso, as instituições, as tradições e os sujeitos jurídicos são


componentes do mundo da vida. Nas palavras de Habermas98:
O sistema de ação ‘direito’, assim podemos chamá-lo, pertence como uma ordem
legítima que se tornou reflexiva, a um componente do mundo da vida [sociedade].
E assim como esta, também com a cultura e com as estruturas da personalidade, só
se reproduz por meio da corrente da ação comunicativa, assim também as ações
jurídicas constituem o meio no qual se reproduzem as instituições jurídicas
simultaneamente com as tradições jurídicas intersubjetivamente compartilhadas e
as capacidades de interpretação e observância das regras jurídicas.

O direito desdobra-se em três componentes dentro do mundo da vida99: 1)


regras que constituem uma ordem jurídica de nível superior, correspondente à
sociedade; 2) simbolismo jurídico, representado em instituições, correspondente à
cultura; 3) capacidades e competências subjetivas adquiridas no processo de
socialização dentro do próprio direito, correspondentes à personalidade.
Esses três componentes articulam-se na produção e na reprodução do
direito, de modo que lhe pertencem todas as manifestações reflexivas orientadas a ele
próprio. O direito, entretanto, não mantém apenas conexão com o mundo da vida e
com a linguagem natural, mas também dá às mensagens procedentes do mundo da
vida uma forma que resulta inteligível para os códigos específicos com que opera uma
Administração regulada pelo poder e uma economia regida, controlada e governada
pelo dinheiro. Por essa linguagem do direito pode-se mediar a relação entre os
sistemas e o mundo da vida, que abrange a sociedade global na qual estão inseridos os
indivíduos e sua cultura.
O direito legatário da modernidade atua, portanto, como um transformador
entre o mundo da vida, como esfera indiferenciada da sociedade em que a
comunicação se dá pela linguagem natural, e os sistemas, com partes diferenciadas da
sociedade que operam a partir dos meios dinheiro e poder administrativo-burocrático,
com apoio nas linguagens artificiais construídas pelas ciências e instrumentalizadas
pela técnica. Dessa forma, o direito deve produzir comunicações que sejam relevantes
para os sistemas e para os indivíduos.

98
Idem. Ibidem. p. 146.
99
Os componentes do mundo da vida são, para HABERMAS (Pensamento Pós-metafísico – Estudos
Filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, pp. 95 e seg.), cultura, sociedade e personalidade, que se
pressupõem reciprocamente.
51

Por isso, o saber teórico no direito precisa de uma teoria desenvolvida sob a
linguagem natural, o que se dá por meio da prudência e da filosofia, como também de
um saber que se constitua em sistemas artificiais de conhecimento, o que só é possível
por meio da ciência e da técnica que a operacionaliza.
A feição bifronte é uma característica do direito da sociedade
contemporânea. Para mediar a comunicação entre o mundo da vida, em que estão os
indivíduos autônomos, e os sistemas, o direito opera tanto com a linguagem natural
como com uma linguagem técnico-científica típica da dogmática jurídica. São os
princípios jurídicos que inserem o direito na linguagem natural, marcada por
vaguidade e equivocidade. Em contraste, para operar como um sistema de regras e
conceitos, o direito assume uma linguagem específica: a da dogmática jurídica que tem
alto poder operativo e conformador de outras áreas do saber técnico-científico.
Então, o direito ganha sentido na esfera das vivências indiferenciadas do
mundo da vida por meio dos princípios. O sistema de regras e conceitos no direito
pode ser traduzido num conjunto de princípios. O direito é capaz de verter a razão
calculadora vinculada a conceitos precisos e determinados numa razão reflexiva
efetuada por meio de juízos. A possibilidade de transformar o saber da ciência e da
técnica do direito num conhecimento prudencial e filosófico contido nos princípios
fundamenta e legitima o direito. Essa é a síntese da crítica principiológica do direito
que lhe dá um lugar e um valor no mundo das vivências dos indivíduos. Por outro
lado, é o sistema lógico-operativo de regras dotadas de sanção que possibilita ao
direito acoplar-se com a economia e o poder político-administrativo, produzindo
comunicações por eles inteligíveis e assimiláveis. Daí que seja evidente a possibilidade
de o direito traduzir expectativas do mundo da vida para esferas sociais
sistemicamente constituídas.

1.6 O saber e a teoria no direito: para além da técnica e da ciência

É evidente, pelos pressupostos teóricos até aqui estabelecidos, que a


concepção de direito adotada para o desenvolvimento do tema está para além da
52

técnica e da ciência. É que no direito circulam saberes vazados tanto em linguagem


especializada como em linguagem natural. Não há como esquecer, o ponto fulcral
fomentador da problemática do presente trabalho deita raízes na degradação dos
saberes tecnológico e científico num saber-fazer do cálculo e da previsão
desvinculados de sentido para o homem numa esfera de vivências indiferenciadas.
Também é uma preocupação no desenvolvimento do tema a ideia de dever
que remete à conformação a uma ordem normativa de sentidos que precisa ser
intelectível e compreensível para o papel social indiferenciado de cidadão. Igualmente,
o direito, no seu relacionamento com outros sistemas sociais, como o poder
administrativo-burocrático e a economia, deve estar aberto a conteúdos éticos e morais
para resgatar os indivíduos da coisificação pelos meios do dinheiro e do poder.
Seguindo essa linha, o saber jurídico não pode transitar apenas nos estreitos
moldes da técnica, da dogmática e da ciência. Outras virtudes intelectuais devem ser
colocadas em jogo para tecer o conhecimento jurídico.
Para Aristóteles100, as virtudes intelectuais eram: arte – tekne, ciência –
episteme, a prudência – phronesis, a filosofia – sophia e a inteligência – logos. A arte
(tekne) tratava de um saber-fazer estruturado teoricamente que visava a uma atividade.
A ciência dizia respeito ao saber demonstrável sobre o permanente. A prudência
cuidaria de um saber-agir do homem em sociedade, que compreende e aplica suas
regras buscando manter o equilíbrio da sociedade. A inteligência – logos – trata do
permanente não demonstrável. Por último, a filosofia seria uma forma de acesso ao
logos em que se utilizariam os conhecimentos teóricos da ciência.
A concepção contemporânea de ciência remonta ao surgimento da
modernidade, em que o conhecimento, inclusive no direito, desligou-se da reta ratio
medieval101 e passou a fundar-se numa razão individual moderna. Foi essa a origem do
pensamento cartesiano em que se privilegiava a intuição individual com base em
verificações claras e evidentes, valendo-se, ainda, da analítica, de dedução, da indução

100
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mario da Gama Kury. 4ª ed. Brasília: Universidade de Brasília,
2001; 1139b
101
Razão prudencial medieval em que o conhecimento estava fundado na tradição, especialmente em fontes de
autoridades gregas e romanas.
53

e da síntese102, com clara inspiração na matemática e na geometria. Se, na


Antiguidade, a matemática era um modelo de ciência, na Modernidade passou a ser o
modelo.
Paolo Rossi, em obra que faz uma perspicaz análise do surgimento da
concepção moderna de ciência, dá a seguinte definição:
a ciência aparece para nós como um terreno dentro do qual a verdade sempre se
configura como algo que é submetido à prova da experiência, ao confronto com o
mundo real, à discussão e à competição contínua com teorias alternativas. A
transmissão, a ilustração, a exibição de provas (ou supostas provas) de cada
afirmação são elementos constitutivos daquele saber que chamamos de científico.
Este, por definição, é uma forma de conhecimento não privado que toma corpo em
comunidades mais ou menos amplas,... A ciência apresenta-se, na sua essência,
como pensamento que tende à sistematização, à colocação de afirmações
particulares em contextos teóricos muito amplos. Mas da nossa imagem de ciência
também faz parte integrante a ideia de especialização: vale dizer, a ideia de que a
própria existência dos objetos de uma ciência específica pressupõe definições e
teorias103.

Essa definição permite o destaque das características da ciência: a


demonstrabilidade, a comunicabilidade, a transmissibilidade, a refutabilidade, a
publicidade, a abstração, a sistematização e a especialização.
A filosofia, embora também se preocupe com a sua coerência e com a
verdade, não é exatamente ciência. Como Aristóteles já ressaltava, a filosofia
aproxima-se do indemonstrável, podendo utilizar o instrumental teórico da ciência
para compreendê-lo, mas jamais o transformando em demonstrável. Outro ponto que
distancia a filosofia da ciência legada pela modernidade é a ênfase objetivante desta. O
discurso universal da filosofia transcende a qualquer objeto. Uma de suas principais
preocupações é com a unidade do saber, no que se opõe fundamentalmente à
especialização das ciências. Não há como confundir filosofia com ciência, nem mesmo
como reduzi-la à teoria das ciências ou à epistemologia, como fizeram os
neopositivistas.
Para se afirmar como um saber válido, o direito, após o século XIX,
assumiu as vestes de ciência. O universo jurídico foi em tal período fortemente
influenciado por pautas e modelos oriundos das pesquisas das ciências naturais.104 A
concepção dos estudos sobre direito como ciência embaçou durante o século XX

102
São esses os elementos fundamentais do pensamento cartesiano – DESCARTES. Discurso do Método —
Regras para a Direção de Espírito. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 31.
103
ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos. São Paulo: Editora Unesp, 1992, p.53.
104
VILLEY, Michel. Leçons d’histoire de La philosophie du droit. Paris; Dalloz, 2002, p. 69.
54

outras formas de concebê-lo como virtude intelectual, especialmente como prudência e


filosofia105.
A ciência e seus desdobramentos tecnológicos espraiaram-se como meio
para o domínio do mundo. Afloraram os modelos positivistas e neopositivistas para
servir a qualquer vontade, seja de domínio tecnológico ou político do mundo. Com
propriedade, Gadamer expõe as consequências do surgimento de comunidades de
saber especializado voltadas apenas para o domínio da experiência e do verificável,
segundo critérios metodológicos de objetividade:
Depois que a base religiosa e moral do pensamento kantiano da liberdade
desaparece cada vez mais da consciência de nosso tempo presente, funda-se a
autoconsciência do homem em uma exclusividade cada vez mais forte de seu fazer
e de seu poder.106
A fé científica da idade técnica mudou todas as relações naturais a partir da base.
A ciência domina por meio da sociedade de especialistas. É o que está por trás da
economia mundial, por trás da electronic war, e também em cada queda no
niilismo, cuja emergência Nietzsche profetizou de forma clarividente e que nas
formas secularizadas de Cristianismo está já acabado. A fé científica dessa
terceira ilustração está acompanhada, sem embargo, por uma amarga dúvida no
futuro da humanidade [...]107

Ora, diante das aporias do positivismo e do neopositivismo na teoria do


direito, a opção clara que se impõe é retomar o caminho de uma teoria com
consciência histórica e social. É resgatar a preocupação moderna de fazer uma teoria
do direito como forma de assegurar a liberdade, a igualdade, a dignidade da pessoa
humana e princípios instrumentais como o devido processo legal. A unidade e a
coerência que se busca por meio de uma teoria no direito só tem sentido para a
concretização social dos ideais contidos em tais princípios. Preocupações semelhantes
a essa são as de Dworkin na formulação do direito como integridade e na formulação
de uma teoria de direitos públicos subjetivos a partir da igualdade:
O direito como integridade, portanto, não apenas permite, como também promove
formas de conflito ou tensão substantivos dentro da melhor interpretação geral do
direito. Agora estamos em posição de explicar o porquê. Aceitamos a integridade
como ideal político distinto e aceitamos o princípio da integridade na prestação
jurisdicional como soberano em todo o direito. Pois queremos tratar a nós mesmos
como associação de princípios, como uma comunidade governada por visão

105
Para ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mario da Gama Kury. 4ª ed. Brasília: Universidade de
Brasília, 2001. p. 115; 1139b, as virtudes intelectuais seriam as seguintes: arte – tekne, ciência – episteme, a
prudência – phronesis, a filosofia – sophia e a inteligência – logos. Para os romanos, o direito estava vinculado
principalmente à arte e à prudência, mas não ao saber teórico, matemático ou dos princípios imutáveis que
caracterizavam as outras virtudes.
106
GADAMER. Elogio de la Teoría. Trad. Anna Poca. Barcelona: Península, 2000, p. 85.
107
Idem. Ibidem. p. 81.
55

simples e coerente de justiça, equidade e devido processo legal adjetivo na


proporção adequada108.
Proponho também que os direitos individuais a diferentes liberdades só devem ser
reconhecidos quando se pode demonstrar que o direito fundamental a ser tratado
como igual o exige. Se isso é correto, então o direito a diferentes liberdades não
entra em conflito com nenhum suposto direito concorrente à igualdade, mas, pelo
contrário, se segue uma concepção de igualdade reconhecidamente mais
fundamental 109.

Na visão de Dworkin, entender o direito a partir de uma teoria significa


conferir-lhe coerência e integridade como garantia do ideal de igualdade e de outros
princípios que lhe conferem densificação. Claramente, para superar os problemas
postos pelo positivismo, Dworkin também retomou alguns dos sentidos dados ao
direito pelo jusnaturalismo, em que o conhecimento jurídico e a organização social
foram derivados de um sistema de direitos.
Na medida em que a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade
são extremamente abstratas, é impossível compreendê-las sem o instrumental de
coerência e unidade conferidos por uma teoria. Por isso, abdicar do pensamento
teórico em uma aproximação sistemática conscientemente aberta significa abandonar
esses princípios. De tal modo, a teoria justifica-se no direito como meio de unidade,
coerência e sistematicidade para garantia de ideais abstratos como liberdade, igualdade
e dignidade da pessoa humana.
Entretanto, a consistência teórica do direito não pode ser o resultado de uma
conformação exclusivamente científica ou técnica110. A teoria jurídica deve também
ser concebida como prudência e filosofia, eis que tais ideais abstratos só têm sentido
como uma conquista de autonomia de cada indivíduo.
A visão objetivante da ciência e da técnica moderna não é capaz
isoladamente de possibilitar a realização de tais princípios que dizem respeito à
construção de um âmbito de afirmação do indivíduo como sujeito autônomo. A visão
reflexiva, crítica e universalizante da filosofia é, sem dúvida alguma, etapa
fundamental para tal desiderato. De igual modo, a prudência, como razão prática, que
permite ao ser humano estabelecer um padrão do bom e correto, é uma face

108
DWORKIN. O Império do Direito. Trad. Jefefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 483.
109
DWORKIN. Los Derechos en Serio. Trad. Marta Gustavino. Madri: Ariel, 1999, p. 390.
110
A estreiteza dos parâmetros das ciências legatárias da modernidade para o direito podem ser apreendidas com
a leitura da obra do Prof. Tércio Sampaio (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo:
Editora Atlas, 1977, pp. 12-16).
56

fundamental do direito, eis que a isonomia, a liberdade e a afirmação da dignidade


dizem respeito ao desenvolvimento concreto da vida do cidadão.
A regulação vincula-se a uma visão técnico-objetivante do direito em que
este se apresenta como um instrumento para conformação setorial econômica e política
da sociedade com vistas à obtenção de utilidades sociais a partir de uma normatização
especial. É por isso que é necessário enxergar o direito além de suas vestes técnico-
científicas, para que ele possa exercer sua função de mediar discursivamente as
relações entre o mundo da vida e a economia e o poder administrativo-burocrático. Só
assim, por meio de um discurso que congregue reflexivamente comunidades de
especialistas e cidadãos de vivências indiferenciadas num processo político
juridicamente estruturado, em que os princípios sejam os canais de acesso que podem
dar sentido à técnica/ciência contida na regulação, é possível realizar os princípios do
Estado Democrático de Direito.
57

2.º Capítulo – A crítica da regulação

2.1 A irrupção da regulação

É interessante situar a irrupção da regulação no Brasil. Obviamente, não se


tem a pretensão de estabelecer um momento canônico de seu surgimento, mas apenas
de possibilitar uma contextualização. A regulação é um conceito existente há bastante
tempo, mas não era objeto de apropriação por parte da doutrina brasileira de direito
administrativo111.
Nos Estados Unidos, a palavra regulação e seus cognatos (regulate,
regulatory, regulation) estão relacionados à gênese do Estado, aludindo à generalidade
de poderes que ele tem em relação aos indivíduos. Dentro da experiência norte-
americana, com marcas mais profundas do liberalismo do que a brasileira, a regulação
significa uma maior intervenção do Estado nas atividades privadas112.
O espraiamento da regulação no Brasil foi marcado por peculiaridades. Na
doutrina brasileira, já na década de 1960, Themístocles Cavalcanti concluía pela
caracterização da regulação como a retirada do Estado da interferência operacional na
economia, remetendo à legislação a definição de standards a serem regulamentados
por órgão técnico especializado113. Todavia, a regulação adquiriu, com as privatizações
da década de 1990, maior espaço na reflexão jurídica brasileira, marcadas pela saída
parcial do Estado, que deixou de ser um ator direto na economia com monopólios e
empresas estatais.
Na Europa, a política de Margaret Thatcher de interferência do Estado na
criação da empresa Mercury para competir com a British Telecom na década de 1980,
e no setor de energia elétrica, com o desmembramento vertical entre geração,

111
ALMEIDA, Fernando Dias Menezes. Teoria da regulação. In: CARDOZO, José Eduardo Martins et alii.
Curso de direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 120.
112
Idem. Ibidem, p. 126.
113
CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Tratado de direito administrativo. Vol. II, 5ªed. Rio de Janeiro:
Livraria Freitas Bastos, 1964, p. 496-499.
58

transmissão e distribuição de energia, impulsionou o tema. O Banco Mundial enfatizou


a privatização dos setores antes considerados monopólios naturais estatais como meta,
sob o fundamento de que a dissociação das diversas etapas da infraestrutura associada
à competição gerava um ambiente de maior inovação. A condição para isso estava no
controle de tais setores pela atividade regulatória do Estado. Nesse sentido, a regulação
restringia-se à função do Estado de facilitar o funcionamento das forças do mercado
livre114 em áreas como saúde, assistência social e várias outras atividades
governamentais115.
Essa implantação das políticas da era Thatcher, no entanto, foi objeto de
análises críticas a essa abordagem restritiva do papel estatal. Sob tal perspectiva, além
de coordenar a atuação privada nos setores regulados, cabia ao Estado induzir a
satisfação de outras exigências sociais e ambientais que não poderiam ser atingidas
pela dinâmica do mercado116. Foi por essa ótica que o fenômeno regulatório se deu nos
Estados Unidos.
Parece haver uma indicação de sentidos contrários nos movimentos
ocorridos nos Estados Unidos e, de outro lado no Brasil e na Europa. Na primeira
experiência, a regulação significa um avanço do Estado, e na segunda, uma suposta
retirada. Em verdade, a diferença é fruto de uma análise superficial. É ingenuidade
considerar que a mudança da forma de atuação117 e interferência na economia, com a
passagem da atuação direta para a ênfase regulatória, signifique uma diminuição do
Estado. É marcante que os Estados Unidos tenham passado no final da década de 1970
por um processo de desregulação como forma de diminuir a presença do Estado nas
atividades econômicas por uma generalizada desilusão com a eficácia da intervenção
estatal118.

114
LAWSON, N. Energy Policy. In: HELM, D; KAY, J; THOMPSON, D. The Market for Energy. Oxford:
Clarendon Press, 2002, p. 23-29
115
PROSSER, Tony. The limits of competition Law. Oxford/Nova Iorque: Oxford University Press, 2005, p. 44.
116
ROBERTS, Jane; ELLIOTT, David; HOUGHTON, Trevor. Privatising Electricity: The Politics of Power.
London: Belhaven Press, 1991
117
Aqui a palavra atuação está utilizada como ação do no campo da atividade econômica em sentido amplo, ou
seja, serviços públicos somados à atividade econômica em sentido estrito (GRAU, Eros. A ordem econômica na
Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 137).
118
PELTZMAN, S. A teoria econômica da regulação depois de uma década de desregulação. In: MATTOS,
Paulo et alii. Regulação econômica e democracia. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 82.
59

Se analisado com acuro o fenômeno, tem-se uma mudança de paradigma.


No modelo da interferência direta, o Estado, fundamentalmente uma organização
política, torna-se um ator econômico, sofrendo todos os influxos e limitações inerentes
à sua natureza. Na regulação se forma um aparato burocrático não para atuar ou
competir, mas para supervisionar, direcionar e coordenar as forças de um mercado
substancialmente privado. Nas duas hipóteses, há uma forte presença do Estado, seja
empresarialmente ou burocraticamente, mas, na hipótese da regulação, tem-se uma
potencialização do impacto das políticas governamentais pelo seu somatório com as
forças de mercado. Em suma, a ênfase regulatória é o reconhecimento de que o Estado
não pode substituir nem organizar de forma absoluta os mercados, cabendo-lhe
respeitar a dinâmica própria do sistema econômico para daí gerar, com mais eficiência,
bens e serviços de interesse público119.

2.2 Noções sobre a regulação

O termo regulação tem uma multiplicidade de sentidos. Isso não afasta um


eixo de percepção que é um constante e focalizado controle exercido por um
órgão/agência público(a) sobre atividades relevantes para a sociedade120,
acumulando para isso funções normativas, administrativas e judicantes. Outra
característica da regulação é tratar fundamentalmente de uma realidade que tem raízes
nos sistemas econômicos e político-burocráticos, sendo operacionalizada por formas

119
LUHMANN, Niklas. Law as social system. Oxford/Nova Iorque: Oxford University Press, 2009, p. 480:
Politicamente, a economia não pode se submeter a nenhum controle Em nota de n.º 38: Isso não se demonstra
apenas com o fracasso da realização política de uma “economia socialista”, mas também o fracasso do
isolamento econômico nacional por razões de autopreferência política (por exemplo Brasil e México) com a
perda de crédito por parte de quase todos os Estados do sistema financeiro internacional (com conseqüências
consideráveis para esse sistema); ou, também, a grotesca subestimação das consequências econômicas da
politicamente desejável reunificação alemã. A política pode gerar decisões por motivos politicamente
relevantes, mas as suas consequências são decididas na economia.
120
OGUS, Antony I.. Regulation: legal form and economic theory. Oxford/Portland: Hart Publishing, 2004, p. 1.
60

jurídicas e técnico-científicas. A regulação abrange, ainda, três aspectos básicos: a)


fixação de padrões; b) coleta de informações; c) transformação comportamental121.
Nos países industrializados há uma tensão entre dois sistemas de
organização econômica. No sistema de mercado, indivíduos e grupos desfrutam de
liberdade para atingir seus objetivos, estando submetidos a regras do direito privado.
No sistema coletivista, o Estado direciona comportamentos que não ocorreriam sem
sua intervenção122. Nesse último, procura-se corrigir deficiências do mercado em vista
do interesse público. Regulação significa, assim, implementação pelo direito de um
sistema com enfoque coletivista. Esse posicionamento da regulação permite identificá-
la com finalidades públicas que não poderiam ser atingidas em mercados não
regulados123.
A regulação pode, nesse sentido, ser abordada como um fenômeno
normativo amplo que abrange uma delimitação legal do setor regulado, sua
regulamentação por Decreto do Presidente da República e a edição de normas
regulamentadoras por entes públicos com vistas a implementar diretrizes políticas de
índole coletivistas com vistas à configuração de um serviço ou a obtenção de uma
utilidade. A noção de regulação é, portanto, englobante e dinâmica, com demarcação
de competência pelo legislador para edição de novas regras sobre o setor regulado.124
Nela encontra-se essa tensão entre a autonomia dos agentes no mercado e
diretrizes coletivistas/públicas de ordenação da economia. Por isso, a regulação da
atividade diretiva exercida por uma autoridade superior configura um serviço público
ou uma atividade de interesse público exercida por particulares em regime de

121
Essa ideia está desdobrada no seguinte trecho (HOOD. C. et alli. The Government of Risk. Oxford: Oxford
University Press, 2001, p. 23): [...] qualquer sistema de controle na arte ou na natureza precisa, por definição,
conter pelo menos três componentes [...]. É preciso que haja alguma capacidade de fixação de padrões, para
possibilitar a distinção entre um estado mais perfeito e um estado menos perfeito do sistema. É preciso também
que haja alguma capacidade de coleta de informações ou monitoramento, para que se produza conhecimento
sobre os estados atual e cambiante do sistema. Acima disso tudo deve haver alguma capacidade de
transformação comportamental para mudar o estado do sistema.
122
OGUS (Op. cit., p. 1)
123
É o que defende SUSTEIN no seguinte trecho (SUSTEIN , Cass R. After the rights revolutions –
reconceiving the Regulatory State. Cambridge: Harvard University Press,1993, p. 228): Nós vimos que a
regulação econômica e social foi desenhada para promover eficiência econômica, para redistribuir recurso de
acordo com o espírito público, para reduzir ou eliminar subordinação social, para refletir aspirações coletivas,
para proteger futuras gerações de perdas irreversíveis e para alterar preferências que são produzidas por
vários defeitos motivacionais ou cognitivos.
124
LINOTTE, Didier & ROMI, Raphaël. Droit public économique. Paris: Litec, 2006, p. 133.
61

concorrência125. Numa perspectiva jurídico-econômica, a regulação pode ser entendida


como uma forma de integração equilibrada de atividades produtivas. A regulação é
mais efetiva naqueles setores em que as estruturas de mercados impedem a existência
de concorrência.
É a partir desse ponto que se pode distinguir o direito antitruste da
regulação. No primeiro há uma atuação passiva com o controle de formação de
estruturas e punição de condutas infracionais. Há sobretudo atos de controle e de
fiscalização, sem interferência do Estado na produção da utilidade pública, Na
segunda há uma intervenção ativa que vai além do controle, atingindo a criação do
próprio serviço ou da utilidade pública. Essa utilidade vincula-se diretamente a um
sistema de concorrência, que é o valor mínimo a ser garantido no âmbito da
regulação126. O próprio papel redistributivo e garantidor de igualdade de oportunidades
do Estado, no âmbito da regulação, realiza-se em geral por meio da concorrência entre
os agentes do mercado.
Sob o ponto de vista jurídico, há diversas abordagens para a regulação.
Algumas focam-na sob a ótica do direito administrativo, estudando suas estruturas
autárquicas reguladoras, suas competências e suas funções127. Há ainda a perspectiva
constitucional em que se procura verificar direitos e liberdades como espaço de

125
Essa configura da regulação configura a passagem e o amadurecimento de paradigmas de Estado, como bem
se percebe no seguinte trecho (FARIA, José Eduardo. Regulação, direito e democracia. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2002, p. 8): É justamente esse o pano de fundo do debate travado neste livro, ou seja,
o contexto da substituição do tradicional Estado keynesiano do pós-guerra, capaz de articular os componentes
de acumulação com bases nacionais, institucionalizar os conflitos e assegurar a coesão social, por um Estado
de feições schumpeterianas – basicamente comprometido com a inovação tecnológica e a adequação de suas
estruturas à nova ordem econômica internacional. À medida que seu tamanho e seu alcance refluem, ao final da
década de 1990, suas funções e seus papéis mudam. Ele deixa de ser o controlador, diretor, planejador e
indutor do desenvolvimento e passa a atuar como regulador das atividades privatizadas, como balizador da
concorrência, como estimulador da oferta de serviços essenciais num ambiente competitivo, como garantidor
dos direitos do consumidor e como criador de oportunidades de negócios para a iniciativa privada e de
investimento para o desenvolvimento tecnológico.
126
SALOMÃO FILHO, Calixto. A regulação da atividade econômica. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 37.
127
É esse o sentido de regulação acolhido pelo Prof. Marcelo Figueiredo no seguinte trecho: Regulação é
conceito mais amplo. Juan Miguel de La Cuétara Martínez relacionou exemplificativamente técnicas de
regulação como sendo: técnicas de polícia, autorizações, licenças, alvarás, proibições, inspeções etc.; além
dessas, defesa da concorrência, controle de preços, ordenação setorial para garantir equilíbrio e harmonia,
disciplina de setores específicos (bolsa, bancos etc., obrigações de serviços públicos, relações pontuais de
sujeição especial, contratos com o Estado, concessões, contratos-programa, incentivos econômicos ou jurídicos
etc.) (FIGUEIREDO, Marcelo. Os controles políticos e legais nas agências no ordenamento jurídico norte-
americano e o princípio da separação de poderes. In: FIGUEIREDO, Marcelo. Direito e regulação no Brasil e
nos EUA. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 83).
62

postulação de interesses legítimos garantidos na Constituição128. Uma terceira vertente


está no direito econômico, que a enfoca a partir de comportamentos de mercado a
serem induzidos por regras jurídicas129 que visam a suprir as falhas de mercados. É
possível também conceber a regulação como o acompanhamento de um setor com
vistas ao seu equilíbrio interno, especialmente entre os interesses dos acionistas das
empresas e dos consumidores, como um substituto para a competição e com um
significado jurídico de acompanhamento de um setor regulado. Nessa perspectiva, é
preocupação da autoridade regulatória o aumento do bem-estar do consumidor e a
promoção de eficiência130. Sob o ponto de vista econômico, há teoria econômica da
regulação em que ela é analisada como um bem objeto de disputas entre grupos com
interesse na normatização setorial, especialmente o controle de preços131.
São possíveis, pois, três modelos de configuração jurídica de setores
regulados132:
– Atividade regulada – a Administração regula de fora o setor com
particular intensidade em vista do interesse público que cerca o exercício
daquela atividade privada.
– Serviço público – a assunção pelo Estado da titularidade da atividade que
é repassada aos particulares que são controlados internamente pela
Administração a partir de um contrato de concessão ou permissão.
– Nacionalização – a transformação de empresas privadas em empresas do
Estado ou a criação de empresas estatais para explorar o serviço, o que
implica uma atenuação na ênfase regulatória com deslocamento para a
atuação direta.
Nessas três modalidades a regulação já se fazia presente no Estado Social,
no exercício das tarefas redistributivas e compensatórias típicas de tal modelo. No
entanto, as tarefas dos Estados contemporâneos, como evolução do paradigma do

128
Essa é a perspectiva do GETEL no programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da UnB:
http://www.getel.org/sites/default/files/PROGRAMA_REGULACAOSETORIAL_2006.pdf
129
CARVALHO, Carlos Eduardo Vieira de. Regulação de Serviços Públicos na Perspectiva da Constituição
Econômica Brasileira. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007, p. 172
130
PROSSER (Op. cit., p.18).
131 131
STIGLER, George. A teoria da regulação econômica. In: MATTOS, Paulo. Regulação econômica e
democracia. O debate norte-americano. São Paulo: Ed. 34, 2004, pp. 49-80.
132
ARIÑO, Gaspar. Economia y Estado. Madri: Marcial Pons, 1993, p. 267.
63

Estado Social, vêm-se deslocando para atividades de controle de riscos oriundos


principalmente da aplicação da ciência e da técnica e da estabilização de mercados. É
aí que a regulação se faz mais presente com a necessidade de crescente intervenção da
Administração na esfera econômica para a disponibilização de utilidades
compensatórias típicas do Estado Social. Como visto, o Brasil não ficou fora dessa
tendência, havendo um movimento de passagem de Estado empresário para Estado
regulador no fim do século XX, como modo de prover utilidades típicas do Estado
Social.

2.3 A gênese do legalismo e da regulação

A regulação como processo de produção artificial de normas por entidades


autônomas incrustadas no Estado deve sua existência a uma concepção moderna de
direito e instituições políticas. Esse fenômeno de deslocamento de poder normativo
ocorre a partir de alguns pressupostos: 1) a consolidação de um sistema político-
burocrático, 2) a constituição de um sistema econômico, 3) a positivação do direito
como sua produção artificial em regras formais com hipóteses de incidência e sanções
que visavam a regular comportamentos, 4) instituições jurídicas e políticas concebidas
funcionalmente para a consecução de utilidades sociais, como por exemplo o
estabelecimento da paz, do bem-estar social, da vida mais agradável possível e 5) o
estabelecimento de aplicações técnico-científicas como meio para consecução dessas
finalidades sociais.
No entanto, essa produção de regras por entes autônomos emergiu de
disputas sociais que levaram a diferentes configurações de Estado e de instituições
jurídicas. Não se pode esquecer que a ênfase regulatória é um grande problema para o
Estado Democrático de Direito e que seu cenário é o do conflito de classes amortecido
por diretrizes compensatórias típicas do Estado Social. Daí a importância de uma
reconstrução dos diferentes paradigmas do Estado a partir da Modernidade.
64

2.3.1 O Estado Burguês Absolutista

O direito pré-oitocentista era essencialmente pluralista. Em primeiro lugar


porque a lei, dentro do direito “oficial”, era uma fonte minoritária. O direito aplicado
pelos tribunais centrais ou periféricos era esmagadoramente doutrinário, valendo-se os
juristas do antigo regime da máxima romana segundo a qual o direito [civil] consiste
somente na interpretação dos juristas (ius civile in sola prudentium interpretatione
consistit133). A lei era usada apenas como meio para suprir ou adaptar a doutrina.
Tanto era assim que as Ordenações portuguesas cobriam setores muito limitados da
regulação jurídica: de um certo modo, apenas a organização dos órgãos do poder
oficial, e não na sua totalidade, organização processual e direito penal. O grande
território do direito civil, do direito comercial, do que hoje conhecemos como direito
administrativo e constitucional, estava regulado principalmente pelos comentadores134.
O recurso à lei só se dava quando a coroa pretendia pôr em causa direitos
adquiridos (iura quaestia), já que a doutrina do direito comum os salvaguardava de
todas as intervenções que não se revestissem da forma legal, em invocação da potestas
extraordinária. De resto, mesmo em inovações, utilizavam-se outros meios
normativos, como os precedentes judiciais (“estilo” ou “assento”), a instrução a órgãos
administrativos (“decreto”, ‘provisão”, “portaria”) ou a regulamentação interna (Lex
rei suae dicta, como os regimentos da Administração “dominial” ou “doméstica” da
coroa, em que o rei regulava os serviços da “casa”).
Havia, ainda, a subordinação da lei à doutrina. Na interpretação, isso ficava
muito claro por uma série de regras que faziam com que a lei acabasse por ser
absorvida pelo sistema doutrinário. Nesse sentido, as leis deveriam ser interpretadas de
acordo com os princípios da doutrina (ratio iuris); as leis que fossem contra esses
princípios seriam excepcionais; e o próprio príncipe, ao editar a lei, estaria limitado
pelo direito natural (reta ratio).

133
Pomponius, D, I, 2, 2, 12
134
HESPANHA, A. M. Lei e justiça: história e prospectiva de um paradigma. In: HESPANHA, A. M. Justiça e
litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 14.
65

Não só no confronto com a doutrina a lei se achava limitada, mas também


no confronto com regramentos provenientes da auto-organização dos corpos sociais
particulares. O direito canônico regulava a comunidade dos crentes, assim como a
ordem doméstica era em boa parte normatizada pelos poderes disciplinares do pater.
Às outras comunidades (territoriais, profissionais, assistenciais, culturais) era
reconhecido um poder de autorregulamentação. Aí o estatuto e o privilégio, como
formas de regulamentação, impunham-se à lei.
De mais a mais, o próprio direito escrito e, portanto, erudito, no qual se
situa a lei, era minoritário. Era o direito rústico, que no caso de Portugal, por exemplo,
correspondia a 85% da população, regrada por padrões de comportamento fixados por
tradição e formas antigas de organização da comunidade135.
É certo que o despotismo ilustrado trouxe um projeto de redução do
pluralismo pelo reforço do poder real com a valorização da lei como ato de vontade do
monarca. O volume de produção legislativa aumentou e se afirmou a precedência da
lei sobre as outras fontes do direito. O próprio estilo legislativo refletiu isso com o uso
de fórmulas retóricas com o intuito de reforçar o poder central.
O antigo regime legou uma sociedade dualista do ponto de vista dos
controles jurídico-políticos. Uma parcela da sociedade, claramente minoritária, vivia à
sombra do direito escrito oficial, que foi aos poucos se deslocando do direito judicial-
doutrinário para a lei. Uma outra parte, francamente majoritária, mantinha com esse
direito um contato frouxo, regrando-se basicamente por práticas e tradições.
A esse dualismo jurídico correspondia também um dualismo político. O
universo político liberal situava-se nos estratos urbanos e alfabetizados que viviam sob
os ditames do direito oficial. A vontade geral da teoria política liberal estava
circunscrita a esse âmbito. Por isso, a lei escrita só produzia sentido nesse setor liberal,
até mesmo porque os analfabetos estavam excluídos pela disciplina do voto. O apoio
da sociedade liberal exclusivamente na lei criava um curto-circuito com os iletrados e
as comunidades tradicionais, mas ao mesmo tempo confirmava um modelo de
organização política burguesa. Abandonava-se a maioria que estava na periferia social,

135
Idem. Ibidem, p. 15.
66

deixando o seu controle para o “caciquismo” político.136 Em que pesem os ideais


universalistas e democráticos, o Estado de configurações liberais e o primado da lei
diziam respeito apenas a uma minoria de “assimilados”.
Isso não impediu que se falasse num processo de juridicização
(Verrechtlichung) que se referia a uma tendência ao aumento do direito escrito a partir
da Modernidade. Assuntos que eram regulados informalmente pela tradição e pelos
costumes foram assimilados pelo direito escrito que se adensou, desmembrando
progressivamente matérias jurídicas globais em particulares. O Estado Absolutista que
se desenvolveu na Europa Ocidental foi uma primeira etapa desse fenômeno137.
O Estado Absolutista constituiu uma ordem dentro da qual se efetuou a
transição da sociedade estamental para a sociedade capitalista. O comércio e as
relações mercantis receberam um regramento de direito privado que permitia sua
organização em corporações e pessoas jurídicas que estabeleciam entre si contratos e
transmitiam livremente suas propriedades. Para isso, absorvia-se o conceito moderno
de lei, já com características de positividade, universalidade e formalidade.
No plano do direito público se estabeleceu uma única fonte de dominação
juridicamente legítima, reservando-se ao soberano o monopólio da violência. O poder
do monarca desvinculou-se de conteúdos concretos, passando a ser definido
instrumentalmente com os meios do exercício de uma organização da dominação
burocrática.
Emergiram visivelmente, nesse período, a sociedade civil e formas de atuar
sistêmicas como a da economia e a do Estado, restando ao indivíduo uma esfera de
autodeterminação definida informe e negativamente, no modelo hobbesiano, como a
não abrangida pelo Estado. O que ficou assegurado foi uma esfera privada,
caracterizada por um mínimo de paz que permitia a sobrevivência física e por uma
competição segundo leis de mercado pelos escassos recursos materiais para a
satisfação das necessidades, estando franqueado à economia extrair o trabalho dos
indivíduos e ao Estado garantida a obediência dos súditos.

136
Idem. Ibidem, p. 18.
137
HABERMAS, Jürgen. Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad.
Manuel Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 505.
67

No Estado Absolutista, tudo o que não estava regulado pelo Poder Político
com as formas jurídicas encontrava-se disforme138, entregue a um âmbito de
autodeterminação ou às coerções oriundas das comunidades tradicionais que
mantinham seus espaços de dominação.
A primeira jornada de juridicização, no Estado Absolutista, quando se
formou a sociedade civil, mostrou-se dominada pelas ambivalências expostas por
Marx sobre o trabalho livre. Ao mesmo tempo em que se emancipavam os
trabalhadores assalariados, conferindo-lhes liberdade de movimento e voluntariedade
para aderir ao emprego e às organizações, ocorria a proletarização dessa forma de
vida, que não foi objeto de regulação jurídica.
As jornadas seguintes construíram sobretudo discursos de emancipação,
com a constitucionalização e a democratização da dominação burocrática, inicialmente
absolutista. As instituições jurídicas que solidificaram a soberania passaram a ter
sentido inequivocamente139 garantidor de liberdades. Nesse cenário, sempre que o
direito formal burguês faz prevalecer as pretensões do mundo da vida em face da
dominação burocrática perde a ambivalência inerente a uma realização de liberdades
conseguida ao preço de efeitos laterais destrutivos140.
Nesse primeiro momento de organização do Estado, o conjunto dos seus
poderes tinha raízes na pessoa do rei, que centralizava as funções que posteriormente
seriam decompostas em judicial, executiva e legislativa141. No exercício dessa última
atividade, cabia ao soberano, pela edição de leis, limitar direitos em prol de um bem
maior, como por exemplo a paz, no caso da obra de Hobbes. Todavia, o aparecimento
da figura do soberano significa a centralização de poderes e a legitimação do poder
real que não estava na sua burocracia ou na técnica, mas apenas na proeminência de
uma vontade que se sobrepunha às demais, evitando conflitos142. O Estado Absolutista
consolidou seu poder com a expansão do direito escrito.

138
HABERMAS, Jürgen. Teoría de La acción comunicativa, II – crítica de La razón funcionalista. Trad.
Manuel Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 507.
139
Idem. Ibidem, p. 510.
140
Idem. Ibidem, p. 508.
141
MONCADA, Luís S. Cabral. Lei e regulamento. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 31.
142
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 197.
68

Entretanto, a regulação é a inversão do fenômeno da positivação legalista


como técnica de controle social. Ao contrário do que ocorria no Estado Absolutista,
em que os súditos renunciavam de sua liberdade para conquistar a segurança,
concentrando poderes no soberano, agora advém uma dispersão de poderes na
máquina burocrática para obter compensações e utilidades a partir da coordenação do
processo de produção pelo Estado. Enquanto no Estado Absolutista foi a centralização
do poder no rei que possibilitou a autonomização e o desencaixe do sistema
econômico e a criação de uma burocracia, a regulação contemporânea é fruto do
amadurecimento desse desencaixe em que a autonomização do sistema econômico e
da burocracia pode-se sobrepor à própria soberania. Em relação à autodeterminação, a
regulação também fornece um nítido contraste com o Estado Absolutista: enquanto a
autonomia e os direitos estavam informes no Estado Absolutista, a regulação redunda
numa sobrenormatização formalizadora que, em razão de sua excessiva rigidez,
embaça os direitos fundamentais.

2.3.2 O Estado Burguês de Direito

O Estado Burguês de Direito encontrou sua melhor expressão no


constitucionalismo alemão do século XIX, entendendo-se que o Estado deve assegurar
com exatidão, por via do direito, tanto as formas como os limites de sua atuação, assim
como a livre esfera dos cidadãos. O governo deve ater-se ao direito, não lhe cabendo,
sem recorrer às formas jurídicas, realizar ou impor conteúdos. Isso não significa que o
governo não tenha fins administrativos ou simplesmente defenda o interesse dos
particulares, mas que não se faça referência a fins e conteúdos do Estado, e sim ao
modo e à maneira de realizá-los por meio das formas jurídicas143.
Ocorreu um segundo impulso na juridicização da sociedade que foi além da
conformação e da limitação do poder pela lei e pela burocracia. Aos cidadãos, como

143
HABERMAS (Op. cit., p. 508).
69

pessoas privadas, garantiam-se direitos público-subjetivos que valiam contra o


soberano. No entanto, isso não significava participação democrática.
Com a instauração do Estado de Direito, não só a esfera privada, mas
principalmente a Administração, ficou subordinadas à lei, instaurando-se um “império
da lei”. Na esfera de liberdade do cidadão, a Administração não podia intervir sem lei,
seja praeter ou ultra legem. A vida, a liberdade e a propriedade das pessoas privadas
assumiam papel central, conformando as instituições de direito público, justificando-as
e legitimando-as.
A ideia de liberdade burguesa estava no fundamento da Constituição. A
liberdade pessoal, a propriedade privada, a liberdade contratual e a liberdade de
comércio eram esferas da sociedade. Nesse âmbito, o Estado, como mero servidor da
sociedade, estritamente controlado, submetia-se a um sistema acabado de normas
jurídicas ou simplesmente identificado com esse sistema de normas, não sendo mais
que norma e processo. Isto, de resto, estava de acordo com ‘aquela contenção de
finalidades’ que corresponde ao ideário liberal144.
Enquanto o Estado Absolutista havia deixado a sociedade civil como uma
matéria informe, orientando legislativamente apenas a economia e o poder
administrativo-burocrático, o ordenamento do Estado de Direito se enriqueceu para
regular também a sociedade civil, e o mundo da vida passou a ser objeto de
reconhecimento e proteção145. Nas palavras de Habermas, nesse paradigma o Estado
Moderno adquire uma legitimidade por direito próprio, adquire legitimações
baseadas no mundo da vida146.
Em frontal contraste com o Estado de Direito, a regulação contemporânea
significa interferência na esfera privada com vistas a coordenar a atividade privada
para a consecução de finalidades públicas e coletivas sem estrita submissão às formas
e aos procedimentos da legalidade. O surgimento do fenômeno regulatório não se
adéqua aos ditames do Estado de Direito, já que a lei deixa de ser o único e exclusivo
veículo para normatização de atividades privadas e ainda os direitos público-subjetivos

144
VAZ, Manuel Afonso. Lei e reserva de lei. Porto, 1996, p. 124.
145
HABERMAS (Op. cit., p. 509).
146
Idem. Ibidem.
70

acabam relegados a um segundo plano, assumindo papel predominante a produção de


utilidades.

2.3.3 O Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito ganhou sua formatação pela primeira vez


com a Revolução Francesa e ocupou a teoria do Estado desde pensadores como
Rousseau e Kant até os dias de hoje. Além das garantias típicas do Estado de Direito,
com essa nova etapa de juridicização assegurou-se a participação política como
formatação da liberdade almejada pelos jusnaturalistas modernos.
As leis só se consideravam válidas quando por via da participação
democrática, especialmente por intermédio do Parlamento. Presumia-se que
expressava a vontade geral e, portanto, todos os afetados poderiam hipoteticamente
assentir aos seus comandos. A discussão pública era outra fonte de legitimação das
normas jurídicas. A atividade normativa de caráter inovador deslocou-se para o Poder
Legislativo. A democracia não era apenas o governo do povo, mas o seu governo por
canais predeterminados e segundo procedimentos predefinidos pelas formas do
direito147 com o surgimento de uma esfera pública de debates com forte influência
sobre os órgãos legislativos.
Os discursos jurídicos se implantaram na forma de voto universal e igual e
com liberdades de associação e criação de partidos políticos. Nesse cenário, ganhou
destaque a divisão de poderes com o estabelecimento da repartição funcional da
atividade legislativa, da executiva e da administração da justiça. Sob a perspectiva do
Estado de Direito, o problema só se colocava na repartição de poderes entre o
Executivo e a Justiça.148

147
HOLMES, Stephen. Vincoli constituzioli e paradosso della democrazia. In: ZAGREBELSKY, Gustavo et
alli. Il future della costituzione. Turim: Einaudi, 1996, p. 201.
148
HABERMAS (Op. cit., p. 509)
71

A tripartição clássica de poderes reservou precipuamente ao Legislativo a


discussão e o acordo sobre programas gerais149. Ao Judiciário, por meio de processos
específicos, civil e penal, foi conferida a função de decidir conflitos estabilizando
expectativas de comportamentos com a validação e a determinação do direito para o
caso concreto. Por último, ao Executivo coube a execução do conteúdo teleológico do
direito vigente por uma forma pragmática, estratégica e instrumental de realizar, de
forma eficaz, os fins coletivos expressos pela lei, o que lhe impôs uma forma
hierarquizada, burocratizada e inquisitorial de atuar150.
No entanto, mesmo no Estado de Direito, com a separação entre Executivo
e Judiciário, a divisão de poderes já apresentava um aspecto positivo além do mero
controle do arbítrio, que era a especialização funcional, potencializadora da efetividade
dos poderes, aumentando sua autoridade. Ao menos na origem, o Judiciário
independente não foi criado para limitar o poder, mas, ao contrário, para aumentar a
capacidade do governo de desenvolver suas funções151.
A democracia ganhou com a divisão de poderes, eis que cada um deles tem
uma forma distinta de recrutar seus integrantes, o que amplia a variedade e a
sensibilidade do Estado como um todo, ganhando outro significado o equilíbrio entre
eles. Não se tratava de um balanceamento estático, mas de mútua interferência
dinâmica como reflexo dos estímulos sociais e democráticos.
A distribuição dos poderes possibilitou ao cidadão ter a noção de que o
direito e suas leis eram válidos para todos. A dispersão do processo de decisão levou a
que nenhum dos poderes por si só pudesse determiná-las. A tripartição de poderes
significou deliberação e compartilhamento institucional de decisões.
Em termos da relação entre mundo da vida e sistemas, pode-se dizer que:
O mundo da vida moderno faz-se valer mais uma vez aos imperativos de uma
estrutura de poder que se abstrai de todos os contextos concretos desse mundo. Com
isso, alcança-se também uma certa conclusão do processo de ancoragem do meio
poder no mundo da vida racionalizado, cuja diferenciação já não só vem
representada pela burguesia.

Enquanto o Estado Absolutista havia deixado a sociedade civil como uma


matéria informe, orientando legislativamente apenas a economia e o poder

149
HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 255.
150
Idem. Ibidem. pp. 255-6.
151
HOLMES (Op. cit., p. 198).
72

administrativo-burocrático, o ordenamento do Estado Democrático de Direito se


enriqueceu para regular também a sociedade civil e o mundo da vida, para ser objeto
de reconhecimento e proteção152. Por intermédio do direito criam-se instituições e
procedimentos para que a comunicação flua entre o cidadão e os sistemas político-
burocrático e econômico. Nas palavras de Habermas, nesse paradigma, o Estado
Moderno adquire uma legitimidade por direito próprio, adquire legitimações
baseadas no mundo da vida153.
Foi no âmbito do Estado Democrático de Direito e numa economia liberal
que a regulação tomou seu primeiro impulso. Nos Estados Unidos, na década de 1870,
dois eventos chaves se apresentaram. O primeiro deles foi uma decisão da Suprema
Corte. O segundo foi uma forte turbulência no mercado de transportes ferroviários.
No caso Munn v. Illinois (1877), a Suprema Corte estabeleceu que o estado
de Illinois poderia regular preços de silos e armazéns. Nessa decisão ficou assentado
que154:
A propriedade deve ser conjugada com o interesse público quando utilizada para
produzir efeitos coletivos, afetando largamente a comunidade. Quando, portanto,
alguém dedica a sua propriedade para um uso em que há interesse público, ele, na
verdade, abre margem para que haja interesse público nesse uso e deve ser
controlado pelo público para o bem comum.

Esse caso forneceu suporte para que a regulação firmasse suas bases,
abrindo margem para que o sistema econômico sofresse influxos do Estado,
impulsionado pela necessidade de prover bens materiais como uma nova forma de
legitimação não baseada apenas na participação e no voto universal. No período da
referida decisão da Suprema Corte, a exploração das estradas de ferro alternou
momentos de forte competição nos preços e relativa estabilidade. Surgiu espaço para
discriminação de consumidores e cobranças de elevadas tarifas. Tanto empresas do
setor, querendo a estabilização de preços, como consumidores, clamaram por
intervenção do Estado. O resultado de tais forças foi a edição do Interstate Commerce
Act (de 1887) e a criação da Interstate Commerce Comission (ICC) para regular preços
do transporte ferroviário.

152
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 509.
153
Idem. Ibidem.
154
Apud VISCUSI, W. Kip, HARRINGTON, Joseph E. Jr. & VERNON, John M. Economics of regulation and
antitrust. 4ª ed. Boston: Massachusetts Institute of Technology, 2005, p. 362.
73

A irrupção da regulação nesse período fez-se acompanhada de um grande


desafio para as instituições típicas do Estado Democrático de Direito. Num único ente
acumularam-se as funções legislativas, administrativas e judiciais e, ainda, a produção
normativa sem a legitimação de eleições para afirmar a representação popular. Não se
pode esquecer que a especialização de agências e assemelhados potencializa a
efetividade do poder, permitindo a interferência do Estado na oferta de utilidades caras
para a sua legitimação perante a população. Essa mesma verificação, entretanto,
reforça as preocupações que levam à conclusão de que é tarefa das instituições
jurídicas encontrar outra forma democrática de legitimar a regulação que não as
politicamente tradicionais e, principalmente, não focadas apenas na distribuição de
utilidades materiais à população. Mais uma vez, é justamente nesse hiato que devem
ser inseridos os princípios como outra via de legitimação além da mera produção de
utilidades, criando limites para a concentração de poderes nos agentes reguladores.

2.3.4 O Estado Social

O Estado Social desenvolveu-se no marco do Estado Democrático de


Direito, representando um novo movimento de juridicização garantidora da liberdade e
pondo freios ao sistema econômico155 para adequá-lo a demandas sociais formuladas
no âmbito do mundo da vida. Problemas que surgiram no âmbito das vivências
privadas, como nas relações de trabalho, deslocaram-se para a esfera pública,
atingindo a formação coletiva das vontades pelos partidos políticos, para formar
hipotecas de legitimação.
O discurso jurídico voltou-se para a fixação de salários e condições de
emprego, que estavam na base de uma política reformista que visava à pacificação do
conflito de classes. Com isso, o elemento nuclear foi uma legislação trabalhista e
social em que se cuidou de cobrir os riscos básicos da existência dos assalariados,
inclusive com compensações das desvantagens de posições hipossuficientes no

155
Ideia semelhante está em Vital Moreira (MOREIRA, Vital. A ordem jurídica do capitalismo. Coimbra:
Centelho, 1978, p. 119): A ideia subjacente à concepção do estado social é, sem dúvida, a de que este se propõe
fazer valer perante o econômico valores próprios do político e do jurídico (justiça, igualdade, paz social).
74

mercado, como consumidores, inquilinos, segurados etc. As sequelas dos conflitos de


classe acabaram por se converter no tema das democracias de massas. A adesão da
população ao sistema político ficou sujeita a ofertas de legitimação sujeitas a
falsificação156 consistentes especialmente em intervenções e prestações
compensatórias.
Essa política social selecionou situações de debilidades extremas para
absorvê-las, deixando intactas as relações de propriedade, receitas e dependência. No
entanto, regulações e prestações estatais dirigiam-se para a consecução de um
equilíbrio social por meio de compensações157, mas também para a correção de
externalidades coletivamente sensíveis, como meio ambiente, cidades, políticas
sanitárias etc.
A extensão do Estado Social ocorreu sob incômodos limites em que os
tributos públicos destinados a tarefas de política social estavam restritos ao
funcionamento do mercado e ao seu crescimento. Os tipos de políticas redistributivas
deveriam, ainda, adequar-se à forma de uma economia baseada na acumulação de
capital. Além do estreitamento vinculado aos problemas sociais, ao Estado se impunha
a tarefa de absorver os efeitos disfuncionais do mercado. De outro modo, estaria
rompido o equilíbrio de classes ao se porem em risco os grupos sociais privilegiados.
Em suma, tributos, tipo de prestações e a organização da seguridade social
tinham de se adaptar ao funcionamento sistêmico da economia e mesmo da política. O
processo de acumulação de capital deveria ficar intocado pelas intervenções do Estado
que, além do mais, assumia a função de coordenar os riscos e as disfuncionalidades da

156
Idem. Ibidem, p. 491
157
É interessante assinalar que, para Luhmann, é no caminho da compensação para a sua reflexividade que se dá
a passagem do Estado Social para o Estado de Bem-Estar Social (LUHMANN, Niklas. Teoria política em El
Estado de Bienestar. Madri: Alianza Universidad, 1997, p. 31): Em certo modo parece então como se tudo o que
afeta ao indivíduo estivesse condicionado socialmente e, em tanto que destino imerecido, devesse ser
compensado, inclusive aquilo que se deve à sua própria ação.
[...]
Se é possível falar de uma ‘lógica do Estado de Bem-Estar’, esta pode ser compreendida mediante o princípio
da compensação. Trata-se da compensação daquelas desvantagens que recaem sobre cada qual como
consequência de um determinado sistema de vida. A experiência nos ensina, no entanto, que o conceito de
compensação tende a se universalizar, já que, como se formulam os problemas, todas as diferenças podem ser
compensadas e, ainda assim, sempre ficam diferenças ou aparecem novas carências que, por sua vez, exigem
ser compensadas. Quando tudo deve ser compensado, haverá de ser também o mesmo compensar. O conceito e
o processo de compensação tornam-se reflexivos.
75

economia capitalista. Nos países ocidentais, isso constituiu o cerne do reformismo


keynesiano.
O ponto central do conflito de classes que se institucionalizou a partir da
capacidade de disposição privada dos meios de produção de riqueza social deslocou-se
exclusivamente para o sistema econômico, perdendo seu sentido nas relações de
vivência social do cotidiano, quando da solidificação das relações capitalistas. A
estrutura de classes desvinculou-se de seu sentido histórico, esmaecendo-se a tensão
entre capital e trabalho.
O desnivelamento na distribuição de compensações sociais remetia a uma
estrutura de privilégios que não mais derivava diretamente da estrutura de classes. De
forma alguma, as desigualdades sociais desapareceram no capitalismo avançado.
Ganharam outra conformação pela distribuição de compensações do Estado e pela
formação de novos grupos marginais, como imigrantes e jovens não inseridos no
sistema econômico que não provinham diretamente dos conflitos de classe, que se
encontravam amortizados e circunscritos de forma privada no sistema econômico.
Surgiu também uma outra coisificação não especificamente oriunda da
estrutura de classes. O Estado Social cristalizou papéis sociais como o de trabalhador,
consumidor, cliente das burocracias públicas e de cidadão. O marxismo se concentrara
na troca da força de trabalho por salário, esquadrinhando a coisificação apenas no
mundo do trabalho158 pela alienação das classes trabalhadoras. Esse tipo de alienação,
com o desenrolar do Estado Social, ficou em segundo plano.
Os efeitos mais incômodos da relação de trabalho desapareciam com sua
humanização ou mesmo com compensações, retirando-lhe o caráter explosivo e
colocando um novo equilíbrio entre o papel de trabalhador e consumidor. Na
configuração dos papéis de cidadão universalizado e neutralizado e no inflado papel
de cliente se situava um dos grandes problemas desse paradigma do Estado Social.
A dinâmica de contato com um poder administrativo-burocrático
hipertrofiado, com diversos âmbitos de atuação, acabou por fragmentar a cidadania,
retirando sua capacidade crítica. De igual modo, a neutralização da cidadania foi

158
HABERMAS (Op. cit., p. 493).
76

comprada com o preço dos bens e serviços distribuídos pelo Estado Social, tornando
aceitável uma participação pouco efetiva.
A democracia de massas, com o Estado Social, freou o antagonismo de
classes circunscrito ao sistema econômico sob a condição de que o crescimento
capitalista garantido pelo Estado se mantivesse. Era só assim que se podia efetivar a
massa de compensações aos consumidores e, especialmente, aos clientes da
burocracia, amortecendo os efeitos perversos do trabalho alienado e da codecisão
pauperizada.
A sustentação política do sistema econômico tinha como efeito um contínuo
aumento de sua complexidade, que se acompanhara de uma expansão e densificação
interna dos campos de ação formalmente organizados. Isso explicou os processos de
concentração nos mercados de bens, capitais e trabalho, a centralização das
empresas e institutos, e também uma boa parte do crescente número de funções que
nascem para o Estado e a expansão da atividade estatal159. Era o alargamento de um
complexo burocrático-monetário.
No entanto, a demanda por eficácia na distribuição de direitos sociais
compeliu a que a Administração fosse obrigada a assumir funções dos outros dois
poderes, seja para legislar, seja para julgar casos em que se exigia pronta e eficiente
intervenção estatal. Esse foi o legado do Estado Social para o Estado Democrático de
Direito: a desfiguração do esquema clássico da divisão de poderes.
No Estado Social, não só a Administração assumia a função dos outros
poderes, como o âmbito de sua atuação se expandia de tal maneira que as próprias leis
que regulavam sua atuação tinham que condicionar a atividade administrativa, de
forma genérica e imprecisa, estabelecendo programas teleológicos e se valendo de
cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, abrindo para o administrador
uma ampla margem de discricionariedade. O Executivo fora alçado para um âmbito de
ação muito além da mera aplicação da lei, no Estado Social, para o qual a sua
conformação clássica não estava preparada. É o que descreve Habermas:
Na medida em que, por exemplo, a implementação de programas finalistas ou
teleológicos grava a Administração com a necessidade de prover organizativamente
tarefas que, pelo menos implicitamente, têm o caráter de uma produção de direito
ou de um desenvolvimento do direito e de uma aplicação judicial da lei, deixa de ser

159
Idem. Ibidem, p. 496
77

suficiente a base legitimadora das estruturas tradicionais da Administração. A


lógica da divisão de poderes deve-se realizar então com estruturas distintas, por
exemplo, mediante o estabelecimento das correspondentes formas de participação
ou comunicação ou mediante a introdução (no processo administrativo) de
procedimentos de tipo judicial e parlamentar[...]160.

Com o advento do Estado Social, a distinção entre natureza das funções e


atribuições dos poderes do Estado ficou embaçada. Houve uma grande superposição
de tarefas e âmbitos de atuação. Então, procedimentos e processos revelaram-se cada
vez mais importantes como garantia e espaço para participação e compreensão da
atuação dos poderes.
A regulação se inseriu nesse contexto. Apesar de alguns antecedentes como
a Interstate Commerce Commission (1887), a Federal Trade Commission (1914), a
Commodities Exchange Autority (1930), a Federal Radio Commission (1927) e a
Federal Power Commission (1930), a emergência da regulação como fenômeno social
e econômico deu-se fundamentalmente como parte da reforma constitucional do New
Deal nos Estados Unidos. Também judicialmente se ampliou o âmbito da regulação,
que deixou de estar restrita às publics utilities, passando a abranger outros produtos de
interesse social. No caso Munn v. Illinois, a Suprema Corte aceitou a regulação do
preço de varejo do leite161. A configuração anterior era extremamente tímida, e com o
New Deal reconfiguram-se os princípios do laissez-faire que estavam assentes no
common law162, surgindo um segundo Bill of Rights orientado em proteger direitos de
habitação, emprego, bem-estar e alimentação163.
Como reguladoras da economia, as instituições estatais e os tribunais
federais dos Estados Unidos eram manifestamente inadequados. Era nítido o seu
descasamento e a insuficiência do seu instrumental para coordenar e atender às
necessidades públicas num ambiente democrático. Novas entidades foram

160
HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed.,
2001, p. 262.
161
VISCUSI, W. Kip, HARRINGTON, Joseph E. Jr. & VERNON, John M. Economics of regulation and
antitrust. 4ª ed. Boston: Massachusetts Institute of Technology, 2005, p. 363.
162
SUNSTEIN, Cass R. After the rights revolutions – reconceiving the Regulatory State. Cambridge: Harvard
University Press,1993, p. 19.
163
Idem. Ibidem, p. 21.
78

necessárias164. As agências criadas não raro combinavam as funções de legislar, julgar


e executar, com amplos poderes de fixação de políticas públicas165.
Após o New Deal, houve um outro período de expansão da atividade
regulatória nas décadas de 60 e 70 do século XX166. O Presidente e o Congresso,
respaldando-se no discurso dos Civil Rights, regularam temas como trabalho, pobreza,
consumo, discriminação e especialmente o gerenciamento de riscos sociais como meio
ambiente, águas, ar etc.
Em resumo, a missão compensatória do Estado Social iniciada a partir do
conflito de classes progressivamente adensou-se e se complexificou, exigindo um
atuar mais eficaz e mesmo inquisitorial, o que levou a uma concentração de atividades
na Administração. Isso fez com que o Estado, para dispensar bens e serviços, se
especializasse em torno das prestações a serem entregues à sociedade. Outra
circunstância muito importante é que o dispensamento desses bens devia adequar-se
aos pressupostos da economia de mercado, mantendo intocados a acumulação de
capital, a propriedade e os contratos. A resultante desse processo foi a formação de
entes como as agências reguladoras.

2.3.5 O Estado Social e Democrático de Direito

O Estado Social e Democrático de Direito pode ser compreendido a partir


da constitucionalização das relações de poder social vinculadas às estruturas de
classes, como a limitação dos horários de trabalho, a liberdade de organização sindical,
a previdência, a assistência social etc. Essas normas têm um caráter garantidor de
liberdade. Todavia, isso não vale para todas as regulações do Estado Social, que têm

164
Dentre elas (Idem. Ibidem, p. 25): Federal Communications Commission (1936), Soil Conservation Service
(1935), Social Security Administration (1935), Federal Power Commission (1935), Securities and Exchange
Commission (1934), National Labor Relations Board (1934), Federal Housing Administration (1934), Public
Works Administration (1933), Tennesse Valley Authority (1933), Civil Works Administration (1933), Civilian
Conservation (1933), Federal Deposit Insurance Corporation (1933), Federal Home Loan Board (1932).
165
Idem. Ibidem, p.23.
166
Pode-se citar (Idem. Ibidem): Department of Energy (1977), Office of Surface Mining (1977), Nuclear
Regulatory Commission (1975), Materials Transportation Board (1975), Mine Safety and Health Administration
(1973), Occupational Safety and Health Administratuion (1973), Consumer Product Safety Commission (1972),
National Highway Traffic Safetty Administration (1970), Environmental Protection Agency (1970), Equal
Employment Opportunity Commission (1964), United States Commission on Civil Rights (1957, 1960).
79

um caráter ambivalente em relação à liberdade, constituindo sua garantia e também


sua privação.
Quanto mais densa apresentava-se a rede de garantias formada pelo Estado
Social para absorver os efeitos deletérios de um processo de produção baseado no
trabalho assalariado, mais dubiedades de outra ordem apareciam. Os próprios meios
garantidores de liberdade a colocavam também em risco. Esse fenômeno põe em
destaque os limites da juridicização e da burocratização como meios para implantar as
políticas do Estado Social167.
A assunção, por discursos jurídicos e burocráticos, dos riscos da existência,
teve como preço a intervenção na esfera de vivência dos indivíduos. Em casos como o
da percepção de benefícios de assistência e previdência social, o cotidiano dos
implicados passou a ter sua casuística violentada, levando a uma distribuição de bens
regulada pela estrutura se-então do direito condicional, a qual resulta ‘estranha’ às
relações cotidianas, às causas sociais do caso a ser protegido e às dependências e
necessidades que o caracterizam168.
O caso passou a ser tratado na perspectiva de tipificações que se amoldam
ao seu tratamento burocrático. O direito do afetado é analisado a partir de critérios de
mensuração administrativa que resultam em regras de caráter jurídico. A situação que
merece regulação e está inserida numa biografia e numa forma concreta de vida vê-se
submetida a uma violenta abstração, não só por imperativos jurídicos, mas também
burocráticos, para poder ser administrativamente tratada.
As burocracias encarregadas de atuar na distribuição de bens e serviços têm
de proceder a partir de procedimentos legais próprios de uma dominação burocrática,
valendo-se de discursos jurídicos de compensação/indenização de prejuízos e
desvantagens169. Assim, na medida em que o Estado vai além da pacificação do
conflito de classes e atua sobre âmbitos privados, estendendo uma rede de assistência
clientelista, mais fortemente apresentam-se os efeitos de uma juridicização que
simultaneamente burocratiza e monetariza. Essa é a essência da regulação.

167
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, II – crítica de la razón funcionalista. Trad. Manuel
Jiménez Redondo. Madri; Taurus, 2001, p. 496.
168
Idem. Ibidem, p. 512
169
Idem. Ibidem, p. 513.
80

É um dilema que se apresenta. As garantias do Estado Social deveriam


dirigir-se à integração social, mas desintegram formas de vida pelo seu contato com o
dinheiro e o poder, como podem ser exemplo as relações de família e as educacionais.
Dentro desse contexto de prestação de direitos sociais pelo Estado, até
mesmo os direitos de participação política e democrática se veem esvaziados. A
organização das liberdades cidadãs acaba atingida por fenômenos como segmentação
do papel de eleitos, pelas lutas nas elites partidárias, pela estrutura vertical dos
processos de formação da opinião pública dentro de partidos providos de uma crosta
burocrática, pela autonomização das corporações partidárias, pelo poder incrustado
nos meios de comunicação170. A perda de liberdade que se experimenta não se deve
principalmente às formas jurídicas, porém ao modo burocrático pelos quais esses
direitos são fruídos. Nessa linha, ao direito de voto universal e às liberdades de
associação, imprensa e opinião, só se pode atribuir um caráter unívoco de garantia de
liberdade, em nada lhe obstaculizando as formas jurídicas.
Num Estado Social e Democrático de Direito, é preciso falar na questão de
legitimidade das normas produzidas. Para o positivismo jurídico, a única legitimação
de que se pode falar é formal/procedimental. Em vista da mutabilidade e do contínuo
aumento do direito positivado, os implicados tendem a se ver satisfeitos apenas com
essa forma de legitimação, principalmente em casos em que o direito se vê combinado
com o dinheiro e o poder, como nas matérias de direito econômico, empresarial,
administrativo etc.
Não se pode esquecer que, de forma institucional, o direito não pode ser
legitimado apenas pelos critérios positivistas, formais/procedimentais, como é o caso
em que está em contato muito próximo com a moral, envolvendo o direito
constitucional e o direito penal.
Essa dicotomia de legitimação do direito como meio, em que os critérios
procedimentais/formais parecem ser suficientes, e o direito como instituição, em que
há necessidade de justificação de caráter ético/moral, mostra-se duvidosa em face do
intervencionismo estatal171. Temas e necessidades do cotidiano passam a ser satisfeitos

170
Idem. Ibidem, p. 515.
171
Idem. Ibidem, 516.
81

por intermédio de um direito formal, o que pode redundar em coisificação dos


possíveis beneficiários, que passam a desempenhar sobretudo o papel de clientes da
burocracia.
A economia e o Estado, utilizando o direito como meio, apresentam-se cada
vez mais complexos, e com seu crescimento penetram cada vez mais profundamente
em componentes do mundo da vida como a cultura, a personalidade e a sociedade,
afetando sua reprodução e colonizando-os.
Esse fenômeno se apresenta não só em temas como proteção ao meio
ambiente, ao controle do risco nuclear, na proteção da intimidade etc. Também quando
se impõem regulações ao tempo livre, à cultura, às férias, ao turismo, à família etc. Aí,
enxerga-se a interferência sistêmica e sua juridicização por um processo
potencialmente deletério em que simplesmente as formas jurídicas não podem
legitimar a regulação que se avoluma.

2.4 A perplexidade da regulação nos marcos do Estado Democrático de Direito

2.4.1 Os limites do texto constitucional para a regulação

É lugar-comum na doutrina produzida nos últimos anos qualificar o


paradigma atual como o do Estado Regulador. Não raramente as expressões “Estado
de Direito” e principalmente “Estado Democrático de Direito” ficam em segundo
plano172. Isso assinala um deslocamento das posições e atenções do discurso que cerca
a atribuição de poderes normativos. Sobrepõem-se a capacidade de produção de
normas pelo Estado com vistas à obtenção de utilidades compensatórias,
especialmente por meio de entes reguladores, às garantias formais, procedimentais e
de legitimação do direito e da democracia.
O tema da regulação é marcado por superposições como as referidas no
parágrafo anterior. O cenário do texto constitucional, no entanto, não é favorável à

172
Percebe-se principalmente na bibliografia de direito econômico, como em CYRINO, André Rodrigues.
Direito Constitucional Regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 38 e seg.
82

crescente e irrefreável produção normativa por órgãos e autarquias do Executivo173.


Num rápido passar de olhos pela Constituição Federal, a legalidade e a tripartição de
poderes estreitam os limites de tal fenômeno. O princípio da legalidade pode ser
considerado um sobreprincípio, deixando suas marcas em todo o texto constitucional,
que lhe reserva sítios de positivação inegáveis, como o art. 5º, II e o art. 37, o que dá
lugar à assertiva incessantemente repetida pelos publicistas de que a Administração
está adstrita à lei174.
Não só a legalidade põe perplexidades para o espraiamento da regulação no
Executivo. O art. 84, IV, da Constituição Federal parece conferir ao Presidente da
República competência privativa para a expedição de decretos e regulamentos para fiel
execução de lei. Como então outras entidades incrustadas no Poder Executivo
poderiam exercer atividade semelhante?
Não se pode esquecer do art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, que revogou expressamente os dispositivos legais que atribuíam a órgãos
do Executivo poderes normativos. Tudo isso levanta sérias objeções sobre a
competência normativa de agências ou outras entidades do Poder Executivo e torna
movediço o tema.

173
A alusão à criação de órgãos reguladores pelo art. 21, IX (telecomunicações) e art. 177, §2º, III (petróleo, gás
e minerais nucleares) e algumas outras referências laterais no texto constitucional mostram-se como argumentos
de retórica e de conforto para a admissão do poder normativo de tais entes, que deriva de imperativos dos
sistemas econômico e político. O assunto está desenvolvido no item 2.9.
174
É o que se depreende do seguinte trecho elaborado pelo Prof. Tércio Sampaio Ferraz (FERRAZ, Tércio
Sampaio. O poder normativo das agências reguladoras à luz do princípio da eficiência. In: ARAGÃO, Alexandre
Santos. O Poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 276): Se olharmos a
questão do ponto de vista da doutrina mais tradicional, haveria de reconhecer-se que, na configuração de tipos
legais para atos normativos, a Administração está adstrita à Lei. Tanto que o Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (art. 25) revogou, no prazo que determina, todos os dispositivos legais que
atribuíssem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso, especialmente
no que tange à “ação normativa”. Assim, por exemplo, embora no passado, à luz da Constituição, fosse possível
sustentar que a imposição de penas administrativas pudesse resultar de regulamentos, na Constituição vigente
trata-se de expressa competência do Congresso (art. 48), caput, cc. art. 24, I). Afinal, como observa Celso
Bastos (Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, vol. 2º p. 31): ‘Quanto aos regulamentos delegados,
encontráveis em alguns países, também eles não se amoldam ao nosso direito, porque se trata de transferir
competência legislativa, o que só se pode fazer pela única via constitucionalmente aceita, que é a da lei
delegada.’ E para expedição de regulamentos o que resta é apenas a competência privativa do Presidente da
República (regulamento para a fiel execução de leis, art. 84, IV da CF). Nestes termos, a eventual competência
conferida a órgãos administrativos para elaborar e aprovar ser regimento interno diz antes respeito ao próprio
funcionamento, portanto a regras que disciplinam sua atenção no que diz respeito a seus membros e
funcionários, não quanto a direitos dos administrados.
83

2.4.2 O embate entre o Estado Democrático de Direito e a regulação

Uma visão clássica dos legados do Estado de Direito para o Estado


Democrático de Direito baseia-se nos princípios da legalidade, da isonomia e da
intangibilidade das liberdades públicas, expandidos em clima no qual se assegura a
certeza e a segurança do direito, conforme lições de Geraldo Ataliba175, assim como a
submissão à jurisdição.
Nessa ordem de ideias, o povo titulariza a res publica, realizando o governo
apenas a vontade do povo. Quando o povo ou o governo obedecem à lei, aquele está
obedecendo a si próprio; e este, àquele. Nesse paradigma reconhecem-se à lei as
características necessárias de abstração, isonomia, impessoalidade, generalidade e
irretroatividade176. O caráter de abstração e o de generalidade177 estão de tal forma
insculpidos na formação do pensamento jurídico que se projetam, mesmo que
impropriamente, como característica da norma jurídica178.
A lei seria, dentro de tal concepção, ato inaugural e primário, com poder
único de inovação na ordem jurídica emanada do Poder Legislativo, órgão vertical do
Estado e titular da representação popular por excelência.179 Além disso, a lei não
poderia ser suprida por nenhuma outra manifestação estatal, judiciária e
administrativa, o que redundaria na absoluta indelegabilidade de suas funções
verticais.
Todos os demais atos normativos, para serem dotados de força inovadora,
deveriam ser imediatamente infraconstitucionais como a lei, e essas normas seriam
175
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 93.
176
Idem. Ibidem, p. 97.
177
É o que se percebe do seguinte trecho (ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin
Claret, 2002, p. 41): A matéria que se estatui é geral, como a vontade que estatui; eis o ato que eu chamo de lei.
Quando digo que o objeto das leis é sempre geral, entendo que a lei considera os vassalos como corpo e as
ações como abstratas, e nunca um homem como indivíduo nem uma ação particular.
178
Pode-se compreender melhor a observação com as seguintes lições do Prof. Tércio Ferraz (FERRAZ Jr.,
Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 4ª Ed., 2003, p.
121 e seg.): A nota de generalidade é um preconceito derivado da concepção de direito do século XIX, que
identificou a norma jurídica com a lei. Ora, a lei contém um tipo de norma. É preciso reconhecer, porém, que é
norma também a sentença do tribunal. [ ...]
A nota da abstração também resulta de um preconceito do liberalismo do século XIX. Seria impossível, porém,
deixar de considerar, por exemplo, como jurídica, uma norma que prescrevesse a revogação de determinada
outra apenas porque seu conteúdo é concreto. O século XIX, com a noção de abstração, tentava contornar
também o mencionado risco de arbítrio.
179
ATALIBA (Op. cit., p. 97).
84

excepcionais e estariam listadas em numerus clausus do art. 59 da Constituição


Federal. As demais normas retirariam sua obrigatoriedade do fato de estarem contidas
nos preceitos legais, devendo-lhe manter absoluta fidelidade, mesmo no caso dos
regulamentos editados pelo Presidente da República para fiel execução das leis (art.
84, IV da CF). As normas administrativas obrigariam apenas aos servidores públicos,
só tendo efeito em relação aos cidadãos se apoiadas em lei180.
Sem dúvida, essa configuração de Estado de Direito se assenta em nobres
pressupostos, embora não se possa deixar de reconhecer que, após o advento do Estado
Social e com a complexificação da sociedade, o Congresso deixou de ser o ator
proeminente na edição de normas com poder de inovação na ordem jurídica, passando
a conviver com uma crescente produção de regras por entes situados no Executivo, que
quase sempre avançam no poder primário de vinculação dos administrados, que
deveria ser exclusivo da lei em função da fixação de parâmetros abertos181.
Embora constantemente se fale em observância dos limites legais182, não há
como considerar que se trata de uma situação confortável de validação normativa.
Como Tércio Sampaio Ferraz reconhece, trata-se de um caso de validação finalística
do ato administrativo, que será legítimo desde que alcance os objetivos estabelecidos
em lei de forma proporcional.183 A lei, nesse caso, comporta-se como lei-quadro,
fixando apenas limites que, em geral, são amplos e fluidos.
É precisamente pela dimensão da tarefa de demarcar o âmbito do exercício
do poder normativo dos entes reguladores e principalmente sua legitimidade e
justificação que se precisa de um instrumental que vá além da mera pertinência
procedimental/formal do princípio da legalidade.

180
Idem. Ibidem, p. 99.
181
Sobre a necessidade de competências regulamentares amplas, assim se manifesta Egon Moreira (MOREIRA,
Egon Bockman. Os limites à competência normativa. In: ARAGÃO, Alexandre Santos. O poder normativo das
agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 187): O que há de inaugural em nosso ordenamento
são competências regulamentares amplas e dinâmicas, criadas por lei e por ela limitadas, dirigidas à disciplina
jurídica de setores econômicos onde há o forte exercício de poder econômico por parte dos respectivos agentes,
adicionado de características dinâmicas (tecnológicas, econômicas, sociais etc.). Logo, tais competências
devem ser simultaneamente mais largas e mais rápidas do que aquela de simples execução dos comandos legais,
alcançando a origem de novas hipóteses e mandamentos normativos [...].
182
É exemplo LOSS, Giovani. Os limites à competência normativa. In: ARAGÃO, Alexandre Santos. O poder
normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 167.
183
FERRAZ, Tércio Sampaio. O poder normativo das agências reguladoras à luz do princípio da eficiência. In:
ARAGÃO, Alexandre Santos. O Poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.
283.
85

2.4.3 O conflito entre o princípio da legalidade e a atividade regulatória

O garantismo esboçado no item anterior com os princípios típicos de Estado


de Direito e Estado Liberal está esgarçado e tem duvidosa capacidade de rendimento
nos seus objetivos, porque a sociedade complexa constrói âmbitos especializados que
demandam normalização e regulação constante e permanente, que não pode ser
atendida pelo Poder Legislativo.
Em verdade, o apego ao princípio da legalidade vale como denúncia dos
riscos e perigos de uma desenfreada atividade regradora. A legalidade é um princípio
que densifica a preocupação com isonomia e liberdade. As incessantemente referidas
características da lei se vinculam a isso.
A generalidade e a impessoalidade se justificam como formas de garantia
de isonomia pela abrangência ampla da incidência da lei e sua destinação inespecífica,
possibilitando que a lei se transforme em parâmetro de igualdade entre os cidadãos. De
igual modo, a abstração encontra seu fundamento na liberdade, já que comandos
vazados numa linguagem distante da concreção permitiriam a manutenção de um
âmbito de escolhas para os cidadãos.
Por isso, não é apenas a legalidade que está sob ataque. Junto com ela
padecem vários princípios republicanos, dado que a atividade regulatória subverte toda
essa preocupação garantista. As normas editadas por entidades reguladoras põem em
cena novas categorias e características. Não se pode mais falar em generalidade, e a
impessoalidade e a abstração ganham outro significado.
As normas oriundas da regulação não são de modo algum genéricas, pois os
seus destinatários são pessoas que atuam num mercado específico. Aliás, a
especialidade da regulação lê os seus destinatários como papéis sociais, tais como o de
fornecedor de produtos e serviços e consumidor de um mercado delimitado.
Tampouco a impessoalidade e a abstração mantêm seu sentido originário. A
impessoalidade significa não mais garantia de isonomia, mas uma relação do cliente
86

com a burocracia. A abstração não se vincula à liberdade. Muito ao contrário, remete a


uma submissão a uma linguagem especializada de conteúdo técnico-científico. Aliás, a
necessidade de tipificação, com base em linguagem técnica de vivências que
pertencem a uma biografia e a uma forma concreta de vida constitui uma coisificação
do indivíduo. À concretude das necessidades do cidadão sobrepõe-se a necessidade
que tem a Administração de agrupar os casos que lhe são submetidos para apreciá-los
e, então, manifestar-se sobre o fornecimento de serviços e utilidades.
É uma completa subversão. O problema é que a legalidade, nesse cenário,
está sobrecarregada. Não há como estabelecer filtros de validade das normas
regulatórias apenas nos moldes da legalidade clássica. Metaforicamente seria uma
tarefa semelhante a verter um oceano numa piscina.
Um estudo sobre regulação não pode ignorar essa conflituosidade. Por isso,
não faz sentido abordar a regulação e a produção de normas pelo Estado apenas a
partir de sua validade jurídica formal. Pouco contribuiria para o entendimento do tema
abordá-lo sob a perspectiva de pertinência das normas a um sistema jurídico. Ao lado
da distribuição constitucional e juridicamente legítima de poderes está uma alocação
de fato de poderes que inegavelmente tem sérias consequências jurídicas e não pode
ser incorporada ao ordenamento jurídico apenas a partir de critérios formais e
procedimentais, sob pena de evidente déficit de legitimidade e principalmente de
esvaziamento de vários princípios jurídicos basilares do Estado Democrático de
Direito.
A efetiva alocação da produção de normas com sentido autônomo e
primário não se mostra clara, já que a fixação de amplos limites para a validação do
poder normativo dos entes reguladores não garante por si só legitimar a produção
administrativa de regras. Inegavelmente, há um amplo campo de penumbra em que
pode ocorrer uma efetiva usurpação desse poder por diversos níveis de autoridades e
uma dispersão dessa função. Cabe até mesmo falar, no presente caso, de uma
microfísica do poder, que principalmente em razão de seus efeitos deletérios deve ser
enfrentada a partir de seu potencial efetivo de coerção184.

184
Esse é um tema trabalhado por Foucault, como se pode perceber de sua obra Microfísica do poder. Org. e
trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.
87

A abordagem crítica a ser empreendida tem inequivocamente caráter


sociológico e histórico, tendo como vantagens teóricas, nas palavras de Antônio
Hespanha, a produção de um conhecimento crítico, distanciado e controlado dos
mecanismos legislativos, reduzindo este efeito ideológico que consiste em crer tanto
na sua [da lei] predominância como na inevitabilidade desta [da lei].185
A irrupção de forças que remetem ao dito Estado Regulador evidentemente
implica deslocamento do eixo de produção normativa por parte do Poder Público,
passando a atividade legislativa a concorrer com uma massa de atos administrativos
normativos. Acompanha essa mudança de ênfase um incremento de risco de exercício
ilegítimo do poder de coerção organizado do Estado. Isso, sem dúvida, remete a uma
análise da regulação como um fenômeno de instrumentalização do direito, com
potencial efeito deletério, em razão de seus pressupostos políticos, econômicos e
técnicos.

2.5 O deslocamento do poder de produção normativa

A abordagem conjuntamente política e jurídica pode oferecer uma


perspectiva com elevado potencial de rendimento para a crítica de fenômenos
jurídicos, especialmente a regulação. É um legado da Modernidade a simbiose entre os
fenômenos sociais de natureza jurídica e política186. Daí que o enfrentamento crítico do
tema, buscando enfatizar esses dois aspectos, não procure apartá-los.
Ademais, ante os conflitos, perplexidades, complexidade e
multidimensionalidade que cercam a regulação, abordá-la criticamente como etapa
para sua reconfiguração em termos jurídicos exige acuro teórico. A questão que se
coloca neste momento do trabalho é qual abordagem adotar. Enfrentar a regulação só a
partir de cada uma de suas facetas traz o risco da superficialidade e de um possível

185
HESPANHA, A. M. Lei e justiça: história e prospectiva de um paradigma. In: HESPANHA, A. M. Justiça e
litigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 29.
186
Ver LUHMANN, Niklas. La costituzione come acquisizione evolutiva. In: ZAGREBELSKY, Gustavo et alli.
Il futuro della costituzione. Turim: Giulio Einaudi, 1996, pp. 85 e 86.
88

excessivo fracionamento do tema. Desta feita, explica-se a opção por adentrar na


regulação a partir da configuração de diferentes paradigmas de Estado, encarando-a
como um jogo discursivo que deita raízes na definição conflituosa do local
socialmente privilegiado para a produção normativa. É uma perspectiva genealógica,
de formação do discurso sobre a regulação, que não exclui algumas preocupações
funcionalísticas/sistêmicas. Muito ao contrário, pressupõe-nas.

2.5.1 A gênese da regulação

Nesse sentido, a regulação é fruto de um deslocamento discursivo. É


preciso, de antemão, fugir de uma ingenuidade. Não há sentido algum em procurar a
origem exata da regulação, o momento fundante do seu aparecimento. Nas palavras de
Foucault, a genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela
trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos187.
Com base em Nietzche, Foucault fala na recusa da pesquisa de origem
(Ursprung). Procurar a essência exata da coisa, sua apresentação na mais pura
possibilidade, sua identidade imutável e anterior a tudo que é acidente e externo é
acreditar na metafísica, e não na história. A essência188 é construída peça por peça com
elementos originariamente estranhos. Na raiz das coisas não está a identidade, mas a
discórdia e o disparate. Por isso, a história ensina também a rir das solenidades da
origem189.
A alta origem reside no conforto de acreditar que as coisas na sua aurora se
encontravam em estado de perfeição. O drama é que o começo histórico é irônico, ao
se desfazerem todas as cadeias factuais. Não está aí uma sede de verdade, que remete a
um não poder ser refutada pela longa maturação da história com a sua inalterabilidade.
Daí que o genealogista necessite da história para conjurar a quimera da origem,...190

187
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1979, p. 15.
188
Heidegger ressalta que a essência é duração (HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis:
Vozes, 2002, p. 33).
189
FOUCAULT (Op. Cit., p. 18).
190
Idem. Ibibem,p 19.
89

A genealogia se entende melhor a partir de termos como proveniência


(Herkunft) e emergência (Entestehung). Proveniência (Herkunft) remete ao tronco de
uma raça. Não se trata, no entanto, de encontrar um indivíduo que expresse esse
pertencimento. Ao contrário, cuida-se de desvelar sutilezas e singularidades que
formam uma rede de difícil desembaraçamento. Assim, lá onde se pretende a
unificação, a construção de uma identidade ou coerência, o que aparece é uma miríade
de acontecimentos entrelaçados.
Caracteriza-se uma inversão do sentido tradicional de história, e esta não é a
única. É o que assinala Foucault:
Em certo sentido a genealogia retorna às três modalidades da história que
Nietzsche reconhecia em 1874. Retorna a elas superando objeções que ele lhes fazia
em nome da vida, de seu poder de afirmar e criar. Mas retorna a elas,
metamorfoseando-as: a veneração dos monumentos torna-se paródia; o respeito às
antigas continuidades torna-se dissociação sistemática; a crítica das injustiças do
passado pela verdade que o homem detém hoje torna-se destruição do sujeito de
conhecimento pela injustiça própria da vontade de saber.

Recusa-se uma evolução da espécie ou de um povo. Na genealogia, não se


pode deixar de demarcar os acidentes, os desvios, as inversões, os erros e as falhas que
casualmente deram nascimento ao que existe e tem importância para nós. É preciso pôr
em suspenso a vontade de verdade do conhecimento e encarar a exterioridade do
acidente. Trata-se de enxergar na história as fissuras e as camadas heterogêneas.
Recusa-se um ato fundacional, optando-se por mobilidade e fragmentação.
O acontecimento na história não é uma simples batalha, um tratado, uma
decisão etc. É, de fato, uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado,
uma dominação que se enfraquece e outra que se apresenta. A marca do acontecimento
não está numa unidade teleológica, racional ou num destino. Está no acaso do jogo, na
sua unicidade e na sua agudeza.
De outro lado, a emergência (Entestehung) não pode ser tomada por um
termo final. Ela é a entrada em cena das forças, sua irrupção, o salto pelo qual elas
passam dos bastidores para o teatro, cada uma com seu vigor e sua própria
juventude191. Vinculado a ela está um lugar, ou melhor, um “não lugar”, já que o
enfrentamento dos adversários não ocorre no mesmo espaço. A emergência ocorre no
interstício.

191
Idem. Ibidem, p. 24.
90

Para o filósofo francês, a peça que se representa nesse teatro, que é um não
lugar, é sempre a mesma. Nas suas palavras:
Em certo sentido, a peça representada nesse teatro sem lugar é sempre a mesma: é
aquela que repetem indefinidamente os dominadores e os dominados. Homens
dominam outros homens e é assim que nasce a diferença de valores; classes
dominam classes e é assim que nasce a ideia de liberdade; homens se apoderam de
coisas das quais eles têm necessidade para viver, eles lhes impõem uma duração
que elas não têm, ou eles as assimilam pela força – e é o nascimento da lógica. Nem
a relação de dominação é mais uma ‘relação’, nem o lugar onde ela se exerce é um
lugar. E é por isso precisamente que em cada momento da história a dominação se
fixa em um ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos
procedimentos192.

Nem mesmo as regras inibem esse jogo. As regras se estabelecem num


cenário de poder e violência potencial. Há uma disputa pelo apoderamento das regras,
em que aquele que se introduzir nos aparelhos complexos da sociedade possa fazê-los
funcionar, de modo que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias
regras193. É o que se percebe claramente no poder de produção normativa, em que a
função de legislar, produzindo normas autônomas e com sentido primário, desloca-se
na distribuição estatal dos poderes para os entes reguladores.
O direito não pode abordar a sociedade a partir de uma perspectiva de mera
dominação. A coerção jurídica não pode operar como mera força, objeto de disputas.
A análise aqui empreendida denuncia uma relevante preocupação. O deslocamento de
um poder de produção normativa levanta questões. Não pode um ente estatal deter
competências com indagações que deixam sua legitimidade numa zona cinzenta. Por
isso, uma preocupação central em relação à regulação é a busca de canais de
justificação e limitação efetiva de seus amplos poderes.

2.5.2 Soberania e poder disciplinar

É possível entender a regulação a partir de duas categorias dentro das quais


se reúnem séries de acontecimentos que permitem vislumbrar um iter na distribuição
de poderes pretensamente legítimos na sociedade. Na visão de Foucault, opõem-se
dois grandes sistemas de estudos do poder. Um primeiro tem raízes nos sistemas dos

192
Idem. Ibidem, p. 25.
193
Idem. Ibidem. p. 26.
91

filósofos do século XVIII. O contrato seria a matriz do poder político, em que os


indivíduos o cederiam para constituir uma soberania194. A opressão estava no
rompimento de um acordo, na ultrapassagem de seus limites. Uma segunda forma de
exercício de poder baseava-se na repressão não mais como desrespeito a um contrato,
mas, ao contrário, como simples continuação de dominação195 pelo poder disciplinar.
No entanto, nas sociedades ocidentais o poder não se apresenta
isoladamente. Ele encontra dois pontos de referência e dois limites: as regras de
direito, que o delimitam formalmente; e os discursos de verdade, que o poder produz e
que se reconduzem a ele mesmo. Poder, direito e verdade formam um triângulo.
O poder questiona, inquire, registra incessantemente para institucionalizar e
profissionalizar a busca da verdade. É por meio da produção da verdade que se geram
riquezas. As formas jurídicas e suas regras, conjugadas a discursos de verdade,
determinam julgamentos, condenações, classificações, tarefas, modos de vida etc.
Portanto, regras de direito, mecanismos de poder, efeitos de verdade. Ou ainda:
regras de poder e poder dos discursos verdadeiros.196
Na visão de Foucault, há um princípio geral que estruturou esse jogo entre
direito, política e verdade: o de que, desde a Idade Média, a elaboração do pensamento
jurídico fez-se essencialmente sobre o poder do rei. Inicialmente, a seu pedido e em
seu proveito, como instrumento ou justificação. O direito romano e o direito canônico
permitiram construir instrumentos técnicos para constituir o poder monárquico, sua
autoridade e sua Administração.
Foi esse mesmo edifício jurídico que, nos séculos seguintes, escapou ao
controle do poder régio e se voltou contra ele, mas o tema continuou a ser os limites e
as prerrogativas desse poder. Sejam os juristas servidores do rei ou seus adversários, o
tema é sempre o poder régio, ou mais amplamente, a soberania197. Desde a Idade
Média, uma das principais preocupações da teoria do direito é explicar sua

194
Nas palavras de Jellinek: no mundo antigo faltava, com efeito, a única coisa que poderia levar a conceber
essa noção de soberania: a oposição entre o poder político e outros poderes [Igreja, Império e grandes
corporações no Estado] (JELLINEK, Georges. L’État moderne et son droit. Trad. Georges Fardis. Paris: M.
Giard & É. Brière, 1913, p. 79).
195
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 24 e seg.
196
Idem. Ibidem, p. 29.
197
Idem. Ibidem, p. 30
92

legitimidade, dissolvendo, no cerne do poder, sua dominação, fazendo aparecer as


prerrogativas justas da soberania e o dever de obediência. Centrar-se na soberania quer
dizer afastar e encobrir a dominação.
Em que pese o caráter de unicidade propalado em torno da soberania, a
dominação não se exerce de uma posição central, mas entre os súditos, entre as
autoridades. Não se trata de um edifício jurídico uno, mas de múltiplas sujeições que
se apresentam no corpo social. Não há como negar que subjacente a todas as questões
de legitimidade do direito e de suas instituições está a coerção. Não basta analisar as
formas regulares e legítimas do poder a partir de seu centro. É preciso captar o poder
em suas ramificações e em sua capilaridade.
Uma segunda advertência deve ser seguida: não há sentido em analisar o
direito e o poder a partir de um plano ideal de intenção, de decisão ou de
racionalidade, mas sim de ver como as coisas funcionam no nível do processo de
sujeição. É preciso inverter a ótica sobre o Leviatã. Não se pode cuidar apenas das
forças centrífugas do medo e centrípetas da ânsia pelo poder que resultam no soberano.
A atenção deve-se dirigir para os corpos periféricos.
Uma terceira precaução deve ser tomada: não se pode vislumbrar o poder
como dominação maciça e homogênea entre indivíduos ou mesmo grupos. O poder é
algo que circula, funciona em cadeia, em rede. O poder passa pelos indivíduos que
podem ser considerados centros de transmissão. Nessa linha, o indivíduo é um efeito
do poder e é, ao mesmo tempo, na medida em que é um efeito seu, seu intermediário: o
poder transita pelo indivíduo que ele constituiu 198.
Uma quarta advertência é a de que o poder não deve ser objeto de uma
análise dedutiva, do centro para a periferia. O caminho é inverso. Cuida-se de uma
análise ascendente, de analisá-lo de suas ramificações mais baixas até as de cima,
mostrando como o poder pode ser anexado por fenômenos globais, como por exemplo
o lucro da economia.
Uma quinta precaução é enxergar que as grandes máquinas de poder
possivelmente se fizeram acompanhar de ideologias. Entretanto, na base o que se
forma são métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de inquérito, de

198
Idem. Ibidem, p. 35.
93

pesquisa etc. O poder se exerce também em mecanismos sutis que são aparelhos de
saber.
Com essas precauções, pode-se dizer que a teoria política da soberania
desempenhou quatro papéis. Antes de mais nada, referiu-se a um poder efetivo, o do
monarca feudal. Em segundo lugar, foi instrumento e justificativa para a constituição
de grandes monarquias administrativas, absolutistas. Em terceiro lugar, a partir dos
séculos XVI e XVII, na época das guerras religiosas, a teoria da soberania circulou
entre monarquistas e antimonarquistas, para reforçar ou limitar o poder real. Por
último, já em Rousseau e seus contemporâneos, construiu-se um modelo alternativo
contra essas monarquias, o das democracias parlamentares. A partir desses quatro
papéis, pode-se dizer que, no período feudal, a relação de soberania recobria a
totalidade do corpo social, podendo, ao menos no essencial, o poder ser explicado em
termos de relação soberano-súdito.
Nos séculos XVII e XVIII surgiu uma nova mecânica de poder,
incompatível com o foco exclusivo nas relações de soberania. Essa nova mecânica
incide primeiro sobre os corpos e sobre o que eles fazem, mais do que sobre a terra e
sobre seu produto199. Esse mecanismo permite extrair mais tempo e trabalho do que
bens e riqueza. O poder se exerce continuamente por vigilância e não
descontinuamente por impostos. Seu pressuposto é uma trama cerrada de coerções
materiais que vai muito além da existência física de um soberano. Define-se uma nova
economia, baseada no crescimento das forças sujeitadas e na eficácia do que as sujeita.
Dito de outro modo, a teoria da soberania está muito mais vinculada a um
poder que se exerce sobre a terra e seus produtos do que sobre corpos e condutas. Ela
se refere à extração e à apropriação de bens e da riqueza, e não do trabalho e de sua
organização. O poder político funda-se na existência física de um soberano, e não em
sistemas permanentes de vigilância. O poder dito absoluto pode encontrar respaldo no
gasto irrestrito, mas é incapaz de calcular o poder com um gasto mínimo e uma
eficiência máxima, como ocorre no poder disciplinar200.

199
Idem. Ibidem, p. 42.
200
Idem. Ibidem, p. 43.
94

O novo tipo de poder que é indescritível em termos de soberania por sua


heterogeneidade é o poder disciplinar, uma das grandes inovações da sociedade
burguesa. Ao contrário do poder feudal, que se baseava fundamentalmente na
apropriação e na retirada de bens, o poder disciplinar tem como função precípua
“adestrar”, mas justamente para se apropriar mais e melhor201.
Ele não contém as forças. Procura conectá-las para multiplicá-las num todo
utilizável. Trabalha as massas e as multidões separando-as, analisando-as,
diferenciando-as, para submetê-las em singularidades necessárias e suficientes para a
produção. Na disciplina fabricam-se indivíduos e individualidades, objetivando-os e
transformando-os em instrumentos.
Ao contrário da soberania que se exerce triunfante e evidente, o poder
disciplinar não precisa de excessos. Exerce-se permanentemente, de forma calculada,
em procedimentos menores e se funda em práticas de vigilância, hierarquia e de
constante controle, exame. Para se tornar visível, essa modalidade de poder depende
de meios de coerção claramente identificáveis para quem se lhes aplica.
Essa vigilância permanente, contínua e funcional não é uma grande
inovação técnica do século XVIII, mas sua extensão social, que acompanhou a
industrialização ligando-se à economia e a seus dispositivos de inspiração mecânica. A
ordem passou a ser, de tal modo, a de um poder múltiplo, automático e anônimo,
tecendo uma rede de relações em diversas direções (de alto a baixo, de baixo para cima
e lateralmente), podendo-se falar em fiscais permanentemente fiscalizados202. Se é fato
a existência de um chefe, é o aparelho inteiro que produz o poder e o distribui entre os
indivíduos203, as individualidades e seus papéis de forma contínua.

201
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 143.
202
Idem. Ibidem, p. 148.
203
A abordagem funciona e destaca a distribuição de poder, dando ênfase às organizações (LUHMANN, Niklas.
Political Theory in the Welfare State. Trad. John Bednarz Jr.. Berlim/Nova Iorque, Walter de Gruyter, 1990, p.
161): Hoje qualquer aumento, diversificação e refinamento de poder depende de organizações formais. Isso é
notavelmente verdade no caso do desenvolvimento de longas e mais permanentes cadeias de poder, para
indiretas formas do seu uso na direção do exercício de poder por outros e pelo incremento de sua efetividade no
sentido de que com uma decisão uma pessoa pode engatilhar várias decisões resultantes que, individualmente,
não podem ser antecipadas, mas que são, no entanto, essencialmente conectadas à primeira. Claro, para
estabelecer interconecções dentro de organizações e ao longo de suas linhas de comando, ainda se podem
encontrar mecanismos de dominação pessoal. Isso não pode ser negado nem subestimado. Entretanto, eles são
guiados pela lógica da organização e permanecem dependentes na ocupação de posição dentro delas.
95

De algum modo se pode dizer que o poder disciplinar está em toda a parte e
sempre alerta, embora discreto por funcionar permanentemente e em silêncio. As
técnicas de controle e vigilância, a física do poder204, lhes permitem pelo cálculo e
pelas regras (normatização ou normalização) não recorrer, em princípio, ao excesso da
força e da violência.
Por meio das disciplinas, reforça-se o poder da norma, da normalização
social. O normal se estabelece mesmo como princípio de ensino205. Assim como a
vigilância, a regulamentação passa a ser contemporaneamente um grande instrumento.
Os status, os privilégios e o parentesco vão-se substituindo por filiação a uma
homogeneidade social, de acordo com classificações, hierarquizações, situações etc. O
regramento, ao tempo em que uniformiza, permite medir desvios, níveis,
especialidades, utilidades e seus ajustes. A normalização pode, inclusive, funcionar
dentro de um sistema de igualdade formal com a distribuição de graduação de
diferenças individuais.
Com isso, as disciplinas podem controlar multiplicidades humanas com
base em três critérios: desonerar o exercício do poder, diminuindo suas despesas; por
sua fraca exteriorização, suscitar pouca resistência; e estender o poder social ao
máximo de intensidade e tão distante quanto possível, sem lacunas evidentes.
Isso possibilita uma economia completamente diversa com base em
mecanismos de poder que, no lugar de retirar ou deduzir, integram-se à eficácia
produtiva dos aparelhos e ao seu crescimento. As disciplinas permitem substituir o
antigo princípio de “retirada-violência” pelo “suavidade produção-lucro”206. São
técnicas que permitem agregar indivíduos e individualidades e multiplicar os aparelhos
de produção.
Historicamente, a burguesia tornou-se, no século XVIII, a classe dominante,
instalando um quadro jurídico explícito, codificado, baseado na igualdade formal e
organizado com base num regime parlamentar e representativo. Como ressaltado, a
generalização dos dispositivos disciplinares constituíram uma outra vertente obscura
de tal processo. Ao mesmo passo que o regime representativo possibilita a formação

204
FOUCAULT (Op. cit., p. 148).
205
Idem. Ibidem, p. 153.
206
Idem. Ibidem, p. 180.
96

idealizada de uma vontade geral, as disciplinas na base garantem a submissão das


forças e o seu disciplinamento utilitário.
As disciplinas formam sistemas de saberes e práticas que distribuem
assimetricamente o poder na sociedade. Enquanto os sistemas jurídicos procuram a
universalidade e a isonomia, as disciplinas caracterizam, classificam, especializam;
distribuem ao longo de uma escala, repartem em torno de uma norma, hierarquizam e
situam indivíduos e individualidades207.
À extensão universal dos direitos de uma soberania popular fracionada
corresponde, nas disciplinas, um panoptismo208 difundido em toda a parte que faz
funcionar, ao arrepio do direito, uma maquinaria ao mesmo tempo imensa e
minúscula que sustenta, reforça, multiplica a assimetria dos poderes209. Ainda nas
palavras de Foucault:
A extensão dos métodos disciplinares se inscreve num amplo processo histórico: o
desenvolvimento mais ou menos na mesma época de várias outras tecnologias –
agronômicas, industriais, econômicas. Mas temos que reconhecer, ao lado da
indústria mineira, da química que nascia, dos métodos de contabilidade nacional,
ao lado dos altos-fornos ou da máquina a vapor, o panoptismo foi pouco
celebrado210.

De fato, a soberania continuou a existir na teoria jurídica como fundamento


basilar das constituições. Isso se explica porque a teoria da soberania foi adotada como
instrumento de crítica e proteção contra o monarca e o poder absoluto e todos aqueles
que se opuseram ao poder disciplinar. Em segundo plano, a adoção da teoria da
soberania em termos democráticos e populares encobria os sistemas de dominação e
disciplina com a dispersão de direitos.
Assim, como legado, temos nas sociedades contemporâneas, a partir do
século XIX, o discurso jurídico, cujo direito público articula-se em torno do princípio
da soberania do povo, enquanto uma trama cerrada de coerções disciplinares garante a

207
Idem. Ibidem, p. 183.
208
O panoptismo pode ser entendido a partir de uma extensão metafórica do panóptico de Bentham que é
descrito por Foucault (Idem. Ibidem, p. 165): “O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa
composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta vazada de
largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma
atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às
janelas da torre; outra que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então
colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou
um escolar...”
209
Idem. Ibidem, p. 184.
210
Idem. Ibidem, p. 185.
97

coesão desse mesmo corpo social. O exercício do poder acontece entre esses dois
limites heterogêneos.
As disciplinas têm um caminho próprio. Criam aparelho de saber e
conhecimento. Seu discurso não é o do direito baseado na soberania popular. É o da
regra, o da norma, que se apoia na natureza, na ciência. Em Foucault:
[...] Que, atualmente, o poder se exerça ao mesmo tempo através desse direito e
dessas técnicas, que essas técnicas das disciplinas, que esses discursos nascidos da
disciplina invadam o direito, que os procedimentos da normalização colonizem
cada vez mais os procedimentos da lei, é isso, acho eu, que pode explicar o
funcionamento global daquilo que eu chamaria uma ‘sociedade de normalização’.
Quero dizer, mais precisamente, isto: eu creio que a normalização, as
normalizações disciplinares, vêm cada vez mais esbarrar contra o sistema jurídico
da soberania; cada vez mais nitidamente aparece a incompatibilidade de umas com
o outro; cada vez mais é necessária uma espécie de discurso árbitro, uma espécie
de poder e de saber que sua sacralização científica tornaria neutros. [...]

Esse excurso teórico permite vislumbrar a rota da distribuição de poderes


normativos a partir da irrupção das forças burguesas. Ao mesmo tempo em que se
ressignificava a soberania, deslocando-a da figura do monarca, na base social
espalhava-se um poder disciplinar que classificava, criava novas individualidades e as
normalizava.
A regulação é apenas a emergência de uma forma de poder disciplinar que
invade o discurso jurídico para suprir suas necessidades de normalização da atividade
econômica com o intuito de incrementar a produção e a alocação social de bens e
serviços, legitimando o poder político por meio de prestações materiais com
equivalentes em dinheiro e se apoiando em discursos técnico-científicos de verdade.
Com o fenômeno regulatório surge nova configuração social e jurídica. Ao
modelo liberal que se centrava num mercado e na soberania opõe-se, com a regulação,
a emergência de mercados e de entes autônomos e independentes para regulá-los. A
demanda por bens e serviços, típica do Estado Social, levou o Estado a delimitar
mercados para controlá-los num panoptismo baseado na impessoalidade e na
independência dos agentes reguladores. Nesse sentido, o Estado Regulador impõe que
se fale em mercados211 e se reconheça sua ubiquidade212. Para propiciar um

211
É o que se depreende do título da obra de PINHEIRO, Armando Castelar & SADDI, Jairo. Direito, economia
e mercados. São Paulo: Campus, 2005. Na página 362 expõe-se o critério usual no direito da concorrência para
delimitação dos mercados: A definição do mercado relevante tem duas dimensões, uma de produto e outra
geográfica. A primeira consiste em definir quais são os bens ou serviços que são substitutos próximos do
produto comercializado pelas empresas envolvidas. A identificação de produtos substitutos usualmente se centra
98

acompanhamento da economia, houve de antemão um loteamento da economia a partir


de produtos e serviços considerados essenciais para a manutenção das compensações e
redistribuições típicas do Estado Social, e há um permanente e potencial critério de
fracionamento de mercados, o de mercado relevante, funcionando como base para o
exercício de um poder disciplinar na economia pelas autoridades de defesa da
concorrência e regulatórias.
À soberania que se apresentava num poder uno, tripartido em funções
equilibradas por freios e contrapesos, contrapõe-se um novo discurso, que enfatiza a
autonomia e a independência213 de entes reguladores que acumulam as diversas
funções de normatizar, julgar e administrar214. No âmbito das agências reguladoras, a
soberania não mais pode ser abordada a partir das categorias do constitucionalismo
clássico. O conteúdo das normas regulatórias não mais advém de uma vontade geral da

no lado da demanda, procurando medir a elasticidade de substituição entre eles, para avaliarem em que medida
os consumidores trocariam um produto pelo outro no caso de ‘um pequeno mas significante aumento
transitório’ do preço do produto em questão, mantidas constantes as condições de venda de todos os demais
produtos. Se dois produtos têm um elevado grau de substituição entre si, devem ser considerados como
pertencentes a um mesmo mercado.
A segunda dimensão relevante para a definição do mercado relevante é a geográfica. Esta busca avaliar o grau
em que existem concorrentes próximos em tamanho e condições capazes de coibir o exercício de poder de
mercado pela nova empresa, tornando pouco interessante para esta promover um aumento pequeno mas
significante e não transitório de preço. [..] Dessa forma, ela considera o grau de substituição pelo lado da
oferta.
212
Isso fica muito claro no seguinte trecho (BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras: poder normativo,
consulta pública, revisão judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 27): Por tal motivo, pode-se
afirmar que todos os mercados são regulados, variando somente a intensidade dessa regulação. [...] Em todos
os campos da atividade econômica, as relações de mercado desenvolvem-se de acordo com um arcabouço
institucional de maior ou menor abrangência, do qual participam, dentre outras, as normas relativas à
propriedade, aos contratos, aos impostos etc.
213
Essa ideia está desenvolvida em MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 159: Quanto à autonomia, embora se deva reconhecer que se trata de um conceito
polissêmico, como tantos outros no Direito, parece suficiente lembrar que, no caso das agências reguladoras,
além das tradicionais características autonômicas de que gozam as autarquias, em geral, há essa outra e com
nova dimensão de autodeterminação que resulta da abertura, pela lei, de um espaço decisório deslegalizado em
seus respectivos setores de atuação.
Fenômeno semelhante ocorre na França (LINOTTE, Didier & ROMI, Raphaël. Droit Publique Économique.
Paris: Litec, 2006, p. 138): A atribuição de personalidade jurídica às últimas autoridades de regulação é o sinal
da emergência de um novo modelo que poderia ser coexistente com o modelo “antigo” das AAI ou substituí-las
paulatinamente.
Trata-se de uma escolha explicita intermediária entre a solução precedente e a da juridicionalização. A
concessão da personalidade jurídica é constitutiva de uma independência mais afirmada, e dá certamente uma
maior legitimidade às instâncias que dela são dotadas, mesmo se essa independência pudesse ser ainda mais
construída.
214
Essa ideia está presente nesta citação (BALDWIN, Robert & CAVE, Martin. Understanding regulation –
theory, strategy and practice . Nova Iorque: Oxford, 1999, p.69): Agências reguladoras são corpos que agem em
nome do governo central, mas não são Departamentos do Estado Central. Um de seus pontos fortes, como
instituições, é a capacidade de combinar funções governamentais. Eles geralmente decidem disputas entre
partes, promulgam regras e aplicam essas regras.
99

nação, presumida a partir da representação parlamentar, mas de grandes fissuras aí


abertas.
Algo semelhante ocorre com a teoria da tripartição de poderes. Para
sustentar a ideia de que a soberania estava no povo, e não no Estado, seus poderes
foram fracionados como forma de proteger os cidadãos do arbítrio. Diante de um
discurso fortemente apoiado na busca de eficiência, a divisão de poderes do
constitucionalismo clássico215 cede espaço a um exercício legiferante e inquisitorial do
poder das entidades administrativas, como forma de fazê-las mais presentes no
controle da economia e no seu direcionamento para fins fixados pelo Estado.
O dito “Estado Regulador” revela o escanteamento da soberania popular.
Sua emergência é a irrupção de uma dominação burocrática autônoma e independente,
à qual se reservam expressivos âmbitos de atividade normativa e de sua aplicação com
medidas coercitivas. Com as agências reguladoras formam-se novos corpos sociais
como locais privilegiados para o exercício do poder disciplinar por meio da
conjugação das três funções típicas do Estado, sob as vestes do direito e da verdade
dos saberes técnico-científicos.
Há um distanciamento da preocupação com a legitimação política por
normas de conteúdo morais e valores, deslocando-se para uma preocupação com a
manutenção de atividades de produção e distribuição de bens e serviços, dentro das
quais o regramento e a normatização constituem etapas essenciais, não só para a
estabilização da eficiência nas relações econômicas, mas principalmente para a
designação de oportunidades econômicas para os agentes regulados. A confluência de
poderes oriundos da soberania estatal, esmaecida, e de um poder disciplinar sobre os
mercados, resulta na regulação com um elevado poder de normatização, apoiado na
sólida base de um plano formado por poder, direito e discursos de verdade com
elevado potencial de coerção e déficit de legitimação.

215
O constitucionalismo teve sua marcha marcada pela divisão de poderes e a soberania como se vê no seguinte
excerto: FIORAVANTI, Maurizio. Costituzione. Bolonha: Il Mulino, 1999, p. 101: A situação no último quarto
do século XVIII poderia ser representada nos seguintes termos: de uma parte a tradição constitucionalista do
poder limitado, de outra a nascente afirmação de recolocar em discussão a forma política, e aquela mesma
tradição, a partir do povo, que no caso de Rousseau era sem meio termo definido como soberano.
100

2.6 Regulação e economia

A essência do capitalismo de mercado é que os agentes individuais possam


tomar as próprias decisões. Em todas as economias de mercado, o governo apresenta-
se como ator relevante, definindo, entre outras coisas, tributos, investimentos públicos
e a disponibilidade monetária. Nesses casos, as decisões governamentais têm
influência sobre o comportamento dos agentes de mercado, mas não são uma limitação
direta que impõe limitações precisas de escolha.
No papel de regulador, a marca da atuação estatal é procurar atuar
diretamente sobre a tomada de decisão dos agentes de mercado, valendo-se de seu
poder coercitivo. A regulação econômica dirá respeito à formação de preços e à
entrada e à saída de mercados216. Num mercado regulado, a performance de eficiência
alocativa e produtiva não é determinada apenas por forças de mercado, mas também
por pautas governamentais. Em outras palavras, há uma inevitável dinâmica
econômica privada, que não pode ser objeto de controle absoluto, ao lado de
parâmetros estatais.

2.6.1 Teorias da regulação sob o ponto de vista econômico

Uma reflexão a ser empreendida tem como vetor as motivações da


regulação numa economia capitalista, verificando seus benefícios e quais setores são
mais predispostos à regulação. Isso ajuda a entender os efeitos da regulação na
economia. No âmbito dos estudos econômicos há uma evolução do pensamento sobre
tal questão217. Houve três estágios nessa evolução.
A primeira hipótese considera que a regulação deve ocorrer diante de falhas
de mercado. Originalmente, essa teoria foi denominada teoria do interesse público,

216
VISCUSI, W. Kip, HARRINGTON, Joseph E. Jr. & VERNON, John M. Economics of regulation and
antitrust. 4ª ed. Boston: Massachusetts Institute of Technology, 2005, p. 357.
217
Idem. Ibidem, p. 375.
101

mais recentemente conhecida como análise normativa como teoria positiva218. Em


razão de suas inconsistências, economistas e cientistas políticos desenvolveram a
teoria da captura. Buscando superar a insuficiência empírica e teórica das primeiras
hipóteses, chegou-se a um terceiro estágio a partir de hipóteses testadas que se
convencionou denominar teoria da regulação econômica.

2.6.1.1 Teoria do interesse público

Duas circunstâncias justificariam a intervenção do Estado, constituindo


falhas de mercado: o monopólio natural e desequilíbrios causados por externalidades.
Segundo a teoria do interesse público, diante da verificação de tais casos a regulação
encontraria justificação.
Um mercado é um monopólio natural se, na quantidade social ótima, o
custo de produção é minimizado com a existência de apenas uma firma produtora219.
Monopólios naturais têm lugar quando há um grande custo fixo de investimento
envolvido, como no caso de distribuição de energia elétrica e de redes telefônicas, pois
o custo médio é decrescente quando há uma ampla rede de consumo.
O problema que surge é um conflito entre eficiência alocativa e produtiva.
A eficiência produtiva indica que apenas uma firma deve produzir, pois somente assim
se pode explorar ao máximo o custo médio decrescente. Contudo, uma única produtora
acabaria tentada a maximar lucros, aumentando preços bem acima dos custos. Isso
comprometeria a eficiência alocativa. Para gerar eficiência alocativa, com o aumento
do bem-estar dos consumidores, seria necessário um número suficiente de empresas
que levassem a fixação de preços para próximo do custo. Só que nesse caso haveria
ineficiência produtiva, em razão do excesso de concorrentes a enfrentarem elevados
custos fixos de investimento. Para equilibrar tal situação surgiria a necessidade de
intervenção do Estado.

218
Idem. Ibidem, p. 375.
219
Idem. Ibidem, p. 376.
102

De outro lado, uma externalidade tem lugar quando a ação de um agente


econômico afeta o bem-estar de outro, e o primeiro agente não se importa com o
segundo por não ter o seu bem-estar afetado. Na presença de externalidades, a
concorrência perfeita não levaria a uma alocação ótima de recursos. Exemplo típico de
externalidade negativa é a poluição. Geralmente, nos casos de externalidades
negativas, acaba havendo excesso da respectiva atividade, o que exige a intervenção
do Estado para reduzi-la a um nível que garanta o bem-estar ótimo social e de todos os
agentes envolvidos.
Por considerar o controle de falhas de mercado como um objetivo a ser
alcançado pela regulação, a teoria do interesse público tem um caráter normativo,
tratando dos casos em que ela deve ocorrer. Sem a regulação há excesso de
concorrentes ou preços excessivamente altos.
Fortes objeções têm sido colocadas contra a teoria do interesse público. A
primeira delas é que essa teoria não explica como o legislador e o agente regulador
deveriam agir para gerar um ganho social no controle de determinado mercado. A
segunda é que vários mercados são regulados sem qualquer eficiência racional, como
transportes terrestres, táxis e seguros, por exemplo220.

2.6.1.2 Teoria da captura

Uma retrospectiva da regulação a partir do séc. XIX, especialmente nos


EUA, mostra que ela não está necessariamente vinculada às falhas de mercado.
Análise empreendida a partir da década de 1960 verificou que a regulação, com boa
frequência, se dava em favor dos produtores com o aumento de seus lucros221. Era o
caso dos táxis, nos mercados competitivos, e da energia elétrica, nos monopólios
naturais. Com isso, houve a formulação da teoria da captura, que defendia que ou a
regulação era erigida legislativamente para atender uma demanda dos produtores, ou
com o tempo a agência reguladora acabaria sob o controle dos regulados.

220
Idem. Ibidem, p. 378.
221
Idem. Ibidem, p. 379.
103

Essa teoria, no entanto, se apresenta muito mais como hipótese, pois não
explica como a regulação acaba controlada pelos produtores. Há inclusive modos de
regulação contrários a essa teoria, como o caso dos subsídios cruzados, em que os
baixos preços de um produto são financiados por outro com preço mais elevado, e há
ainda a regulação a favor de pequenos produtores. Isso sem contar vários mercados,
nos EUA, como os de petróleo e gás natural222.

2.6.1.3 Teoria econômica da regulação

Diante das evidências de que a regulação não está necessariamente


associada a falhas de mercado e que não se alinha sempre aos produtores, procurou-se
formular uma teoria em que se explica o aumento de bem-estar para determinados
grupos, assim como o surgimento da regulação em determinados setores e sua
posterior desregulação. A teoria econômica da regulação buscou tal resposta.
Um grande impulso para a teoria ocorreu em 1971 com um artigo de
George Stigler223. Embora chegasse a conclusões semelhantes às da teoria da captura,
sua grande contribuição foi a maneira de chegar a elas. A premissa de Stigler é que o
recurso básico de um Estado é o poder de coagir. Assim, um grupo de interesse que
possa convencer o Estado a usar tal poder pode incrementar seu próprio bem-estar. A
segunda premissa é a de que os agentes em determinado mercado seriam racionais e
tenderiam a maximizar utilidades em benefício próprio. A partir de tais premissas, a
regulação seria fornecida como resposta a demandas de grupos de interesse para
maximizar seu bem-estar.
O Estado pode ser, para a economia, potencial fonte de recursos (ou de
ameaças) com a distribuição de poder. Os poderes de interditar, facultar ou compelir,
assim como o de tomar ou dar dinheiro ao Estado, ajudam ou criam embaraços de
forma seletiva para várias atividades. Nesse sentido, as tarefas centrais da teoria da

222
Idem. Ibidem, p. 380.
223
STIGLER, George. A teoria da regulação econômica. In: MATTOS, Paulo. Regulação econômica e
democracia. O debate norte-americano. São Paulo: Ed. 34, 2004, pp. 49-80.
104

regulação econômica são justificar quem receberá os benefícios ou quem arcará com
os ônus da regulação; qual forma a regulação tomará e quais os efeitos desta sobre a
alocação de recursos224.
Essa teoria foi complementada por Sam Pelztman225, que destacou: a) a
legislação regulatória redistribui bem-estar; b) o comportamento dos legisladores é
dirigido pelo seu desejo de permanecer na função pública, empregando a regulação
para aumentar sua sustentação política; c) grupos de interesse competem oferecendo
sustentação política em troca de legislação favorável. A partir disso, a normatização
regulatória é direcionada para atender aos grupos políticos mais organizados que
obtenham mais ganhos com um marco legislatório favorável.
Assim, grupos compactos e com interesses bem definidos teriam maior
benefício com a regulação do que grupos maiores com interesses difusos226. Para
investir grandes recursos e obter regulação, o ganho per capita de cada regulado
precisa ser grande, com obtenção de legislação favorável, e gerar grande contribuição
no âmbito de um grupo de interesse pequeno, causando forte impacto para definir o
interesse a ser protegido com a regulação. Isso explica o fato de a regulação beneficiar
pequenos grupos de produtores, em detrimento de grandes grupos de consumidores227.
No entanto, não se pode ignorar que os consumidores ainda assim formam um grupo
de interesse. Os resultados da teoria econômica da regulação podem ser assim
resumidos228:
Nós derivamos quatro maiores resultados usando a abordagem de Stigler para a
teoria da regulação. Esses resultados caracterizam a forma da regulação e
estabelecem quais mercados serão regulados. Em primeiro lugar, há a tendência de
a regulação beneficiar grupos com fortes preferências pela regulação em
detrimento de relativamente grandes grupos com fracas preferências pela
regulação. Em vários casos, a consequência disso é que a regulação será a favor

224
STIGLER, George J. A teoria da regulação econômica. In: Mattos. Regulação econômica e democracia. O
debate norte-americano. São Paulo, Ed. 34, 2004, p. 23.
225
PELTZMAN, Sam. Toward a more general theory of regulation. In: Journal of Law and Economics 19
(August 1976), pp. 211/40.
226
PELTZMAN, Sam. A teoria econômica da regulação depois de uma década de desregulação. In: MATTOS,
Paulo. Regulação Econômica e Democracia. O debate norte-americano. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 50.
227
Um exemplo de benefício da regulação para um pequeno grupo em detrimento de um maior é o caso do
programa de amendoim nos EUA, que está no seguinte trecho de VISCUSI, W. Kip et alii. Op. cit., p. 383:
Desde 1949, o governo federal tem mantido um programa que limita o número de fazendeiros que podem vender
amendoins nos Estados Unidos. Importações também são severamente restritas. No auge dessas restrições, a
sustentação de preços visa a garantir que os fazendeiros com quotas de amendoim possam cobrir os seus custos
de produção em cada ano. Esse sistema geralmente resulta num preço mínimo de venda 50% acima da média
mundial.
228
VISCUSI, W. Kip et alii. Op. cit., p. 390.
105

dos produtores. Em segundo lugar, ainda que a regulação seja a favor do produtor,
a normatização regulatória, especialmente a de preço, não será estabelecida apenas
para maximizar lucros da indústria. Em virtude da influência dos grupos de
consumidores, os preços serão estabelecidos abaixo do nível superior de
maximização dos lucros. Um terceiro resultado é mais atrativo para mercados
relativamente competitivos ou relativamente monopolísticos, porque aí a regulação
terá maiores impactos no bem-estar de determinados grupos. Finalmente, a
presença de falhas de mercado faz a regulação mais atrativa, já que os ganhos de
alguns grupos de interesse será maior do que as perdas de outros grupos de
interesse. Como resultado, o ator terá mais influência no processo legislativo,
ceteris paribus.

É interessante notar que a literatura sobre o tema tem considerado a teoria


econômica da regulação mais consistente do que a teoria do interesse público e a teoria
da captura, considerando até mesmo essas duas últimas como meras hipóteses229. É
dizer, há uma preferência generalizada por uma teoria que concebe a própria regulação
estatal como um produto em disputa por diversos grupos de interesse dispostos a
investir em benesses governamentais.
Isso evidencia algo muito interessante na teoria econômica da regulação,
posto que a atividade regulatória vai além da intervenção e do controle na produção de
bens. Ela mesma é um bem colocado à disposição de vários grupos. A
instrumentalização presente na regulação por imperativos sistêmicos da economia não
está apenas na preocupação com a eficiência na produção e na distribuição de
utilidades, mas também no apossamento da própria atividade de produção normativa
como modo de atingir bem-estar para determinados grupos. O cenário da regulação
não implica somente disputa por bens materiais, abrangendo de igual modo o
enfrentamento com vistas à obtenção de poder coercitivo contido em normatizações
estatais. Sob o ponto de vista do Estado Democrático de Direito, está evidenciado mais
um risco de apropriação ilegítima do poder administrativo-burocrático e do direito, em
razão de imperativos resultantes do sistema econômico controlado pelo dinheiro.

2.6.2 Instrumentos de regulação

229
POSNER, Richard A. Teorias da regulação econômica. In: MATTOS, Paulo. Regulação Econômica e Democracia. O debate
norte-americano. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 49.
106

Sob o ponto de vista econômico, a regulação compreende todos os tipos de


impostos e subsídios, bem como aos controles legislativos e administrativos explícitos
sobre taxas, ingresso no mercado e outras facetas da atividade econômica230. Nessa
ordem de ideias, a primeira contribuição que um grupo pode demandar do Estado é
uma subvenção em dinheiro. O segundo maior recurso é o controle sobre o ingresso de
novos concorrentes, que geralmente vem acompanhado de políticas de preço. A
terceira, e não menos importante, é a de produção de critérios de normalização das
atividades que não seriam obtidas sem a intervenção de uma autoridade que fixasse
padrões comuns e homogêneos de comportamento.
Dentre os padrões de comportamento, um instrumento de regulação que se
destaca é o controle de preços. O mais comum é a fixação de um teto ou de uma
margem de variação. A fixação do teto aplica-se aos casos em que se considera que um
mercado monopolista ou oligopolista possa elevar excessivamente os preços. Já a faixa
de variação de preços, como estipulação de teto e piso, justifica-se quando há também
a preocupação com a possibilidade de estipulação de preços predatórios pelos agentes,
para forçar a saída de competidores do mercado.
A regulação de preços também serve ao objetivo de limitar lucros dos
agentes de mercado. O órgão regulador fixa, nesse caso, um preço de acordo com
taxas de retorno que avalia como normais. A padronização de preços pode gerar um
descompasso em que as empresas reguladas apresentem elevada margem de lucro ou
baixa taxa de retorno. As agências reguladoras podem mostrar-se lentas para ajustar
preços em face de inflação que aumente os custos ou diante de avanços tecnológicos
que aumentem a eficiência, potencializando os lucros.
No que diz respeito ao comportamento dos agentes no mercado, também a
quantidade produzida pode ser objeto de regulação, o que tem direta influência sobre
os preços. É interessante notar nessa relação entre quantidade e preço que uma
remuneração por produto aquém do que seria estipulado por um mercado livre pode
gerar desabastecimento.
Um dos pontos cruciais na regulação é o controle do número de
competidores por meio de restrições para entrada e saída de agentes econômicos. Os

230
Idem. Ibidem, p. 50.
107

critérios para tanto podem ser um número fixo de competidores para explorar
determinada linha ou faixa de mercado, capital mínimo a ser investido, expertise para
a exploração da atividade ou taxas administrativas e complexidade de procedimentos
para a obtenção de licenças ou autorizações.
Um outro objeto de regulação é a qualidade dos produtos e serviços. Isso
tem lugar com a fixação de padrões de confiabilidade. A fixação de critérios nesse
âmbito exige a avaliação de uma gama de variáveis, como na regulação do transporte
aéreo com a avaliação de pontualidade, segurança, serviços de bordo, entrega de
bagagens etc.

2.6.3 Concentração econômica e decisão democrática

O capitalismo regulado pelo Estado refere-se aos processos de concentração


econômica e à intervenção do Estado quando surge um hiato funcional. O
espraiamento de estruturas oligopolistas significa a derrocada do capitalismo
competitivo. Em igual sentido, ocorre o fim dessa espécie de capitalismo com a
suplementação e a parcial substituição do livre mercado pela intervenção estatal, em
determinados setores econômicos, pela regulação. Duas características marcam as
economias dos países de capitalismo regulado pelo Estado: a) processos de
concentração econômica que redundam no surgimento de empresas nacionais e
transnacionais com a organização de mercados para bens, capitais e trabalho e b)
intervenção do Estado no mercado quando se verifica falha ou fator de
desestabilização.
Assim como o alargamento das estruturas oligopolistas significa o fim do
capitalismo competitivo231, a intervenção do Estado marca o fim do capitalismo
liberal. Todavia, o planejamento estatal não é capaz de alterar diretamente o objetivo
precípuo das empresas, que é auferir lucros. Por isso, só secundariamente as empresas
podem perfilar-se aos programas públicos de regulação.

231
HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 48.
108

Descrevendo o capitalismo avançado, na década de 60 vários autores,


tomando os Estados Unidos como exemplo, desenvolveram um modelo trissetorial. O
primeiro era um subsetor privado, em que a produção privada se orientava por um
mercado competitivo, em geral formado por indústrias de trabalho intensivo. O
segundo era um subsetor privado dominado por estratégias mercadológicas de
oligopólios predominantemente de capital intensivo. O último setor derivava de
investimentos públicos, como nas indústrias de armamentos e espacial e, no caso do
Brasil, também se considera a exploração de petróleo capital intensivo. Nesses dois
últimos setores, a regulação se mostra mais presente.
Com efeito, o aparelho do Estado exerce várias funções dentro do sistema
econômico. A partir de duas perspectivas, podem ser ordenadas: a) pelo planejamento
global com regulação do ciclo econômico como um todo e b) por criar condições para
uma melhor utilização do capital acumulado.
Os controles fiscal, financeiro, de conjuntura e as medidas pontuais
destinadas a regular investimentos e demandas em geral (créditos, garantias de preço,
subsídios, empréstimos, redistribuição secundária de renda, contratos governamentais
guiados pelas políticas conjuntural, política indireta de mercado de trabalho etc.)232
são reações e estratégias num conjunto de metas que deve visar globalmente à
competição, ao crescimento permanente, à estabilidade da moeda e ao equilíbrio do
balanço de pagamentos.
Procurando tornar eficiente a utilização de capital, o Estado age desta
forma233:
Enquanto o planejamento global manipula as condições de limite das decisões feitas
pela empresa privada, a fim de corrigir o mecanismo de mercado e em relação aos
efeitos disfuncionais secundários do mercado, o Estado de fato substitui o
mecanismo de mercado, sempre quando crie e melhore as condições para
realização do capital: através do fortalecimento da capacidade competitiva da
nação, ao organizar blocos econômicos supranacionais, assegurando-lhes
estratificação internacional, por meios imperialistas etc.; através da condução de
acordo com a política estrutural, do fluxo de capital rumo a setores negligenciados
por um mercado autônomo; através da melhoria da infraestrutura material
(transporte, educação, saúde, recreação, planejamento urbano e regional,
construção imobiliária etc.); através da melhoria da infraestrutura imaterial
(promoção geral das ciências, investimentos e pesquisa e desenvolvimento,
estabelecimento de patentes etc.); através da elevação da produtividade do trabalho
humano (sistema geral de educação, escolas vocacionais, programas para

232
Idem. Ibidem, p. 49.
233
Idem. Ibidem, p.. 50.
109

treinamento e reeducação etc.); através do alívio de custos sociais e materiais


resultantes da produção privada (compensação de desemprego, previdência social,
reparação de danos ecológicos).

Com isso, para criar condições de uma melhor utilização do capital, o


Estado complementa mecanismos de mercado, tomando medidas como organização de
blocos econômicos supranacionais, condução de fluxo de capital para mercados
negligenciados, melhora de infraestrutura material e imaterial, elevação da
produtividade do trabalho humano (sistema geral educacional), alívio de custos sociais
da produção privada (previdência, seguridade, assistência social etc.).
O Estado não mais se restringe à manutenção da ordem, mas se encontra
engajado na tarefa de regulação da economia com vistas a melhorar a utilização do
capital e o planejamento global da economia. Isso exige legitimação. Além dos
processos democráticos, há a formação de divisões administrativas a serem feitas
largamente, independentemente de motivações específicas dos cidadãos234.
Essa forma de atuação do Estado permite-lhe coordenar um processo de
produção e distribuição de bens e serviços com alto potencial agregador pela recepção
pelos cidadãos, reduzidos principalmente ao papel de clientes da burocracia estatal e
consumidores de prestações e serviços. Não só o Estado os fornece, mas
principalmente os agentes regulados, a partir de critérios fixados dentro da máquina
burocrática235 com vistas à manutenção da prestação de utilidades e à estabilização do
mercado num equilíbrio econômico de alto nível, ou seja, com constante crescimento.
O resultado é um sistema econômico cada vez mais complexo e concentrado.
É um processo que difunde lealdade, mas minora a participação. Criam-se
instituições e processos que são democráticos na sua forma, porém, às decisões
privadas de investimento corresponde um privatismo cívico, um absenteísmo político
acompanhado de uma orientação para o lazer, a carreira e o consumo. O acoplamento

234
POSNER (Op. cit., p. 51).
235
Neste trecho de SUSTEIN confirma-se essa ideia (SUSTEIN, Cass R. After the rights revolutions –
reconceiving the Regulatory State. Cambridge: Harvard University Press, 1993, p. 29): Além disso, na década
de 60 e 70, o Congresso abandonou a fé do New Deal na autonomia administrativa. A burocracia era o
problema, não a solução. O Congresso muitas vezes se recusou, por exemplo, em fornecer cheques em branco
do New Deal para as agências reguladoras, permitindo-lhes para evitar "o comportamento, ou agir" razoável
no “interesse público". A experiência tinha mostrado que a autonomia administrativa suscitava riscos de
representação de autointeresse e facciosismo que a moldura original originalmente buscava prevenir. Como
veremos, o resultado das delegações abertas têm sido frequentemente mal direcionados regulamentos, bem
como falta ou excesso de regulamentação.
110

do sistema político-burocrático à capacidade de produção dos entes regulados


estabelece recompensas no âmbito do lazer, do dinheiro e da segurança, o que deixa
muito clara a colonização e o sequestro dos laços de cidadania por relações
precipuamente econômicas orientadas especialmente para a produção e o consumo,
com o consequente esmaecimento dos outros âmbitos de vivência social. A tomada de
decisões se desloca para estruturas burocráticas e empresariais.
111

2.7 Regulação e técnica

O conceito de racionalidade foi introduzido por Max Weber para explicar o


capitalismo, o direito privado burguês e a dominação burocrática236. Trata-se da ação
racional dirigida a fins, com a seleção dos meios e a escolha de alternativas. A
racionalização progressiva da sociedade, marcada pela ampliação das esferas sociais
submetidas à decisão racional e pela industrialização do trabalho, depende da
institucionalização do progresso científico e técnico237.
Subjacente a essa concepção de razão tecnológica está a de dominação
metódica, científica e calculadora, dado que a racionalização das relações sociais,
segundo critérios de seleção correta de estratégias, de adequação tecnológica e de
pertinente instauração de sistemas sociais equivale à institucionalização política da
dominação. Tanto é assim que determinados fins e interesses não são outorgados
posteriormente à técnica, inserindo-se na construção do aparato técnico e projetando os
interesses dominantes da própria sociedade.
Aliás, no capitalismo avançado, a dominação desloca seu caráter explorador
e opressor, tornando-se racional. A legitimação dessa dominação assume um novo
caráter com a crescente produtividade e o controle da natureza, que proporcionam aos
indivíduos uma vida mais confortável.
A sociedade racionalizada se apresenta como uma organização
tecnicamente necessária. A racionalidade não é apenas uma crítica à legitimação
vigente, mas sim a própria legitimação. O poder político busca legitimidade pela
adoção racional da tecnologia, ancorando-se em soluções técnicas e na própria
burocracia.
Nessa ordem de ideias, a ciência moderna e seu desdobramento em
tecnologia trazem consigo a dominação pela redução da esfera de escolha dos
indivíduos e pela ampliação das possibilidades do poder político. É a natureza,

236
WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. V. 2. Brasília: Editora
UnB, 1999, p. 187 e seg.
237
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ‘ideologia’. Lisboa, Edições 70, 2001, p. 45.
112

entendida e controlada pela ciência, que possibilita produtivistamente a melhoria das


condições de vida dos indivíduos, submetendo-os aos imperativos do sistema.
O capitalismo, que se baseia num crescimento contínuo e de longo prazo,
institucionaliza a inovação, garantindo uma extensão permanente dos subsistemas da
ação racional teleológica238, colocando em xeque a legitimação tradicional. No
capitalismo, a legitimação surge da base do trabalho social, inserindo-se a força de
trabalho como mercadoria, com a promessa de equivalência nas relações de troca. A
dominação se justifica não mais com mito ou religiões, mas com relações legítimas de
produção. O marco institucional da sociedade é só mediatamente político e
imediatamente econômico239.
A racionalização da sociedade ocorre a partir de baixo, com a formação de
mercados de bens e de trabalho, de um lado, e de outro com a empresa capitalista,
promovendo em conjunto uma expansão horizontal dos subsistemas de ação racional
teleológica. Como acentua Habermas:
Por este meio, as formas tradicionais sujeitam-se cada vez mais às condições de
racionalidade instrumental ou estratégica: a organização do trabalho e do tráfico
econômico, a rede de transportes, de notícias e da comunicação, as instituições do
direito privado e, partindo da Administração das finanças, a burocracia estatal. Ele
apodera-se, pouco a pouco, de todas as esferas vitais: da defesa, do sistema escolar,
da saúde e até da família; impõe tanto na cidade como no campo uma urbanização
da forma de vida [...]

A par dessa pressão por racionalização, que vem a partir de baixo, há uma
coação que vem a partir de cima, com a substituição das legitimações tradicionais de
dominação pela pretensão de veracidade das ciências modernas.
O último quarto do século XIX viu surgirem duas novas tendências
evolutivas240: 1ª) um incremento na atividade intervencionista do Estado e 2ª) uma
crescente interdependência da investigação técnica, colocando as ciências como
primeira força produtiva. Essas tendências solapam o marco institucional típico de
Estado Liberal.
O capitalismo não poderia estar abandonado a si mesmo, cabendo ao Estado
intervir e regular a longo prazo o processo econômico e seu simbiótico vínculo com a
produção tecnológico-científica. A atividade estatal visa ao crescimento econômico,

238
HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ‘ideologia’. Lisboa, Edições 70, 2001, p. 64.
239
Idem. Ibidem, p. 65.
240
Idem. Ibidem, p. 68.
113

assumindo a política um caráter negativo, já que as instituições públicas são regidas


crescentemente por uma orientação tecnológica e burocrática, que visa principalmente
a prevenir riscos que possam ameaçar os sistemas sociais, especialmente o econômico.
A política não mais trata de problemas práticos da moral e da ética, mas de
questões técnicas que excluem a participação da grande massa da população. A
discussão é deslocada para aparatos burocráticos, tais como as agências reguladoras.
Outra marca do capitalismo é a cientificação da técnica. Em tal modo de
produção sempre houve pressão para intensificar a produtividade do trabalho com
novas técnicas. Com a pesquisa industrial de ponta, a ciência, a técnica e a
revalorização do capital confluem para um único sistema. A própria evolução do
sistema social parece ditada pelo progresso técnico-científico.
A formação da vontade democrática não mais se refere a questões práticas
de moral e ética, mas instrumentais e estratégicas, tornando as eleições em decisões
plebiscitárias sobre diferentes equipes de administradores. Em igual medida, a
autocompreensão culturalmente determinada de um mundo social da vida é
substituída pela autocoisificação dos homens sob categorias da ação racional dirigida
e do comportamento adaptativo241. É nesse cenário que se justificam as agências
reguladoras compostas, em suas instâncias superiores, por técnicos com mandatos.
Nessa linha, o homem não se concebe apenas como homo faber, mas
igualmente como homo fabricatus, integrando-se tal qual uma peça nos sistemas
sociais e nos dispositivos técnicos. Isso faz com que a ordem moral e a ação
comunicativa linguisticamente articuladas, que pressupõem a interiorização de normas
morais, éticas e jurídicas, dissolvidas por modos cada vez mais amplos de
comportamento condicionados por tecnologias de disciplina social com vistas à
produção e à repartição compensatória de bens. É o controle por estímulos externos
sobrepondo-se socialmente às normas vinculantes. A liberdade subjetiva também se vê
cada vez mais restrita pelo avanço de estímulos condicionados que atingem áreas
como comportamento eleitoral, consumo e tempo livre.
Como já visto no paradigma Estado Social, até mesmo o conceito de luta de
classes sociais perde, nesse cenário, o seu sentido. No capitalismo estatalmente

241
Idem. Ibidem, p. 74.
114

regulado, o antagonismo aberto de classes acha-se pacificado. Há uma política de


compensações que assegura a lealdade das massas dependentes do trabalho. A
oposição de classes não é anulada, mas fica latente com um interesse comum na
manutenção da fachada distributivo-compensadora, passando os conflitos para áreas
subprivilegiadas que afetam parcelas da população que não podem ser classificadas
como classes sociais.
O progresso técnico-científico, como primeira força produtiva, torna-se o
fundamento de legitimação. Nas palavras de Habermas242:
A consciência tecnocrática é, por um lado, ‘menos ideológica’ do que todas as
ideologias precedentes, pois não tem o poder opaco de uma ofuscação que sugere
falsamente a realização de interesses. Por outro lado, a ideologia de fundo, um
tanto vítrea, hoje dominante, que faz da ciência um feitiço, é mais irresistível e de
maior alcance do que as ideologias de tipo antigo, já que com a dissimulação das
questões não só justifica o interesse parcial de dominação de uma determinada
classe e reprime a necessidade parcial de emancipação por parte de outra classe,
mas também afeta o interesse emancipador como tal do gênero humano.

Na consciência tecnocrática sedimentam-se o ideal de neutralidade e os


modelos coisificados das ciências, que afastam discussões éticas e políticas vazadas
em linguagem comum, o que redunda num marco institucional de sistemas
autonomizados regidos por uma ação instrumental. É a técnica tomando o lugar da
práxis. O cidadão acaba sendo tratado como mero cliente/consumidor, por ser incapaz
de debater tecnicamente temas de regulação.
É preciso distinguir tipos de racionalização243: a dos sistemas de ação
racional dirigida a fins, em que o progresso científico e o tecnológico já impeliram a
um rearranjo em crescente escala das instituições e de setores da sociedade; e a das
interações linguisticamente mediadas pela desconstituição das restrições de
comunicação em nível institucional. Justamente nessa última apresenta-se a
possibilidade de uma mais ampla emancipação em discussões públicas, sem restrições
e sem coações, sobre a adequação e a desiderabilidade dos princípios e normas
orientadoras da ação244.
Informações científico-naturais só podem entrar no mundo da vida como
saber tecnológico, estratégico e instrumental, revelando-se principalmente por

242
Idem. Ibidem, p. 80.
243
Idem. Ibidem, p.88.
244
Idem. Ibidem.
115

produtos e prestações, e não por uma linguagem natural de intelecção universalizável.


Isso põe a questão de como se pode dar essa tradução, controlando-a numa discussão
racional em termos de ação comunicativa e discursos sociais emancipadores
partilháveis por cidadãos.
Noutro giro, não se pode deixar de perceber que o sistema de trabalho das
sociedades industriais e os processos de investigação científica levam em conta sua
transformação técnica e sua utilidade econômica. Os métodos científicos
revolucionaram os processos de produção. A ciência vincula-se com a produção e a
Administração245. Até mesmo a sociedade acabou por ser abarcada pela cientifização.
As ciências, com o poder de disposição que lhes é inerente, transformam-se em poder
técnico. A técnica, por sua vez, também pode ser entendida como referência à ciência
e à sua capacidade de rendimento econômico, isto é, como disposição cientificamente
racionalizada sobre processos objetivados246.
Já a democracia consiste precipuamente em formas institucionalmente
garantidas de uma comunicação geral e pública que se ocupa das questões práticas:
de como os homens querem e podem conviver sob as condições objetivas de uma
capacidade de disposição ampliada247.
Sobre a relação entre técnica e democracia, um primeiro ponto a ser
ressaltado é o de que a burocracia deve ter como referencial de atuação e
funcionamento, até mesmo técnico, a construção de uma sociedade livre e emancipada.
Em outras palavras, não necessariamente técnica e democracia convergem. Tampouco
é verdadeiro que ambas divergem. Formam, em realidade, uma tensão.
Por isso, o cerne da relação entre técnica e democracia está numa tensão
entre o saber e o poder técnicos e o saber e o querer práticos sobre questões éticas e
morais. Dito de outro modo, entre poder e vontade. Habermas explica essa dialética248:
Essa dialética de poder e vontade realiza-se hoje de modo irrefletido, ao serviço de
interesses para os quais não se exige nem se faculta uma justificação pública. Só
quando conseguíssemos levar a cabo esta dialética com consciência política,
poderíamos controlar a mediação do progresso técnico com a prática da vida
social, mediação essa que, até agora, se impõe, em termos de história natural. Mas,

245
Idem. Ibidem, p. 99.
246
Idem. Ibidem, p. 101.
247
Idem. Ibidem, p.102.
248
Idem. Ibidem, p. 105.
116

porque isso é um assunto de reflexão, não incumbe apenas à competência dos


especialistas [...]

Como ressaltado, nos Estados contemporâneos a cientifização da política é


uma tendência. A composição da burocracia por funcionários com formação técnico-
científica e o volume de pesquisas geradas pelas tarefas do Estado são provas disso.
Desde o começo do Estado Moderno, oriundo do tráfico mercantil das
economias territoriais e nacionais em formação e da necessidade de uma
Administração Central, houve necessidade de recrutamento de funcionários com
formação jurídica. Eles tinham, assim como os militares, um saber técnico mais
próximo da arte do que da ciência. Foi só na segunda metade do século XX que se
atingiu uma nova fase da racionalização, em que os burocratas, os militares e os
políticos orientaram-se, no exercício de suas funções públicas, segundo
recomendações estritamente científicas249.
250
Max Weber definiu claramente a relação entre saber especializado e
prática política. Os peritos serviam-se do saber técnico, dependendo, para a afirmação
de uma dominação, da imposição interessada de um querer decidido251. O agir
político, a partir desse ponto de vista, não se fundamenta racionalmente, sendo a
decisão decorrente de uma ordem de valores e convicções de fé.
Esse modelo decisionista pode ser colocado em questão. Num segundo
nível de racionalização da dominação, estudos sistemáticos e a teoria da decisão
proporcionam novas técnicas para a prática política com o uso de estratégias
calculadas e automatismo na decisão, parecendo prevalecer sobre as decisões dos
líderes a coação dos especialistas. É a construção de um modelo tecnocrático.
Há uma inversão de papéis entre políticos e especialistas, tornando-se os
primeiros órgãos executores de técnicas, estratégias de otimização e imperativos de
controle, oriundas de desdobramentos de conhecimentos científicos. Eles seriam como
que o tapa-buracos de uma racionalização ainda imperfeita da dominação, em que a
iniciativa transitaria sempre para a análise científica e a planificação técnica252.

249
Idem. Ibidem, p. 108.
250
WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. V. 2. Brasília: Editora
UnB, 1999, p. 529 e seg.
251
HABERMAS (Op. cit., p. 108).
252
Idem. Ibidem, p. 109.
117

O Estado move-se da simples dominação política para uma inserção


eficiente das técnicas disponíveis, transformando-se numa Administração
integralmente racional. Ocorre que as debilidades desse modelo tecnocrático são
evidentes. Em primeiro lugar, esquece-se que sob as vestes do conhecimento técnico-
cientifico estão interesses sociais que nele atuam. Em segundo, esse modelo supõe um
contínuo entre questões teóricas e práticas de moral e ética, porque nenhum poder de
disposição técnico-científico pode fazer desaparecer questionamentos que tratam sobre
os sistemas de valores, isto é, sobre necessidades sociais, situações objetivas da
consciência, emancipação etc.
Em verdade, com uma distinção entre o controle das recomendações
técnicas por meio de resultados, e no contexto das situações concretas, uma verificação
moral e ética das técnicas poder-se-ia constituir num exame pragmático e numa
explicação racional da relação entre técnica e decisões práticas.
Nesse modelo, no lugar de uma estrita separação entre as funções do
especialista e do político surge uma correlação crítica. Há uma comunicação recíproca
em que especialistas científicos aconselham as instâncias decisórias, e as autoridades
encarregam os cientistas conforme necessidades práticas. Surge, então, um controle
sobre o desenvolvimento de novas estratégias, a partir de necessidades e sobre os
interesses sociais refletidos num sistema de valores pela comprovação das
possibilidades técnicas e dos meios estratégicos para sua satisfação.
Delineando três modelos da relação entre saber especializado e político, só
um deles se refere necessariamente à democracia253. O modelo decisionista reduz em
última instância o processo de formação da vontade democrática a um procedimento
regulado por aclamação a favor das elites. Nesse processo, o aspecto irracional da
decisão permanece intocado, de modo que a dominação pode legitimar-se, mas não se
racionalizar.
O modelo tecnocrático, que defende uma política cientificizada, traz o
preço da democracia, tornando-a supérflua e desnecessariamente onerosa. No lugar da
vontade popular aparece uma normalização supostamente inerente às coisas, que é o
resultado da produção científica e do trabalho.

253
Idem. Ibidem, p. 113.
118

No modelo pragmatista, a tradução bem-sucedida das recomendações


técnicas para a prática dá-se mediante a opinião pública254. A comunicação entre
especialistas e as instâncias de decisão política para satisfação das necessidades
práticas com as possibilidades advindas da técnica ocorre no mundo da vida, em que
se dão as experiências indiferenciadas. A comunicação especializada deve ganhar
sentido num horizonte de tradições e valores pré-científicos.
Essa comunicação, porém, oferece problemas. Uma tradução adequada
entre elas é uma dificuldade para as próprias ciências particulares. Que dizer, então, da
comunicação com a opinião pública. Fica aí a possibilidade do mau uso ideológico de
discussões científicas que pretendem se apoiar numa base popular. Tem-se o risco de
uma conexão em curto-circuito entre perícia técnica e público influenciável por
manipulações.
Um dos caminhos possíveis para a comunicação entre as instâncias de
autoridade e os cientistas são os institutos de pesquisa, caracterizados como zona
crítica da tradução das questões práticas para problemas que se põem em termos
científicos e a retroversão as informações científicas para respostas às questões
práticas”255. Isso pode ser melhor compreendido a partir deste exemplo:
[...] O grupo de investigação de Heidelberg informa sobre um exemplo muito
instrutivo. O quartel general da aviação americana apresenta, através de pessoas
preparadas, à seção de programas de um grande instituto de investigação, um
problema de técnica militar ou organizativo delineado só em grandes traços; o
ponto de partida é uma necessidade vagamente formulada; uma formulação mais
rigorosa do problema só surge no decurso de uma aborrecida comunicação entre os
oficiais de formação científica e o diretor do projeto. Com a identificação e a
definição conseguida da posição do problema não se esgota, entretanto, o contato;
quando muito chegam para a conclusão de um acordo pormenorizado. Durante os
trabalhos de investigação existe, em todos os níveis, desde o presidente até os
técnicos, um intercâmbio de informação com os correspondentes cargos da
instituição que fornece as instruções. A comunicação não deve interromper-se até se
ter, em princípio, encontrado a solução do problema, pois só com a solução em
princípio previsível é que o objetivo do projeto fica definitivamente circunscrito.

Está demonstrado como se dá a comunicação entre a práxis e a ciência.


Forma-se uma rede, a partir do interesse externado pelas autoridades, que não se pode
romper até que a intenção esteja fixada em modelos científicos formalizados. A
compreensão situacional está de tal forma vinculada a técnicas, que frequentemente os
projetos de pesquisa são sugeridos aos políticos.

254
Idem. Ibidem, p. 114.
255
Idem. Ibidem, p. 117.
119

Num giro de perspectiva, a tradução completa consiste numa solução


tecnicamente adequada da situação problema, sendo levada à consciência e se
retraduzindo para a situação histórica global num contexto concreto de ação como
questão prática de moral e ética.
Não se pode deixar de destacar que essa tradução está institucionalizada.
No nível dos governos, constituem-se burocracias para controlar o desenvolvimento da
pesquisa científica. Têm-se aí locais privilegiados para o desenvolvimento de uma
dialética entre o querer esclarecido e o poder autoconsciente. Então, só na medida em
que, apoiados no conhecimento do poder técnico, orientamos nossa vontade
historicamente determinada segundo a situação dada, também podemos saber,
inversamente, que ampliação queremos, no futuro, do nosso saber técnico e em que
direção.
O processo de tradução entre a ciência e a política deveria acontecer em
última instância na opinião pública. É no horizonte dos cidadãos que falam entre si que
surge a vontade política ilustrada pela razão. Há dois passos seguintes: uma análise
sociológica desta autocompreensão, a partir da conexão dos interesses sociais, por
um lado, e da certificação das técnicas e estratégias disponíveis, por outro256. Essas
etapas vão além da esfera dialogal dos cidadãos. Todavia, o resultado da vontade
política ilustrada só pode ganhar sentido na esfera pública de consciência dos próprios
atores políticos.
Um fator que dificulta essa tomada de consciência na esfera pública é que
as informações científicas não mais se dirigem para um público em que se possibilita
uma discussão aberta, mas sim a um cliente que tem interesse específico na pesquisa e
em seu desdobramento técnico.
Não se pode contar com instituições firmes para uma discussão pública
aberta a todos. Tampouco há um sistema de pesquisa em grande escala baseado na
divisão de trabalho e num aparelho burocrático. Embora esses pressupostos não sejam
favoráveis, isso não afasta o ideal de uma sociedade cientificada que só poderia

256
Idem. Ibidem, p. 122.
120

constituir-se como sociedade emancipada na medida em que a ciência e a técnica


fossem mediadas pelas cabeças dos homens juntamente com a prática vital257.
É dentro desse cenário de mediação entre economia, ciência, técnica, ética,
moral e democracia que se situa a questão aqui abordada. Os princípios jurídicos,
vazados em linguagem natural e com conteúdos de moral política, fornecem um locus
privilegiado para o encontro entre saberes técnicos e científicos com saberes não
especializados, possibilitando por procedimentos jurídicos a instauração de
questionamentos e inquirições dirigidas aos especialistas para justificar de forma
universalizável, de acordo com valores democráticos, a normalização que propõem à
sociedade. Guiados pela espinha dorsal principiológica, tanto institutos de pesquisa
como instituições democráticas podem valer-se desse canal para discussões éticas e
morais, absorvendo os saberes técnico e científico como sugestões de possibilidades
traduzíveis para a opinião pública e, por isso, submetidas a um debate legitimador.

2.8 As agências reguladoras e a sua legitimação

O fenômeno regulatório, por sua vinculação com a economia e a técnica,


oferece significativos desafios à sua legitimação. Não se trata apenas de uma
desconexão com a formação da vontade popular, mas sobretudo da instrumentalização
dos interesses que estão sob sua competência. Como exposto, é inevitável que dentro
da dinâmica compensatória típica do Estado Social as ênfases desloquem-se para as
prestações econômicas e as tecnologias utilizadas para sua obtenção, havendo um
embaçamento de questões de natureza política e moral.
Nessa linha, a regulação se organiza em torno de utilidades – serviços
públicos ou bens de interesse público – a serem ofertados à população. Por isso, não é
surpreendente que boa parte das democracias ocidentais tenha constituído agências ou
autoridades independentes para o controle da oferta dessas prestações, como é o caso

257
Idem. Ibidem, p. 127
121

dos Estados Unidos, da França, da Itália, da Alemanha, da Suécia, de Portugal e


outros258.
É uma reorganização do poder dentro do Estado, que se desvincula da
tradicional preocupação com a tripartição de poderes para se ordenar com
preocupações de eficiência na produção de bens e serviços regulados. Tanto a vontade
popular manifestada pela via democrática das eleições como os limites necessários à
manutenção do equilíbrio entre os poderes são colocados entre parênteses para que a
atuação do poder administrativo-burocrático possa corresponder e se coadunar com a
dinâmica própria do sistema econômico, que exige contínuo crescimento de longo
prazo.
As principais características, válidas também para o caso brasileiro, com
vistas a ampliar legitimidade das agências são: a) decisão por órgãos colegiados
deliberativos formados por integrantes com mandato fixo e não coincidentes; b)
independência do órgão regulador, inclusive com autonomia financeira e com
delegação de funções da Administração direta; c) ampliação do poder regulador, com
o acúmulo de funções administrativas e de índole jurisdicional; d) criação de deveres
especiais de prestação de contas e responsabilização que se apresentam na publicidade
das decisões da agência, na prestação de contas aos poderes Executivo e Legislativo e
na participação de usuários, consumidores e investidores na elaboração de normas do
setor259; e) possibilidade de revisão de suas decisões pelo Judiciário; f) pluralidade de
sua composição e dos seus órgãos deliberativos; g) indicação de seus ocupantes por
um ato político complexo pelo Executivo e com a aprovação do Parlamento; h)
requisitos de formação técnica para investidura em órgãos deliberativos; e) garantia
contra demissibilidade ad nutum dos ocupantes de cargos nos órgãos colegiados
deliberativos.
Há um objetivo muito claro nessa configuração geral das agências
reguladoras: fracionar competências antes atribuídas ao Executivo e ao Legislativo e
criar um âmbito de neutralização em relação ao processo político-democrático com

258
JUSTEN FILHO, Marçal. Agências reguladores e democracia. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de. O poder
normativo das agências reguladores. Forense: Rio de Janeiro, 2006, p. 310.
259
MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Agências reguladoras e democracia. In: SALOMÃO FILHO, Calixto.
Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 183.
122

base no sufrágio. É, de certa forma, um insulamento burocrático pautado por uma


racionalidade instrumental. Há, assim, uma regulação imparcial e técnica dos
mercados260, com a estabilização dos marcos regulatórios que garantem os contratos e
a distribuição de propriedade, vinculados aos investimentos efetivados no setor por
entidades privadas, funcionando tais órgãos até mesmo como mecanismo
contramajoritários de defesa dos mercados.
Os critérios de legitimidade dizem respeito sobretudo ao gerenciamento das
políticas que possibilitam a distribuição de bens e utilidades, abrangendo a
consistência das políticas setoriais, a expertise na resolução de problemas e a proteção
dos interesses difusos no setor, o profissionalismo e uma definição clara dos objetivos
da agência. O controle pode ser ainda indireto, por meio da avaliação da performance
da burocracia.
Como ressaltado, mesmo sob o ponto de vista econômico, os resultados da
independência das agências reguladoras podem ser postos em dúvida. Foi o que
defendeu Stigler no seu clássico A teoria da regulação econômica261: os agentes
regulados – indústrias – podem tornar-se demandadores do serviço de regulação para
interesses de grupos particulares, interferindo no processo político para obterem
decisões favoráveis. Assim, sob as vestes do interesse público, as agências poderiam
estar favorecendo interesses privados. Essa verificação levou a um amplo debate sobre
a independência e o desempenho institucional dos órgãos reguladores.
Dessa forma, a configuração das agências reguladoras não é garantia de
legitimidade de suas decisões. Sua independência e sua neutralidade vinculam-se
principalmente à dinâmica do sistema econômico que objetiva, como prestação, a
certeza e a segurança referentes aos contratos e à propriedade alocados no setor. São
garantias que a economia demanda ao sistema político-burocrático para se engajar no
dispensamento de utilidades de interesse público.
A própria regulação pode tornar-se um serviço demandado pelos agentes
regulados a favor de grupos específicos. Daí a importância da construção de canais de
legitimação da atuação dos entes reguladores, especialmente com os princípios

260
Idem. Ibidem, p. 191.
261
STIGLER, George. A teoria da regulação econômica. In: MATTOS, Paulo. Regulação econômica e
democracia. O debate norte-americano. São Paulo: Ed. 34, 2004, pp. 23 e seg.
123

jurídicos que permitem a tematização de questões de moral política, deslocando o


debate para o mundo da vida e da esfera pública.

2.9 A regulação autorizada e seus riscos

Se há algo certo na temática da regulação são dúvidas, incertezas e temores


que ela levanta. Nada mais natural, já que sua irrupção resultou da criação de fissuras
no princípio da legalidade e outras concepções inerentes ao Estado de Direito e
também ao Estado Democrático de Direito.
Isso se explica pelas fortes pressões geradas em torno e dentro do sistema
econômico. Com o advento do Estado Social, o Estado se viu obrigado a efetivar
prestações compensatórias para estabilizar os conflitos de classe. Ao Estado como um
gerenciador de riscos262 também se imputou a tarefa de absorver os efeitos
disfuncionais do mercado. Tudo isso somado ao cuidado de realizar as políticas
redistributivas de Estado Social num regime de mercado em que suas bases de relações
de propriedade, de receitas e de dependência deveriam preservar-se.
É esse o contexto que leva à regulação e à sua linha mais avançada – as
entidades administrativas autônomas com o acúmulo das funções normativas,
executivas e judicantes. Ela é o resultado de uma confluência de imperativos
sistêmicos do poder administrativo-burocrático e econômico numa interação
extremamente conflituosa e tensa.
Diante desse movimento, o direito e suas estruturas, em virtude de sua
instrumentalização pelos sistemas referidos, viram-se obrigados a uma reacomodação.
Isso explica as inúmeras perplexidades que se constroem em torno da regulação e a

262
Sobre a simbiose da prestação de utilidades pelo Estado Social e o incremento de riscos e potenciais de
autoameaça: Essa mudança da lógica de repartição de riqueza na sociedade da carência à lógica da repartição
dos riscos na modernidade desenvolvida está vinculado historicamente a (ao menos) duas condições. Em
primeiro lugar, essa mudança se consuma (como sabemos hoje) ali onde e na medida em que mediante o nível
alcançado pelas forças produtivas humanas e tecnológicas e pelas seguridades e regulações do Estado Social se
possa reduzir objetivamente e excluir socialmente a miséria material autêntica. Em segundo lugar, essa mudança
categorial depende ao mesmo tempo de que ao fio de crescimento exponencial das forças produtivas no
processo de modernização liberem-se os riscos e os potenciais de autoameaça numa mediada desconhecida até
o momento. (BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Barcelona: Paidós, 2002, p. 25)
124

fluidez da teoria que a cerca, marcada por elementos diretamente incorporados da


economia e da própria política. Em suma, o direito viu-se e se vê continuamente
obrigado a absorver os impactos das funcionalidades e disfuncionalidades desses
sistemas, fornecendo-lhes como prestação uma contínua fonte de normatização e
normalização.
Tudo isso para marcar que têm razão os que se perfilam em reconhecer a
existência de uma regulação autorizada produzida por entes da Administração. Está
certo Eros Grau ao dizer que a tripartição dos poderes está sob o influxo da realidade e
que há uma interpenetração entre o mundo do dever ser e o mundo do ser263 que
impele a reconhecer a regulação (ou regulamentação). De igual modo, mostra-se
correto Tércio Sampaio Ferraz264 ao considerar que, no plano dos fatos, a
complexidade social e econômica justifica as chamadas delegações legislativas a partir
de imperativos técnicos e especializados, para daí justificá-las por uma mutação
constitucional introduzida pelo princípio da eficiência. São de todo pertinentes ao caso
brasileiro as observações de García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández de que a
complexidade técnica de muitos desses produtos normativos tampouco faria possível
atribuir sua aprovação a um Parlamento de composição política, sem hábitos, sem
conhecimentos, experiências, arquivos ou capacidade técnica265. O Estado
Democrático de Direito cedeu a tais forças, havendo uma reconfiguração do equilíbrio
entre os poderes para permitir constitucionalmente a atribuição de poder normativo de
caráter inovador e primário a entes administrativos.
Forças e pressões externas ao direito oriundas dos referidos sistemas
resultaram em inarredáveis e inevitáveis modificações. O grande problema é não se
poder naturalizá-las. Elas decorreram de construções sociais, e não de fenômenos
naturais. O que se vê são profundas imposições dos sistemas que atravessam o direito
e colonizam o mundo da vida, das vivências cotidianas indiferenciadas. Não há como
ser ingênuo e acreditar que o caráter contrafático do direito possa resistir a tais

263
GRAU, Eros. Direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 183.
264
FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. O poder normativo das agências reguladoras à luz do princípio da eficiência.
In: ARAGÃO, Alexandre Santos. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006,
pp. 281 e seg.
265
GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo & FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo. Trad.
Arnaldo Setti. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 201.
125

modificações e negar por completo o poder normativo que acabou sendo atribuído a
tais entes, reconheça-se, ao arrepio do texto constitucional e das instituições jurídicas
do Estado Democrático de Direito.
Há algo, no entanto, que precisa ser encarado: o potencial de coerção que
cerca esse deslocamento de poder normativo. Poder e dinheiro se potencializam, ainda
mais quando legitimados por discursos de verdade oriundos da ciência e da técnica,
que formam um exponencial poder disciplinar no âmbito da normatização regulatória.
A regulação traz potenciais de rendimento e riscos extraordinários.
A coerção da regulação não resulta apenas do potencial uso da força física,
mas também do dinheiro e dos discursos de verdade. Algo marcante – tanto em relação
aos riscos como à coercibilidade inerente aos entes reguladores – é seus efeitos se
espalharem por toda a cadeia de produção e consumo que envolve o agente regulado.
Assim, se multada uma prestadora de serviços, o encargo da multa não será absorvido
integralmente pelo infrator que, valendo-se dos instrumentos de mercado, tentará
repassar os ônus financeiros da penalidade para seus fornecedores e seus
consumidores. De igual modo, é lugar-comum, em relação ao sistema financeiro,
referir-se ao risco sistêmico para aludir a esse efeito de contaminação que se dá por
intermédio das relações de mercado. No extremo, pode acabar espalhando-se por todo
o mercado regulado.
Se o Estado Democrático de Direito é obrigado a conviver com esses
exércitos de Leviatãs contemporâneos, dotados de consideráveis poderes normativos e
de coerção, deve-se preocupar com a legitimação e a justificação dos seus poderes e,
portanto, com os direitos dos cidadãos266. E mais: à dimensão da coercibilidade é
necessário contrapor questões de princípios ainda mais acuradas267.

266
Sem dúvida, uma das questões fundamentais do direito é a justificativa do uso da coerção, como assinala
Dworkin: Uma teoria política do direito completa, portanto, inclui pelo menos duas partes principais: reporta-
se tanto aos fundamentos do direito – circunstâncias nas quais proposições jurídicas devem ser aceitas como
bem fundadas ou verdadeiras – quanto à força do direito – o relativo poder que tem toda e qualquer verdadeira
proposição jurídica de justificar a coerção em vários tipos de circunstâncias excepcionais. Essas duas partes
devem apoiar-se mutuamente. A atitude assumida por uma teoria integral sobre a questão de até que ponto o
direito é dominante, e quando pode ou deve ser posto de lado, deve estar à altura da justificativa geral que o
direito oferece para o uso da coerção, que por sua vez provém de seus pontos de vista sobre os polêmicos
fundamentos do direito. Uma teoria geral do direito, assim, propõe uma solução a um complexo conjunto de
equações simultâneas [...] (DWORKIN, Ronald. Law´s Empire. Cambridge: The Belknap Press, 1986, p. 110)
267
Isso significa entrar numa dimensão mais reflexiva e questionadora sobre o direito com juízos de moral
política que constituem o cerne dos princípios e dos direitos. A questão da regulação é em boa medida uma
126

Palmilhados os riscos da regulação autônoma, algo sobre a função


normativa reguladora autorizada pode ser aduzido. Em específico, as funções
administrativas e judicantes dos entes reguladores não serão enfrentadas neste
trabalho. Não há grande perplexidade no exercício dessas funções no âmbito do
Executivo, que ordinariamente pratica atos administrativos e exerce com habitualidade
funções quase-contenciosas. No entanto, o exercício de função normativa por entes da
Administração é profundamente inquietante.
Não que a divisão de poderes, mesmo nas suas fontes clássicas, como em
Montesquieu268, seja incompatível com uma distribuição de funções com
interpenetração entre os poderes. É possível realizar uma leitura, como o faz Eros
Grau269, de que Montesquieu não defendia uma separação radical de poderes, mas uma
delimitação de funções e o equilíbrio entre elas.
Há uma dissociação entre poder e função. O primeiro se refere aos centros
ativos típicos das funções estatais, formando corpos a partir de critérios subjetivos.
Constituem-se como decorrência da tripartição de poderes: o Poder Legislativo, o
Poder Executivo e o Poder Judiciário. As funções se referem a um critério material de
atuação, que não necessariamente corresponde ao subjetivo, podendo estar presente em
quaisquer dos três poderes. Elas podem ser a normativa, a administrativa e a
judicante270.
De forma sintética, é possível conceber materialmente cada uma das
funções segundo os seguintes critérios:
a) normativa – fixação de programas gerais e abstratos, formalizados em
normas jurídicas, especialmente em regras;

questão técnica, o que permite propor, como abertura de horizontes hermenêuticos para a próxima parte do
trabalho, o trecho final do ensaio A questão da técnica, de Heidegger: Questionando assim, damos testemunho
da indigência de, com toda técnica, ainda não sabermos a vigência da técnica; de, com tanta estética, já não
preservarmos a vigência da arte. Todavia, quanto mais pensarmos a questão da essência da técnica, tanto mais
misteriosa se torna a essência da arte. Quanto mais nos avizinharmos do perigo, com maior clareza começarão
a brilhar os caminhos para o que salva, tanto mais questões haveremos de questionar. Pois questionar é a
piedade do pensamento. (HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 38.)
268
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 164 e seg.
269
GRAU, Eros (Op. cit., p. 173).
270
Eros Grau constrói raciocínio semelhante (Idem. Ibidem, p. 176/7).
127

b) judicante – decisão de conflitos com a validação e a determinação do


direito para o caso concreto, resultando na estabilização de expectativas de
comportamentos;
c) administrativa – execução do conteúdo teleológico do direito vigente por
uma forma pragmática, estratégica, instrumental e eficaz para atingir fins
coletivos.
O ponto de inflexão do tema do poder normativo no âmbito da
Administração, especialmente dos entes reguladores, não está na mera edição de
programas gerais e abstratos, mas na possibilidade que eles podem vir a ter de
primariamente inovar, construindo sentido autônomo dentro do sistema formal de
regras jurídicas (ordenamento). Numa concepção típica de Estado Democrático de
Direito, os programas gerais com força vinculativa inovadora são frutos de discussões
e acordos dentro de um processo político legitimado pelo sufrágio, o que não se dá no
âmbito da Administração.
No entanto, o influxo de imperativos especialmente do sistema econômico
exige como prestação necessária e indispensável por parte do direito uma capacidade
normativa de conjuntura271 que não pode ser fornecida pelos instrumentos clássicos do
processo legislativo, dado o tempo de sua maturação272 e sua não especialização. O
que se tem nesse caso são demandas sistêmicas cognitivamente absorvidas pelo
direito, resultando numa nova estruturação do direito.
Algo semelhante ocorre com o poder regulador conferido às autarquias de
regulamentação profissional. A especificidade, a tecnicalidade e os discursos de
verdade que marcam as profissões liberais geraram a necessidade de uma burocracia

271
Idem. Ibidem, p. 173.
272
Em Luhmann, o tempo é definido com base na diferença de passado e futuro, não como pontos de partida,
mas como horizontes (PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Modernidade, tempo e direito. Belo Horizonte: Del Rey,
2002, p. 240). O dinheiro, por sua vez, como código da economia, não se relaciona ao tempo (ou, mais
precisamente ao tempo-espaço) como um fluxo, mas exatamente como um meio de vincular tempo-espaço
associando instantaneidade e adiamento, presença e ausência. (GIDDENS, Anthony. As consequências da
modernidade. São Paulo: Unesp, 1991, p. 32). Ainda de acordo com Giddens, o dinheiro é um mecanismo de
desencaixe (Idem. Ibidem). Se referido ao tempo, a capacidade de deslocamento (desencaixe) da instantaneidade
do presente para os horizontes do passado e do futuro pelo dinheiro é capaz de alongá-los indefinidamente de
forma mensurada, o que faz com que a economia se reproduza numa intensidade muito maior que a do sistema
político-burocrático e a do direito. Daí a demanda sobrecarregada por normatização e decisões por parte do
direito e do sistema político-burocrático, que resulta nessa normatização de conjuntura.
128

autônoma para regrá-las mediante o exercício de uma capacidade normativa de


conjuntura.
Por isso, ao contrário do que defende Eros Grau, com base em Alessi273,
não há sentido em apartar a função legislativa da normativa apenas com base num
critério subjetivo, ou seja, pertinência ou não ao Poder Legislativo. Há uma grande
diferença material entre a função normativa com força primária exercida no âmbito da
Administração e aquela exercida no Poder Legislativo.
É nessa diferença material que reside a explicação para a impropriedade de
se falar em delegação legislativa para o caso da função normativa dos entes
reguladores. Como visto, o Poder Legislativo é inepto materialmente para deter uma
capacidade normativa de conjuntura, o que lhe impossibilita a transmissão dessa
ordem de competências. Disso resulta que, por forças de pressões sistêmicas, a
capacidade normativa dos entes reguladores torna-se uma função a eles inerente.
Nessa ordem de ideias, há efetivamente uma reconfiguração do princípio da
legalidade que assume três formatos: a) garantia de vinculação do Estado às definições
exaustivas da lei (exigência de lex scripta, lex stricta, lex certa e lex praevia no direito
penal) no âmbito da reserva legal absoluta; b) garantia geral de que somente a lei terá
poder normativo primário e inovador para gerar direitos e obrigações; c) exceção à
garantia anterior para os casos em que seja necessária a capacidade normativa de
conjuntura.
Eros Grau expõe corretamente sobre uma cisão no âmbito da legalidade274.
Entretanto, sua vinculação à letra da Constituição e o fato de não atentar para a
distinção material entre a função legislativa (função normativa exercida no âmbito do
Poder Legislativo) e a função normativa, leva-o a fazer uma distinção entre reserva da
lei e reserva da norma, que esvazia drasticamente o princípio da legalidade.
A reserva da lei (reserva legal absoluta) está positivada na Constituição em
seu art. 5º, XXXIX, no art. 150, I, e no parágrafo único do art. 170, parágrafo único.
Não há crime, tributo ou exigência de autorização para atividade econômica sem lei, aí
entendida como um ato legislativo específico. Em face de tais dispositivos específicos,

273
GRAU, Eros (Op. cit., p. 179).
274
Idem. Ibidem, p 183.
129

Eros Grau considera que o art. 5º, II, mais geral, tem outra configuração, que permite
falar em reserva da norma (reserva legal relativa), pois esse dispositivo enuncia que
ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei. A obrigação nessa última hipótese não deriva da lei como ocorre na reserva legal
absoluta, mas em virtude dela, o que é compatível com a atribuição, explícita ou
implícita, ao Executivo para, no exercício da função normativa, definir obrigação de
fazer e não fazer que se imponha aos particulares – e os vincule275. Para tal raciocínio,
se existem dispositivos constitucionais que falam da reserva da lei, isto é, matérias que
só podem ser tratadas pela lei, as outras podem ser tratadas pela função normativa da
Administração, constituindo reserva de norma.
O raciocínio é uma inversão radical, de 180º. A proteção do art. 5º, II, da
Constituição Federal praticamente perde todo o seu sentido. Se aceito o raciocínio de
Eros Grau, qualquer assunto, excluídos os temas tributários, penais e de livre
iniciativa, pode ser objeto da função normativa com sentido primário da
Administração. Certamente, não é esse o sentido que a Constituição dá a tal
dispositivo, assim como a reinscrição do princípio da legalidade no art. 5º, XXXIX, no
art. 150, I, e o parágrafo único do art. 170 nada mais são do que reiterações e
estabelecimentos de regimes mais rígidos de legalidade. Aqui a lei não contém
palavras desnecessárias. Simplesmente reforça o sentido garantista do princípio da
legalidade, concebendo-o de forma mais rígida.
Como já aduzido, são três os formatos da legalidade, e a hipótese discutida
da função normativa de entes administrativos é uma exceção vinculada aos
imperativos sistêmicos que a originaram e requerem como prestação uma
normatização de conjuntura. Não é demais reafirmar, a regulação encerra grande
potencial de coerção e riscos, não havendo sentido em deixá-la aberta para toda e
qualquer hipótese.
O primeiro passo para o fechamento dessa competência se dá com a
exigência de autorização legislativa para o seu exercício. É o que impropriamente se
chama de delegação, mas em verdade é uma delimitação, uma configuração e um
direcionamento para o exercício da função, que por sua própria natureza conjuntural só

275
Idem. Ibidem, p. 184.
130

pode ser exercida pela Administração. Esse é um poder que precisa ser moldado para
ser exercido, o que gera um delineamento de competências com âmbitos distintos para
o Legislativo e para a Administração. O Legislativo deve estabelecer sua conformação,
e a Administração desdobrá-lo276 conforme as exigências conjunturais.
Os Estados Unidos têm longa experiência na utilização de tais instrumentos,
denominando-os tradicionalmente de regulamentos delegados. No seu debate judicial,
teve decisão sobre sua admissão no primeiro quarto do século XIX277. Para tanto, já se
exigia que a lei autorizadora da competência regulamentar estabelecesse standards a
serem observados e objetivos a serem alcançados. Foi pela ampliação de entes
regulatórios a partir do New Deal que o tema ganhou impulso.
Os contornos atuais da delegation doctrine remontam aos ainda hoje
aplicáveis casos Panama Refining Co. v. Ryan278 e A. L.A. Schecheter Poultry Corp. v.
United States279. Nos dois discutiu-se a constitucionalidade do National Insdustrial
Recovery Act (NIRA), editado dentre as medidas do New Deal. No caso Panama
Refining, a discussão travava-se em torno da seção 9, “c”, do NIRA, que conferia ao
Presidente a competência de proibir o transporte de petróleo entre os Estados-membros
para estancar a crise de superprodução de petróleo. Tendo como guia a regra da
Constituição norte-americana de que todos os poderes legislativos são atribuídos ao
Congresso280, em face de vários objetivos vagos a serem atingidos pelo Chefe do
Executivo, a Suprema Corte considerou as diretrizes por demais amplas e inidôneas
para guiar a autoridade pública no exercício dos poderes aí conferidos, o que levou à
declaração de inconstitucionalidade do dispositivo em questão. No caso, Schechter
Poultry, que cuidava de proibição de venda de carne avícola por preço abaixo do
estabelecido, o NIRA foi afastado por completo por razões análogas às do caso
anterior.

276
A alusão metafórica de Eros Grau é plenamente aplicável: a atribuição conferida ao Executivo para aludido
exercício poderia ser comparada ao tiro de partida que é dado para que se desenrole uma corrida de 100
metros; a faculdade de correr velozmente é própria a quem participa da prova, como é própria ao Executivo,
repito, a função normativa regulamentar (Idem. Ibidem, p. 186).
277
BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras - poder normativo, consulta pública, revisão judicial. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 100.
278
293 US 388, de 1935.
279
295 US 495, de 1935.
280
Artigo I, seção 1; artigo I, seção 1, § 18.
131

Nos dois casos, a Suprema Corte considerou que a inconstitucionalidade


advinha não só da insuficiência de critérios para o exercício da competência pelo
Executivo, mas também do não atendimento de requisitos de due process antecedentes
às tomadas de decisões administrativas. É que as leis não estabeleciam que os
interessados deveriam ser comunicados dos projetos normativos para lhes dar a
oportunidade de serem ouvidos e de contribuírem para a instrução do processo
decisório.
Após esses dois primeiros casos, algumas decisões apontaram um
afrouxamento da Suprema Corte. É exemplo o caso National Broadcasting Company
v. United States281, em que se aceitou a amplitude do Communications Act, de 1934,
com base em argumentos de interesse público, no sentido de que os poderes atribuídos
à Federal Communications Commission de atuar em campo técnico e de engenharia
deveriam ser entendidos amplamente, abrangendo a regulação das relações contratuais
das redes de radiodifusão com seus afiliados locais, o que implicou a admissão de
padrões legais elásticos para controle da delegação.
O caso Yakus v. United States282 apresentou outras peculiaridades. Aceitou-
se uma certa amplitude nas diretrizes estabelecidas pela lei para a delegação
legislativa, considerando-se que só ocorreria inconstitucionalidade nos casos em que a
fluidez das disposições fosse de tal ordem que impedisse verificar o atendimento (ou
não) dos comandos legais pelo órgão executor. Cuidava-se, pelos fundamentos da
decisão, em se preocupar se os condicionamentos legais eram suficientes e aptos para
permitir o controle pelo Judiciário.
Embora com nuances, já que se considerava que as delegações deviam ser
julgadas com bom senso e com vistas às necessidades do governo283, permaneceu
como princípio assumido pela Suprema Corte o de ser indispensável a existência de
standards como critérios de aferição de validade das delegações legislativas. É o que
se vê do National Cable Television Association Inc. v. United States284, Skinner v.
Mild-America Pipeline Co.285 e Mistretta v. United States. 286

281
319 US 190, de 1943.
282
321 US 414, de 1944.
283
BRUNA (Op. cit., p. 106).
284
415 US 336, de 1974
285
490 US 212, de 1989.
132

A experiência norte-americana dos regulamentos delegados reafirma a


viabilidade do exercício de função normativa no âmbito do Poder Executivo, desde
que se preocupe em circunscrever o seu âmbito com fixação de limites, conformações
e objetivos. Autorizações implícitas ou simples autorizações para o exercício de tais
poderes implicam formações de fendas descaracterizadoras por completo do princípio
da legalidade e de garantias mínimas do Estado Democrático de Direito.
É certo que demandas oriundas dos sistemas econômico e político-
burocrático geram a necessidade de uma normatização de conjuntura no âmbito da
Administração, mas de modo algum em razão dos riscos e potenciais de coerção
envolvidos há sentido para se atribuir ao Executivo um poder amorfo e, por isso, de
difícil controle. Há a necessidade de delimitação de competência, abrangendo pelo
menos três dimensões: limites, conformações e diretrizes287.
Essa delimitação legal da função reguladora é apenas uma etapa inicial288.
Não se pode esquecer que a regulação opera numa dimensão marcada pelo
economicismo, pelo cientificismo e pelo tecnicismo, que têm alto potencial deletério
para a constituição de vivências sociais com base na moral e em valores. A
normatização produzida nesse âmbito mostra-se impregnada de demandas sistêmicas.
Constata-se a necessidade de um deslocamento completo de perspectiva
que pode ser, sofisticada e cuidadosamente, obtido pela referência a um conjunto
coerente de princípios e diretrizes políticas que insiram a produção de regras pela
Administração num plano reflexivo que procure legitimá-las e justificá-las a partir de
considerações de moral políticas, assunto que se encadeará no próximo capítulo.

286
488 US 361, de 1989.
287
Os limites são basicamente interdições de competência. As conformações, por sua vez, amoldamentos e
obrigatoriedades de exercício de competências. Já as diretrizes são objetivos de interesse público e da
coletividade a serem atingidos com a normatização de conjuntura.
288
Marcelo Figueiredo salienta que o condicionamento não é mais apenas legal, mas também global, pelo
ordenamento: Não obstante, portanto, condicionada pelo direito, a Administração Pública, em seu agir, como
sabemos, não se revela simplesmente como mera executora das leis. Podemos compreendê-la no mundo
contemporâneo, cada vez mais complexo, como protagonista de um papel mais amplo, mais dilatado, tendo já
agora o ordenamento jurídico como limite, e não apenas a lei em sentido estrito (FIGUEIREDO, Marcelo. As
agências reguladoras. O Estado Democrático de Direito no Brasil e sua atividade normativa. São Paulo:
Malheiros, 2005, p. 292).
133

3.º Capítulo – A distinção entre princípios e regras

A vasta literatura que se produziu nos últimos anos sobre a distinção entre
princípios e regras é demonstração eloquente da relevância da problemática que cerca
este antigo tema. Já no Código Austríaco de 1811 se falava em princípios gerais de
direito e, em muitos outros textos legais, eles se fizeram presentes, assim como em
trabalhos de dogmática jurídica e na jurisprudência289.
Como assinalado no 1.º capítulo, o tema ganhou grande impulso com a
publicação, em 1967, do texto Is a law a system of rules?, de Ronald Dworkin. Um
amplo debate iniciou-se a partir daí. A discussão empreendida foi e vai muito além da
mera distinção entre princípios e regras, significando, em verdade, uma outra
abordagem sobre o direito.
Vários lugares-comuns formaram-se no seu desenvolvimento. O de que as
regras se aplicam no tudo ou nada, enquanto os princípios têm dimensão de peso. A de
que regras têm estrutura de hipótese de incidência e consequência, ao passo que
princípios são valorativos ou teleológicos, e assim por diante. É muito frequente nesses
estudos uma catalogação de critérios distintivos, o que tem algum valor didático pela
simplificação e pelo caráter sintético das abordagens.
Compete, no entanto, tomar cuidado com a superficialidade desse tipo de
enfrentamento. A forte preocupação com os princípios no direito não trata apenas da
inserção ou da revalorização de mais um elemento na teoria no direito. O mero
confronto dos princípios com as regras acaba deslocando o foco e excluindo boa parte
das consequências do estudo da temática. Para exemplificar, talvez mais relevante do
que a distinção em questão seja refletir sobre as implicações que o reconhecimento dos
princípios como parte fundamental do direito trazem para o relacionamento entre o
direito, a moral e a política.

289
ATIENZA, Manuel & MANERO, Juan Ruiz. Sobre princípio y reglas. p. 101. In: Doxa. Disponível em
http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/public/12482196462352624198846/cuaderno10/doxa10_04.
pdf?portal=4. Acesso em 10.10.2010.
134

Uma tensão está como pano de fundo da distinção entre princípios e regras.
O direito concebido como sistema de regras, objeto de um estudo descritivo e
científico, procura valorizar a certeza e o cálculo no direito, que de algum modo pode
ser entendido como produto acabado290. Os princípios, por sua vez, remetem a uma
atitude reflexiva, típica de outras virtudes intelectuais, como a filosofia e a prudência,
abrindo na unidade uma dimensão de indeterminação, abertura e possibilidades291.
Assim, a presente parte do trabalho se assenta em dois eixos: um apanhado
vertical das implicações dessa distinção para a teoria do direito e para as instituições
de direito público e uma exposição horizontal da distinção, procurando retomar e
marcar as várias possibilidades de critérios distintivos entre princípios e regras.
Para a elaboração da abordagem vertical, com preocupação de
aprofundamento, houve uma escolha, sob pena de entrar no labirinto do ecletismo. O
aprofundamento sobre os princípios, as regras e vários outros temas adjacentes,
embora não menos importantes, buscou concentrar-se apenas numa abordagem teórica.
Como não poderia deixar de ser, a opção foi pela teoria que melhor se
adequou aos pressupostos do trabalho. Por isso, a escolha de Dworkin, que fornece
uma concepção hermenêutica e interpretativa do direito como substrato de seu
tratamento sobre os princípios. Houve uma seleção, nas principais obras sobre o tema
– Levando os direitos a sério e O Império do Direito – das ideias que poderiam
guindar a crítica da regulação que se pretende empreender a partir da referência aos
princípios.
A abordagem horizontal a ser realizada não pretende ser exaustiva ou
mesmo pode ser considerada fonte canônica das teorias que possibilitaram a
identificação dos critérios de distinção a serem expostos. A preocupação foi a de
possibilitar uma noção geral e resumida do tema como um dos pontos de apoio para a
reflexão sobre a relação entre os princípios, as regras e, consequentemente, a própria
regulação, colocando em destaque características dos princípios que têm implicações
na concepção de direito e, portanto, na regulação.

290
CASALMIGLIA, Albert. El concepto de integridad en Dworkin. In: Doxa, p.155. Disponível em
http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=15638&portal=4. Acesso em 10.10.2010.
291
GADAMER, Hans-Georg. L’inizio della filosofia occidentale. Milão: Edizioni Angelo Guerini e Associati,
2001, p. 23.
135

3.1 Os princípios jurídicos e seus direitos

3.1.1 Os direitos, os deveres e a dignidade da pessoa humana

Um bom ponto de apoio para entender a discussão inerente aos princípios


está numa verificação de H. L. A. Hart em capítulo de livro intitulado Punishment and
the elimination of responsability:
A sociedade humana é uma sociedade de pessoas; e as pessoas não se consideram,
nem consideram as outras pessoas como simples corpos que se movem de maneiras
que às vezes são lesivas e que devem ser prevenidas. Em verdade, as pessoas
interpretam reciprocamente seus movimentos como manifestação de intenção e
escolhas, e esses fatores subjetivos são geralmente mais importantes para as suas
relações sociais do que o movimento pelos quais elas se manifestaram ou seus
efeitos292.

Como observa Dworkin, esse enunciado resgata tradições morais nas


doutrinas jurídicas. Expressa-se o princípio da dignidade da pessoa humana, como
regente das relações entre cidadãos e entre estes e o governo. Os homens devem ser
julgados por intenções, motivos e capacidades, que constituem seus comportamentos,
e não por meros movimentos, o que levaria a coisificá-los293.
Nessa ordem de ideias, as palavras direito e dever ocupam posição central
na doutrina jurídica. Buscar o significado de ambas é algo incômodo, tão desagradável
quanto suas consequências. Diariamente, pessoas são presas, têm seus bens retirados,
são submetidas a medidas coercitivas etc. com base na alegação de que infringiram a
lei, descumpriram um dever ou desrespeitaram um direito alheio. A justificativa para
coagir ou castigar alguém está nesses conceitos jurídico-fundamentais. É a partir das
concepções do que são direitos e deveres que é possível reconstruir uma teoria sobre
princípios que respeite a dignidade da pessoa humana.

292
HART, H. L. A. Punhishment and responsibility. Oxford: Oxford University Press, 1968, p. 182.
293
DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 56.
136

3.1.2 A crítica ao modelo de deveres e direitos do positivismo

Na visão de Dworkin, o esqueleto do positivismo, representado pela


doutrina de H. L. A. Hart, em geral apresenta as seguintes características294:
a) O direito de uma comunidade é um conjunto de regras usadas com o
propósito de determinar quais condutas podem ser objetos de
sancionamento. Essas normas são identificadas não por seu conteúdo, mas
por um critério formal de origem ou pela maneira como são adotadas ou
progridem. Tem-se aí um teste de validade que determina as regras que
compõem o ordenamento afastando espúrias normas sociais ou jurídicas
viciadas.
b) Esse conjunto de regras válidas cobre todo o direito. Se não se tem
claramente uma aplicável a um caso, seja por não se ter uma apropriada ou
pela apropriada ser vaga, o caso não pode ser resolvido por subsunção.
Surge, então, poder para um funcionário buscar outros padrões
extrajurídicos para construir uma nova regra, como exercício de um poder
de discrição.
c) O dever jurídico resulta da verificação de que um caso se inclua dentro
de uma regra jurídica válida que exige ou proíbe algo. A ideia de que
alguém tem direito é uma forma de dizer que um outro tem o dever
correspondente à sua realização. Importa que na ausência de regra jurídica
válida não há dever jurídico. Disso resulta que o juiz ou quem aprecie um
conflito, ao exercer sua discrição, não está impondo um direito referente ao
caso.
Esse é um esquema geral. Decerto há inúmeras variações entre as diversas
formas de positivismo, mas a de Hart é sofisticada, pois distingue regras primárias de
secundárias. As primárias são as que preveem direitos ou impõem obrigações aos

294
DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 66 e DWORKIN, Ronald. Is Law a
system of rules? In.: DWORKIN, R. M. The philosophy of Law. Oxford: Oxford University Press, 1977, p. 38.
137

membros. As secundárias são regras que formam, reconhecem, modificam ou


extinguem as normas primárias.
Nessa linha, uma regra pode ser obrigatória por dois motivos: 1) um grupo
a aceita como norma para sua conduta ou 2) porque foi promulgada de acordo com
uma norma secundária que estabelece os procedimentos para uma lei ser obrigatória.
Assim, uma regra é obrigatória em face de sua aceitação ou de sua validade.
Nas comunidades primitivas, em que não há distinção entre direito e outras
normas sociais, não se pode falar em normas secundárias. Quando uma comunidade
desenvolve uma regra secundária fundamental, nasce um conjunto distinto de normas
jurídicas. Essa regra secundária fundamental é o que Hart chama de norma de
reconhecimento295.
O ataque ao positivismo tem como base a verificação de que, quando
juristas tratam de direitos e deveres, especialmente nos casos difíceis, em que os
problemas conceituais se agravam, eles usam standards que não funcionam como
regras, mas que operam como princípios, diretrizes políticas e outros tipos de pautas.

3.1.3 Os princípios, as diretrizes políticas e as regras

Dworkin, em geral, utiliza a palavra princípio em oposição a regra, embora


reconheça existir uma diferença entre princípios e diretrizes políticas. Diretriz política
é o tipo de standard que propõe um objetivo que deve ser alcançado, em geral uma
melhora em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade296,
destacando-se na sua estrutura o caráter teleológico. Já o princípio, em sentido estrito,
é a um standard que deve ser observado, não porque favoreça ou assegure uma
situação econômica, política ou social que se considera desejável, mas porque é uma
exigência da justiça, da equidade, ou alguma outra dimensão da moralidade297,
constituindo diretivas de caráter jurídico que necessitam de atividade interpretativa na
sua aplicação.
295
HART, H. L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p.111 e seg.
296
DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 72.
297
Idem. Ibidem.
138

Sobre a relação entre princípios, regras e diretrizes políticas, pode-se dizer


que toda regra apoia-se e justifica-se em razão de um conjunto de diretrizes políticas a
que supostamente favorece e de princípios a que supostamente respeita298.
Um dos exemplos de Dworkin para explicar os princípios é o caso Riggs v.
Palmer, em que o Tribunal teve de decidir se um herdeiro designado no testamento de
seu avô poderia herdar, tendo cometido assassinato contra o instituidor da herança. Ao
lado da segurança da letra do testamento foi colado o princípio de que ninguém pode
se beneficiar de sua própria torpeza.
Esse tipo de enunciação é muito diferente de uma regra que estabeleça que
a velocidade máxima é de 80 km por hora ou de que um contrato para ser título
executivo deve ser assinado por 2 testemunhas. Habermas299, falando sobre tal
diferenciação em Dworkin, esclarece que as regras são normas concretas, com
especificação direcionada a sua aplicação.
De início, tem-se uma distinção lógica entre princípios e regras. Ambos se
referem a padrões de conduta que apontam decisões atinentes a deveres jurídicos. As
regras são aplicadas de maneira disjuntiva (tudo ou nada)300. Uma vez configurados os
fatos por ela estipulados, então a regra é válida, devendo ser aceita como resposta, ou
bem é invalida e, por isso, não importa em absoluto para a decisão. É ainda possível
que as regras tenham exceções que possam ser enumeradas.
Nem mesmo os princípios que mais se assemelham a regras operam desse
modo em que, dadas as condições previstas, operam-se as consequências. Embora seja
possível afigurar casos em que o princípio de que ninguém pode tirar proveito da
própria torpeza não se aplique, como no caso do usucapião, não se trata de uma
exceção. É que não é possível enumerar todos os casos de sua possível não aplicação,
que podem, no máximo por uma enunciação exemplificativa, aguçar nossa percepção
de peso do princípio301.
Os princípios assinalam direções unívocas, mas não determinam por si só
uma decisão em particular, já que outros princípios podem apontar em direções

298
HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 319.
299
Idem. Ibidem, p. 278.
300
DWORKI8N (Op. cit., p. 75).
301
Idem. Ibidem, p. 76.
139

contrárias, de forma que se influenciem reciprocamente. Se num caso o princípio não


foi determinante para uma decisão, não quer dizer que não possa ser decisivo em
outro. Adotar um princípio jurídico significa que ele, se adequado, deve ser
considerado como critério para se inclinar em determinado sentido por sua dimensão
de peso. Essa dimensão de peso falta às regras. Os conflitos entre regras são questões
de validade, sendo resolvidas por critérios como a regra superior, a posterior, a mais
específica etc.
Há algo em comum entre as regras e os princípios jurídicos, que é o caráter
de serem mandados (proibições, permissões e obrigações) que expressam, por sua
validade deôntica, deveres. Ao contrário das diretrizes políticas, ambos não têm caráter
teleológico302, não se conformando com abordagens utilitaristas de ponderação de bens
ou de consecução de interesse público ou coletivo, que são cabíveis somente para as
diretrizes políticas.
Tanto os princípios como as regras têm valor de argumento nas
fundamentações de decisões. Só que as regras apresentam, em sua estrutura
condicional, os pressupostos de sua aplicação, enquanto os princípios são
inespecíficos.
Identificados os princípios, é fácil ver que estamos rodeados por eles. Em
casos como o Riggs, desempenham um papel de argumentos para fundamentar juízos
referentes a determinados direitos e deveres. O tribunal cita princípios que justificam
a adoção de uma norma nova303. Com a decisão do caso, surge uma regra jurídica,
como a de que o assassino do instituidor da herança não pode ser seu herdeiro.
Isso leva à conclusão inevitável de que os princípios desempenham um
papel importante sobre os deveres jurídicos, ao conduzirem a determinadas decisões.
Surgem, então, duas possibilidades: 1) tratar os princípios como as regras para dizer
que são obrigatórios como direito e que devem ser observados por aplicadores do
direito; 2) negar a obrigatoriedade dos princípios, reconhecendo que o juiz vai além
das regras a que está obrigado em busca de princípios extrajurídicos, estando liberado
para seguir a sua vontade.

302
HAMERMAS (Op. cit., p. 278).
303
DWORKIN (Op. cit., p. 80).
140

3.1.4 A discrição

Para entender melhor a segunda posição exposta no item anterior, Dworkin


desenvolve o conceito de discrição304. Ela surge quando alguém se vê encarregado de
tomar decisões sujeitas a normas estabelecidas por uma autoridade. É, por isso, um
conceito relativo. É possível identificar, para o vocábulo discrição, dois sentidos
débeis e um sentido forte.
Um primeiro sentido débil do conceito vincula-se à aplicação por um
funcionário de normas que exigem discernimento, não se podendo aplicá-las
mecanicamente, como, exemplificativamente, no caso de um sargento que recebeu
ordens de um tenente para formar uma patrulha com os cinco homens mais
experientes. Os padrões gerais estão dados, mas é necessária reflexão para aplicá-los.
Outro sentido débil é o de que alguém tem a autoridade para tomar uma decisão final
sobre determinado assunto sem possibilidade de revisão ou modificação, como no caso
do árbitro de futebol quando marca uma falta.
Existe um sentido forte que não se vincula ao uso de discernimento para
aplicação de padrões previamente estabelecidos nem mesmo à autoridade final, mas ao
fato de que simplesmente não se está vinculado de modo algum a padrões impostos
por uma autoridade. Nesse sentido, discrição não significa liberdade absoluta nem
ausência de crítica, porque não se exime o aplicador de utilizar regras de sensatez e
justiça, mas simplesmente sua decisão não está controlada por uma norma de
autoridade superior.

3.1.5 A vinculatividade dos princípios

Com essas observações sobre discrição é possível voltar ao positivismo, em


que a doutrina considera que, se não há norma clara para o caso, o juiz tem discrição.

304
Idem. Ibidem, p. 83.
141

Nesse caso, não haverá limitação por normas, mas somente utilização de princípios
que estão além do direito.
Um positivista pode, nessa direção, considerar que os princípios não são
vinculantes, o que é um equívoco. O cidadão tem o direito de que eles sejam levados
em consideração. A obrigatoriedade de uma norma para um juiz ou autoridade
significa que ele deve segui-la, senão estará cometendo um erro305. A parte tem o
direito de que o seu caso seja decidido segundo normas jurídicas vinculativas, aí
incluídos os princípios, e o juiz tem o dever de aplicá-las.
De igual modo, um positivista poderá dizer que, ainda que os princípios
sejam obrigatórios, não podem por si sós determinar uma decisão. Isso, no entanto,
significa apenas que princípios não são regras. Só estas impõem um resultado de forma
peremptória. Os princípios orientam uma decisão num sentido, mesmo que não em
forma conclusiva, e sobrevivem intactos mesmo quando não prevalecem306. A
característica de peso dos princípios não significa que eles não sejam obrigatórios e
que haja espaço para a discrição.
Uma terceira observação de um positivista poderia ser a de que os
princípios são discutíveis por natureza, em seu peso e sua autoridade. É certo que os
princípios não são demonstráveis, mas se pode defendê-los, nesses aspectos, apelando
para práticas, tradições e até mesmo para outros princípios.
A par dessas considerações sobre possíveis argumentos positivistas, há uma
observação decisiva sobre a obrigatoriedade dos princípios. A não ser que se
reconheça alguns princípios como vinculativos para os juízes, tampouco se pode dizer
que as normas são obrigatórias. É o caso da supremacia legislativa e da segurança
jurídica.
Retornando à norma de reconhecimento, Hart considera que as regras
jurídicas são válidas pela promulgação de uma autoridade competente ou, em último

305
Essa observância dos princípios afasta-os da arbitrariedade, como bem ressalta Klaus Günther (GÜNTHER,
Klaus. Teoria da Argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. São Paulo: Landy Editora, 2004,
p. 411): O descobrimento ou a busca por normas implícitas não ocorre de modo arbitrário, nem com uma
intenção legislativa usurpadora. Dworkin insiste para que os juízes não criem novos direitos, mas descubram os
direitos que sempre existiram, ainda que frequentemente de modo implícito. Esta argumentação de Dworkin é
consequente, porque, no âmago, direitos são de natureza moral, portanto inacessíveis à alteração
positivadora...
306
DWORKIN (Op. cit., p. 89).
142

caso, na sua aceitação. O problema é que esse tipo de certificação não serve para os
princípios que atuam sobre casos difíceis como o Riggs. A origem dos princípios não
está em qualquer decisão particular ou num ato legislativo, mas num sentido de
conveniência e oportunidade que, tanto no fórum como na sociedade, desenvolve-se
com o tempo307. É por isso que os princípios não são revogáveis ou rechaçáveis, mas
simplesmente se desgastam.
Referências institucionais são necessárias para se assentir sobre a existência
de um princípio, como exemplos identificados em precedentes, em artigos de lei etc.
Entretanto, não há fórmula para dizer a partir de quando e em que medida um princípio
se converte em jurídico. Para advogar por um princípio é necessário lidar com
inumeráveis padrões cambiantes – que são também princípios – sobre interpretação,
responsabilidade institucional, práticas morais e assim por diante. Isso não pode ser
reunido para formar uma única norma (regra), a de reconhecimento. É que a lista de
princípios é inumerável e exige que o aplicador vá além dos limites do direito,
entrando na moral e na política. Dworkin esclarece:
Se uma teoria do direito tem de proporcionar uma base para o dever judicial, então
os princípios que enuncia devem tratar de justificar as normas estabelecidas,
identificando as preocupações e tradições morais da comunidade que, na opinião
do jurista que elaborou a teoria, fundamentam realmente as normas. Esse processo
de justificação conduz o jurista a aprofundar na teoria política e moral além do que
seria necessário dizer que algum “critério” de “justificação” serve para decidir,
entre duas teorias diferentes de nossas instituições políticas, qual é a melhor.

As técnicas de que se pode valer para defender um princípio não estão, de


modo algum, num nível diferente dos próprios princípios que os fundamenta. É
estranho falar-se em validade de princípios, sendo mais pertinente falar em integração
e integridade no conjunto de princípios.
Outra verificação que coloca em xeque uma regra mestra de
reconhecimento é a de que na solução de casos como o Riggs enuncia-se uma regra
(especificamente a de que o herdeiro que matou o instituidor da herança não pode
herdar). É dizer, normas buscam fundamento e validação em princípios e diretrizes
políticas308.

307
Idem. Ibidem, p. 95.
308
Idem. Ibidem, p. 99.
143

O positivismo, a partir da norma de reconhecimento, considera que um


dever só advém a partir de uma regra integrante do ordenamento jurídico. Disso se
retira a ideia de que num caso difícil, em que não haja norma clara, o dever só surge
quando a autoridade cria uma nova norma, que passará a regrar a situação ex post fato.
É o que se tem com a aplicação da doutrina positivista da discrição.
Desse modo, se em alguma hipótese não está clara a regra a ser aplicada,
qual é o direito que o juiz ou outra autoridade têm o dever de aplicar. Pode-se dizer, o
juiz não tem dever algum, só se podendo falar do que seria melhor ele fazer. O
problema é que isso não casa com uma concepção moral nem jurídica de dever. Não é
concebível que juízes, como autoridades, tenham poderes não limitados, ao exercerem
discrição. É certo que, nos casos difíceis, os juízes sentem-se inseguros, mas sua
dúvida é quanto à solução do caso, mas não sobre terem deveres.
Se o juiz tem a um só tempo dever moral e jurídico na resolução de uma
controvérsia conforme o direito, a nítida divisão que se forma com a regra de
reconhecimento deixa de ter sentido. É falsa a ideia tradicional de que as normas
jurídicas podem se distinguir, em princípio e como grupo, das normas morais ou
políticas309.
Deixando tal teoria de lado e passando a tratar os princípios como direito,
uma constelação de princípios poderá ser a fonte de deveres. O positivismo é
insuficiente, ficando às margens dos casos difíceis com uma doutrina que não diz
nada. Foi sua simplicidade que tanto papel atrativo desempenhou no direito, mas o
abandono desse modelo de um sistema de regras pode abrir espaço para um outro que
se ajuste mais a complexidades e sutilezas de nossas próprias práticas310.

3.2 Os casos difíceis

Nos casos fáceis (por exemplo, quando se acusa um homem de violar uma
disposição que proíbe exceder o limite de velocidade), parece correto dizer que o juiz

309
Idem. Ibidem, p. 120.
310
Idem. Ibidem, p. 100.
144

se limita a aplicar uma regra anterior a um caso novo311. O juiz ou um administrador


aplicam padrões já estabelecidos e específicos e, por isso, justifica-se seu poder
político. No entanto, que dizer dos casos difíceis em que as cortes apelam a princípios
com conteúdo político-moral? Requer-se justificação suplementar?
A questão da justificação é importante por dois motivos: o primeiro por
afetar a extensão da autoridade; e o segundo, a extensão moral e jurídica que tem o
indivíduo de obedecer à regra produzida pela autoridade. Os problemas linguísticos de
indeterminação e vaguidade têm aí subjacentes questões morais312. As questões de
jurisprudência [estudos jurídicos] são, no mais profundo, problemas de princípios
morais, não de fatos legais ou de estratégias313. Isso ficou encoberto pela teoria
jurídica tradicional, mas as pesquisas atuais devem encarar os casos difíceis em sua
conexão com a moral, para terem êxito.
O positivismo tem uma teoria para os casos difíceis. Na ausência de uma
regra clara para um conflito, o juiz ou a autoridade administrativa passam a ter
discrição, para decidi-lo. De acordo com esse entendimento, introduzem um novo
direito depois de apreciar o caso, aplicando-o retroativamente.
Uma teoria assentada em princípios defende o contrário. Ainda que
nenhuma regra resolva o caso, é possível, e mais, é obrigatório, que uma das partes
tenha o direito de ganhá-lo. É dever da autoridade, mesmo em casos difíceis,
reconstruir quais são os direitos das partes, em vez de inventar retroativamente direitos
novos314.
Uma teoria dos casos difíceis não significa que exista um procedimento
mecânico para encontrar soluções para eles. Muito ao contrário, haverá divergências e
questionamentos, mas isso não impede que se busque uma resposta até mesmo correta,
que o juiz ou a autoridade administrativa têm o dever de encontrar para satisfazer a
justa pretensão das partes.

311
Idem. Ibidem, p. 47.
312
Idem. Ibidem, p. 48.
313
Idem. Ibidem, p. 51.
314
Idem. Ibidem, p. 146.
145

3.2.1 Os princípios e as diretrizes políticas

Idealmente, os juízes devem aplicar o direito promulgado por outras


instituições, não devendo lançar mão de regras novas. O problema é que nem sempre
as leis são claras e, ainda, surgem casos tão novos que estão além da interpretação das
regras existentes. Alguns considerariam que os juízes devem legislar, de forma
encoberta ou explícita, atuando como representantes do Legislativo. Em verdade,
juízes e quaisquer aplicadores do direito não podem atuar como legisladores. Para
entender essa conclusão, basta remontar à distinção entre princípios e diretrizes
políticas.
Em ambos os casos, trata-se de argumentos. Nas diretrizes políticas, têm-se
justificativas para uma decisão que favorece ou protege alguma meta coletiva da
comunidade como um todo, como o caso de subsídio para fabricantes de aviões com o
objetivo de fortalecer a defesa nacional. Os princípios fundamentam uma decisão de
moral política, demonstrando que se está respeitando ou assegurando algum direito
individual ou do grupo, como, no caso, de uma lei contra discriminação que defende
que uma minoria tem direito a igual consideração e respeito. Em suma, os princípios
estabelecem um direito subjetivo e as diretrizes políticas tratam de objetivos
coletivos315.
Um programa legislativo de complexidade pode operar com os dois tipos de
argumentos. É evidente que o Poder Legislativo tem competência para se valer de
diretrizes políticas. No entanto, as decisões judiciais devem necessariamente pautar-se
por argumentos de princípios concernentes a direitos.316 Dworkin tematiza
principalmente a atividade jurisdicional, o que deixa um campo aberto para a reflexão
sobre os lindes do direito para a função administrativa.
No caso de normas e decisões administrativas, o assunto tem maior
complexidade, mas não se discute que a Administração tem de se pautar por

315
Idem. Ibidem, p. 158.
316
Idem.Ibidem, p. 152
146

princípios, direitos e pelos limites legais (regras). O problema é que em temas como a
regulação abre-se ao administrador uma esfera de apreciação que diz respeito à
definição de fins coletivos e, portanto, de diretrizes políticas. Em suma, na
Administração, as decisões dizem respeito tanto a princípios, direitos, limites legais
(regras) e diretrizes políticas. É nessa confluência que reside o problema da
justificação, legitimação e controle dos atos administrativos, especialmente os de
regulação.

3.2.2 A tese dos direitos

A tese de que o juiz tem o dever de decidir, de acordo com princípios, os


casos difíceis, significa que ele aplica direitos preexistentes. O mesmo pode ser dito do
administrador, que também tem o dever de entregar a prestação que lhe cabe dentro
dos limites do direito, que advém não só da legalidade, mas também dos princípios e
dos direitos dos cidadãos.
Princípios e direitos encontram-se espelhados na história institucional, que
não é uma limitação da decisão, mas parte integrante desta, como sua condição de
possibilidade. É pela reflexão sobre o passado concernente à sua atividade que
emergem as soluções que configurarão a entrega da prestação a que o cidadão tem
direito, seja a decisão jurisdicional, seja um serviço público.
Uma decisão judicial não deixa de ser uma decisão política, mas essa
verificação não significa que ela se ampare em diretrizes políticas. Seu substrato é uma
constelação de princípios que exige coerência na sua aplicação. Mesmo as inovações
jurisprudenciais devem obedecer a um fio condutor de sentido que as vincule aos
precedentes anteriores e aos hipotéticos futuros317.
A tese dos direitos como solução para os casos difíceis se assenta em
algumas considerações: 1) na firme distinção entre direitos individuais e objetivos

317
Idem. Ibidem, p. 156. Essa ideia foi desenvolvida de forma mais completa em outra obra de Dworkin – O
Império do Direito – sob a denominação de integridade, que será tematizada mais à frente.
147

sociais; 2) no papel dos precedentes; 3) na de que os juízes devem formular juízos de


moralidade política sobre os direitos em jogo.
Um direito é uma finalidade política individualizada318, em que o indivíduo
tem direito a uma liberdade ou recurso que leva a uma decisão que lhe permite
desfrutar desse bem, mesmo que isso não sirva a qualquer outro objetivo político ou
mesmo quando o prejudique.
Por sua vez, um objetivo é uma finalidade política não individualizada, isto
é, um estado de coisas em que a especificação não implica nenhum recurso ou
liberdade para indivíduos. Os objetivos coletivos estimulam intercâmbios de
benefícios e ônus na sociedade, visando a produzir algum benefício global. A
eficiência econômica é um exemplo de objetivo coletivo.
Cabe distinguir direitos concretos de abstratos e, por isso, princípios
concretos de abstratos. O direito abstrato é uma finalidade política geral que não
determina sua comparação com outras finalidades políticas. Os grandes direitos da
retórica política são exemplo, como é o caso da liberdade de expressão, da dignidade,
da igualdade etc. Os direitos concretos, por sua vez, são finalidades com maior
precisão, expressando claramente o peso que têm com outras finalidades em
determinadas ocasiões. É o caso de um princípio que estabeleça que um jornal tem
direito de publicar planos de defesa secretos, desde que isso não implique danos físicos
para a tropa envolvida na notícia319.
A tese dos direitos considera que um juiz deve decidir os casos difíceis
concedendo ou negando um direito concreto. E mais: esses direitos têm principalmente
características institucionais e são muito mais jurídicos do que de qualquer outra
ordem.
A história jurídica constrói-se principalmente em torno dos direitos dos
cidadãos que, obviamente, são deveres para as autoridades, inclusive para as
administrativas. Isso configura padrões de política e moral institucionais que afastam a
autoridade de considerações de política geral320 ou, no mínimo, impedem-na de
enxergar apenas objetivos ou interesses coletivos.

318
Idem. Ibidem, p. 159
319
Idem. Ibidem, p. 162.
320
Idem. Ibidem, p. 172.
148

3.2.3 Os direitos constitucionais

A Constituição e especialmente a declaração de direitos321 se destina a


proteger os cidadãos, isoladamente ou em grupo, contra determinadas decisões que a
maioria tome, mesmo na perspectiva de ser de interesse geral ou para o bem
comum322. Nesse cenário, é uma questão que merece atenção especial a dos direitos e
dos princípios que sejam vazados em linguagem que se considere vaga.
Há uma distinção que pode esclarecer a reflexão em torno desses direitos e
princípios. É a que se dá entre conceito e concepção. O apelo ao conceito se coloca
acima das opiniões individuais acerca do que se debate. A concepção, por sua vez,
exige especificação do que se entende do tema debatido. O conceito é algo posto para
o debate, e a concepção é uma proposta de sua resolução.
Cláusulas constitucionais como igualdade, liberdade, devido processo legal,
obviamente dizem respeito a conceitos e não a concepções principalmente prontas e
acabadas, mesmo as dos constituintes e dos legisladores. Pode-se bem entender o
assunto a partir da assertiva de que princípios como esses visam a solucionar casos que
são de todo imprevisíveis e que não comportam ex ante a determinação de uma
solução correta.
Com essa diferenciação, pode-se considerar um erro chamar esses
princípios de vagos. Não são concepções incompletas, esquemáticas ou mal-acabadas.
Talvez fosse melhor ser impreciso, falando em delegação para o aplicador, algo mais
próximo do adequado. Se tomarmos esses princípios como conceitos com origem
moral, não poderemos detalhar muito mais323. A abertura é indispensável324.

321
Na visão de Dworkin, há forte aproximação entre direitos e princípios. Todavia, com a utilização do vocábulo
direitos, põe-se em relevo seu caráter contramajoritário.
322
Essa ideia também está presente no trecho (DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constituición y Democracia.
Trad. Julio Montero e Alfredo Stolarz. Buenos Aires: Isla de La Luna, 2003, p. 44): Todo funcionário jura
lealdade à Constituição e é assim que tem a responsabilidade de desafiar a vontade popular quando as
garantias constitucionais estão em jogo.
323
DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 210.
324
A ideia está muito bem expressa por Allard (ALLARD, Julie. Dworkin et Kant. Reflexion sur le jugement.
Bruxelas: Editions de l’Universite de Bruxeles, 2001, p. 122/3): Em verdade, o texto da lei utiliza palavras
149

Em verdade, se os tribunais e as autoridades desejam ser fiéis a tais direitos


e princípios, têm necessariamente de estar dispostos a discutir os conceitos a eles
inerentes e decidir por uma das concepções políticas que se apresentem e que melhor
se amoldem a uma constelação de princípios como justificadora de uma solução para
satisfazer o direito em questão.
É possível que os aplicadores prefiram dar deferência às concepções de
outras instituições, como o Parlamento ou mesmo por manter entendimentos já
assentados, mas é decisivo reconhecer que a Constituição é a fonte fundamental e
imperativa do direito constitucional325, o que sempre exigirá os enfrentamentos
institucional e jurídico de questões de moral política. Isso leva a um certo ativismo
judicial, no sentido de que os indivíduos têm direitos também com conteúdo de moral
política contra o Estado, o que os obriga a um juízo referente ao que está bem ou está
mal que façam os governos326 a seus cidadãos.
Isso também vale para a Administração, especialmente quando o que ela
aplica são regras derivadas de seu próprio poder normativo, de seu poder regulador.
Tem-se uma lei autorizadora, com limites, condições e finalidades do exercício do
poder em termos abertos, obviamente exigindo a complementação coadunada com
princípios e diretrizes políticas pertinentes. Isso, aliado ao fato de que a capacidade
normativa de conjuntura tem raízes constitucionais, existindo apenas autorização legal
para o seu exercício, deixa muito claro que o administrador, nesse caso, está
diretamente vinculado ao texto constitucional, devendo justificar o seu ato em
referência aos direitos, aos princípios e às diretrizes políticas.

3.2.4 Os direitos levados a sério

ambíguas, vagas e abstratas. São as obscuridades linguísticas. Essas obscuridades e confusões são necessárias
ao direito, de modo que se pode aí encontrar a vontade do legislador de deixar aberto o direito (aberto para a
razão prática). É que ‘não podemos localizar na ambiguidade, no vago ou na abstração, numa expressão ou
numas palavras, as dúvidas que nós temos’. Dworkin conclui que “o epíteto ‘obscuro’ é o resultado, mais que a
ocasião, do método que pratica o juiz para interpretar os textos de direito.” O objetivo é deixar o direito aberto
à interpretação, ou seja, às interpretações sucessivas. Em termos kantianos, trata-se de apelar à faculdade de
julgar de todos os membros da comunidade de princípios”.
325
DWORKIN (Op. cit., p. 216).
326
Idem. Ibidem, p. 219.
150

É inevitável que o Estado tenha a última palavra sobre os direitos dos


indivíduos, porque seus funcionários farão o que for decido pelos tribunais ou mesmo
por outras autoridades. Não pode significar, entretanto, que as suas decisões sejam
necessariamente corretas. O cerne dos direitos individuais, chamados por Dworkin
também de direitos morais327, em razão de sua inequívoca universalização de juízos
práticos e políticos (moral política), é serem oponíveis ao Estado, incluído o próprio
Judiciário. Se esses direitos são efetivamente reconhecidos, é preciso aceitar que a
interpretação de qualquer autoridade, ou dos tribunais, não põe definitivamente uma
pedra sobre o assunto. Pensar de outro modo é negar tais direitos, retirando-lhes seu
caráter de argumentação e reflexão.
A Constituição brasileira, como a norte-americana, traz um rol de direitos
jurídicos individuais328. Com base em seu texto, leis podem ser consideradas nulas.
Por outro lado, o caráter aberto de tais direitos faz com que a Constituição reúna
questões jurídicas e morais, como na discussão de se uma lei respeita o direito a igual
respeito e consideração329. Esse mesmo caráter conceitual e aberto dos direitos
individuais ou morais impede que se possa considerar que o texto da Constituição
abarque todos os direitos que têm os cidadãos.
Outro ponto a ser discutido é se os cidadãos têm o dever de obediência à lei
mesmo quando ela ofende seus direitos. Uma decisão da Suprema Corte ou do
Supremo Tribunal Federal continua sendo uma decisão jurídica, devendo levar em
conta textos positivados, precedentes e demais condições institucionais. Embora sejam
necessárias decisões para evitar a anarquia, nada garante que sejam sempre corretas.

327
Idem. Ibidem, p. 277.
328
A declaração de direitos forma um esqueleto principiológico (DWORKIN, Ronald. Freedom’s Law. The
moral reading of the american constitution. Cambridge: Harvard, 2003, p. 73): Em sua leitura mais clara, o Bill
of Rights estabelece uma rede de princípios, alguns extremamente concretos, outros mais abstratos e alguns de
abstração quase ilimitada. Em conjunto, estes princípios definem um ideal político: eles constroem o esqueleto
constitucional de uma sociedade de cidadãos iguais e livres.
329
De iguais respeito e consideração decorre a igualdade de recursos que pode ser entendida a partir do trecho
(DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005,
p. 209): Mas a forma igualmente fácil da neutralidade não tem papel nenhum na igualdade de recursos;
pertence a uma versão da concepção diferente que chamei de igualdade de bem-estar. A igualdade de recursos
almeja a neutralidade em outro sentido: pretende que os recursos que as pessoas têm à disposição, com os quais
realizarão planos, projetos ou modos de vida, sejam definidos pelos custos de terem esses e não outros, e não
por qualquer juízo coletivo sobre a importância comparativa das pessoas ou o valor comparativo dos projetos
ou das moralidades pessoais.
151

Isso se explica, pois questões controvertidas levantam intrincados problemas, inclusive


de ordem moral.
As decisões das autoridades, apesar de definitivas para os casos ali
decididos, são apenas um começo para o seu debate, e não um fim. Não se pode exigir
que o Estado dê sempre respostas corretas e adequadas para os direitos dos cidadãos,
mas o mínimo que se pode esperar é que tente, levando esses direitos a sério, seguindo
uma teoria coerente sobre eles e atuando de forma congruente com seus compromissos
institucionais330.
Mesmo no caso de uma Suprema Corte, não se pode afirmar de modo
peremptório que sua decisão sobre determinado tema seja a correta, embora
inequivocamente seja seu dever proferir uma decisão acertada, dado que direitos
constitucionais têm abertura interpretativa por sua própria natureza, inserindo no
debate jurídico temas de moral política. É inevitável que todas as autoridades tenham,
numa democracia, de se confrontar com intrincadas questões em torno dos direitos.
Isso, todavia, não as exime da obrigação de respeitar tais direitos,
procurando entregar a prestação que melhor os satisfaça e resguardando ao cidadão,
pela dimensão reflexiva desses direitos, a faculdade de pôr em questão suas decisões.
Se a autoridade leva os direitos a serio, como é seu dever, tem de atuar de maneira a
explicitar uma teoria coerente e concretizar uma prática institucional congruente como
forma de densificar os direitos, em que pese a sobrecarga que o caráter aberto dos
direitos constitucionais lhe imponha, para cumprir sua missão.

3.2.4.1 O direito de desobedecer a leis e a normas administrativas?

Numa democracia que respeite os direitos individuais há o dever, de


conteúdo moral, de que os cidadãos respeitem todas as leis, mesmo que algumas os
desagradem e portanto gostariam de que mudassem. Só que esse não é um dever
absoluto.

330
DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 278.
152

Além dos deveres para com o Estado, o indivíduo tem outros deveres como,
por exemplo, os com a sua consciência331. Em última instância, conduz o indivíduo a
ter o direito de fazer o que julga correto, assumindo os riscos de julgamento e de
punição pelo Estado, em reconhecimento também da existência de um dever para seus
concidadãos.
Uma reflexão sobre o que significa direito, em sentido subjetivo, pode
esclarecer a questão. Quando se diz que alguém tem direito a algo, considera-se que
está errado interferir na sua ação ou, no mínimo, que para justificar tal interferência se
precisa de uma razão especial. Se os direitos individuais, com base moral, são direitos
contra o Estado, o cidadão tem o direito de desobedecer a uma lei ou norma sempre
que firam injustamente seu direito, inclusive valendo-se do acesso à Justiça, mas os
princípios não podem ser amesquinhados com a restrição de seu debate apenas no
Judiciário. O campo dos princípios é amplo, abrangendo a sociedade civil, o
Legislativo, o Executivo e transitando entre as linguagens técnicas, institucionais e
natural. Enfim, os instrumentos judiciais de controle de constitucionalidade não podem
encerrar o debate e a concretização dos direitos.
Se toda vez que uma lei fosse de duvidosa inconstitucionalidade frente a
direitos do indivíduo, fosse ele obrigado a agir como se ela fosse válida, perder-se-ia o
principal meio que uma democracia dispõe de controlar o conteúdo de suas leis. Com
o tempo o direito seria cada vez menos justo e certamente os cidadãos menos livres332.
Os direitos individuais são trunfos333 políticos nas mãos dos indivíduos334.
Os cidadãos têm direitos quando um fim coletivo não é justificação para lhes negar o
que querem ou quando, por questão de princípios, não se lhes justifica a imposição de
uma perda. Essa é uma definição formal de direito, não remetendo a nenhum caráter
metafísico nem mesmo garantindo que se tenham direitos.

331
Idem. Ibidem, p. 279.
332
Idem. Ibidem, p. 312.
333
É interessante observar que a teoria sistêmica também considera os direitos fundamentais como uma
aquisição evolutiva, essencial não só para o indivíduo como para a sociedade (LUHMANN, Niklas. I diritti
fondamentali como istituzione. Bari: Edizioni Dedalo, 2002, p. 294): Essa interdependência torna necessária a
institucionalização de uma pluralidade de direitos fundamentais, que preservam contemporaneamente a
individualidade pessoal, a civilização das expectativas de comportamento, a orientação ao dinheiro da
economia e o fundamento do poder da sua inclusão na esfera de competência do sistema político.
334
DWORKIN (Op. cit., p. 37).
153

Com o fim de proteger os direitos, só se podem reconhecer como


concorrentes, para efeito de justificação de decisões estatais restritivas de direitos, os
concernentes a outros indivíduos335. A utilidade ou o interesse público não podem
desempenhar essa função, pois com isso os direitos individuais perdem seu sentido de
proteção de minorias contra decisões que convêm à maioria.
É certo que a obediência à lei é algo de interesse público, mas isso não pode
ser um argumento definitivo. O que respalda a inobservância de uma lei
inconstitucional pelos indivíduos são seus direitos em sentido forte. É o que defende
Dworkin336:
[...] Disse que qualquer sociedade que pretenda reconhecer os direitos deve
abandonar a ideia de um dever geral de obedecer à lei que seja válido em todos os
casos. Isso é importante, porque mostra que as reclamações de direitos de um
cidadão não se podem encerrar sem reflexão. Se um cidadão sustenta que tem
direito moral a não prestar serviços no exército, ou a protestar de uma maneira que
ele considera efetiva, então o funcionário que queira dar-lhe a resposta, e não
simplesmente obrigá-lo a obedecer por força, deve responder ao ponto que ele
assinala, e não pode valer-se da lei de recrutamento nem a uma decisão da
Suprema Corte como argumento de peso especial e muito menos decisivo. Às vezes,
um funcionário que considere de boa-fé os argumentos morais do cidadão,
convencer-se-á de que a reclamação deste é plausível, e inclusive justa. Disso não
se segue, no entanto, que sempre se deixará persuadir ou que sempre deva fazê-lo.

Os direitos em sentido forte sempre deixarão uma abertura e terão um grau


de indeterminação. Várias questões ficarão sem respostas claras. Por isso, o
descumprimento de uma lei que viole direitos deve ser feito com prudência e boa-fé.
Qualquer indivíduo que esteja insatisfeito com as autoridades deve ter em mente que,
numa sociedade pluralista, há multiplicidade de entendimentos sobre os direitos e,
principalmente, que os direitos alheios devem ser respeitados. Se um funcionário
considera que um cidadão não tem o direito de descumprir determinada lei, deve-se
perguntar de boa-fé se faz bem em impor a lei ou uma norma. As proposições simples
e draconianas, segundo as quais o crime deve ser castigado e quem entende mal a lei
deve ater-se às consequências, tem extraordinário arraigo na imaginação tanto

335
O giro de perspectiva proposto por Dworkin, ao levar os direitos subjetivos a sério, inclusive os de moral
política, faz com que o princípio de direito administrativo de que o interesse público prevalece sobre o particular
(como exemplo veja-se FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros,
2000, p. 65) perca o seu sentido. Está muito claro pela sua teoria que o interesse público é a conjugação dos
direitos particulares, que têm prevalência sobre objetivos coletivos, até mesmo como forma de proteger a
minoria da maioria.
336
DWORKIN (Op. cit., p. 292).
154

profissional como popular. No entanto, o direito é mais complexo e inteligente e é


importante que sobreviva337.
O conteúdo de moral política faz com que os indivíduos possam
compartilhar com as autoridades justificações e argumentos que permitam chegar a
uma concepção sobre o que são os direitos. No caso das leis e das normas
administrativas, esses direitos podem excluir o cumprimento de uma lei ou ato
normativo. Há margem para que o cidadão de boa-fé possa optar por seguir a sua
consciência e não seguir a lei ou norma em questão, obviamente assumindo as
consequências. Contudo, a dimensão reflexiva dos direitos colocará para a autoridade
a dúvida sobre se efetivamente a questão de impor o cumprimento da lei ou norma é
tão simples. Isso é consequência de reconhecer que juridicamente existem os casos
difíceis que implicam questões de moral política, exigindo dos agentes públicos que
levem os direitos a sério com maior reflexão no seu trato338.
A lei, atos normativos da Administração e decisões judiciais não são
argumentos definitivos que exaurem o debate sobre direitos e princípios. Eventuais
regras estampadas em tais atos não podem encerrar um caso na base do “tudo ou nada”
ou na mera subsunção, por ser um caso fácil.
É garantia do cidadão debater seus interesses perante as autoridades sob o
ponto de vista dos direitos e dos princípios, como um caso difícil. A Constituição não
afeta apenas o Judiciário. Por isso, quando colocado em jogo um direito fundamental,
é dever de um funcionário de boa-fé considerar argumentos de moral política do
cidadão que dizem respeito ao seu direito. É nesses termos que a decisão de uma
autoridade deve ser justificada, e não com o confortável simplismo da aplicação de
regras.

337
Idem. Ibidem, p. 326.
338
Essa concepção de Dworkin é incompatível com os tradicionais princípios de presunção de
constitucionalidade da lei (como exemplo ver BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Saraiva, 2000, p. 391) e de legalidade dos atos administrativos (como exemplo ver FIGUEIREDO, Lúcia
Valle. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 171). Explica-se pelo giro metodológico
por ele empreendido ao reconstruir o Direito e suas instituições a partir dos direitos subjetivos e dos deveres das
autoridades, e não de um sistema de regras ou leis.
155

As definições do direito não se apoiam na mera força, na simples sanção e


apenas na coerção. Resultam da validade, da fundamentação e da legitimação339. A
mera positivação de normas contendo regras não exime a autoridade quando se depara
com direitos de buscar fundamentação na constelação de princípios. É necessário
justificar o ato, especialmente com juízos de moral política, mormente quando os
direitos em questão envolvem entes regulatórios que exercem competências abertas, o
que exige alta reflexividade e não meros juízos descompromissados de subsunção. O
alto poder de coerção encerrado nos atos dos entes reguladores deve ser
contrabalançado com o elevado potencial de legitimação de um debate guiado por
princípios. Esse tipo de justificação é dever de quaisquer autoridades, incluídas as
administrativas.

3.2.4.2 Os direitos controversos

Se há direitos fortes, algo que tem de ser aceito é que o direito do indivíduo
sobrevive mesmo contra leis e sentenças opostas, que valem como decisões, mas
jamais podem implicar a supressão da possibilidade de o cidadão questionar tais atos,
ainda que apenas no uso de seu direito de livre expressão. Um homem tem, sem
dúvida, o direito de expor suas opiniões de maneira não agressiva.
É parte da tarefa das autoridades definir os direitos por leis, normas e
decisões judiciais, aclarando oficialmente seus limites, inclusive no que se refere à
institucionalização jurídica de seu conteúdo moral. Todavia, há um caminho que deve
ser visto com reservas: o de que se deve buscar um equilíbrio entre os direitos dos
indivíduos e as exigências da sociedade. É algo estabelecido nas retóricas judicial e
política340. A instituição de direitos exigíveis contra o Estado é complexa e difícil e,
certamente, torna mais custoso assegurar o benefício geral.

339
Há uma tensão constitutiva no direito que pode ser apreendida nos títulos de livros como o Faticidade e
Validade de Habermas (HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri:
Editorial Trotta, 3ª ed., 2001) e Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil de Marcelo Neves (NEVES, Marcelo.
Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006).
340
DWORKIN (Op. cit., p. 294).
156

Há ideais que os tornam indispensáveis. O primeiro, tão importante quanto


aberto, é a ideia de dignidade da pessoa humana, que supõe que existem maneiras de
tratar um homem que são incompatíveis com sua pertinência à sociedade e, portanto,
devem ser prontamente afastadas. O segundo ideal é o da igualdade, que traz em si a
noção de que os membros de uma comunidade merecem igual respeito e
consideração341, o que implica que a liberdade de escolha sobre os destinos coletivos
deve ser a todos distribuída.
As violações a esses direitos são injustiças graves. Para preveni-las, sem
dúvida, vale o custo adicional para a política social e para a eficiência. Se há um
equilíbrio a ser buscado pelas instituições públicas, ele se dá entre os direitos e os
princípios que dizem respeito aos indivíduos, e não entre direitos e diretrizes políticas.
Se enfrentada a questão pelo prisma da maioria, corre-se o sério risco de esses direitos
perderem todo o seu sentido. Se os direitos são levados efetivamente a sério como
devem ser, ferir um direito é muito mais grave que estendê-lo342.
Conclui-se que a prática dos direitos individuais pode colocar em questão o
dever de obediência às leis. Supostas razões de bem comum merecem cuidado, pois
podem esfacelá-los. O direito não pode ser neutro em relação a políticas sociais e
econômicas, permeando-se da concepção que a maioria tem do que é o bem comum.
Aí mesmo é que os direitos individuais são cruciais. Refletem o compromisso que a
maioria tem com as minorias de que sua dignidade e sua igualdade serão respeitadas,
sobretudo nos momentos de maior divisão.
No que diz respeito à Administração, é certo que o bem comum, a
eficiência e o bem-estar geral são diretrizes norteadoras de sua atuação. O problema é
que a dignidade da pessoa humana e o direito ao igual respeito e consideração são
mais que meros objetivos, são questões de princípios e de direitos, que impõem
deveres para as autoridades. A par de se preocupar com objetivos que dizem respeito à
coletividade, algo que se impõe aos administradores enfaticamente é a realização e o

341
O mesmo ponto de vista pode ser colocado de outra forma (DWORKIN, Ronald. The roots of justice. In.:
WESCHE, Steffen & ZANETTI, Véronique. Dworkin, Bruxelas/Paderborn: Ousia/Verlag, 1999, p.89): O
princípio da igualdade subentende que as comunidades políticas devem tratar seus próprios membros com igual
consideração: nenhuma decisão política é permitida que não possa ser justificada a partir do pressuposto de
que cada cidadão é tão importante, no ponto de vista da comunidade, quanto qualquer outro.
342
DWORKIN (Op. cit., p. 296).
157

respeito aos direitos, embora não vazados em textos legais. Em resumo, o interesse
público e a legalidade são nortes na atividade administrativa, mas os princípios e os
direitos constitucionais são obrigações perante os cidadãos, ainda mais quando se trata
de um exercício de uma competência normativa aberta.
158

3.3 Os princípios e a integridade

Na busca de uma sociedade melhor, a política comum tem alguns ideais em


comunhão com a utópica. São as virtudes políticas da equidade, da justiça e do devido
processo legal adjetivo. A equidade diz respeito às instituições, aos métodos e aos
procedimentos políticos de adequada distribuição de poder. A justiça se refere a como
distribuir recursos, bens, oportunidades e liberdades civis de modo moralmente
aceitável. Por sua vez, o devido processo legal adjetivo cuida dos procedimentos
corretos para julgar os cidadãos343.
Há um lugar-comum que considera que casos semelhantes devem ser
tratados de maneira semelhante. Embora não de maneira exata, refere-se à virtude que
Dworkin chama de integridade, procurando ressaltar o vínculo com a virtude paralela
de moral pessoal. Tem-se aí um ideal político que impõe ao Estado e à comunidade,
como agentes morais, que ajam segundo um conjunto único e coerente de princípios,
mesmo quando os cidadãos não estão de acordo sobre a justiça e a equidade pertinente
aos temas discutidos344.
Na legislação e na produção de normas, a integridade coloca a tarefa para
os que criam o direito de se manterem coerentes quanto a um conjunto de princípios e
diretrizes. No julgamento, os responsáveis por decidir sobre a lei e as normas devem
vê-las como coerentes com os princípios e fazer com que elas também o sejam. O
passado tem um significado especial, já que o direito deve ser visto como um todo em
que cada decisão (legislativa, administrativa ou judicial) revela sinais institucionais da
existência de um conjunto unitário de princípios.
Até aqui se falou em constelação ou conjunto de princípios, mas a
concepção do direito como integridade desloca a perspectiva. O conjunto coerente de
princípios e sua significação moral é mais compatível com uma abordagem

343
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 201.
344
Idem. Ibidem, p. 202.
159

personificadora. As práticas de pensamento e de linguagem podem levar-nos a falar de


uma comunidade de princípios, em que cada cidadão se considera inserido numa
vivência política, moral e jurídica, procurando corporificar um conjunto coletivo de
princípios que tem uma projeção distinta da concepção pessoal de cada um dos
participantes, isoladamente.
Nesse empreendimento, cada cidadão fornece o melhor de suas convicções
pessoais para integrá-los na comunidade de princípios, que é um agregado
institucionalizado oriundo de diferentes concepções. A comunidade de princípios se
assenta na autonomia moral de seus participantes e na imparcialidade das autoridades,
que como agentes morais dessa comunidade devem tratar cada integrante com igual
respeito e consideração.
A integridade como virtude da comunidade de princípios rejeita o que
Dworkin345 chama de soluções conciliatórias internas baseadas em concessões que
levam a um tratamento diferente para as pessoas sem boas razões de princípios para
fazê-lo. A ordem pública nesse tipo de decisão iníqua pode ser vista como uma
mercadoria a ser distribuída para cada grupo conforme sua participação numérica na
sociedade, como no caso de se estabelecer a responsabilidade por vício de produto
apenas para os fabricantes de automóvel, e não para os fabricantes de máquinas de
lavar roupa346. Ocorre uma incoerência de princípios, havendo somente a distribuição
equitativa de poder político entre os grupos que defendem posições morais diferentes e
injustificadas.
Uma solução de princípios, como exige a integridade, pode levar a uma
hierarquização entre eles ou mesmo a uma exclusão de alguns dos princípios em jogo,
mas durante todo o esquema de análise os princípios estarão presentes e serão
considerados. Exemplo é o direito à herança, em que estão em jogo a propriedade e a
igualdade como princípios. Uma solução para sua aplicação convergente pode ser a
defesa de uma tributação não confiscatória sobre a herança. Ambos os princípios
atuam na solução encontrada em que em nome da igualdade se tributa, mas se preserva

345
Idem. Ibidem, p. 216.
346
Idem. Ibidem.
160

a propriedade. No caso da solução conciliatória, que agride a integridade, o que se tem


é apenas um princípio; que é afirmado para um grupo e negado para outro.347
As soluções conciliatórias revelam uma incoerência de princípio por
negarem tratamento igual sem boas razões para tanto. São rejeitadas pela integridade,
que é um tipo especial de coerência que diz respeito aos princípios e aos ideais de
justiça, de equidade e de devido processo legal. Também a igualdade formal, ou
isonomia perante a lei, em que se cuida de aplicar as regras previstas em lei, é
escarnecida com as conciliações internas, negando-se uma coerência isonômica e
ofendendo uma lógica elementar.
A integridade deita suas raízes num dos princípios de retórica da Revolução
Francesa: a fraternidade. Por ela as pessoas aceitam que não são governadas apenas
por regras explícitas, oriundas de decisões políticas do passado, mas principalmente
por princípios que são os pressupostos dessas decisões. Como conjunto coerente
desses princípios, a integridade afasta a parcialidade, a fraude ou qualquer outra forma
de corrupção oficial348, ao se vincular também com o princípio de que todos devem ser
tratados com igual respeito e consideração.
A integridade forma um tipo especial de comunidade, a dos princípios.
Reforça um sentimento de responsabilidade coletiva pelo qual se pode vislumbrar o
ideal de autolegislação. Um cidadão não se pode considerar autor de leis incoerentes e
anti-isonômicas. Sob o signo da integridade, ao reconhecer princípios de moral política
em comum, os cidadãos devem aceitar as exigências que lhe são feitas e fazer
exigências. Os cidadãos de boa-fé devem interpretar e construir uma organização
comum da justiça à qual estão comprometidos em virtude da cidadania349, mesmo sob
a base da divergência. Cada cidadão tem a responsabilidade de fidedignamente
procurar identificar um sistema de princípios e de direitos para reger a vida de sua
comunidade350.

347
Idem. Ibidem, p. 217.
348
Idem. Ibidem, p. 229.
349
Idem. Ibidem, p. 230.
350
A constituição de uma comunidade de princípios corresponde à última etapa de evolução da perspectiva
social e da consciência moral, chamada por Habermas, com apoio em Kohlberg, de pós-convencional, demonstra
que, dentre outras características: a busca de princípios de justiça e, em último termo, de procedimentos do
discurso fundamentador de normas, deriva-se da moralização inevitável de um mundo social problemático.
Essas são as ideias de justiça que substituem a conformidade com as funções e as normas na etapa pós-
161

3.3.1 A legitimidade

A integridade transforma a sociedade política numa comunidade especial


que promove sua autoridade moral como forma de monopólio da força coercitiva.
Surge a questão de como legitimar o poder coercitivo do Estado. Um Estado pode ser
considerado legítimo quando se chega à conclusão de que os cidadãos têm a obrigação
de obedecer às decisões políticas que lhes impõem deveres.
É a partir da ideia de papéis sociais e da pertinência a um grupo social que
se pode dar um primeiro passo para justificar o monopólio da coerção e a imposição de
deveres. É interessante observar que estar em determinado grupo não necessariamente
resulta de uma escolha, como é o exemplo dos filhos numa família ou o de integrar o
povo de um Estado.
Nesse contexto, apresentam-se como decorrência dos grupos sociais as
responsabilidades associativas. Integrar um agrupamento social faz com que tenhamos
que honrar os deveres que se atribuem em tal esfera. No entanto, o dever natural de
observar os deveres só se sustenta mediante algumas condições. A reciprocidade tem
aí um grande destaque. Não é preciso concordar com cada detalhe das
responsabilidades estruturadas mutuamente em determinado agrupamento. É possível
manter obrigações associativas entre pessoas que têm uma ideia geral e difusa dos
direitos e das responsabilidades mutuamente estruturadas que cada um dos membros
do grupo tem de seguir351.
Para gerar um senso comunitário e fraternal, num sentido fidedigno e
verdadeiro, os integrantes do grupo devem ter relações que satisfaçam a determinadas
condições. Em primeiro lugar, as obrigações do grupo devem ser especiais352,
distinguindo quem o integra daqueles que não lhe pertencem. Depois, as

convencional (HABERMAS, Jürgen. Conciencia moral y acción comunicativa.Trad. Ramón García Cotarelo.
Barcelona: Península, 2000, p 194/5)
351
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 241.
352
Idem. Ibidem, p. 241 e seg.
162

responsabilidades marcam-se por serem pessoais, indo diretamente de um membro a


outro sem necessariamente percorrerem o grupo num sentido coletivo. Em terceiro
lugar, as responsabilidades devem decorrer de outras mais gerais, de modo que cada
um tenha interesse no bem-estar dos outros membros. Por último, as práticas do grupo
não devem mostrar apenas interesse por seus membros, mas um igual interesse. Isso
pode valer também para estruturas hierarquizadas como exércitos, com cada um tendo
seu papel no todo. A vida de todos tem igual importância, mas esse raciocínio não vale
para o sistema de castas, em que se considera que alguns são mais dignos que outros.
Tem-se, com esses pressupostos, a formação de uma comunidade cujas
responsabilidades são especiais e individualizadas e revelam um abrangente interesse
mútuo que se ajusta a uma concepção plausível de igual interesse353, distribuído em
função de papéis sociais. As obrigações políticas, especialmente a de obedecer ao
direito, podem resultar e se legitimar de associações formadas nesses padrões.
Todavia, uma última observação deve ser feita: as práticas desenvolvidas, nesse
âmbito, devem pautar-se por critérios de justiça mesmo com relação a terceiros, o que
vale especialmente para os excessos do nacionalismo e para agrupamentos como as
máfias.

3.3.2 A fraternidade e a comunidade política

Com o que foi desenvolvido no item anterior, existem condições para


responder como legitimamente se podem impor deveres resultantes de decisões de
uma comunidade política. É com base nos laços comunitários e fraternais que se pode
avançar em tal terreno.
Não só a família, a amizade e outras formas de associação mais íntimas têm
os deveres em seu cerne. As comunidades políticas também. Só que, nestas últimas, a
obrigação central é a de fidelidade ao direito354.

353
Idem. Ibidem, p. 243.
354
Idem. Ibidem, p. 251.
163

Há três possibilidades de configurar uma associação política355. Concebê-la


como um acontecimento circunstancial de fato da história e da geografia, não fazendo
apelo à sinceridade na manutenção dos laços entre os cidadãos. Pelo modelo de regras,
em que os integrantes da associação aceitam o compromisso de obedecer a normas
específicas de sua comunidade. Existe adesão a tais regras por uma questão de dever,
mas o conteúdo delas esgota as obrigações dos envolvidos. As regras não são o
resultado de uma negociação em que se vislumbram princípios comuns subjacentes.
Ao contrário, representam um acordo entre interesses opostos. Os dois modelos
rejeitam a integridade. Sua oposição às soluções conciliatórias não considera que a
comunidade deve respeitar princípios necessários à justificativa de uma parte do
direito, bem como do todo356.
O terceiro modelo é o dos princípios. Em comum com o das regras tem a
concepção de que a comunidade política pressupõe uma compreensão compartilhada.
Esse substrato comum é mais abrangente e generoso que um sistema de regras. Os
destinos dos integrantes da comunidade estão vinculados a princípios e direitos
comuns, e não apenas por regras de um acordo político momentâneo. A política torna-
se uma arena de debate sobre quais princípios devem ser adotados e quais visões de
justiça, equidade e devido processo legal devem prevalecer. Não se trata apenas de
como cada pessoa faz valer suas convicções num amplo campo resultante de uma
ordem de poder ou de regras.
Direitos e deveres não se esgotam nas decisões tomadas por instituições
políticas. São oriundos de um conjunto de princípios que as decisões pressupõem e
endossam357. Em síntese, cada membro toma o modelo do direito como integridade
como algo caro para si e para a comunidade e procura dar-lhe a melhor configuração.
Nesse último modelo, os cidadãos respeitam e desenvolvem358 sentimentos
de justiça e equidade na interpretação e na construção de um conjunto de princípios,
considerando que, em termos políticos, seu destino se entrelaça com o da comunidade,
em que todos são dignos. Não há apenas um interesse imediato pelo cumprimento de

355
Idem. Ibidem, p. 252 e seg.
356
Idem. Ibidem, p. 254.
357
Idem. Ibidem, p. 255.
358
Idem. Ibidem, p. 257.
164

regras, mas um sentimento mais verdadeiro, profundo e constante pela política em que
a legislação espelha o conjunto de princípios que adentra a aplicação do direito pela
Jurisdição e pela Administração.
É o modelo do direito como integridade, que não é apenas uma coerência
em que casos semelhantes devem ser tratados de maneira semelhante. A coerência359
que se busca é a da comunidade fraternal de princípios, cujas virtudes a serem
atingidas são a justiça, a equidade e o devido processo legal numa correta proporção. É
aqui que se tem a melhor apresentação da legitimidade de uma associação política.

3.3.3 A integridade no direito

A aplicação do direito como integridade (mais estritamente o princípio


judiciário da integridade) leva os juízes e demais aplicadores a partirem do pressuposto
de que direitos e deveres resultam de normas criadas por um único autor – a
comunidade personificada – como expressão coerente de justiça e equidade. A verdade
das proposições jurídicas deriva de uma interpretação construtiva que oferece correto
equilíbrio entre as duas referidas virtudes e o devido processo legal360, sendo, portanto,
o resultado de uma reflexão de conteúdo, e não de validação meramente formal.
O direito como integridade361 é uma concepção hermenêutica em que seu
conteúdo é tanto produto como fonte de interpretação da prática jurídica. O direito se
apresenta como tendo origem em interpretações e como sendo continuidade delas. E
359
A hermenêutica filosófica empresta relevante papel à coerência na atividade interpretativa (GADAMER.,
Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Trad. Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro: Editora
Fundação Getúlio Vargas, 1998, p.65: [...] nada é de fato compreensível se não se mostrar efetivamente sob a
forma de um significado coerente.
360
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 272.
361
A integridade proposta por Dworkin nada mais é do que a especificação para o direito como fenômeno
interpretativo do que é a coerência para a hermenêutica de Gadamer: De fato, não é apenas uma unidade de
sentido imanente que pressupõe a operação concreta da compreensão: toda compreensão de um texto pressupõe
que ela seja orientada por expectativas transcendentais, cuja origem deve ser buscada no interior da relação
entre a intenção do texto e a verdade (O problema da consciência histórica. Trad. Paulo Cesar Duque Estrada.
Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 66). Assim, tomando o direito como um texto
construído coletivamente pela comunidade de princípios, deve ele formar uma unidade coerente orientada por
ideais transcendentais além do limite do texto, que para Dworkin são a justiça, a equidade e o devido processo
legal, ou seja, o desdobramento de uma justiça geral que preliminarmente pode ser qualificada como a verdade
para as instituições.
165

mais: o principal objeto das interpretações são os princípios. Nas palavras de Dworkin,
raciocinar em termos jurídicos significa aplicar a problemas jurídicos específicos [...]
uma ampla rede de princípios de natureza jurídica ou de moralidade política362.
A história tem grande importância para o direito como integridade. Não se
trata de um resgate de todas as etapas históricas, nem mesmo de um direito que esteja
entrando em desuso. Não se busca uma reconstrução de todas as regras vigentes na
comunidade. Cuida-se de uma retomada horizontal em que direitos e deveres resultam
de decisões coletivas oriundas do passado, que justificam a coerção; e seu conteúdo,
sobretudo, reflete um sistema de princípios.
O ponto de referência do direito como integridade é o presente da
comunidade de princípios. O retorno ao passado ocorre na medida em que a
reconstrução contemporânea dos princípios o exija como condição de possibilidade de
um futuro honrado. As decisões do passado e os princípios que as embasam se
apresentam e se reconstroem continuamente numa visão otimista de que representam
uma possibilidade atraente na prática da coerência de princípios que a integridade
requer. Isso de modo algum exclui o conflito e a divergência que podem constituir
terreno fértil para a elaboração de soluções conforme a integridade, a partir de uma
interpretação imaginativa363.

3.3.3.1 A cadeia do direito

Uma interpretação criativa busca sua estrutura formal na intenção. Não se


cuida de descobrir a intenção de determinada pessoa ou grupo histórico, mas de
reconstituir um propósito a um texto, a dados ou a tradições que se interpretam. Toda
interpretação pressupõe a existência de uma intenção e de uma coerência naquilo sobre
o que se trabalha.
Pode-se metaforicamente justapor a atividade de um juiz ou de um
aplicador do direito à de um crítico literário que destrincha as várias dimensões de
362
DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 72.
363
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 275.
166

valor em uma peça ou num poema complexo364. Juízes, ressalta Dworkin, são
igualmente autores e críticos de sua própria obra, o que promove uma comparação
mais fértil na relação literatura e direito com o gênero literário do romance em
cadeia365.
Nesse projeto, um grupo de autores redige um romance em que cada um
interpreta os capítulos anteriores que recebeu para escrever o seu e abre caminho para
o romancista seguinte. Cada um propõe o seu capítulo como o melhor possível para o
romance que está sendo elaborado.
Algo semelhante ocorre com os juízes ou outros aplicadores do direito
quando se dedicam a decidir um caso difícil. Tanto o romancista como os juízes se
dedicam a criar em conjunto apenas um romance unificado, com a melhor qualidade
possível. A obra não se pode apresentar como feita a várias mãos, como na verdade é,
mas deve ser atribuída com fidedignidade a um único autor, como já dito à
comunidade personificada.
A tarefa exigirá uma reflexão sobre elementos como trama, gênero, tema,
objetivos etc. Um bom crítico trabalhará com tais questões de forma sofisticada e
multifacetada, já que um bom romance não comporta apenas uma perspectiva.
Também identificará níveis e correntes de sentido diferentes, mas não apenas um
enfadonho tema.
Duas dimensões apresentam-se, nesse estilo literário, como eixos centrais: a
da adequação e a da justificação. Na da adequação ressalta-se a fluência do texto e um
poder de explicação geral, buscando uma interpretação que apreenda boa parte do
texto, ainda que reconhecendo que ele não pode ser plenamente bem-sucedido e que
algumas partes devem ser abandonadas. Na da justificação, o autor do romance em
cadeia pode encontrar mais de uma interpretação que se ajuste ao texto. Terá de julgar

364
Idem. Ibidem, p. 275. Em outra obra Dworkin é mais explícito sobre a vinculação entre direito e arte
(DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000,
p.249): transmito apenas meu entendimento de que política, arte e direito estão unidos, de algum modo, na
filosofia.
365
A metáfora do romance em cadeia não é casual. Ela reflete as preocupações estéticas da hermenêutica
filosófica que reinsere o juízo e o gosto entre os conceitos guias humanísticos (GADAMER, Hans-Georg.
Verdade e Método. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997, pp. 76 e seg. e GADAMER, Hans-
Georg. Estética y hermenêutica. Trad. Antônio Gómez Ramos. Madri: Tecnos, 2001, pp. 55 e seg.)
167

quais das duas melhor se adéqua, colocando em jogo seus juízos estéticos mais
profundos sobre as diferentes ideias que o romance poderia expressar.
Embora se fale nesses dois planos, não há como separá-los de maneira
absoluta. Os juízos pessoais do aplicador, que surgem na dimensão da justificação,
devem ser confrontados com a integridade do texto, na adequação, procurando, assim,
a proposta de interpretação que lhe mantenha a coerência. Há entre essas duas
dimensões um jogo circular que busca a coerência e ideais transcendentais como a
justiça e a equidade.
O direito como integridade impele o juiz, ou o aplicador do direito, para que
se considere como um autor na cadeia de sentidos que forma o direito. Outros colegas
decidiram casos afins, e o juiz deve considerá-los como parte de uma longa história a
ser interpretada de acordo com suas opiniões, que expressam a melhor proposta para a
continuidade dessa história.
Dworkin propõe um juiz hipotético chamado Hércules para dar cabo a
missões dessa ordem366. Contudo, ele apenas apresentará as respostas que julgar
melhores no momento da decisão, e sua abordagem sobre os temas que lhe são postos
será mais reflexiva e indagadora do que definitiva.
Hércules emite opiniões sobre adequação que se irradiam numa série de
círculos concêntricos que atravessam as diversas áreas do direito. Então, para tratar de
um caso de danos morais, ele inicialmente circunscreve-se à responsabilidade civil
aquiliana, depois passando à contratual para verificar princípios aproveitáveis e
comuns e assim por diante. Hércules tem uma visão construtiva dessa
compartimentalização, em que as divisões do direito são vistas sob a melhor luz para
solucionar os casos que se lhe apresentam367.
Isso é o reflexo de que os aplicadores do direito que aceitam o caráter
interpretativo do direito como integridade, na decisão de casos difíceis, buscam um
conjunto coerente de princípios que estruturem direitos e deveres a partir da melhor
interpretação da vivência política de sua comunidade e de sua doutrina jurídica. Na
dimensão de adequação, encontram-se limiares oriundos da história política da

366
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 287.
367
Idem. Ibidem, p. 300.
168

comunidade que restringem as convicções políticas368. É o que se dá, por exemplo,


com a supremacia legislativa que se põe como um limite para a configuração da
decisão de um julgador e também do administrador.
Noutro giro, surgirão os casos difíceis, quando numa análise preliminar não
for possível prevalecer uma dentre duas ou várias interpretações. É a etapa da
justificação. Cabe escolher entre as interpretações aceitáveis, perquirindo-se qual, da
perspectiva de moral política, representa melhor as instituições e as decisões da
comunidade369. As próprias convicções morais e políticas do aplicador estarão em
questão, mas a serviço do direito como integridade, da comunidade de princípios na
busca de uma correta proporção entre justiça, equidade e o devido processo legal.

3.3.4 A integridade e as leis

Na leitura das leis, Hércules utiliza em linhas gerais as técnicas expostas em


relação à integridade e ao direito. O Congresso e todos os que participam do processo
legislativo são autores anteriores na cadeia em relação a ele. O Parlamento, no entanto,
é um autor com poderes e responsabilidades diferentes das de um juiz ou de outro
aplicador do direito.
Por isso, Hércules vai exercer seu papel criativo como um colaborador que
continua a desenvolver, da melhor forma, o trabalho iniciado pelo Congresso. Ele se
perguntará qual interpretação da lei mostra mais claramente seu desenvolvimento
político. Sua abordagem dará relevo aos debates legislativos em nome da equidade,
mas estes não serão definitivos. São registros de atos políticos a serem sopesados com
o texto da própria lei e a vivência política da própria comunidade de princípios que
exige uma reconstrução prospectiva e otimista do direito. Hércules respeitará a
integridade do texto legislativo sem sobrepor-lhe suas convicções pessoais e respeitará
as declarações que envolvem o histórico de uma lei como reflexo da opinião pública,
preservando a equidade política.

368
Idem. Ibidem, p. 305.
369
Idem. Ibidem, p. 306.
169

O ponto de vista de Hércules, no entanto, não se vincula à intenção do


legislador. Não há criadores exclusivos de uma lei. A ideia de propósito ou intenção de
uma lei não é uma combinação dos desígnios de legisladores particulares, mas é o
resultado da integridade. As etapas do processo legislativo são eventos políticos em si
próprios, não remontando a um estado de espírito por detrás deles. De igual modo, não
há um momento canônico na pesquisa histórica do texto legislativo. A história política
do texto começa antes de sua aprovação e vai até o momento da decisão370, projetando-
se o tempo como possibilidade de extração dos melhores sentidos possíveis.
Sobre os legisladores, pode-se dizer que os membros da comunidade
esperam que atuem fundamentados em princípios e com a integridade. Esse objetivo é
satisfeito quando se deixa de invocar ambições pessoais e se enfocam convicções
predominantes na legislatura em seu conjunto e como parte da história institucional,
que expressa o comprometimento com um sistema coerente de convicções políticas371.
Hércules buscará a melhor explicação sobre a atividade da legislatura na
elaboração de um texto particular como exemplo de história social. Para situar a
legislação sob a melhor luz possível, proporá uma interpretação não só a partir de suas
convicções sobre justiça, mas também sobre os ideais de integridade, equidade e
devido processo legal.
A integridade fará com que Hércules elabore para cada lei a ser aplicada
uma justificativa que a ela se ajuste e a penetre. Em coerência com a legislação em
vigor, procurará uma combinação de princípios e políticas que, na sua ordem de
composição, podem proporcionar a melhor hipótese de fundamentação para a lei. O
mais importante não é a regra que resulta do texto legal, mas os princípios
justificadores372. A fidelidade à lei se traduz na vinculação ao conjunto de princípios
assumidos pela comunidade personificada que explicam a necessidade de deferência
ao legislador democrático e à segurança jurídica por fidedignidade a um texto editado
no passado como vinculativo.

370
Idem. Ibidem, p. 380
371
Idem. Ibidem, p. 396.
372
CASALMIGLIA, Albert. El concepto de integridad em Dworkin. In: Doxa, p.171. Disponível em
http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=15638&portal=4, acesso em 10.10.2010
170

Por não se tratar de mero precedente, mas de atividade legislativa, é


importante marcar que tanto princípios como diretrizes políticas devem ser levados em
consideração. Embora a integridade seja, por definição, uma questão de princípio373,
Hércules preocupa-se em reconstruir um alto nível de coerência entre as diretrizes
políticas apresentadas, sem ignorar as exigências dos pressupostos de uma comunidade
de princípios.
Um último ponto a ser considerado é o de uma lei obscura. Uma primeira
hipótese é a de ambiguidade, como na utilização do termo “banco”, que pode referir-se
a uma pessoa jurídica que recebe depósitos em dinheiro ou a um local para alguém
sentar-se. Uma segunda hipótese é a da utilização de um termo vago, como o de uma
lei que concede isenção do imposto de renda para idosos. Outra é a de utilização de um
termo abstrato como razoável. A obscuridade não está em nenhuma dessas hipóteses
ou em meras palavras do texto da lei, mas sim na verificação da existência de duas ou
mais interpretações com bons argumentos.
Os casos difíceis parecem amoldar-se a intrincadas controvérsias sobre leis
obscuras. Que seriam, então, casos fáceis? Exigiriam uma aproximação diferente? Para
Dworkin, não há sentido num método para casos difíceis e outro para casos fáceis374.
Nestes últimos, à primeira vista, as perguntas mereceriam reflexão singela e respostas
evidentes, como na inobservância de uma regra de excesso de velocidade. Isso não é
algo definitivo, já que alguém compartilhando de outras concepções de justiça e
equidade poderia achar que o caso não é tão simples assim.

3.3.5 A integridade e a Constituição

A Constituição é um tipo de lei, mas o seu caráter político exige uma


abordagem diferenciada que, de forma alguma, pode conferir os mesmos poderes que
373
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 406.
374
O raciocínio está claro no seguinte trecho (GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Trad. Luís Carlos Borges. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 205): Para concluir, então, Dworkin oferece-nos um novo foco no direito. À
primeira vista, este foco recai sobre os casos difíceis, que agora devem ser caracterizados pelo exame de áreas
do direito que são controvertidas de uma maneira mais fundamental do que a caracterização de tais áreas como
periféricas, ou penumbrosas para leis mais importantes. À segunda vista, um entendimento mais profundo
mostra-nos que, por causa da natureza consensual dos paradigmas jurídicos, é possível que todos os casos
sejam casos difíceis, e que o foco real não esteja na diferença entre o que é claro ou não, mas na qualidade do
argumento jurídico que justifica a invocação dos poderes coercivos da comunidade.
171

tem o constituinte originário ao julgador ou ao administrador. Ela é o fundamento para


a criação de outras leis, o que exige um retorno às disposições mais básicas do
processo político com justificativa extraída dos aspectos mais filosóficos da teoria
política375.
As avaliações sobre justiça, na aplicação dos princípios constitucionais, são
especialmente limitadas por considerações de equidade e de integridade, isto é, a
correta distribuição de bens, recursos e oportunidades advém de considerações sobre
as instituições formadas sob a égide da Constituição e de uma aplicação coerente e
otimista dos princípios para consecução do direito que todos os cidadãos têm de igual
respeito e consideração. Para o direito como integridade, uma Constituição consiste na
melhor interpretação de sua prática e de seu texto, sensível à sofisticação das virtudes
políticas envolvidas.
A Constituição confere competências limitadas aos órgãos políticos dos três
poderes. Com Marbury vs. Madison, não só a Suprema Corte, mas os tribunais em
geral passaram a julgar os atos de autoridade sob a luz da Constituição, declarando
inválidos os que excedessem seus limites. Não há novidade nisso. O ponto crucial é
saber como a Suprema Corte e as outras instâncias devem exercer esse vasto poder.
O direito como integridade confere importância à certeza e à previsibilidade
das decisões, principalmente das constitucionais. A distribuição de poderes deve ser
estável e precisa, tanto no que se refere à Federação como às diferentes funções do
Estado. É importante saber a qual unidade política foi conferida uma responsabilidade
específica, como, por exemplo, a regulação de um comércio ou atividade privada de
interesse público.
No que se refere aos direitos individuais, a estabilidade de sua interpretação
tem alguma importância prática, porém, o mais relevante é a sua substância, que é
revelada pela integridade. O sistema de direitos e princípios deve ser interpretado a
partir de uma concepção coerente de justiça. Isso obviamente não pode ser obtido a
partir de um historicismo que busque, nos constituintes, a intenção por trás desses

375
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 454.
172

direitos. Isso equivale a negar a Constituição, que certamente leva os direitos a sério,
não considerando que eles tenham um momento canônico que possa parar no tempo.
De igual modo, é preciso distinguir diretrizes políticas de direitos
individuais para preservar o caráter de trunfo que têm estes últimos em favor do
indivíduo em relação a estratégias coletivas. Embora, nas decisões, preferências e
considerações de bem-estar coletivo tenham de estar presentes, é preciso preservar os
direitos como uma questão de princípio.
Nas questões de princípio, a integridade exige das políticas estatais o
mesmo tom, reconhecendo direitos a todos, sem negá-los a ninguém. Nas questões
políticas isso é mais difuso. O Estado deve tratar as pessoas como iguais, mas isso é
uma diretriz para estratégias, estatísticas e metas. Há um tipo de incoerência que não
se aceita, que é a de conceder benefícios distintos sem critério de discrímen pertinente,
como no caso de subsídios para um agricultor católico.
A igualdade material deve levar o governo a adotar programas que tornam
segmentos e classes mais iguais em termos de riqueza material enquanto grupos, e
assim por diante. As decisões em busca dessas estratégias, julgadas uma por uma, são
questões de política e não de princípios376. É importante perceber que boa parte das
teorias políticas vigentes também reconhece direitos individuais distintos como
trunfos capazes de influenciar essas decisões políticas, direitos que o governo é
obrigado a respeitar caso por caso, decisão por decisão377.
O direito como integridade procura também um equilíbrio entre uma
postura passivista e outra ativista, no que diz respeito à decisão de outros poderes do
Estado sobre direitos e princípios, especialmente os constitucionais. No passivismo,
considera-se que as grandes cláusulas constitucionais são muito genéricas e abstratas.
Por isso, deve-se deixar aos outros poderes, que contam com maior legitimação
democrática, a decisão final sobre os direitos, cabendo ao Judiciário prestar deferência
aos demais poderes e se limitar à mais rigorosa interpretação do texto da lei. Segundo
essa postura, não é tarefa das cortes criar direitos. Na democracia é o povo, por meio
de seus representantes, que deve inovar sobre direitos.

376
Idem. Ibidem, p. 267.
377
Idem. Ibidem, p. 268.
173

Já o ativismo propõe o oposto, ou seja, que os juízes façam os direitos,


colocando em primeiro plano o seu próprio ponto de vista sobre os direitos. É certo
que um dos papéis da Constituição é impedir que as maiorias oprimam as minorias,
fazendo prevalecer suas convicções. Nesse sentido, não se pode irrestritamente confiar
no ponto de vista de uma maioria passageira. A equidade exige atenção a
características estáveis da cultura política de uma nação, como o texto da Constituição,
sua história, os precedentes constitucionais. Não cabe a um aplicador do direito
emendar a Constituição, mas interpretá-la. Isso exclui os excessos do ativismo e sua
excessiva empolgação sobre o papel dos juízes, mas, no mesmo sentido, mostra a
pobreza de uma postura passivista, que confere muita relevância à maioria política378 e
ao texto da lei, esquecendo-se de vários outros aspectos de justiça na aplicação da
Constituição.
Um outro aspecto a ser considerado é o de que uma decisão sobre direitos
constitucionais não é um mero elenco de situações subjetivas. É preciso, antes de mais
nada, assegurá-los de forma imediata e eficaz, sem acatar ou acobertar os interesses de
subversão dos direitos.

3.3.6 A integridade e a regulação autorizada

Levando em conta que o direito como integridade é idealmente uma


construção interpretativa de um único autor, a Administração, inclusive no exercício
de sua competência normativa, insere-se no caminho que busca corporificar a
comunidade de princípios. As leis, os atos administrativos normativos, as decisões
administrativas, os precedentes judiciais são parte dessa trilha, formando um horizonte
de passado que se refere ao presente, com vistas a um futuro melhor numa

378
Uma opinião mais contundente está neste trecho (DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here?.
Principles for a new political debate. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2005 p. 143): Assim,
devemos abandonar a ideia familiar de que a regra da maioria é um procedimento exclusivamente justo de
tomada de decisão, mesmo na política. Em algumas cicunstâncias, como nos casos de salvamento e de
projectos, parece profundamente injusta e, em outros, quando a questão que ela levanta é de se deve haver uma
decisão coletiva sobre algum assunto no seu todo. A regra da maioria não é um método especial para perceber
e alcançar a verdade, e ela não chega nem perto de garantir o equilíbrio do poder político de uma grande
comunidade política com instituições políticas representativas.
174

reconstrução e numa interpretação reflexiva e compartilhada. A legitimação da


coerção não se esgota nas regras positivadas, que pressupõem e endossam a
comunidade de princípios como fundamento de validade do direito, derivando os
deveres e direitos especialmente desta última.
Como uma construção interpretativa, o direito pressupõe intenção e
coerência para a formação dessa obra única em que o autor é a comunidade
personificada. Dois eixos centrais orientam essa atividade: o da adequação e o da
justificação. No plano da adequação, cuida-se de buscar uma linha de propósito
interpretativo de sentido que permita organizar com fluência e poder de explicação
geral os diversos atos anteriores positivados, como se fossem um texto uno que
expressa a história política da comunidade. No plano da justificação, diante de duas
interpretações diferentes e viáveis sobre a história política da comunidade, a
autoridade, para formular uma decisão, põe em cena os seus juízos de moral política
como proposta de melhor expressão do direito como integridade.
A supremacia legislativa é um princípio que condiciona a Administração,
embora não se possa excluir sua inserção conjugada na comunidade de princípios para
definir direitos e deveres. A lei é uma expressão da vivência política que revela, a
partir de um processo legitimado pela democracia participativa, de forma explícita ou
implícita, princípios e diretrizes coletivas. É parte fundamental da história institucional
para guiar principalmente os passos da Administração. A realização dos direitos e a
observância dos deveres inerentes às autoridades têm como guia o legislador. No
entanto, as regras não são o mais importante que resulta do texto da lei, mas sim
princípios inseridos numa constelação.
Na mesma linha, os entes reguladores na sua produção normativa de
conjuntura estão inseridos na comunidade de princípios e no direito como integridade.
A frenética produção de regras normalizadoras por essas entidades só tem seu sentido
completo como espelho e endosso dos princípios e como parte da história política e
moral da comunidade. É como expressão de um conjunto de princípios e de diretrizes
políticas que a regulação deve ser compreendida.
Em que pese ser a integridade uma questão de princípio, a legislação é uma
atividade marcada por escolhas que configuram diretrizes políticas, objetivos de
175

melhora da comunidade. Numa democracia constitucional, a minoria deve estar


protegida por direitos, mas a legitimação pelo sufrágio respalda definições sobre
interesses que dizem respeito ao bem comum nos aspectos econômico, político ou
social. Logo, a partir da lei é possível vislumbrar tanto diretrizes políticas como
princípios.
O exercício de competência regulamentar autorizada ocorre a partir de uma
autorização legal. Obviamente não se trata de um cheque em branco para os entes
reguladores. A lei traz limites, conformações e diretrizes, expressando o direito como
integridade. As agências estão inseridas em idêntica comunidade de princípios
revelada pela lei, mas não contam com a legitimação pelo sufrágio. Dado isso, existe a
necessidade de um esforço mais fidedigno para revelar regras que correspondam
adequadamente e justificadamente a um conjunto coerente de princípios e acurado de
diretrizes políticas. Os entes reguladores são intérpretes da Constituição e das leis. Não
lhes cabe emendá-las. O campo de ação dos entes reguladores, sob o ponto de vista da
integridade, é o dos direitos e das diretrizes políticas definidas especialmente por lei e
também pela Constituição.
Por meio dos procedimentos inerentes ao devido processo legal e formando
as instituições ínsitas à equidade, os entes reguladores realizam programas a partir de
estratégias, estatísticas e metas coletivas, para uma correta distribuição de bens,
recursos e oportunidades em busca da edificação da igualdade de respeito e
consideração entre os cidadãos, uma questão sobretudo de diretrizes políticas. Isso não
exime as autoridades de agir com coerência e de observarem os direitos individuais
distintos que se formam como trunfos com influência nessas decisões de política,
como no caso de direitos sociais mínimos.
As agências reguladoras cuidam de oportunidades de acesso a mercados, da
normalização das condições de seu funcionamento e da distribuição de utilidades
(public utilities) com vistas à manutenção de eficiência que possibilite contínuo
crescimento da economia e justa distribuição de bens. Obviamente, isso não é apenas
uma questão de direitos e de princípios. Outros diversos fatores têm de ser
considerados por imperativos de ordem científica, técnica, econômica, política etc. Ao
se valerem do direito como meio para realizar esses imperativos, o respeito à
176

integridade faz-se necessário na busca de uma coerência nas diretrizes políticas


relacionadas a esses diversos fatores e também com a devida fidedignidade à
comunidade de princípios, que exige sofisticação e reflexão de seus aplicadores.

3.3.7 Ainda sobre o direito como integridade

A integridade é um ideal e uma virtude política, soberana em todo o direito,


tendo lugar na construção de uma moral interpessoal, institucionalizada no direito379.
Surge num cenário de associação de princípios em que uma comunidade quer ser
governada por uma concepção simples e coerente de justiça, equidade e devido
processo legal, na proporção correta. A justiça se refere a uma distribuição adequada
de bens, oportunidades e recursos. A equidade trata da estrutura institucional de um
sistema que distribua as decisões políticas de maneira adequada. O devido processo
legal se vincula aos procedimentos para a aplicação das regras produzidas pelo
sistema380.
Dworkin, para dar destaque à justiça, concebe ainda a integridade pura, essa
virtude política abstraída das limitações contingentes da equidade e do devido
processo legal. Ela é composta de princípios de justiça que oferecem a melhor
justificativa do direito contemporâneo, desvinculados de qualquer limitação
institucional, não se dirigindo a juízes, legisladores ou aplicadores do direito, mas
diretamente à comunidade personificada, como possibilidade de reformulação de suas
práticas a partir de uma proposta coerente de princípios de justiça.
O direito como integridade é um conceito interpretativo381. Procura fornecer
melhor adequação e justificação das práticas e das vivências institucionais. A

379
POSTEMA, Gerald J. Integrity: justice in workclothes. In: BURLEY, Justine. Dworkin and his critics with
replies by Dworkin. Malden: Blakwell Publising, p. 293.
380
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 484.
381
Interessa marcar o caráter aproximativo que tem a interpretação com a prudência, como se pode depreender
do seguinte trecho (GRAU, Eros. Direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 32):
Como o direito reclama interpretação – na medida em que apenas desde que interpretado ele se realiza como
jurisprudência prática (pois ele é a jurisprudência prática) – e a interpretação é uma prudência, devo
necessariamente concluir que o direito é uma prudência.
177

comunidade política como associação de princípios é um ideal a ser realizado. Essa


concepção de sociedade oferece uma base atraente para exigências de legitimação
política em uma comunidade de pessoas livres e independentes que divergem sobre
moral política e sabedoria382.
O império do direito define-se por atitudes. Não se trata de um catálogo de
regras ou princípios ou de uma lista de autoridades com atribuição de poderes. É a
autorreflexão e a interpretação da política em seu sentido mais amplo, em que todo
cidadão é responsável por compromissos dentro de uma comunidade de princípios e
pelo avanço do direito a partir de decisões privadas criativas. Embora se dê aos juízes
a última palavra, não é só este o melhor argumento. É a boa-fé em relação ao passado
e otimismo na construção de um futuro melhor que pode manter a comunidade unida,
aí incluídas as autoridades, a partir de uma atitude fraterna na vivência de princípios.

3.4 A moral e a indeterminação dos princípios jurídicos

A partir da concepção de comunidade de princípios e de direitos levados a


sério, fica claro que questões morais integram o discurso jurídico. O direito,
inevitavelmente pela aplicação principiológica, absorve conteúdos morais. De igual
modo, a moral desempenha um papel de aferição do direito correto na formação da
vontade política do legislador e na comunicação política que ocorre no espaço público.
Conteúdos morais, quando são traduzidos para o código jurídico, acabam por sofrer
uma radical mudança sistemática, imposta pelas formas jurídicas383. Assim, o sistema
de direitos e princípios que forma a estrutura do Estado de Direito deita raízes na
moral e na razão prática, confluindo para a composição da democracia, formando a
ordenação da linguagem jurídica filtros que impedem uma absorção direta e sem
maiores críticas dos conteúdos de moral política.

382
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 490.
383
HABERMAS, Jürgen. Factidad y Validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Editorial Trotta, 3ª ed.,
2001, p. 277.
178

A teoria de Dworkin aqui exposta tem como pressuposto uma compreensão


deôntica da validade jurídica, em que não só regras, mas também princípios e direitos
morais geram deveres jurídicos, ao serem moldados institucionalmente. Ao lado da
mera legalidade e de sua infinidade de regras, os princípios promovem a circulação de
conteúdos morais e políticos, validando e legitimando a produção do direito. A própria
legitimidade da legalidade não mais pode ser fruto de uma racionalidade autônoma,
isenta de moralidade e inerente às formas jurídicas, pois as qualidades formais desse
tipo de direito só oferecem razões legitimantes à luz de princípios de conteúdo
moral384.
Princípios e diretrizes políticas incrementam a indeterminação do direito,
mas isso se compensa com um ganho de fundamentação no processo decisório. Assim,
o direito vigente pode mostrar-se como justificado a partir de um conjunto ordenado
de princípios e, portanto, pode mostrar-se como uma encarnação mais ou menos
exemplar do direito em geral385.
Essa indeterminação do direito não excluiu uma ordem de precedência. É
certo que diretrizes políticas condicionam diretamente a elaboração de leis e normas de
conteúdo abstrato, mas estão subordinadas na aplicação, especialmente na judiciária, a
argumentos de princípio que dizem respeito a direitos. É uma decorrência do caráter
contramajoritário e universalizante dos direitos.
Por outra ótica, o direito no Estado Social desfaz completamente a ficção de
um sistema jurídico bem ordenado, o que se reflete inclusive no esmaecimento da
distinção entre direito público e direito privado. A unidade das normas jurídicas, a
partir desse paradigma, passa a ser o resultado da aplicação dos princípios, que não
está positivada em textos normativos ou legais.
O problema é que o tipo de juridicização vinculada ao Estado Social
instrumentaliza o direito, como é muito claro no direito regulatório386. Um aparato
estatal cada vez mais complexo e imperativos sistêmicos de uma economia autônoma
que carece de estabilização forçam esse tipo de adaptação do direito. Mesmo na
administração da Justiça, os direitos e os pontos de vista normativos acabam

384
Idem. Ibidem, p. 545.
385
Idem. Ibidem, p. 281.
386
Idem. Ibidem, p. 547.
179

subordinados a uma política da ordem e do bem comum, para a manutenção de


instituições estatais e os imperativos de regulação e controle dos mercados. Deixa-se
de integrar a sociedade por meio de normas e valores para que prevaleçam a economia
e o poder administrativo-burocrático, controlados pelo dinheiro e pelo poder.
No mesmo compasso, a divisão clássica dos poderes esmaece-se com a
introdução de dispositivos legais gerais com metas indeterminadas, por um lado, e com
delegação de competências de decisão, de outro, dissolvendo-se a vinculação da
Justiça e da Administração à lei de origem democrática387. A lei se apresenta apenas
como uma embalagem para legitimar os imperativos sistêmicos.
Uma característica inarredável do direito oriundo do Estado Social é o
incremento de sua indeterminação com o embaçamento das garantias típicas de Estado
de Direito, como por exemplo a legalidade. A via legitimadora do legislador
democrático mostra suas insuficiências. Por seu turno, pelo caminho da
indeterminação é possível aumentar a capacidade de fundamentação e justificação
legitimadora do direito com o recurso aos princípios jurídicos, que são capazes de
introduzir conteúdos morais no direito. O sistema jurídico de regras, especialmente as
oriundas da regulação, deve ser objeto de uma tradução, extraindo-se do sentido de seu
texto conceitos abertos para se integrarem à comunidade de princípios, permitindo-se o
estabelecimento de procedimentos argumentativos com capacidade de legitimação do
direito instrumentalizado pela regulação.

3.5 Os critérios distintivos entre princípios e regras

Assim como há vasta literatura sobre o tema princípios e regras, há uma


multiplicidade de critérios para distingui-los. A construção do tema implica uma
aproximação do direito com a moral, o que remete a uma preocupação com o conteúdo
das normas jurídicas. Daí a rediscussão dos critérios de validade das normas jurídicas,

387
Idem. Ibidem, p. 550.
180

já que, no caso dos princípios, não há como se falar apenas numa validação formal
dada a sua fluidez, bem como à de seu conjunto.
O debate sobre o tema também tem como um dos seus pontos de apoio a
distinta estrutura lógica e a sintaxe de princípios e regras, pois é a composição
sintática interna dessas últimas, com hipótese de incidência e sanção, e sua articulação
sistemática a partir de uma norma fundamental ou norma de reconhecimento que
possibilitam a certeza e o cálculo no direito.
Como não poderia deixar de ser, a diferenciação em questão tem
implicações na aplicação de regras e princípios. Os critérios de apartamento entre
princípios e regras serão agregados por suas relações com o conteúdo, a validade, a
sintaxe e a aplicação. Não se pode deixar de notar que as inter-relações entre os
critérios inevitavelmente levarão a redundâncias na sua abordagem, o que não impede
que se enfatizem as nuances diferenciadoras.
Outro ponto muito importante é que a feição bifronte expressada pela
distinção entre princípios e regras no direito é fundamental para que ele possa
funcionar como transformador no contato entre o mundo da vida e os sistemas – poder
administrativo-burocrático e economia. Essa dupla apresentação do direito vai muito
além de uma mera categorização em estudos jurídicos.

3.5.1 O conteúdo

3.5.1.1 As teorias distintivas fortes e as débeis

Robert Alexy propõe o agrupamento da distinção entre princípios e regras


em teorias fortes e débeis388. Nas primeiras, os critérios de distinção seriam
substanciais ou qualitativos; já nas segundas, os critérios seriam meramente formais ou
quantitativos.

388
ALEXY, Robert. Sistema jurídico, princípios jurídicos y razón prática. pp. 140 e seg. In: Doxa. Disponível
em http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/public/12471730982570739687891/
cuaderno5/Doxa5_07.pdf?portal=4. Acesso em 10.10.2010.
181

Nos lindes do positivismo jurídico proliferam as teorias débeis. Identificam-


se os princípios como normas importantes e gerais do ordenamento, admitindo alguns
que eles resultam de um processo de indução ou generalização a partir de
determinadas normas jurídicas. Sob essa ótica, o direito estaria fundamentalmente nas
regras reconhecidas como jurídicas numa sociedade, constituindo os princípios um
modo de expressar implicitamente o que já estaria dito nas regras389.
Nas teorias fortes existem características materiais que assinalam critérios
distintivos que impedem a integração de princípios e regras numa categoria uniforme.
A distinção funda-se em critérios qualitativos, e não quantitativos. Na teoria de
Dworkin, os princípios integram o direito por seu próprio vigore, e não por terem sido
estabelecidos por uma autoridade, uma prática social ou por pertinência lógica a um
sistema. É pouco relevante sua positivação.
O status de direito dos princípios não vem de nenhuma forma de decisão ou
de incorporação, nem mesmo da prática judicial ou do consenso, de modo que são
direito embora não estejam referidos a nenhuma fonte. Isso advém da verificação de
que os princípios jurídicos têm raízes morais, o que leva a que seu sancionamento por
procedimentos não seja importante para sua validade390.
Por seu conteúdo, os princípios são intrinsecamente jurídicos, ainda que não
tenham sido incorporados ao direito explicitamente pela Constituição, por legislação,
jurisprudência ou qualquer outra fonte formal, inclusive quando anteriormente
ninguém os tenha utilizado ou pensado como direito. A validade dos princípios não
advém de uma regra de reconhecimento391, de critérios conclusivos para a
identificação de uma norma como pertencente (ou não) ao ordenamento jurídico. Os
princípios não só permitem a justificação moral do direito como fornecem material
para crítica das práticas sociais no caminho para o atingimento de justiça e outras
virtudes afins como a equidade e o devido processo legal.

389
VIGO, Rodolfo L. Os princípios jurídicos – perspectiva jurisprudencial. Buenos Aires: Depalma, 2000, p.5.
390
Idem. Ibidem, p. 20.
391
HART, H. L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p.111 e seg.
182

3.5.1.2 A matéria

O princípio jurídico materializa conteúdos de moral política. Dworkin o


define como standard que deve ser observado, não porque favoreça ou assegure uma
situação econômica, política ou social que se considera desejável, mas porque é uma
exigência de justiça, equidade ou outra dimensão da moralidade392. As regras, por sua
vez, podem até mesmo ter conteúdos morais393, mas são sobretudo orientações
jurídicas positivadas para o comportamento.
A abertura e a fluidez inerentes aos princípios fazem com que, como
instrumentos de argumentação, eles sejam permeáveis a conteúdos de caráter político e
moral, estabelecendo deveres a partir de tais elementos. Por não terem a mesma
plasticidade dos princípios, as regras têm seu conteúdo delimitado pelo sentido dos
termos que compõem sua hipótese de incidência.

3.5.1.3 A capacidade de explicação e a de justificação

Karl Larenz394 considera que o decisivo [nos princípios] é a sua aptidão


como causa de justificação e sua cunhagem numa regulação ou em várias, ao
estabelecer que os princípios são fundamentos para a interpretação e a aplicação do
direito, deles decorrendo não só princípios como também regras. É a partir deles que
se pode dar sentido ao ordenamento jurídico e elucidar até mesmo o sentido das regras.
Os princípios têm por decorrência uma função também explicativa em relação às
regras. A partir de seu teor sintético é possível ordenar e conferir sentido ao sistema
jurídico, inclusive apontando razões de caráter moral e de justiça para o conjunto de
regras e para o direito.
Por sua vez, as regras, como proposições com hipótese de incidência e
consequência, têm sua finalidade limitada por sua forma, que se destina precipuamente
a reger comportamentos, e não a justificar o ordenamento. Enquanto os princípios têm

392
DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 72.
393
HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 278.
394
LARENZ, Karl. Derecho justo. Madri: Civitas, 1985, p. 36.
183

caráter reflexivo, as regras têm uma característica imediatamente conformadora de


condutas.
As regras têm seu sentido explicativo contido nos limites da interpretação
de seu texto, não se podendo extrapolá-las diretamente para norteá-las senão a elas
mesmas. Mesmo na interpretação sistemática, não se pode perder a perspectiva de que
a regra é uma unidade isolada do ordenamento, fazendo sentido por si só, apesar de
poder ser esclarecida pelo seu posicionamento ou pela similitude de sentido com
outras normas.

3.5.1.4 O compromisso histórico

Os princípios jurídicos remetem a um compromisso histórico que almeja


perenidade395. É o que se dá com as constituições que albergaram entre seus princípios
a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a igualdade, a democracia, o Estado de
Direito, o Estado Social, o Estado Democrático de Direito396. A incorporação desses
princípios a uma constituição significa a assunção dos conteúdos principais do direito
racional da Modernidade e sua evolução concreta como experiência, como padrões e
como pautas de moral política que extravasam os lindes da mera formalização para
atingir uma pretensão de permanência.
Por se integrarem a um sistema dinâmico397, as regras têm conteúdos e
duração contingentes, vinculados à positivação, ao seu tempo, ao seu lugar. A vigência
das regras é o que delimita sua duração e a de sua matéria. Então, nas regras, é por
intermédio de sua formalização que o seu conteúdo ingressa no direito e dele pode ser
retirado.

395
VIGO (Op. cit., p. 15).
396
ALEXY (Op. cit., p. 144).
397
Kelsen dá a seguinte noção de sistema dinâmico (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Coimbra: Armênio
Amado, 1974, p. 271): O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter
por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade
legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais
e as individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental.
184

3.5.1.5 O caráter constitutivo e o constitucional

As normas legislativas e as administrativas são predominantemente regras,


enquanto as normas constitucionais sobre o direito e a justiça são prevalentemente
princípios398, que têm caráter constitutivo de ordenamento. O conteúdo dos princípios
necessariamente remete e conforma não apenas ao seu próprio sentido, mas também de
outros princípios e regras que nele buscam embasamento. Os princípios são
referenciais e fundamentos do ordenamento.
Já as regras exaurem-se no seu conteúdo, em si próprias, não tendo força
constitutiva além de si mesmas. Se alguma força constitutiva se pode reconhecer às
regras, é apenas de validade formal com a construção de uma cadeia hierárquica de
validação. Essa força constitutiva formal é limitada, esgotando-se numa norma
fundamental399 ou numa norma de reconhecimento400, que são limites claramente
identificáveis da cadeia de validação de um ordenamento jurídico.

3. 5.1.6 A interação

Os princípios recebem seu conteúdo num processo dialético de


complementação e limitação, estabelecendo deveres prima facie num processo de
argumentação vinculado a um discurso de razão prática401. Há, nesse caso, uma
interação dos princípios para que formem sentido a partir de uma aplicação integrada
em que haverá mútuas conjugação e interferência.
As regras, por sua vez, têm seu conteúdo oriundo de um ato formal de
positivação, não lhes sendo imprescindível a mútua referência para a construção de
sentido na aplicação a um caso concreto. O caráter relacional não é uma marca
distintiva do conteúdo das regras.

398
ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mite. Turim: Einaudi, 2005, p. 148.
399
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1974, p.
263.
400
HART. H. L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 111;
401
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Barcelona: Gediz, 1997, p. 170.
185

3.5.1.8 A linguagem

Os princípios são vazados em linguagem diretiva/prescritiva, próxima da


linguagem natural, geralmente com conteúdo indeterminado e vago402. A abertura e a
indeterminação textual são-lhes inerentes para que possam formar uma dimensão
reflexiva. A referência dos princípios a outros princípios e às regras às quais dão
fundamentação lhes confere também um caráter metalinguístico.
Já as regras jurídicas se valem de linguagem descritiva/prescritiva na qual
se apresentam ordinariamente termos técnicos e que está próxima de uma linguagem
artificial, constituída pela dogmática jurídica e pelo saber tecnológico-científico. A
expressão do direito em regras visa a um fechamento linguístico com uma pretensa
simplificação do processo de aplicação do direito que, na subsunção, careceria
somente da presença de uma identidade semântica do fato com a hipótese de
incidência legal.

3.5.2 A identificação

3.5.2.1 A origem

As regras podem ser submetidas ao que Dworkin chama de teste de origem


ou de pedigree403, com especificação da maneira como passaram a integrar o
ordenamento jurídico. As regras ingressam no sistema jurídico por meio de uma cadeia
de validação em que as normas superiores garantem a pertinência ao ordenamento das

402
FIGUEROA, Alfonso García. Principios y positivismo jurídico. Madri: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 1998, p. 137.
403
DWORKIN, Ronald M. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1999, 95.
186

inferiores, que encontra seu ápice na norma fundamental404 ou na norma de


reconhecimento405.
Os princípios, por estarem difusos na sua própria constelação, não podem
ser especificamente determinados e identificados num único ato e em vários atos
delimitados. Resultam de um intrincado conjunto de considerações jurídicas, políticas
e morais, em que a validade de um princípio deita raízes no próprio conjunto de
princípios. A validade destes não pode ser deduzida formalmente, estando sobretudo
no próprio conteúdo do conjunto de princípios que remetem a considerações de moral
política. Os princípios, por integrarem o direito necessariamente por seu conteúdo, e
não por um ato de autoridade, tornam desnecessária uma busca de fundamento de
validade formal406.

3.5.2.2 A validade

A validade das regras advém de outras regras, como a de reconhecimento


ou mesmo dos princípios. Pode-se dizer que as regras derivam sua validade formal de
outras regras e a sua validade material dos princípios jurídicos.
Em relação aos princípios, é até mesmo inadequado falar-se em validade
formal, eis que resultam do seu próprio conjunto e de seu conteúdo, o que é mais
consentâneo com a noção de integração e validade material. Não é casual que o eixo
central da teoria de Dworkin refira-se à integridade407 como pertinência e coerência do
conjunto de princípios.

404
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Batista Machado. 3ª ed. Coimbra: Armênio Amado — Editor, sucessor,
1974, p. 267 e seg.
405
HART, H. L. A.. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 111 e seg.
406
Uma noção sobre a validade formal pode ser extraída deste trecho (KELSEN, op. cit., p. 267): O fundamento
de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma. Uma norma que representa o
fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto
com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior.
407
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2007, p. 275.
187

3.5.2.3 A especificação

Com relação às regras é possível estabelecer a enumeração de todas elas


com a representação formular de cada uma. Elaborar o conjunto de regras como finito
é viável, ao menos em teoria. Contudo, como os princípios são razões e argumentos
com conteúdos morais e políticos, não há como esgotá-los, até mesmo porque não há
um ato de instituição ou validação que permita delimitar a extensão do seu conjunto. A
referência a outros contextos, que não apenas o jurídico, torna o sistema de princípios
não só aberto em sua dinamicidade, mas também na variabilidade de seu conteúdo.

3.5.2.4 A derrogação

As regras podem ser revogadas por outras, seja pelo critério da superior, da
posterior ou mesmo da específica. Num sistema de regras é possível estabelecer
critérios de pertinência ao sistema, o que permite verificar a inclusão ou a exclusão de
uma regra.
Os princípios, no máximo, desgastam-se. Eles são sobretudo razões e
argumentos que retiram a sua validação do seu potencial de convencimento e da sua
força de gravidade. De mais a mais, um princípio que, em determinado contexto
acabou por excluído, pode ressurgir como decisivo em outro.

3.1.2.5 A localização

Enquanto as regras podem ser classificadas hierarquicamente, em razão da


autoridade que as editou ou de sua validação, os princípios formam uma constelação
em que, no máximo, pode-se identificar o peso, como por exemplo o da igualdade, o
da liberdade e o da democracia, mas é impossível estabelecer entre eles uma relação
hierárquica definitiva, já que coexistem num mesmo plano. Não se pode deixar de
188

marcar que, em razão de sua capacidade de justificação e explicação, os princípios


estão num plano mais elevado que o das normas.
Ainda em relação aos princípios é possível caracterizá-los como concretos e
abstratos, conforme sua maior proximidade à solução de uma controvérsia. O direito à
livre expressão é um princípio abstrato. Já o princípio de que ninguém pode ser
privado da sua livre expressão, desde que não comprometa a vida e a integridade física
de outras pessoas, é um princípio concreto408.

3.5.2.6 A demonstração

As regras têm como origem um texto promulgado e positivado, podendo a


partir daí terem uma origem verificável e demonstrável. Os princípios, no entanto, nem
sempre podem ser objetos de demonstração determinada, sendo necessário, para aferir
sua existência, referência a outros princípios e a diversos pontos de apoio
institucionais tais como os precedentes ou mesmo textos de doutrina. Isso advém da
sua natureza de razões e argumentos.

3.5.2.7 A fundamentação

Os princípios fundamentam materialmente as regras, conferindo-lhes


sentido não só jurídico, mas também político e moral. O conjunto de princípios é a
referência de fundamentação para o sistema de regras.
De outro lado, ao se referirem ao conjunto de princípios e a princípios em
particular, as regras aumentam a dimensão de peso destes últimos, por lhes conferirem
alicerces institucionais com referências de positivação409.

408
DWORKIN. Los Derechos en Serio. Trad. Marta Gustavino. Madri: Ariel, 1999, p. 162.
409
ESSER, Josef. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Barcelona: Bosch,
1961, p. 169.
189

3.5.3 A sintaxe

3.5.3.1 A estrutura lógica

As regras são dotadas de hipótese de incidência e consequência jurídica,


isto é, têm caráter hipotético-condicional, constituindo proposições jurídicas formais.
A formalização não é só das regras, mas também do sistema que as organiza.
Por sua vez, os princípios são pensamentos supostamente teleológico-
diretivos, ou mais corretamente critérios deôntico-diretivos410 411
com dimensão de
peso. Nos princípios, o que sobressai é sua dimensão material, em que o seu conteúdo
é que lhes confere densidade argumentativa e fundamentadora. A fluidez e a abertura
dos princípios colocam em segundo plano sua dimensão formal, possibilitando, pela
plasticidade de substância, a integração com outros princípios não só de caráter
jurídico, mas de moral política.

3.5.3.2 A colisão

Havendo colisão entre regras, uma delas deve ser considerada inválida ou
se deve criar uma exceção. É uma dimensão formal que decorre do caráter de tudo ou
nada típico da aplicação das regras.
No caso dos princípios, ainda que apontem em direções opostas, coexistem
e devem ser considerados na sua dimensão de peso na compatibilização com outros
princípios.

410
LARENZ, Karl. Derecho justo. Madri: Civitas, 1985, p. 32 e seg. e Idem. Metodología de la ciencia del
derecho. Barcelona: Ariel, 1980, pp. 418 e 465.
411
Diante da introdução de uma terceira categoria por Dworkin, ao lado dos princípios e das regras, a de
diretrizes políticas, o caráter teleológico não tem sentido para os princípios. A distinção está explicitada no item
3.2.2.
190

3.5.3.3 A sanção

Em geral, as regras são dotadas de dois elementos: hipótese de incidência e


sanção. Por sua vez, os princípios, ainda que tenham caráter deontológico, não
dispõem, como elemento de sua composição, uma consequência coativa. Só por meio
da densificação dos princípios em regras é que estes assumem caráter coativo. A
coercitividade dos princípios é, portanto, indireta, pelo seu caráter precípuo de
argumentos e razões.

3.5.3.4 A completude do ordenamento

O reconhecimento de uma constelação de princípios para reger uma


comunidade muito incrementa a capacidade de resposta do ordenamento jurídico, não
cabendo falar em lacunas aparentes ou efetivas. Pela aplicação coordenada do conjunto
de princípios é possível dar uma resposta correta para qualquer caso, mediante a
derivação de conteúdos. De igual modo, intrincados problemas de conflito aparente de
normas podem ser solucionados de maneira singela com referência ao conjunto de
princípios.
Já no que diz respeito ao sistema de regras, sua completude só pode resultar
de seu caráter dinâmico, em que se admite continuamente a mutabilidade das regras e
a integração de novas regras, o que possibilita a edição de uma norma concreta para
reger uma nova hipótese não originalmente prevista, mediante a positivação de uma
decisão em área em que se confere discrição à autoridade para escolher uma solução
por critérios extrajurídicos. Nesse caso, cuidar-se-á apenas de validação formal da
nova regra, e não de determinação de conteúdo.
191

3.5.4 A aplicação

3.5.4.1 A determinação

As regras utilizam uma linguagem determinada, cerrada412 ou unívoca413


que permite uma aplicação no tudo ou nada (all-or-nothing)414 ou disjuntiva. Uma vez
configurados os pressupostos previstos pela hipótese de incidência ela se aplica; ou, se
não presentes, não se aplica. As regras são, assim, preliminarmente decisivas e
abarcantes415.
Os princípios, por sua inerente abertura, limitam-se a apontar razões numa
certa direção, carecendo da conjugação de outros princípios e da descrição completa
da situação fática a ser decidida para resultar numa solução. Eles são, portanto,
primariamente complementares e parciais416. Daí ser mais comum identificar
princípios na solução dos casos difíceis417.

3.5.4.2 Os tipos de razões

Alexy considera que princípios são argumentos prima facie, e regras são, se
não houver o estabelecimento de alguma exceção, razões definitivas418. Os princípios
devem ser colocados lado a lado para então surgir a possibilidade de edição de uma
solução para a controvérsia. A regra determina peremptoriamente a solução do caso
quando aplicável sua hipótese de incidência.

412
ATIENZA, Manuel & MANERO, Juan Ruiz. Sobre principio y reglas. p. 108. In: Doxa. Disponível em
http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/public/12482196462352624198846/cuaderno10/
doxa10_04.pdf?portal=4. Acesso em 10.10.2010.
413
RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 149.
414
DWORKIN, Ronald M. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1999, p. 77.
415
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo Malheiros, 2004, p.68.
416
Idem. Ibidem.
417
RICOEUR (Op. cit., p. 149).
418
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros,
2008, p. 106.
192

3.5.4.3 A carga argumentativa

A utilização dos princípios impõe uma grande carga argumentativa,


exigindo elaboração de justificação e fundamentação complexa com a exposição de
uma convergência principiológica e uma descrição completa do caso a ser
solucionado. Daí a expressão casos difíceis.
Já as regras possibilitam uma descarga argumentativa com a delimitação de
sentidos proposta pela hipótese de incidência que permite uma aplicação por
subsunção, o que desonera tanto a discussão sobre o direito aplicável como a sobre os
fatos pertinentes.

3.5.4.4 O cumprimento

Os princípios podem ser considerados mandados de otimização, eis que


devem ser aplicados na maior medida possível, de acordo com as contingências fáticas
e jurídicas. Eles comportam graus de cumprimento. As regras, por sua vez, são
mandados definitivos, cabendo o seu cumprimento pleno com a identificação e pela
realização do que está exigido na sua hipótese de incidência419.

3.5.4.5 As funções

Bobbio420 expõe quatro funções para os princípios: a) interpretativa, ao


aportar o esclarecimento do sentido das regras; b) diretiva ou programática, orientando
a elaboração de outros princípios e regras; c) integradora, ao permitir soluções de
casos para os quais não se tem regra aplicável; d) limitativa, colocando limites para o
exercício de competência.
As regras podem ter como função: a) normar condutas (regras primárias); b)
superar o caráter estático do direito, concedendo poderes e estabelecendo

419
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Barcelona: Gediz, 1997, p. 162.
420
BOBBIO, Norberto. Principi generali di diritto. In: Novissimo digesto italiano, v. XIII, 1966, p. 865.
193

procedimentos para adaptação a situações novas (regras secundárias de câmbio); c)


superar o problema da ineficiência, ao determinar competências de julgamento para a
aplicação das normas primárias (regras secundárias de adjudicação); d) superar a
incerteza ao estabelecer critérios para identificar a pertinência de uma regra ou não ao
sistema (regras de reconhecimento)421.

3.6 A regulação entre princípios, diretrizes políticas e regras

Com o Estado Social e a democracia de massas, os conflitos sociais, para o


seu amortecimento, exigiram intervenções e prestações materiais compensatórias do
Estado, que acumulou tarefas de correção de externalidades sensíveis, como meio
ambiente, políticas sanitárias e a absorção dos efeitos disfuncionais do mercado. Isso
se fez acompanhado de um contínuo aumento da complexidade dos sistemas que
impuseram ao direito a absorção de uma vasta tarefa de normalização que, por um
lado, conferia à Administração amplos poderes para a persecução de finalidades de
interesse público e, por outro, levava ao enquadramento de uma ampla casuística de
políticas públicas, como a assistência e a previdência social, numa estrutura de se-
então, hipotético-condicional, descaracterizadora de relações cotidianas
individualizadas.
Era o direito instrumentalizado e hipertrofiado com programas finalísticos e
condicionais. O resultado foi a ampliação de competências indeterminadas para a
Administração e também, nesse mesmo âmbito, a produção infindável de regras que
submetiam os administrados a uma violenta abstração e a imperativos burocráticos. O
resultado foi o esfacelamento da possibilidade efetiva de se constituir um bem
ordenado sistema jurídico de regras. Esse objetivo de unidade, bem como o resgate de
legitimação da atividade burocrática, remete à aplicação principiológica.
Não se pode assumir a ingenuidade de que o direito prescindirá das regras e
se constituirá somente de princípios. As regras desempenham uma função

421
Funções de acordo com a classificação proposta por Hart (HART, H. L. A. O conceito de direito. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 103).
194

extremamente relevante para o direito. Permitem fácil comunicação de mensagens


com os sistemas econômico e político-burocrático. O fato de as regras serem dotadas
de sanção afeta diretamente os meios que regem esses sistemas. A coercibilidade do
direito pode ser lida imediatamente por eles como menos dinheiro e menos poder.
Não só a coatividade inerente a regras é algo que lhes torna mais
perceptíveis aos sistemas. Faz parte dos rudimentos da dogmática jurídica a aplicação
de leis, ou regras, por subsunção, com clara inspiração no silogismo lógico. O
movimento neopositivista do início do século XX buscou revisar os pressupostos
anteriores do conhecimento jurídico para alcançar o máximo de exatidão nos métodos
científicos422, a fim de conhecer e dominar os fatos complexos de seu tempo. Para isso,
as preocupações empíricas foram inseridas em sistemas lógicos e linguísticos de
inspiração matemática. O resultado na doutrina jurídica foi a construção de grandes
teorias que geraram sistemas formais de regras, como os de Kelsen e Hart. Em suma, a
estrutura hipotético-condicional das regras, sua formalização e a do ordenamento
inseriram o direito num contexto sintático e de cálculo lógico que o tornava altamente
operativo e o fazia comungar dos pressupostos científicos que embasavam a
constituição tecnológica dos sistemas.
Nessa mesma linha, formou-se no direito uma concepção de sistema
dinâmico423 como produtor e organizador de normas de conteúdo variável que
deixavam o direito altamente contingente para absorver as demandas sistêmicas. Era
um ordenamento com forma, tendo a sua matéria determinada externamente e com
plasticidade – inclusive temporal – para aceitar novos e mutáveis significados
normativos positivados. A crescente complexidade da sociedade passou a ser
absorvida pelo direito com um ordenamento formal e aberto.
Com a abertura dos sistemas dinâmicos, ao lado da lapidada linguagem
técnico-conceitual construída no século XIX pela jurisprudência dos conceitos424 e

422
COING, Helmut. Elementos fundamentais de filosofia do direito. Trad. Elisete Antoniuk. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p.90.
423
Kelsen dá a seguinte noção de sistema dinâmico (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Coimbra: Armênio
Amado, 1974, p. 271): O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter
por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade
legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais
e as individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental.
424
LARENZ, Karl. Metodología de la ciencia del derecho. Barcelona: Ariel, 1980, pp. 39 e seg.
195

outros movimentos semelhantes na ciência do direito, que já adentrava nos códigos,


como é exemplo o B.G.B. (Código Civil Alemão), estava aberta a porta para que
ingressasse no direito, especialmente por atos administrativos normativos, a linguagem
técnico-científica dos sistemas. As regras jurídicas absorveram linguagens técnicas,
aumentando o seu grau de operatividade e comunicabilidade com os sistemas.
Outro aspecto relevante é que as regras jurídicas passaram a ser organizadas
sistematicamente de forma escalonada425, em clara correspondência à ordenação
hierárquica do sistema político-burocrático. Estavam, assim, banidos os resquícios da
dispersão e do pluricentralismo de fontes oriundos da tradição medieval. De igual
modo, atendia-se plenamente às necessidades funcionais e operativas do sistema
político-burocrático.
Nessa ordem de ideias, a coercibilidade, o cálculo, a dinamicidade, a
absorção de linguagens artificiais, a hierarquização das regras e de seus sistemas
tornam-nas facilmente perceptíveis e inteligíveis pelos sistemas econômico e político-
burocrático, conferindo funcionalidade e operatividade ao direito como meio de
estruturação da sociedade. O drama é que são essas mesmas características das regras
que levam à hipertrofia do direito, que permitem sua instrumentalização, que
violentam modos de vida cotidianos e indiferenciados dos indivíduos e geram um
ordenamento jurídico esfacelado, em razão da própria dispersão do poder
administrativo-burocrático, como são exemplos claros as agências reguladoras. Vê-se
comprometida a própria pretensão de certeza, segurança, estabilidade e unidade que o
direito deveria conferir aos sistemas econômico e administrativo-burocrático.
Há um processo deletério que acompanha o direito como sistema de regras
instrumentalizado pelos sistemas econômico e político-burocrático. Algumas
características dos princípios podem permitir frear e equilibrar esse processo de
degeneração que afeta profundamente as instituições do Estado Democrático de
Direito.
O primeiro aspecto dos princípios, que é tão caro para os sistemas como
para o Estado Democrático de Direito, está na unidade do direito. Um legado do
Estado Social e de sua dinâmica com os sistemas econômico e político-burocrático foi

425
Idem. Ibidem, p. 309 e seg.
196

o fracionamento do direito em diversas unidades burocráticas, que exercem


continuamente seu poder normativo, muitas vezes alheias às demandas do restante da
sociedade, visando apenas à resolução de imperativos próprios. É uma incessante
produção de regras que gera tal grau de desorientação que os próprios sistemas
demandam outras para solucionar inconsistências da própria atividade normativa.
A reflexão, a argumentação e a universalização inerentes à comunidade de
princípios são uma via alternativa para a perda de sentido decorrente desse
insulamento e dessa hipertrofia regulamentar. As decisões oriundas de um debate
sobre princípios e direitos exigem fundamentação e legitimação com apoio em
discussões de moral política que remetem a uma sociedade em que os indivíduos
consideram-se merecedores de igual respeito e consideração. A solução dos problemas
não se articula a partir de papéis reduzidos de clientes e consumidores de um
setor/mercado. O papel é o de cidadão: universalizante. Esse deslocamento de ótica é
uma barreira à autorreferência da burocracia e permite também uma unificação do
discurso jurídico, tendo como espinha dorsal a preocupação com direitos e princípios.
A exigência de maturação de um debate sobre uma solução pautada em parâmetros
abertos e universais e a interrupção do processo circular de produção normativa para a
resolução das próprias inconsistências do insulamento tem potencial de rendimento
para inibir os excessos da atividade normatizadora.
De outro lado, uma comunidade aberta de princípios válidos por próprio
vigore viabiliza outra dimensão temporal para a sociedade complexa. Os sistemas e
seu apoio científico-tecnológico apresentam contínuas demandas de normatização para
o direito. Foi esse fenômeno que gerou a própria regulação e sua inerente capacidade
normativa de conjuntura para solucionar problemas de uma sociedade de especialistas.
A indeterminação principiológica, em que uma constelação de princípios é concebida
plasticamente com possibilidades de derivações e desgastes, é capaz de conduzir
soluções altamente sofisticadas e coerentes. Karl Larenz426 fornece dois exemplos
lapidares dessa capacidade de resolução dos princípios diante de uma nova
conformação social:
[...] As primeiras regulações, em que estava subjacente o princípio da
responsabilidade pelo risco, criaram-se antes que o princípio fora reconhecido,

426
LARENZ, Karl. Derecho justo. Madri: Civitas, 1985, p. 36.
197

quando se falava de uma presunção de culpa ou se renunciava a encontrar uma


fundamentação. Em contraste, o princípio da divisão dos poderes foi um postulado
político antes que se positivasse no direito constitucional, ainda que Montesquieu
pensasse, erroneamente, que estivesse realizado na Constituição inglesa. (g.n.)

Os exemplos falam por si sós. A divisão de poderes, de algum modo, ainda


é uma das bases do Estado Democrático de Direito. O princípio da responsabilidade
por risco, por sua vez, foi o resultado de uma evolução jurisprudencial que buscava
intuitivamente novos critérios para a distribuição dos danos na responsabilidade civil,
em razão da complexificação da atividade econômica que dispersava
responsabilidades ao longo da cadeia de produção e consumo, tornando impossível a
individualização da culpa. O mais interessante, nesses casos, é que esses princípios
basilares do direito contemporâneo não foram frutos de decisões de gabinetes
burocráticos. Ambos foram resultados, por processos distintos, de maturação e
evolução de discussões de moral política. A conclusão é muito simples: o conteúdo de
moral política dos princípios confere uma dinamicidade ao direito que permite a
derivação de novas decisões adaptadas à sociedade complexa e com um maior grau de
legitimidade pelo processo de argumentação que lhes é inerente.
Isso permite vislumbrar outras características dos princípios: o seu caráter
reflexivo e metalinguístico. O plano constituído pela comunidade de princípios por sua
complementaridade, sua autolimitação e sua multirreferência com uma crítica do
direito produzido e vivido pela sociedade (em relação a princípios ou a regras)
possibilita reordenações sociais em busca da sedimentação de padrões de justiça. Eles
são, dessa forma, uma metalinguagem sobre o direito com alta capacidade
legitimatória, principalmente pela sua forte aproximação com a linguagem natural, em
que também circulam discursos de moral política.
Essa dimensão reflexiva e metalinguística da comunidade de princípios
amplia a dimensão temporal dos princípios a um tal ponto, que ao seu sentido de
dinamicidade agrega-se o de perenidade. A abertura crítica de sentido dos princípios
permite a recuperação de um passado indeterminado da sociedade para o resgate de
tradições caras de moral política, numa visão otimista de presente em que se busca um
futuro melhor. Os princípios são uma janela permanente em que se podem vislumbrar
tanto padrões de eticidade arraigados como a infinita capacidade calculadora da
198

economia com alto poder de planejamento temporal da produção, selecionando


argumentativamente, por seu caráter deôntico, quais cenários devem permanecer e
quais devem ser excluídos.
Esse mesmo caráter metalinguístico e reflexivo impede que escolhas e
mudanças sejam arbitrárias. Elas se acompanham de explicação e fundamentação
sobre as decisões a serem tomadas em sociedade. A alteração do direito a partir dos
princípios busca gerar convencimento e, por isso, agregação.
Por último, a par da tensão entre princípios e regras no direito, existem as
diretrizes políticas. É um legado do Estado Social a ampliação de programas
teleológicos a serem executados pelo Estado com vistas à implementação de políticas
de interesse público e utilitaristas que dizem respeito a aspectos econômicos, políticos
e sociais. Assim, ao lado dos princípios com o seu conteúdo de moral política atinentes
a direitos de indivíduos e grupos, o direito absorveu discursos finalístico-instrumentais
altamente imprecisos e com alta variabilidade, tendo em vista que sua determinação se
faz, em boa parte, por decisões de preferências427 da comunidade política, ou mesmo
das várias autoridades que a representam no Executivo e no Legislativo, como na
opção entre investir recursos nas forças armadas ou no controle externo de contas.
Os princípios jurídicos, por sua intrínseca conexão com os direitos, seu
inerente caráter deôntico e sua complementaridade, seguem uma linha condutora de
sentido. Em contraste, a permeabilidade por escolhas das diretrizes políticas as torna
elevadamente instáveis. Entretanto, a aproximação entre os dois numa mesma cadeia
procedimental de argumentação pode induzir nas diretrizes políticas uma estabilização
oriunda do sentido de justiça da comunidade de princípios e de sua inerente coerência.

427
É o que se depreende da distinção entre questões sensíveis à escolha e questões insensíveis à escolha de
Dworkin (A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 281): No entanto é
essencial notar uma distinção importante entre dois tipos de classes de decisões políticas: as que envolvem principalmente o que
chamarei de questões sensíveis à escolha e as que envolvem principalmente as questões insensíveis à escolha. As questões sensíveis
à escolha são aquelas cuja solução correta, por questão de justiça, depende essencialmente do caráter e da distribuição de
preferências dentro da comunidade política. A decisão de usar fundos disponíveis para construir um novo centro esportivo ou um
sistema rodoviário é, tipicamente, sensível à escolha. Embora possam surgir diversas questões nessa decisão, das questões de
justiça distributiva às de políticas adequadas para o meio ambiente, as informações sobre quantos cidadãos querem ou estão
dispostos a usar ou serão direta ou indiretamente beneficiados com cada uma dessas obras rivais são nitidamente relevantes e
podem muito bem ser decisivas. A decisão de matar assassinos condenados ou proibir a discriminação racial no trabalho, por
outro lado, é insensível à escolha. Creio que a decisão correta nessas questões não depende, de maneira substancial, de quantas
pessoas querem ou aprovam a pena capital ou acham injusta a discriminação racial. Acredito que o argumento contra a pena
capital é tão forte na comunidade em que a maioria dos membros é a favor dela quanto na comunidade em que o povo se revolte
contra ela.
199

O direito tem uma feição bifronte, em que se apresenta como instrumento


conectado aos sistemas econômico e político-burocrático e como instituição vinculada
ao mundo da vida, no qual circulam discursos ético-morais. Para realizar a tradução e a
articulação dessas esferas, o direito se vale de um tripé constituído por um sistema de
regras que favorecem um conjunto de diretrizes políticas e respeitam uma comunidade
de princípios. A atividade regulatória tem-se desenvolvido sobretudo no eixo das
regras para satisfação de demandas sistêmicas oriundas de uma sociedade de
especialistas.
Ainda no que diz respeito ao eixo das regras, a comunicação promovida
pelo direito torna-se audível pelos sistemas em razão de sua coercibilidade, de sua
calculabilidade, de sua dinamicidade, da artificialidade de sua linguagem e de sua
hierarquização. Essas características têm elevado poder deletério em relação ao mundo
da vida, por sua instrumentalização. Daí a importância dos princípios dotados de
conteúdo de moral política e indutores de agregação, de reflexividade, de
universalidade, de argumentação, de coerência, de perenidade, de complementaridade,
constituindo uma metalinguagem com elevado poder de legitimação. Por último, no
eixo das diretrizes políticas de caráter teleológico e utilitário, formam-se ordens de
preferências para o atingimento de finalidades coletivas por decisões da comunidade
ou, mais especificamente, de suas autoridades, o que leva a uma grande instabilidade e
variabilidade na seleção desses objetivos, que pode ser amenizada com a vinculação
aos princípios num processo argumentativo em que se procure justiça e coerência.
200

4.º Capítulo – Os princípios e a crítica da regulação aplicados a casos

Até que ponto, hoje, pode-se falar em liberdade? Está aí uma pergunta
inquietante para um mundo crescentemente mais regulado428 numa sociedade
fracionada e inflada com discursos de especialistas. A conformação industrial da
sociedade inibe possibilidades emancipatórias num mundo progressivamente
burocratizado429. A regulação não traz apenas problemas teóricos, mas questões
práticas, de conteúdo moral, profundamente importantes para o compreender na
sociedade contemporânea. Esse tema é talvez um dos eixos centrais pelos quais se
estrutura a tensão entre teoria e prática. Nas palavras de Gadamer430:
Estou convencido de que a tensão entre teoria e prática tampouco vai desaparecer
num mundo de regulações, planificações e burocratização progressiva, de modo que
creio que vale a pena refletir sobre como a vida vai buscando suas próprias vias
entre a regulação e os espaços de liberdades que escapam a ela.

A questão aqui debatida em torno da regulação remete à ciência e sua


apropriação por aparatos técnico-burocráticos para formar discursos de verdade que
colonizam o mundo da vida com a inserção de proposições que, pela sua origem
teórica, pretendem formar verificações com validade de verdade quase-naturais, ou
seja, de difícil contestação, por se tratar de supostas evidências de caráter científico.
As ciências, especialmente as sociais, são construções humanas, assim como a técnica,
estando aí presentes interesses que vão além de uma mera contemplação teórica.
Nos pressupostos teóricos do presente trabalho, houve grande preocupação
em evidenciar os perigos e os riscos da cientificização das vivências sociais e, por isso,
recusou-se uma visão de ciência, especialmente de ciência pura com objeto e métodos
próprios, para guiar a reflexão jurídica. Afirmou-se com apoio na hermenêutica
filosófica que o pensar é necessariamente aberto a um mundo configurado
linguisticamente, e que método nada mais representa que uma abertura de um

428
GADAMER, Hans-Georg. Acotaciones hermeneuticas. Madri: Editorial Trotta, 2002, p. 18.
429
Idem. Ibidem, pp. 63/4.
430
Idem. Ibidem, p. 13.
201

caminho na floresta da experiência431, uma trilha na vivência construída com vistas a


um norte.
Nessa linha, assumiu-se que o direito como saber está muito além dos
estreitos limites da ciência e da técnica. Suas reflexões apoiam-se também em virtudes
intelectuais como a prudência e a filosofia, que remetem a reflexões sobre ética, moral,
política e à relação do direito com outras disciplinas afins.
Só que não se trata de um mero excurso teórico nesses âmbitos. Cuida-se
especialmente da práxis, das coisas práticas, dos comportamentos humanos e das
organizações às quais pertencem a política e a legislação em que o homem não se
conduz apenas pelos instintos, mas pela razão prudencial (phronesis) que equilibra a
tarefa interminável do querer saber com a finitude inerente ao ser humano432.
Não haveria, assim, como abordar o tema apenas a partir de uma exposição
conceitual e sistemática. Não foi esse o objetivo a se atingir aqui. Toda a exposição
teórica empreendida visou a expor uma questão de razão prática central para a
sociedade contemporânea, em que o volume e o potencial de coerção da regulação
oferecem graves riscos à liberdade e à autodeterminação. Os imperativos sistêmicos da
economia e político-burocráticos, com ofertas a uma cidadania clientelizada e
reduzida, comprimem os espaços de autonomia433 em que os cidadãos podem exercer
mutuamente juízos de universalização dada a sua integração à mesma comunidade de
princípios.
Só com a abordagem de casos concretos, em que se evidenciassem questões
e problemas atinentes a comportamentos e organizações que se formam a partir deles,
haveria sentido completo para o trabalho. O estreitamento da vivência da liberdade e
seus riscos a partir da regulação é algo que pode ser verificado em precedentes
judiciais e na positivação de regras por entes reguladores. Por isso, o fechamento da
reflexão se ordena a partir de casos.
Em que pese a volumosa produção normativa pelos entes reguladores e
também no âmbito do Executivo, não são muitos os precedentes que discutem

431
Idem. Ibidem.
432
Idem. Elogio de la teoria. Barcelona: Península, 2000, p. 63.
433
Autonomia que pode ser compreendida positivamente a partir da lei fundamental da razão pura prática, em
Kant: age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de
uma legislação universal (KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 42)
202

diretamente a atividade de produção de regras nesses âmbitos. O universo de seleção


dos casos e decisões é muito reduzido, levando em conta a expressão e a importância
de tal fenômeno na sociedade complexa.
O primeiro caso escolhido analisou liberdades constitucionais, como a de
expressão e a de exercício profissional em face do controle de acesso ao jornalismo e
da regulamentação da profissão. A grande relevância do caso está em ter obstado
peremptoriamente a possibilidade de regramento dessa atividade, estabelecendo-a
como um espaço de emancipação.
O segundo trata de tarifas interurbanas no mesmo município. Nesse
precedente, com alusões a imperativos técnicos, econômicos e à autonomia das
agências, o Superior Tribunal de Justiça, impressionado pelos discursos coercivos de
verdade que tocam esses temas, recusou ao Judiciário qualquer possibilidade de
análise do tema. O caso é um bom exemplo dos inconvenientes do enfrentamento do
tema sem um instrumental que insere no direito como debate norteador a comunidade
de princípios e um feixe coerente de diretrizes políticas.
O terceiro diz respeito à qualificação jurídica do poder normativo dos entes
reguladores como poder de polícia. Sua seleção justifica-se para evidenciar a
dificuldade de tratamento, pelo direito, de problemas da sociedade complexa nos
marcos do Estado Democrático de Direito, em que temas específicos, como os da
economia, têm de ser confrontados com direitos.
O último tem como objeto a regulação de um tema específico da medicina:
a ortotanásia, ou seja, a normatização dos cuidados médicos para respeitar a morte em
seu tempo sem métodos extraordinários e desproporcionais. O caso traz à luz o
enfrentamento pelo direito de questões técnicas e especializadas que podem ser
resolvidas a contento, no âmbito da própria regulação, sob a ótica de fundamentação
dos princípios.
203

4.1 O diploma de jornalismo e a proibição da regulação da profissão

O Ministério Público Federal propôs ação civil pública para arguir a


inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 972/69, especialmente de seu art. 4º, V,
diante da Carta de 1988. O intuito era questionar a constitucionalidade da exigência de
diploma de curso superior de jornalismo registrado no Ministério da Educação para o
exercício da profissão de jornalista.
O Ministro Gilmar Mendes, relator do caso, seguiu duas vias de análise:
uma em face da Constituição de 1988, especificamente em relação à liberdade de
profissão, de expressão e de informação e outra atinente ao art. 13 da Convenção
Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica. A primeira seria
uma continuidade de jurisprudência da Representação n.º 930/DF, cujo relator para o
acórdão foi o Ministro Rodrigues Alckmin, e a segunda teria entendimento
consolidado no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos.
Algo a ser observado é que, se entendida como constitucional a exigência
em questão e o decreto-lei referido, vários profissionais estariam sujeitos a uma multa
prevista por tal instrumento normativo e poderiam ainda estar cometendo a
contravenção penal prevista no art. 47 do Decreto-Lei n.º 3.688/41. O Ministério do
Trabalho considerou que o Decreto-Lei n.º 972/69 seria constitucional, por não ser a
liberdade profissional absoluta, estando remetida à legislação a definição das
qualificações indispensáveis ao exercício de qualquer ofício.
Retomando a primeira linha a ser desenvolvida, o caso leva à análise do
âmbito de proteção da liberdade de profissão, art. 5º, XIII, da Constituição Federal,
bem como das restrições e conformações legais permitidas. Segundo o relator,
Ministro Gilmar Mendes, o âmbito de proteção configura pressuposto primário para o
desenvolvimento de qualquer direito fundamental434, com identificação do objeto da

434
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Recurso Extraordinário n.º 511.961. DJ n.º 213 de
13.11.2009. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24
%2ESCLA%2E+E+511961%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EACMS%2E+ADJ2+511961%2EACMS%2
E%29&base=baseAcordaos. Acesso em fevereiro de 2011. Voto do Ministro Gilmar Mendes, p.24.
204

proteção e contra quais tipos de agressão se outorga a proteção, não se coadunando


com tal âmbito qualquer limitação ou restrição.
O âmbito de proteção seria o núcleo do direito fundamental, cuja definição
poderia ser obtida a partir da análise da norma constitucional garantidora de direitos,
levando em conta: a) a identificação dos bens jurídicos protegidos e a amplitude dessa
proteção (âmbito de proteção da norma); b) a verificação das possíveis restrições
contempladas, expressamente, na Constituição (expressa restrição constitucional) e a
identificação das reservas legais de índole restritiva435.
Sobre a liberdade de profissão, a Constituição, no art. 5º, XIII, dispõe que
“é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as
qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Ao remeter à lei a definição das
qualificações profissionais, tal inciso estipulou uma reserva legal qualificada.
Nessa linha, uma norma que abre espaço para reserva legal conteria a um só
tempo: a) uma garantia com determinado âmbito de proteção e b) uma autorização de
restrição, conferindo competências ao legislador para determinar limites ao âmbito de
proteção constitucionalmente estabelecido. A autorização de restrição teria de se
submeter à análise de razoabilidade e proporcionalidade, respeitando o núcleo
essencial do direito fundamental.
Assim, as restrições legais são sempre limitadas436, cabendo-se falar em
limite dos limites, ou, em outras palavras, das balizas das restrições legais que
decorreriam da própria Constituição, referindo-se à proteção de um núcleo essencial
do direito fundamental e, ainda, à clareza, determinação, generalidade e
proporcionalidade das restrições legais437. É postulado imanente do texto
constitucional que haja a proteção do núcleo essencial do direito fundamental diante de
restrições inapropriadas e desproporcionais.
Dessa forma, o correto seria falar em reserva legal proporcional, cabendo
analisar a legitimidade dos meios e dos fins estabelecidos pelo legislador, assim como
da adequação de tais para a consecução dos objetivos a alcançar e da necessidade de
utilização dos meios. Na verificação de adequação, nota-se a aptidão das medidas para

435
Idem. Ibidem, p. 27.
436
Idem. Ibidem, p. 30.
437
Idem. Ibidem, p.30.
205

atingir as finalidades. Já na de necessidade analisa-se se não há outro meio menos


gravoso para a consecução das finalidades pretendidas. Por último, a
proporcionalidade em sentido estrito diria respeito a uma ponderação entre o
significado da intervenção para os afetados e os objetivos a que o legislador visa. É
sob essa perspectiva de análise que o acórdão em questão encara o decreto-lei
restritivo de liberdade de profissão para os jornalistas.
O Supremo Tribunal Federal já se debruçou sobre o tema no julgamento do
Recurso Extraordinário 70.563, em que o Ministro Thompson Flores observou que as
condições de capacidade para o exercício de uma profissão deveriam visar à proteção
social, não se limitando a requisitos técnicos, mas abrangendo também pressupostos de
condição moral, física e outras.
Em outro precedente, o da Representação n.º 930, o relator, Ministro
Rodrigues Alckmin, enfatizou a importância de se preservar o núcleo da liberdade de
profissão, ressaltando que o legislador, ao estabelecer as condições de capacidade
previstas no art. 153, § 23, da Constituição de 1967/69, deveria atender ao critério de
razoabilidade438.
Na linha dos precedentes, o relator, Ministro Gilmar Mendes, observou ser
necessário verificar se o exercício profissional exigiria qualificações profissionais e
capacidades técnicas específicas e especiais439, o que legitimaria o Estado a
regulamentar o tema em defesa da coletividade. Nessa linha, a qualificação
profissional prevista no art. 5º, XIII, da Constituição Federal, só pode ser exigida das
profissões que possam colocar em perigo a coletividade ou direitos de terceiros, tais
como a medicina, as profissões da área de saúde, a engenharia, a advocacia etc.
Os riscos do exercício do jornalismo não seriam afastados com um diploma
de graduação, já que o correto exercício da profissão dependeria do correto caráter de
cada um e do acesso a fontes qualificadas. O jornalismo não exigiria técnicas
específicas, assim como o seu mau exercício levaria apenas à ausência de leitores, sem
colocar em risco a vida ou a saúde de terceiros. A violação da honra, da intimidade, da
imagem e de outros direitos da personalidade não são riscos do exercício do

438
Idem. Ibidem, p. 36.
439
Idem. Ibidem, p. 41.
206

jornalismo, mas o resultado do seu exercício abusivo e antiético. A exigência de


diploma de jornalismo não passaria, de tal modo, sequer pelo exame de adequação
como meio de proteção social.
O ponto crucial da análise da condição restritiva para exercício do
jornalismo é sua estreita vinculação à liberdade de expressão, de informação e de
comunicação. O jornalismo é a atividade remunerada que possibilita o exercício desses
direitos. A liberdade de profissão, no caso do jornalismo, exige interpretação conjunta
com os preceitos do art. 5º, IV, IX, XIX, e do art. 220 da Constituição.
Como ressaltado na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental
n.º 130, somente em hipóteses excepcionalíssimas essas liberdades poderiam ser
restringidas. Por isso, o jornalismo, como atividade umbilicalmente vinculada a tais
direitos, não poderia ser objeto de condições quanto ao acesso à profissão e ao
respectivo exercício profissional. Mais claramente, não há espaço para a regulação
estatal quanto à profissão de jornalista nem para a criação de uma autarquia de
regulamentação profissional. Um controle dessa ordem caracterizaria censura prévia.
Até mesmo porque só diante de condições de capacidade ou qualificações
profissionais especiais haveria regulamentação legítima da profissão por uma
autarquia.
Não que o exercício do jornalismo não ofereça grandes riscos à sociedade.
Muito ao contrário, a imprensa na sociedade contemporânea tem um poder que pode
sitiar até mesmo o Estado. Todavia, o controle da imprensa deve ser feito a posteriori
pela responsabilidade penal e civil ou pela autorregulação. De acordo com o relator, os
danos causados pela atividade jornalística não podem ser evitados ou controlados por
qualquer tipo de medida estatal de índole preventiva.
Tem-se o dado de que, em 13 de novembro de 1985, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos declarou que a obrigatoriedade do diploma universitário e a
inscrição em ordem ou conselho profissional violam o art. 13 da Convenção
Interamericana de Direitos Humanos, que trata da liberdade de expressão em sentido
amplo.
Nessa decisão da Corte Interamericana rechaçaram-se as razões de ordem
pública que justificam a inscrição obrigatória em conselho profissional, no caso do
207

jornalismo. Deduziu-se que isso seria uma limitação aos não inscritos, de exercerem
em toda sua amplitude um direito garantido a todo ser humano da referida Convenção
– a livre expressão – gerando uma infração da ordem pública democrática sobre a qual
se fundamenta a própria Convenção. Até mesmo porque o bem comum, dentro de tal
contexto, refere-se a condições da vida social que permitiriam aos indivíduos alcançar
o maior grau de desenvolvimento pessoal e de positivação dos princípios
democráticos.
Dentro de uma sociedade democrática devem garantir-se as maiores
possibilidades de divulgação de notícias, ideias e opiniões. Essa é uma base primária
da democracia, que não é viável sem o debate livre e sem a franca manifestação dos
insatisfeitos e dos oposicionistas. O jornalismo não pode ser atividade exclusiva de um
grupo da sociedade, sob pena de violar o direito do indivíduo de buscar e difundir
informações por qualquer meio e ainda o direito da comunidade de receber a
informação sem travas. Não se trata, como noutras profissões, de aplicação de
conhecimentos específicos aprendidos em universidades, mas de exercício da
liberdade de expressão.
O relator conclui que, a exemplo do Decreto-Lei n.º 911/69, o Decreto-Lei
n.º 972/69 foi editado sob a égide do Ato Institucional n.º 5, de 1968. Ficou claro,
então, que a exigência de diploma de curso superior para exercício da profissão tinha
como objetivo afastar dos meios de comunicação artistas, políticos e intelectuais que
compusessem a oposição ao regime. Isso reforça a inadequação das restrições previstas
no decreto-lei em questão a um Estado Democrático de Direito. Daí concluir-se por
sua inconstitucionalidade.
Das declarações de votos que aderiram ao relator, vale a pena ressaltar,
como ponto relevante para análise do tema, trecho do voto do Ministro Ricardo
Lewandowski: a faculdade de restringir tais liberdades [trabalho, ofício e profissão],
que o constituinte delegou ao legislador ordinário, dirige-se às atividades cujo
exercício exija conhecimentos técnicos específicos, o que não é o caso do
jornalismo440. Em sentido semelhante manifestou-se o Ministro Cezar Peluso, ao
defender que as qualificações especiais e a regulação da profissão têm sobretudo sua

440
Idem. Ibidem. Voto do Ministro Ricardo Lewandoski, p. 1.
208

explicação na necessidade de conhecimento suficiente de verdades científicas exigidas


pela natureza mesma do trabalho, ofício ou profissão441 ou ainda para evitar riscos
derivados do desconhecimento de alguma verdade técnica ou científica que devesse
governar o exercício da profissão442.
Um último trecho que merece destaque nas declarações de voto é a
observação do Ministro Eros Grau443 de que no tema do exercício da profissão de
jornalista a salvaguarda das salvaguardas da sociedade, o anteparo dos anteparos
sociais, é não restringir nada.

4.1.2 O caso conforme os princípios, os direitos e a crítica à regulação

No caso em questão, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela


inconstitucionalidade do diploma de jornalismo para o acesso à profissão e declarou a
invalidade de qualquer regulação sobre o seu exercício. Em outras palavras, a Corte
estabeleceu um âmbito de imunidade em relação à competência regulamentadora face
a direitos e princípios constitucionais.
Houve, assim, uma larga exposição de como os direitos fundamentais
podem interferir na regulação. Na hipótese colocada à apreciação, o mais interessante
é que os princípios respectivos foram de tal importância e peso que excluíram por
completo qualquer espaço possível de regulação.
O ponto inicial do acordo foi o de um âmbito de proteção contido no art. 5º,
XIII, da Constituição Federal, e também das restrições possíveis previstas na própria
Constituição. Logo, destacou haver no texto uma reserva legal qualificada, ressaltando
que a reserva legal, como restrição, é sempre limitada pelo princípio da
proporcionalidade face ao núcleo da liberdade de profissões.
Deslocado o ponto de vista para o marco teórico do presente trabalho, o
âmbito de proteção ou o núcleo do direito fundamental significa que o Supremo
Tribunal Federal deriva dessas liberdades constitucionais deveres para as autoridades
441
Idem Ibidem. Voto do Ministro Cezar Peluso, p. 2.
442
Idem. Ibidem, p. 3.
443
Idem. Ibidem. Voto do Ministro Eros Grau, p. 4.
209

constituídas, que limitam até mesmo o legislador. Mesmo no caso de reserva legal
qualificada haveria um dever implícito para o legislador, que seria o de estabelecer
limites razoáveis e proporcionais em face do núcleo do direito em questão. Noutros
termos, o princípio da supremacia da legislação exige conjugação e aplicação
complementar com outros princípios, não sendo a reserva legal uma autorização em
aberto para o legislador.
Esse raciocínio é interessante, pois coloca limites até mesmo para a
regulação autorizada em sede constitucional para o legislador. Ora, a conclusão para os
casos de exercício da regulação no âmbito da Administração é muito clara. Se mesmo
para o legislador os direitos constitucionais constituem um limite imediato para o
exercício da atividade normativa, com mais razão constituem também restrições
imediatas para o Executivo. Em resumo, qualquer atividade reguladora é exercida
imediatamente frente à Constituição, estando o sentido das regras administrativas
subordinado à comunidade de princípio à qual devem respeitar.
Outra decorrência dessa verificação é a de que âmbitos de liberdades e de
emancipação, inerentes aos direitos, interpõem-se em qualquer atividade reguladora do
Legislativo ou do Executivo. A regulação deve respeitar espaços gerados a partir das
argumentações de moral política inerentes aos princípios, o que tem como decorrência
um debate não centralizado apenas nos papéis sociais de consumidor e clientes, mas no
de cidadão e de seus correspondentes direitos. Os direitos levados a sério são trunfos
principalmente na regulação.
Essa ideia é reforçada quando se diz que o jornalismo não pode ser objeto
de regulação quanto ao acesso à profissão e ao respectivo exercício e que não se
poderia criar uma autarquia de regulamentação profissional como decorrência dos
direitos de expressão, de informação e de comunicação. Essas liberdades constituiriam
fronteiras que inibiriam totalmente qualquer atividade de produção de regras prévias
nesse âmbito.
Outro ponto a ser destacado é o de que vários ministros insistiram que a
regulação da profissão de jornalista só se justificaria diante de qualificações e
conhecimentos técnicos específicos e de verdades científicas. Nesse precedente, está
muito claro que um marco regulador, com regras de origem legal e administrativa,
210

vincula-se a saberes e atividades especializadas constituídos com base na técnica e na


ciência. Daí pode derivar-se que a capacidade normativa de conjuntura decorra da
necessidade de adaptação das regras de normalização às mutações técnico-científicas.
De alguma forma reconheceu-se que o jornalismo é uma atividade mais
ampla e, por isso, incompatível com uma regulação técnica. É uma profissão
intrinsecamente vinculada ao direito de livre expressão, que não pode ser encerrado
num mero produtivismo. Nesse âmbito, circulam saberes oriundos das artes, da moral,
do direito, da política etc., que também devem ser objeto de livre expressão,
informação e comunicação num Estado Democrático de Direito e numa sociedade
pluralista.
Há, ainda, um aspecto muito interessante no acórdão, ao estabelecer que o
controle da imprensa deve ser feito a posteriori. Nisso está implícito que a constituição
de um sistema de regras com estrutura hipotético-condicional para um controle prévio
significa violência em relação à singularidade de cada caso de exercício do direito à
livre expressão. É mais adequado enfocá-los a partir da comunidade de princípios,
procurando derivar uma decisão justificada e adequada com uma argumentação aberta
com juízos de moral política. Não se pode moldar antecipadamente o exercício dessa
liberdade fundamental.
Dessa forma, no Recurso Extraordinário n.º 511.961, o Supremo Tribunal
Federal estabeleceu um núcleo para o direito de livre exercício profissional, que
implica limitações até mesmo para o exercício de uma reserva qualificada pelo
legislador, o que permite concluir que qualquer atividade regulatória está
imediatamente vinculada e referida aos direitos e seus princípios, que reservam ao
cidadão espaços de liberdade oriundos de argumentações de moral política. Também
foi estabelecida pelo julgado uma vinculação entre a atividade regulatória e saberes
especializados oriundos da técnica e da ciência. Por último, com a defesa de um
controle a posteriori da atividade, mostrou-se a excessiva rigidez de um sistema de
regras prévias para a livre expressão, que seria avaliada mais adequadamente por uma
comunidade de princípios.
211

4.2 As tarifas interurbanas dentro do mesmo município

4.2.1 O caso

O primeiro caso de uma série de precedentes do Superior Tribunal de


Justiça sobre a cobrança de tarifas interurbanas dentro de um mesmo município foi o
do Recurso Especial de n.º 572.070444, interposto pela Brasil Telecom S/A e tendo
como recorrida a Coordenadoria de Proteção e Defesa do Consumidor de Cornélio
Procópio – Procon.
Havia sido concedida, em ação civil pública, liminar para suspender a
cobrança de tarifa interurbana dentro dos distritos integrados ao município de Cornélio
Procópio (PR). O juiz de primeiro grau considerou que o Distrito de Congonhas não
detinha autonomia político-financeira e que deveriam ficar ao encargo das prestadoras
de serviços telefônicos os procedimentos para a configuração de uma área local. De
outro lado, fundamentou-se na Lei n.º 9.472/97 que, em seu art. 2º, garante a toda a
população acesso às telecomunicações a tarifas e preços razoáveis, em condições
adequadas e, em seu art. 5º, estabelece a defesa do consumidor e a redução das
desigualdades regionais e sociais.
O Superior Tribunal de Justiça fez abordagem completamente diversa do
caso. Seu primeiro fundamento foi o Decreto n.º 2.534/98, que trata do plano geral de
outorgas de serviços de telecomunicações prestados no regime de direito público, que
distinguiria o serviço local como o prestado entre pontos fixos determinados situados
em uma mesma Área Local (art, 1º, § 2º, I), e o de longa distância nacional como o
prestado entre pontos fixos determinados situados em Áreas Locais distintas no
território nacional. Com base no art. 103 da Lei n.º 9.472/97, que conferia à Anatel
competência para estabelecer a estrutura tarifária para cada modalidade de serviço, a
444
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão no Recurso Especial n.º 572.070. DJ de 14.06.2004.
Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200301280351&dt_publicacao=14/06
/2004. Acesso em: fevereiro de 2011.
212

agência teria editado a Resolução n.º 85/98 para definir o que seria área local, isto é,
uma área geográfica contínua delimitada segundo critérios técnicos e econômicos,
devendo ainda serem levados em consideração: a) o interesse econômico, b) a
continuidade urbana, c) a engenharia das Redes de Telecomunicações; d) as
localidades envolvidas. Com base em toda essa normatização regulatória e em outras
considerações, o STJ considerou que a cobrança do serviço local de telefonia não
levaria em conta apenas critérios político-geográficos, mas também análises de custo-
benefício com base no contrato de concessão.
O tribunal superior julgou, ainda, tratar-se de matéria técnica, alheia ao
Judiciário, que apenas criaria embaraços à qualidade dos serviços prestados pelas
concessionárias se interviesse nesse âmbito. De forma ainda mais incisiva o relator,
Ministro João Otávio de Noronha, recusou o controle do tema:
Além disso, não concebo como se possa interferir de forma tão radical em um setor
de tamanha complexidade e sensibilidade como é o das comunicações com base em
mera presunção de que a prestadora de serviços dispõe, na área questionada, de
uma adequada engenharia de rede de telecomunicações.

Após sedimentar a imunidade técnica das agências, o precedente adentrou


em juízos de utilidade coletiva. Defendeu que os princípios norteadores da atividade
econômica e social estariam sendo atendidos, já que a Lei n.º 9.472/97 teria como
objetivo favorecer o aprimoramento dos serviços de telefonia para o conjunto da
população brasileira, o que só seria possível pela atuação da agência. O respeito ao
equilíbrio da regulação seria imprescindível, pois o Estado não poderia arcar com os
custos inerentes à disponibilização do serviço para toda a população. Por último, num
contexto de economia de mercado, os custos das atividades econômicas dos agentes
regulados deveriam ser ressarcidos para a manutenção de seu padrão de qualidade.
Em suma, o julgado analisado considerou válida a cobrança de tarifa
interurbana dentro do mesmo município. Para isso, aduziu fundamentos de ordem
técnica, de autonomia da agência, de utilidade pública e de ordem econômica.
213

4.2.2 O caso conforme os princípios, os direitos e a crítica à regulação

É marcante que o precedente em questão tenha, apesar de sua concisão,


passado por praticamente todas as questões debatidas no presente trabalho. A decisão
apresentou-se como um exemplo claro e passivista da naturalização das intrincadas
questões de instrumentalização e legitimação que cercam a regulação.
Num primeiro plano, após referir-se a diversas regras superficiais
decorrentes do poder normativo da agência, houve o apelo à complexidade das
questões técnicas para validar o ato da agência. Houve a confirmação da força do
discurso de verdade técnico-científico, que pela sua simples referência cria um âmbito
de imunidade ao poder regulamentar. Uma segunda trincheira construída pela decisão
foi a do insulamento burocrático da agência e de sua importância para a manutenção
da utilidade pública regulada. Por último, os imperativos do sistema econômico foram
aduzidos como uma nova trincheira para proteger o ato da agência sob pena de
desorganização do serviço e da ordem própria ao mercado com o respeito aos
contratos. O regramento expedido pela agência foi tomado como um extrato de
imperativos de ordem técnico-científica, de ordem econômica e de consistência
burocrática.
Com tal tecitura, que colocou, em primeiro plano, imperativos sistêmicos da
economia e político-burocráticos, nenhuma consideração sobre os princípios e os
direitos envolvidos foi aduzida. As eventuais questões de moral política que poderiam
legitimar e justificar a decisão sob o ponto de vista de uma consistência do Estado
Democrático de Direito foram atropeladas por preocupações técnicas e
mercadológicas.
Não houve sequer debate sobre os direitos de ordem social referidos pela
sentença com base nos arts. 2º e 5º da Lei n.º 9.472/97, que trata de preços adequados
e da defesa do consumidor. Além do mais, estava claramente em questão um princípio
de moral política que diz respeito à configuração e à formação de identidades por uma
214

comunidade circunscrita a um município. A comunicação facilitada entre os cidadãos


do município é pressuposto essencial para a constituição de laços.
A decisão passou longe de qualquer ponto de contato com uma proposta de
aplicação do direito como integridade. Além de silenciar sobre direitos e princípios,
ignorou questões de equidade e justiça. Se a equidade é um ideal, a consolidação de
instituições também o é, o que exigiria a preocupação em se manter a ênfase na
unidade política, o município, para configurar a área local de prestação do serviço de
telefonia. Noutro giro, o preço do serviço de telefonia é um limitador de acesso a esse
recurso. Ao se aceitar uma cobrança mais elevada no município, estabeleceu-se um
critério não isonômico na distribuição do acesso ao serviço de telefonia para cidadãos
desse mesmo município.
De mais a mais, não é possível sequer falar que a decisão em comento
baseou-se em diretrizes políticas. Objetivos políticos legítimos de uma comunidade
não são meros apelos a abstratos e vagos imperativos sistêmicos. É necessário precisar
de forma coerente e clara qual melhora política e econômica tem a sociedade com a
solução adotada.
Em síntese, o acórdão aqui debatido é um claro exemplo dos riscos de
colonização/tecnicização do mundo da vida, em que o poder e o dinheiro como meio
dos sistemas político-burocráticos e da economia inibem o debate de questões de
moral política que os cercam. Qualquer regra oriunda de uma agência reguladora
necessariamente abrangerá questões técnicas, econômicas e será resultado de uma
atuação autônoma do ente regulador. Por isso, não há qualquer sentido em validar uma
regra editada por uma agência apenas pelo fato de envolver questões dessa ordem.
É preciso atingir outro nível de fundamentação, explicação, justificação,
historicidade e constitutividade, que é o inerente aos princípios. As regras editadas no
uso do poder normativo das agências têm de ser referidas a um conjunto de princípios.
Não é demais lembrar que toda a regra se apoia e se justifica em razão de um conjunto
de diretrizes políticas que supostamente favorece e de princípios que supostamente
respeita445. Especialmente no caso das agências reguladoras – em que deve haver

445
HABERMAS, Jürgen. Faticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madri: Trota, 2001, p. 319.
215

preocupação com a limitação e a legitimação do seu poder – isso é uma verdade


necessária.
Em termos de Estado Democrático de Direito, seria indispensável enfocar
o caso a partir da comunidade de princípios que se rege por uma concepção coerente
de direito, o que exigiria debate sobre direitos concretos. Mesmo as diretrizes políticas
concernentes ao caso deveriam ser especificamente e claramente expostas para daí
poder-se extrair uma fundamentação material da regra debatida, em vista apenas não
só do caso em questão, mas principalmente para pautar decisões futuras como
expressão de uma integridade institucional.
Nesse contexto, as agências reguladoras têm efetivamente autonomia, mas
obviamente não se lhes pode conceder soberania, o que leva à conclusão de que elas
estão necessariamente inseridas numa comunidade republicana que busca unidade e
identidade. Justamente por sua frouxa submissão à soberania popular representada no
Parlamento, a integração desses entes num discurso fortemente constituído por direitos
fundamentais e por princípios é um outro canal para articulá-los dentro dos parâmetros
republicanos do Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, reconhecer pura e
simplesmente a autonomia das agências é fortalecer seus vínculos com o sistema
político-burocrático, ao passo que inseri-las numa comunidade de princípios significa
aproximá-las de uma unidade moral e política.

4.3 A qualificação do poder normativo dos entes reguladores como poder de


polícia

4.3.1 O caso

No Recurso Extraordinário n.º 349.686-7446 em que se discutiu a


regulamentação da atividade de transportador-revendedor-retalhista (TRR) de

446
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Recurso Extraordinário n.º 349.686. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=261185DJ de 07.08.2005. Acesso em:
fevereiro de 2011.
216

combustíveis pela Portaria 62/95 do Ministério de Minas e Energia. Nesse caso, o


Tribunal Regional Federal da 5ª Região deferiu às recorridas, Dislub Combustíveis
Ltda. e outra, autorizações para venda de álcool combustível, gasolina e gás liquefeito
de petróleo pela não recepção do Decreto-Lei n.º 395/98 pela Constituição Federal de
1988 e, consequentemente, da portaria em questão, que trazia a interdição para quem
exerce a atividade de TRR de comercializar os referidos produtos.
Embora tenha a Corte de origem sustentado que houve limitação indevida
do princípio da livre-iniciativa, que só poderia ser limitado por lei nos termos do art.
170, parágrafo único, a relatora, Ministra Ellen Gracie, observou que qualquer
atividade econômica pressupõe o cumprimento dos requisitos legais e das limitações
impostas pela Administração no regular exercício de seu poder de polícia. Não havia,
assim, como se afastar a regulamentação do mercado e de defesa do consumidor, que
tem como base o art. 87, parágrafo único, I da Constituição Federal e o Decreto-Lei n.º
395/38, que fora recepcionado pela Constituição de 1988 como diploma válido para o
setor de combustíveis, nos termos do art. 238 da Constituição Federal.

4.3.2 A regulação e o poder polícia

4.3.2.1 O poder de polícia

Os vocábulos utilizados em poder de polícia remetem à Administração da


comunidade, da cidade (pólis). Historicamente, correspondeu à noção de soberania dos
monarcas, servindo de embasamento para o absolutismo. Com a implantação do
liberalismo e a subordinação do Estado à lei, passou a estar reservado um papel
negativo, desempenhado pela autoridade, de evitar perturbações da ordem e assegurar
o livre exercício de direitos447. No entanto, a expressão poder de polícia tem um

447
TÁCITO, Caio. Temas de direito público (estudos e pareceres). Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 521/2.
217

timbre autoritário, o que leva a que alguns autores se refiram, em seu lugar, à polícia
administrativa448.
Marcello Caetano449 o considera como um modo de atividade
administrativa, ao lado dos serviços de utilidade pública. Há um contraste entre eles.
Os serviços de utilidade pública abrangeriam prestações, enquanto poder de polícia
seria um sistema de restrições que imporiam uma série de deveres de abstenção. Esse
sistema de interdições não tem caráter apenas de negatividade, já que condiciona450 a
liberdade e a propriedade, com base na lei, permitindo a definição dos contornos dos
direitos respectivos451. Nesse âmbito, a atividade desenvolvida é fiscalizadora,
preventiva e repressiva, podendo se expressar em atos administrativos normativos e
em atos materiais.
Tradicionalmente fala-se que o poder de polícia visa a assegurar a ordem
pública452ou a evitar danos sociais453. Ocorre que, num Estado Democrático de
Direito, é mais adequado, em respeito ao princípio da legalidade, falar-se em
satisfação de interesses sociais previstos em lei. Áreas clássicas de sua incidência
seriam a ordem, a segurança e a saúde pública, mas, em razão da importância do
sistema econômico, também a economia passou a ser objeto do poder de polícia454.
Com o advento do Estado Social, essa noção de poder de polícia,
consistente sobretudo em deveres de abstenção e interdições condicionadoras da
liberdade e da propriedade em prol de finalidades sociais previstas, ficou por demais
estreita. A regulação significa um passo além do poder de polícia, com a inserção de
prestações e deveres ativos aos agentes regulados, para produzir e distribuir utilidades

448
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 11.
449
CAETANO, Marcello. Princípios fundamentais do direito administrativo. Coimbra: Livraria Almedina,
1996, p. 268.
450
Celso Antônio Bandeira de Mello define a Polícia Administrativa como a atividade da Administração
Pública, expressa em atos normativos ou concretos, de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral e
na forma da lei, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, mediante ação, ora fiscalizadora, ora preventiva,
ora repressiva, impondo coercivamente aos particulares um dever de abstenção (non facere) a fim de
conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema normativo. (MELLO, Celso
Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 221)
451
É interessante marcar que os limites definidos pelo poder de polícia à liberdade e à propriedade são condições
de possibilidade para o estabelecimento dos direitos respectivos, como desenvolve Alessi (ALESSI, Renato.
Sistema instituzionale del diritto amministrativo italiano. Milão: Dott. A. Guiffrè, 1960, p. 526).
452
LAUBADÈRE, André de. Traité de droit administratif. Paris: Librairie Générale de Dorit et de
Jurisprudence, 1976, p.589.
453
CAETANO (Op. cit., p. 269).
454
TÁCITO (Op. cit., p. 526).
218

sociais, bem como para atingir um equilíbrio econômico de alto nível, com redução do
desemprego e crescimento. O campo próprio da regulação é o da atuação do Estado na
economia e o da gestão e distribuição de bens e serviços pela Administração. Daí,
falar-se em poder de polícia em relação ao controle de atividades econômicas, como o
fez o precedente em questão, embaça a inserção de agentes privados nas políticas
prestacionais típicas do Estado Social.

4.3.3 A economia, a moral política e o direito na regulação

A regulação se faz presente especialmente em setores de capital e


tecnologia intensivos. Esse é um ponto de preocupação e tensão com o sistema
político-burocrático e com o direito. A democracia, como questão cara para estes dois
últimos, tem uma relação conflituosa com a economia de mercado455, que pode
incrementar desigualdades ou alienação na participação no processo político.
De modo algum, a economia e o mercado não são um mal em si456. A
preocupação deve ser como ela se relaciona com o sistema político-burocrático, com o
direito e com discussões de conteúdo moral, ético e valorativo. Cabe ao Estado,
condicionado pelo direito, dar limites à economia e inseri-la em finalidades sociais
reveladas especialmente por direitos e princípios do Estado Democrático de Direito.
Nesse cenário, a justiça na repartição bens, oportunidades e recursos é um
tema inafastável. A dignidade da pessoa humana e o direito a igual respeito e
consideração impõem que as distribuições de mercado devem ser corrigidas para que
algumas pessoas se aproximem mais da parcela de recursos que teriam tido, não
fossem essas diferenças iniciais de vantagem, sorte e capacidade inerente457. O
mercado pode levar ao oposto do pretendido pela mão invisível smithiana, porque
ainda que as pessoas ajam corretamente, os resultados de suas ações podem não

455
DAHL, Robert. Sobre a democracia. Trad. Beatriz Sidou. Brasília: Universidade de Brasília, 2001, p. 175.
456
LOPES, Ana Frazão de Azevedo. Empresa e propriedade: função social e abuso de poder econômico. São
Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 270.
457
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000,
p. 271.
219

conduzir à justiça, levando-se em conta a enorme desigualdade de pontos de partida


dos agentes econômicos458. As concentrações de capital, que são inerentes a um
capitalismo avançado, são um grande risco para a equidade e para a igualdade de
oportunidades.
A economia como ciência e atividade tem como grandes preocupações a
escassez e a necessidade. O tratamento dessas questões é intrinsecamente social e, por
isso, inevitavelmente envolve considerações de ordem moral, ética e valorativa459.
Porém, há uma dificuldade para que dentro do debate econômico estes últimos temas
sejam diretamente inseridos460.
O enfrentamento dessa intrincada relação entre economia e moral política,
sob a luz do conceito de poder de polícia, não permite uma abordagem do assunto com
a sofisticação que o tema exige. A economia de mercado tem uma dinâmica própria
que estrutura a produção com vistas à satisfação de necessidades de forma eficiente e
regida pelo dinheiro, conectando-se estruturalmente ao direito pela propriedade e pelos
contratos461. O direito normatiza esses dois últimos com vistas a atribuir, controlar a
circulação e distribuir bens, recursos e oportunidades na sociedade. Acontece que a
intervenção do direito e do poder administrativo-burocrático não é capaz de determinar
a produção de bens, que é o resultado principalmente do jogo de forças econômicas.
Além disso, o poder de polícia constitui uma zona amorfa no direito, com
diretrizes ditadas principalmente numa burocracia que se pauta na suposta prevalência
do interesse público sobre o particular, o que conflita com a concepção dos direitos
como trunfos e seu caráter contramajoritário. Por isso, a regulação demanda uma outra
visão em que, ao lado de uma funcionalização dos direitos inerentes à propriedade e
aos contratos com vistas a uma redistribuição compensatória de bens, busque-se
constituir marcos que respeitem a autonomia do sistema econômico e se adéquem a
uma comunidade de princípios. Trata-se de um fenômeno multidimensional que
implica interferências recíprocas entre direito, economia e poder administrativo-

458
RAWLS, John. O liberalismo político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2000, p. 319/320.
459
Hunt, acertadamente, considera que todos os problemas caros aos economistas envolviam compromissos com
questões morais, políticas, sociais e práticas, mesmo que encobertas. (HUNT, E. K. História do pensamento
econômico. Trad. José Ricardo Brandão Azevedo. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 22)
460
LOPES (Op. cit., p. 275).
461
LUHMANN, Niklas. Law as social system. Oxford/Nova Iorque: Oxford University Press, 2009, p. 383.
220

burocrático, que muito ultrapassa a unidimensionalidade do poder de polícia. A


utilização desse conceito na abordagem judicial dos casos de regulação reduzem
sobremaneira o debate necessário para a construção de um direito como integridade.

4.4 A ortotanásia

Um dos primeiros sentidos da regulação foi estabelecer padrões de


comportamento a serem adotados em atividades especializadas, como são exemplos as
dos profissionais liberais462. Antes de ser um fenômeno econômico com a
autonomização do sistema correspondente, que teve início no Estado Absolutista e
amadureceu no Estado Liberal, a regulação foi algo vinculado às corporações de ofício
e a seu regramento específico. A diversidade da atuação profissional exigia um
regramento diferenciado e autônomo em relação ao restante da sociedade. Não é
casual que mesmo após o Décret D’Allarde, que suprimiu as corporações de ofício na
França em 1791, dando impulso à livre-iniciativa, tenham sobrevivido vários entes
reguladores de profissões liberais em razão de tecnicalização e especialização.
A medicina é um bom exemplo. O tratamento técnico da vida (em vários
aspectos) realizado por ela implica até mesmo um condicionamento comportamental
oriundo das prescrições médicas. Os conselhos médicos são apoiados em discursos de
verdade produzidos cientificamente que implicam uma espécie de exercício de poder
disciplinar que molda corpos e condutas. Na medicina tem-se, de fato, um encontro
entre poder, direito e verdade com consequências no cotidiano dos indivíduos.
Foucault expressa essa ideia:
Quero dizer, mais precisamente, isto; eu creio que a normalização, as
normalizações disciplinares vêm cada vez mais esbarrar contra o sistema jurídico
da soberania; cada vez mais nitidamente aparece a incompatibilidade de umas com
o outro; cada vez mais é necessária uma espécie de discurso árbitro, uma espécie
de poder e de saber neutro graças a sua sacralização científica. E é justamente pelo
lado da ampliação da medicina onde, de certo modo, vemos não combinar-se, e sim
reduzir-se, intercambiar-se ou enfrentar-se perpetuamente a mecânica da disciplina
e o princípio do direito. O desenvolvimento da medicina, da medicalização geral
dos comportamentos, das condutas, dos discursos, dos desejos etc. são levados a
221

cabo na frente em que se encontram estratos heterogêneos da disciplina e a


soberania.

O exercício do poder regulamentar da medicina ocorre, como se vê, num


terreno crítico em que se debatem discursos de verdade que formam uma disciplina de
saber e o direito. Daí a relevância de um caso em que se discutam regramentos que
afetam não só o comportamento dos médicos, dos especialistas, mas principalmente
direitos como a autonomia e como o de uma vida digna.

4.4.1 O caso

4.4.1.1 A exposição de motivos, os consideranda e a Resolução CFM n.º 1.805/2006

É muito interessante a leitura da exposição de motivos que justifica a edição


da Resolução do Conselho Federal de Medicina n.º 1.815/2006463. É um exemplo da
reflexividade do uso metalinguístico dos princípios não para a crítica do direito, mas
principalmente para a reordenação ética e moral do saber técnico e científico. Vale à
pena transcrever os três primeiros parágrafos:
A medicina atual vive um momento de busca de sensato equilíbrio na relação
médico-enfermo. A ética médica tradicional, concebida no modelo hipocrático, tem
forte acento paternalista. Ao enfermo cabe, simplesmente, obediência às decisões
médicas, tal qual uma criança deve cumprir sem questionar as ordens paternas.
Assim, até a primeira metade do século XX, qualquer ato médico era julgado
levando-se em conta apenas a moralidade do agente, desconsiderando-se os valores
e crenças dos enfermos. Somente a partir da década de 60 os códigos de ética
profissional passaram a reconhecer o doente como agente autônomo.
À mesma época, a medicina passou a incorporar, com muita rapidez, um
impressionante avanço tecnológico. Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e novas
metodologias criadas para aferir e controlar as variáveis vitais ofereceram aos
profissionais a possibilidade de adiar o momento da morte. Se no início do século
XX o tempo estimado para o desenlace após a instalação de enfermidade grave era
de cinco dias, ao seu final era dez vezes maior. Tamanho é o arsenal tecnológico
hoje disponível que não é descabido dizer que se torna quase impossível morrer sem
a anuência do médico.
Bernard Lown, em seu livro “A arte perdida de curar” afirma: “As escolas de
medicina e o estágio nos hospitais os preparam (os futuros médicos) para tornarem-
se oficiais-maiores da ciência e gerentes de biotecnologias complexas. Muito pouco
se ensina sobre a arte de ser médico. Os médicos aprendem pouquíssimo a lidar

463
BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução 1.805/2006. D.O.U. de 28.11.2006, Seção I, p. 169.
222

com a morte. A realidade mais fundamental é que houve uma revolução


biotecnológica que possibilita o prolongamento interminável do morrer.”

Está aí uma crítica sobre a relação pessoal entre os papéis de médico e


paciente, refletindo uma reordenação ética para valorizar a autonomia do paciente e
deslocando os padrões profissionais para aproximá-los desse último. É marcante que,
no parágrafo seguinte, enfrentem-se os riscos e inconvenientes do avanço tecnológico
da medicina, expondo a consciência de que a evolução do saber e do agir especializado
não necessariamente atende aos pacientes envolvidos. Em trecho posterior expõe-se a
insuficiência da ótica biotecnológica na medicina, ressaltando-se a relevância de
encará-la além de uma visão instrumental, isto é, como uma arte.
Seguindo a linha dos trechos transcritos, a exposição critica o crescimento
do poder de intervenção da medicina e o descompasso com a reflexão sobre o paciente
não como objeto, mas como ser humano dotado de dignidade. Reconhece que isso
pode implicar uma suspensão à obstinação diagnóstica e terapêutica ínsita à medicina,
para dar lugar a reflexões morais, inclusive de índole religiosa. Nessa exposição
reconhece-se a necessidade da continuidade de debates sobre a finitude da vida e a sua
transcendência em relação à medicina, o que leva à conclusão de que a morte do
paciente tem de ser aceita, assim como as suas preferências, cabendo ao médico
cuidados para aliviar a dor desse desfecho.
Nos consideranda, princípios são colocados em primeiro plano. Há
referência à dignidade da pessoa humana, art. 1º, III, da Constituição Federal, e ao
princípio de que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante”, art. 5º, III da Constituição Federal. Há, ainda, referência a deveres éticos
como o de o médico zelar pelo bem-estar do paciente e o de diagnosticar o doente
como portador de doença terminal.
Com base nessa fundamentação foram editadas as seguintes regras sobre o
tema:
Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que
prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável,
respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal
as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.
§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.
§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma
segunda opinião médica.
223

Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os


sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto
físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta
hospitalar.
Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as
disposições em contrário.

4.4.1.2 A decisão de tutela liminar e a sentença na ação civil pública n.º


2007.34.014809-3

Foi proposta pelo Ministério Público Federal ação civil pública contra o
Conselho Federal de Medicina, com pedido de tutela antecipada, questionando a
resolução em questão. O fundamento foi o de que a autarquia ré não poderia regular
como conduta ética permitida algo que é tipificado como crime. Em sede liminar, a
antecipação de tutela foi deferida464 com base nos fundamentos aduzidos pelo Parquet.
Contestada e instruída a ação, o próprio Ministério Público, ao lado do
Conselho Federal de Medicina, pugnou pela improcedência do pedido. Na sentença, o
mesmo juiz que prolatara a decisão liminar suspendendo os efeitos da resolução em
comento acolheu integralmente a manifestação final do Ministério Público, julgando-a
lícita.
Após algumas considerações, a sentença, transcrevendo a petição da
Procuradoria da República, apresentou os seguintes conceitos465:
Considera-se eutanásia a provocação da morte de paciente terminal ou portador de
doença incurável, através de ato de terceiro, praticado por sentimento de piedade.
Na hipótese, existe doença, porém sem estado de degeneração que possa resultar
em morte iminente, servindo a eutanásia para, justamente, abreviar a morte por
sentimento de compaixão.
[...]
Já a distanásia é o prolongamento artificial do estado de degenerescência. Ocorre
quando o médico, frente a uma doença incurável e/ou mesmo à morte iminente e
inevitável do paciente, prossegue valendo-se de meios extraordinários para
prolongar o estado de mortificação ou o caminho natural da morte. A distanásia é,
frequentemente, resultado da aplicação de meios não ortodoxos ou usuais no
protocolo médico, que apenas retardarão o momento do desenlace do paciente, sem

464
BRASIL. 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. Decisão no processo n.º
2007.34.00.014809-3. Disponível em: http://www.jfdf.jus.br/inteiro_teor/doc_inteiro_teor/14vara/2007.34.00.
014809-3_decisao_23-10-2007.doc. Acesso em fevereiro de 2011.
465
BRASIL. 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. Sentença no processo n.º
2007.34.00.014809-3. Disponível em: http://www.jfdf.jus.br/inteiro_teor/doc_inteiro_teor/14vara/
2007.34.00.014809-3_sentenca_03-12-2010.doc. Acesso em fevereiro de 2011. pp. 3/5.
224

trazer-lhe chances de cura ou sobrevida plena, e, às vezes, provocando-lhe maior


sofrimento.
No meio das duas espécies figura a ortotanásia, que significa a morte “no tempo
certo”, conceito derivado do grego “orthos” (regular, ordinário). Em termos
práticos, considera-se ortotanásia a conduta omissiva do médico frente a paciente
com doença incurável, com prognóstico de morte iminente e inevitável ou em estado
clínico irreversível.
Nesse caso, em vez de utilizar-se de meios extraordinários para prolongar o estado
de morte já instalado no paciente (que seria a distanásia), o médico deixa de
intervir no desenvolvimento natural e inevitável da morte. Tal conduta é
considerada ética, sempre que a decisão do médico for precedida do consentimento
informado do próprio paciente ou de sua família, quando impossível for a
manifestação do doente. Tal decisão deve levar em conta não apenas a segurança
no prognóstico da morte iminente e inevitável, mas também o custo-benefício da
adoção de procedimentos extraordinários que redundem em intenso sofrimento, em
face da impossibilidade de cura ou vida plena.
[...]
Por sua vez, a mistanásia, também chamada de “eutanásia social”, é a morte
provocada por problemas de infraestrutura da saúde pública, que atinge direta e
conscientemente a parcela mais pobre da população, que menos tem acesso a
adequados recursos.

Após tais conceituações, com base nos professores Luiz Flávio Gomes e
Luís Roberto Barroso466 e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
liberdade, que garantiriam também uma morte digna, considerou-se não haver
resultado penal desvalioso na ortotanásia, o que excluiria eventual crime de homicídio.
Também a omissão de socorro estaria descartada já que nesta modalidade de
acompanhamento médico há assistência para o bem-estar físico, social, mental e
espiritual do paciente. A sentença ressaltou, ainda, a existência de leis que positivam a
autonomia do paciente, como o art. 15 do Código Civil, o art. 7º, III, da Lei n.º
8.080/90 e também da Portaria n.º675/GM, de 20 de março de 2006 – Carta dos
Direitos dos Usuários da Saúde.
Ultrapassando o ponto de vista penal, a sentença observou que a resolução
em comento tratava de regulação do ato médico quanto a princípios regentes da
profissão (autonomia, beneficência, não maleficência etc.). Ressaltando que esse
regramento insere-se no ramo de medicina paliativa, expôs o significado de tais
princípios na medicina:
O princípio da autonomia reclama o envolvimento consciente do paciente no
processo terapêutico e propugna o respeito a suas decisões.
[...]
Quanto ao princípio da beneficência, é intuitivo concluir que compete ao médico
fazer tudo quanto estiver ao seu alcance para melhorar as condições de vida do
paciente. Mesmo que determinado tratamento possa lhe causar sofrimento, se

466
Idem. Ibidem. pp. 5/6
225

houver chance de cura e possibilidade de êxito deverá o médico procurar beneficiar


o paciente.
Já o princípio da não maleficência propugna que as atividades médicas, tanto
quanto possível, não devem causar mal ao paciente ou devem causar-lhes apenas o
mal necessário para que se restabeleça a sua saúde.

No caso das doenças terminais, o princípio da não maleficência sobrepõe-se


ao da beneficência, de modo que, se verificado que a vida não pode ser salva, deve-se
dar ao paciente maior conforto.
Em face dos depoimentos de médicos e de estudiosos do tema, inclusive um
padre, a manifestação do Ministério Público acolhida pela sentença registrou que do
ponto de vista prático, nada mudou com a resolução do CFM467. De acordo com as
testemunhas, o procedimento de ortotanásia já era realizado, com a peculiaridade de
que os registros nos prontuários eram preenchidos de modo a resguardar os médicos de
qualquer punição. Nesse sentido, a resolução em questão promove um registro mais
fidedigno dos atos médicos ao regular a ortotanásia.
Valendo-se também dos depoimentos dos médicos, foi consignado na
sentença que a medicina permite prever, com critérios científicos, a morte iminente
com boa precisão, estando afastado o receio de interrupção de procedimentos com
critérios duvidosos. De mais a mais, as dificuldades envolvidas no diagnóstico do fim
da vida não seriam muito diferentes do diagnóstico de doenças raras e, por outro lado,
haveria pela resolução a possibilidade de consulta a outro médico.
Como um dos seus últimos fundamentos, a sentença, na sua fundamentação
com base no Parquet, fez referência à Encíclica Evangelium vitae (O Evangelho da
Vida, 1995), que considerou válida a renúncia ao excesso terapêutico quando
esgotadas as possibilidade de benefícios.
Com base nesses argumentos, após a citação da conclusão do Ministério
Público de que a ortotanásia é uma avaliação científica balizada por critérios técnicos
amplamente aceitos, que é conduta ínsita à atividade médica, ...468, a sentença
considerou legítima a Resolução n.º 1.805/2006, do Conselho Federal de Medicina.

467
Idem. Ibidem. p. 11.
468
p. 15 Idem. Ibidem.
226

4.4.2 O caso conforme os princípios, os direitos e a crítica à regulação

A citada exposição de motivos da resolução do Conselho Federal de


Medicina faz em seu início uma crítica à ética médica tradicional com base no
princípio da autonomia. É dizer, um ramo de saber especializado toma como referência
para a edição de regra administrativa um princípio de moral política.
Em seguida, expõe que o avanço tecnológico da medicina trouxe meios
amplos para adiar a morte. Isso ocorreu num contexto em que os médicos aprimoram-
se em conhecimentos científicos e em biotecnologias, mas se esquecem do sentido da
arte médica. Há uma reflexão sobre a degradação da medicina num saber-fazer do
mero cálculo e da previsão, em que o ser humano torna-se mais um objeto à disposição
de uma produção inautêntica. Mesmo diante de questões existenciais como a morte, o
atuar tecnológico deixa de se orientar por ideais transcendentais que poderiam ter
sentido para preservar a liberdade, a dignidade e a autonomia dos indivíduos.
Preocupando-se com esses três últimos princípios, a exposição de motivos
demonstrou a importância de reflexões morais que devem ser tomadas como limites
aos excessos de diagnósticos e de terapias médicas. A finitude da vida transcende à
medicina, cabendo ao médico, diante de sua inevitabilidade, respeitar a vontade do
paciente e aliviar sua dor.
Amparadas nessas considerações e, em referências expressas a princípios
correlacionados e a deveres éticos, o Conselho Federal de Medicina autorizou a
ortotanásia. É de se destacar que não havia sobre o tema regra clara, tendo derivado a
normatização em questão da aplicação de um conjunto de princípios jurídicos, morais,
éticos e de considerações sobre o saber médico.
O debate prosseguiu no Judiciário com a submissão da questão à apreciação
da 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. Em sentença, a
abordagem do tema partiu de conceitos técnicos relacionados à medicina e à ética
médica como os de eutanásia, distanásia, ortotanásia, mistanásia, beneficência e não
maleficência.
Ao lado da absorção de tais conceitos para justificar a ortotanásia e a
comentada resolução, a sentença fez referência aos princípios da dignidade da pessoa
227

humana e da liberdade, bem como a leis que positivam a autonomia do paciente.


Foram ouvidos, ainda, especialistas e estudiosos do tema para, dentre outras coisas,
aferir-se a certeza do diagnóstico de uma doença incurável e das práticas e usos dos
médicos sobre o tema. Houve, por último, referência à perspectiva religiosa do debate.
Em síntese, esse caso da ortotanásia é um bom exemplo da capacidade de
fundamentação e reflexão dos princípios. Para regular a morte de pacientes terminais
foram aduzidas considerações morais, éticas, religiosas e técnicas – jurídicas e
médicas – na exposição de motivos da resolução e na sentença. Com isso, os princípios
jurídicos desempenharam seu papel de tradução entre conhecimentos especializados e
juízos de moral política, legitimando o exercício de competência reguladora pelo
Conselho Federal de Medicina, ao deixar claro o caráter de resgate de autonomia do
paciente. Mesmo em tema delicado, diante de bons argumentos de ordem
principiológica, é possível atestar a validade de regras por critérios sobretudo de
conteúdo, e não de mera forma.
228

Conclusão

O produtivismo da civilização contemporânea e o ideal de saber que se


erigiu após a modernidade colocou, no lugar de um mundo aproximativo, fluido,
incompleto, um mundo que se procura certo, exato e determinado. Enquanto na
Antiguidade a produção técnica pressupunha, além da habilidade artesanal, o fazer das
grandes artes e das belas artes como algo poético, a técnica moderna é uma produção
que visa à exploração e ao armazenamento de possibilidades, processando utilidades
para promover eficiência. É nesse contexto que se inserem a regulação e seu vínculo
com a burocracia, a técnica e a ciência. Com o fenômeno regulatório, o direito
confronta-se com uma crescente necessidade de produção de decisões e normalização
vazadas em regras, para atender necessidades técnicas contingentes que fragilizam os
âmbitos de vivência regidos pela linguagem natural e de relações baseadas em papéis
sociais indiferenciados e emancipadores.
O direito contemporâneo estrutura-se a partir da concepção de um sistema
de regras e da linguagem especializada da ciência e da técnica jurídica, que pela sua
artificialidade são uma barreira para a comunicabilidade do direito a um mundo de
vivências indiferenciadas. Já os princípios jurídicos, pela sua proximidade da
linguagem natural e do mundo da vida, possibilitam estabelecer uma conexão entre o
saber técnico-científico e cada um dos indivíduos.
Por sua vez, a regulação traz dentro de si uma tensão que remete a uma
relação entre sistema político-burocrático, economia, direito, ciência e técnica. Daí que
se possam destacar alguns sentidos mais gerais para a regulação como: a) padrões de
comportamentos que devem ser adotados por atividades especializadas; b) conjunto de
medidas legislativas, administrativas e convencionais de que se vale o Estado para
delimitar a livre concorrência para consecução de direitos sociais; c) oferta de um bem
ou serviço de interesse público (public utilities), que em geral exige capital e
tecnologia intensivos.
229

Nesse universo da regulação há sobrecarga de dados e informações e a


pretensão de organizá-los operativamente e instrumentalmente num marco regulatório,
que nada mais é que um sistema de regras disposto a partir de saberes técnico-
científicos com clara finalidade de garantir os mercados e seus pressupostos de
segurança nos contratos e na propriedade como modo de produzir e disponibilizar
eficientemente utilidades públicas.
Os princípios são um claro contraste com toda essa disposição produtivista,
por serem um canal de comunicação universalizável mais próximo, portanto, do
cidadão, e em que necessariamente por sua abertura inserem-se debates de moral
política. Há, na abordagem principiológica, a conformação de um modo de saber que
permite à ciência e à técnica, inclusive à jurídica, construir sentido para papéis sociais
universalizáveis como o de indivíduo, afastando a regulação de uma mera aplicação
instrumental, dispositiva e produtivista.
Nessa linha, princípios e regulação confrontam-se em polos no que
concerne à linguagem, tensionando-se entre o específico e o universal. É que a
regulação, pela especificidade de bens e serviços demandados e a tecnicidade de sua
produção, vale-se de uma linguagem especializada que pretende univocidade dos
signos e de sua sequência, numa redução da linguagem à mera sinalização e à
informação. Por sua vez, os princípios deitam raízes na linguagem natural, que é a de
uso corrente e transmitida por tradições, descortinando um mundo de vivências não
encerráveis num simples cálculo e propiciadores de um entendimento pelos indivíduos
que os coloque além dos papéis sociais restritos de clientes e consumidores. É marca
da regulação a exacerbação do tecnicismo e do economicismo, principalmente em sua
constituição linguística, com a utilização instrumental do direito, que acaba por
colonizar esferas de vivências indiferenciadas vazadas em linguagem natural.
Entretanto, o direito visto sob uma feição principiológica suplanta a rigidez dos
sistemas de conhecimentos de inspiração matemática e conquista a unidade da razão
no campo da formação de canais que discursivamente, em linguagem natural, buscam
estruturar o consenso social.
Como ressaltado pelas teorias pós-positivistas, a Constituição é sobretudo
um arcabouço principiológico, de modo que o sentido completo das regras só se revela
230

quando referido a princípios. Assim, a regulação como fenômeno inerente à sociedade


complexa deve ser confrontada e conformada de acordo com os princípios, que têm
potencial de tradução para transformar o hermetismo tecnicista da regulação em uma
ordem de sentido para o cidadão inserido no mundo da vida como esfera de vivência
indiferenciada, permitindo uma adesão autônoma aos deveres insertos na plêiade
normativa da sociedade complexa, em respeito e resgate da dignidade dos indivíduos.
É na fluidez dos discursos sobre princípios que se concertam os direitos dos indivíduos
e os deveres das autoridades no Estado Democrático de Direito, constituindo uma
ordem jurídica e institucional de sentidos vinculante e intelectível pelos cidadãos.
Nos Estados Unidos, porém, a palavra regulação e seus cognatos
relacionam-se à gênese do Estado, significando uma intervenção maior nas atividades
privadas para satisfazer necessidades sociais. No Brasil, a regulação marcou a saída do
Estado empresarial da economia, havendo remissão à legislação de padrões a serem
regulamentados por órgão técnico especializado. Na Europa, por sua vez, a regulação
tomou impulso com as privatizações, na década de 1980, em que o Estado assumiu a
função de facilitar o funcionamento das forças de mercado livre em áreas como saúde,
assistência social e em várias outras atividades governamentais.
A regulação, especialmente no caso brasileiro, constitui mudança de
paradigma. No modelo da interferência direta, o Estado, fundamentalmente uma
organização política, torna-se um ator econômico, mas sofrendo todos os influxos e
limitações inerentes à sua natureza. Na regulação, forma-se um aparato burocrático
não para atuar ou competir, sim para supervisionar, direcionar e coordenar as forças de
um mercado substancialmente privado. Nas duas hipóteses, há uma forte presença do
Estado, seja empresarialmente ou burocraticamente, mas, na hipótese da regulação,
tem-se uma potencialização do impacto das políticas governamentais por seu
somatório com as forças de mercado. Em síntese, a ênfase regulatória é o
reconhecimento de que o Estado não pode substituir nem organizar de forma absoluta
os mercados, cabendo-lhe respeitar a dinâmica própria do sistema econômico para daí
gerar com mais eficiência bens e serviços de interesse público.
A regulação já se fazia presente no Estado Social, no exercício das tarefas
redistributivas e compensatórias típicas de tal modelo. Todavia, as tarefas dos Estados
231

contemporâneos, como evolução do paradigma do Estado Social, vêm-se deslocando


para atividades de controle de riscos oriundos principalmente da aplicação da ciência e
da técnica e da estabilização de mercados. É aí que a regulação se faz mais presente
com a necessidade de crescente intervenção da Administração na esfera econômica
para a disponibilização de utilidades compensatórias típicas do Estado Social. Como
visto, o Brasil não ficou fora dessa tendência, havendo um movimento de passagem de
Estado empresário para Estado regulador no final do século XX.
Historicamente, a regulação como processo de produção artificial de
normas por entidades autônomas incrustadas no Estado deve sua existência a uma
concepção moderna de direito e instituições políticas que ocorreu a partir de alguns
pressupostos: 1) a consolidação de um sistema político-burocrático, 2) a constituição
autônoma de um sistema econômico, 3) a positivação do direito como a sua produção
artificial em regras formais com hipóteses de incidência e sanções que visavam regular
comportamentos, 4) instituições jurídicas e políticas concebidas funcionalmente para a
consecução de utilidades sociais como o estabelecimento da paz, do bem-estar social,
da vida mais agradável possível, contemporaneamente evoluídas para utilidades
sociais específicas como energia elétrica, telecomunicações, aviação civil etc. e 5) o
estabelecimento de aplicações técnico-científicas como meio para consecução dessas
finalidades sociais.
A partir de uma exposição histórica do Estado Absolutista, verifica-se que a
regulação é a inversão do fenômeno da positivação legalista como técnica de controle
social. Ao contrário do que ocorria no Estado Absolutista, em que os súditos
renunciavam de sua liberdade para conquistar a segurança, concentrando poderes no
Soberano, agora se trata de uma dispersão de poderes na máquina burocrática para
obter compensações e utilidades a partir da coordenação do processo de produção pelo
Estado. Enquanto no Estado Absolutista foi a centralização do poder no rei que
possibilitou a autonomização e o desencaixe do sistema econômico e a criação de uma
burocracia, a regulação contemporânea é fruto do amadurecimento desse desencaixe
em que a autonomia do sistema econômico e da burocracia opõe-se à própria
soberania. Em relação à autodeterminação dos indivíduos, a regulação também fornece
um nítido contraste com o Estado Absolutista: enquanto a autonomia e os direitos
232

estavam informes no Estado Absolutista, a regulação redundava numa


sobrenormatização formalizadora que, em razão de sua excessiva rigidez, embaçava os
direitos fundamentais.
Numa comparação com os pressupostos do Estado de Direito, a regulação
contemporânea significa interferência na esfera privada com vistas a coordenar a
atividade econômica para a consecução de finalidades públicas e coletivas sem a
estrita submissão às formas e aos procedimentos da legalidade. O surgimento do
fenômeno regulatório desestabiliza as bases do Estado de Direito, já que a lei deixa de
ser o único e exclusivo veículo para normatização de atividades privadas e os direitos
público-subjetivos individuais acabam relegados a segundo plano, assumindo a
produção de utilidades um papel predominante.
A irrupção da regulação, no final do século XIX, nos Estados Unidos,
representou um grande desafio para o Estado Democrático de Direito. Num único ente,
acumularam-se as funções legislativas, administrativas e judiciais e, ainda, a produção
normativa sem a legitimação pelo sufrágio. De outro lado, não se pode esquecer que a
especialização de agências e assemelhados potencializou a efetividade do poder,
permitindo a interferência do Estado na oferta de utilidades caras para a sua
legitimação perante a população com redistribuição material de bens. No entanto, essa
mesma verificação reforça as preocupações que levam à conclusão de que é tarefa das
instituições jurídicas encontrar outra forma democrática de legitimar a regulação que
não as politicamente tradicionais e, sobretudo, não focada apenas na disponibilização
de utilidades materiais à população.
Foi, contudo, com o advento do Estado Social, especialmente na sua forma
de Estado de Bem-Estar Social, que a regulação teve forte impulso nos Estados
Unidos. Nesse paradigma, sua missão compensatória iniciada a partir do conflito de
classes progressivamente se adensou e se complexificou. Isso fez com que o Estado,
para distribuir bens e serviços, se especializasse em torno das prestações a serem
entregues à sociedade, como comunicações, seguridade social, energia elétrica,
seguros etc. Outra circunstância muito importante é que a distribuição compensatória
desses bens dever-se-ia adequar aos pressupostos da economia de mercado, mantendo
a acumulação de capital, a propriedade e os contratos em seu cerne intocados. A
233

resultante foi uma criação progressivamente crescente de entes como as agências


reguladoras.
Encarado o tema a partir dos desafios do paradigma de um Estado Social e
Democrático de Direito, é preciso falar na questão de legitimidade das normas
produzidas. Para o positivismo jurídico, a única legitimação de que se pode falar é
formal/procedimental. No entanto, não se pode esquecer que, de forma institucional, o
direito não pode ser legitimado apenas pelos critérios positivistas
(formais/procedimentais) especialmente no caso da atividade regulatória que se
encontra desconectada da legitimação formal pelo sufrágio.
Ao passo em que temas e necessidades do cotidiano passam a ser satisfeitos
por intermédio de um direito formal, há o risco de coisificação dos possíveis
beneficiários, que passam a desempenhar sobretudo o papel de clientes da burocracia.
A economia e o Estado, utilizando o direito como meio, apresentam-se cada vez mais
complexos e com seu crescimento penetram cada vez mais profundamente em
componentes do mundo da vida como a cultura, a personalidade e a sociedade,
afetando a sua reprodução e colonizando-os. Aí se enxerga a interferência sistêmica e
sua juridicização por um processo potencialmente deletério. É justamente nesse hiato
que devem ser inseridos os princípios como outra via de legitimação que vá além da
mera forma, da simples produção de utilidades e crie limites para a concentração de
poderes nos agentes reguladores.
No cenário de expansão da atividade regulatória, é lugar-comum na
doutrina produzida nos últimos anos qualificar o paradigma atual como o do “Estado
Regulador”. Não raro as expressões “Estado de Direito” e principalmente “Estado
Democrático de Direito” ficam em segundo plano. Isso assinala um risco para os
instrumentos clássicos de legitimação do Estado.
Em que pese a estreiteza do texto constitucional para abrigar a produção
normativa inovadora pelos órgãos e autarquias do Executivo, não se pode deixar de
reconhecer que, após o advento do Estado Social e com a crescente complexificação
da sociedade, o Congresso deixou de ser o ator proeminente na edição de normas com
poder de primário na ordem jurídica. Ao princípio da legalidade, o Estado Social e a
sociedade complexa contrapuseram âmbitos especializados que demandam
234

normalização constante e permanente. Nessa linha, o que se apresenta são leis quadros,
que fixam objetivos a serem atingidos de forma ampla e fluida.
Essa abertura oferece risco a vários princípios republicanos, como a
isonomia, a liberdade e a sua densificação em leis genéricas, abstratas, impessoais. É
uma completa transformação. À generalidade da incidência da Lei, a regulação
contrapõe papéis sociais delimitados como destinatários, tais como fornecedores,
clientes e consumidores de um mercado específico. A impessoalidade, por sua vez,
passa a significar a relação de um cliente com a burocracia. A abstração vincula-se a
uma linguagem especializada de conteúdo técnico-científico que coisifica o cidadão ao
agrupá-los em categorias vinculadas à burocracia.
Essa irrupção de forças que remete ao dito “Estado Regulador”
evidentemente implica deslocamento do eixo de produção normativa por parte do
Poder Público, passando a atividade legislativa a concorrer com uma massa de atos
administrativos normativos numa microfísica do poder. Todavia, acompanha essa
mudança de ênfase um incremento de risco de exercício ilegítimo do poder de coerção
organizado do Estado. Isso, sem dúvida, remete a uma análise da regulação como
fenômeno de instrumentalização do direito, com potencial efeito degenerador.
Nessa linha, a regulação pode ser entendida a partir de duas categorias de
distribuição de poderes pretensamente legítimos na sociedade. Dois grandes sistemas
de estudos do poder opõem-se. Um primeiro deita raízes nos sistemas dos filósofos do
século XVIII. O contrato é a matriz do poder político, em que os indivíduos cedem
parte de suas liberdades para constituir uma soberania. A opressão está no
rompimento de um acordo, na ultrapassagem de seus limites. Uma segunda forma de
exercício de poder baseia-se na repressão não mais como desrespeito a um contrato,
mas, ao contrário, como simples continuação de dominação pelo poder disciplinar.
Nos séculos XVII e XVIII emerge uma nova mecânica de poder, incompatível com o
foco exclusivo nas relações de soberania. Era uma outra forma que incidia antes sobre
os corpos dos indivíduos que sobre a terra e seu produto, buscando extrair mais tempo
e trabalho pelo exercício da vigilância com vistas a uma produção lucrativa. Define-se
aí uma nova economia, baseada no crescimento das forças sujeitadas e na eficácia do
que as sujeita.
235

O poder, em tal mecânica, não contém as forças. Procura, em verdade,


conectá-las para multiplicá-las num todo utilizável. Ele trabalha as massas e as
multidões separando-as, analisando-as, diferenciando-as, para submetê-las em
singularidades necessárias e suficientes à produção, fabricando-se indivíduos e
individualidades objetivadas pela instrumentalização. Por meio das disciplinas reforça-
se o poder da normalização e da regra, que se apoiam na natureza, na ciência, com
vistas a calculá-lo em um gasto mínimo para o máximo de eficiência. A regulação,
como fenômeno que se contrapõe à soberania, pode ser encarada como a emergência
de uma forma de poder disciplinar que invade o discurso jurídico para suprir suas
necessidades de normalização da atividade econômica e dos âmbitos especializados.
Sob o ponto de vista econômico, a regulação procura influenciar
diretamente a tomada de decisão dos agentes de mercado, dizendo respeito
especialmente sobre a formação de preços e a entrada e saída de agentes do mercado.
Merecem ser destacadas três hipóteses como vetores da regulação na economia. A
primeira considera que a regulação deve ocorrer diante de falhas de mercado,
constituindo a teoria do interesse público. Em razão de inconsistências em tais teorias,
economistas e cientistas políticos desenvolveram a teoria da captura, em que pela
proximidade setorial a agência reguladora acaba sequestrada pelos interesses dos
agentes regulados. Buscando superar as insuficiências empírica e teórica dessas
hipóteses, chegou-se a um terceiro estágio a partir do que se convencionou denominar
teoria da regulação econômica, em que a regulação constitui um recurso objeto de
disputas sociais por grupos de interesse que visam ao incremento de seu próprio bem-
estar. Essa última teoria evidencia algo muito interessante. A atividade regulatória vai
além da intervenção e do controle na produção de bens. Ela mesma é um bem
colocado em disputa por vários grupos.
Assim, o cenário da regulação não implica somente disputa por bens
materiais, abrangendo de igual modo o enfrentamento com vistas à obtenção de poder
coercitivo contido em normatizações estatais. Sob o ponto de vista do Estado
Democrático de Direito, está aí evidenciado mais um risco de apropriação ilegítima do
poder administrativo-burocrático e do direito, em razão de imperativos resultantes do
sistema econômico controlados pelo dinheiro.
236

Essa forma de atuação do Estado permite que ele seja um coordenador de


um processo de produção e distribuição de bens e serviços com alto potencial
agregador pela recepção pelos cidadãos, reduzidos principalmente ao papel de clientes
da burocracia estatal e consumidores de prestações e serviços. Esse é um processo que
difunde a lealdade, mas minora a participação. Criam-se instituições e processos que
são democráticos na sua forma. No entanto, às decisões privadas de investimento
corresponde um privatismo cívico, ou seja, um absenteísmo político acompanhado de
uma orientação para o lazer, a carreira e o consumo.
Nessa linha, no capitalismo avançado, a dominação desloca o seu caráter
explorador e opressor, tornando-se racional. A legitimação dessa dominação assume
um novo caráter com a crescente produtividade e controle da natureza que
proporcionam aos indivíduos uma vida mais confortável. A sociedade racionalizada se
apresenta como uma organização tecnicamente necessária. A racionalidade não é
apenas uma crítica da legitimação vigente, mas sim a própria legitimação. O próprio
poder político busca legitimidade pela adoção racional da tecnologia e da ciência,
ancorando-se em soluções técnicas e na própria burocracia.
A configuração técnica e burocrática das agências reguladoras, visando a
um incremento de racionalidade com eficiência, não é garantia de legitimidade de suas
decisões. Sua independência e sua neutralidade vinculam-se principalmente à dinâmica
do sistema econômico que objetiva, como prestação, a certeza e a segurança referentes
aos contratos e à propriedade alocados no setor. São garantias que a economia
demanda ao sistema político-burocrático para se engajar na dispensa eficiente de
utilidades de interesse público. Apoiada à legitimação do Estado principalmente pela
técnica e pela burocracia, esmaece-se o conteúdo moral e ético do exercício do poder
político.
Por sua vez, o influxo já descrito de imperativos, especialmente do sistema
econômico, exigiu como prestação necessária e indispensável por parte do direito uma
capacidade normativa de conjuntura, que não pode ser fornecida pelos instrumentos
clássicos do processo legislativo, dado o tempo de sua maturação e a sua não
especialização. O que se tem nesse caso são demandas sistêmicas cognitivamente
absorvidas pelo direito, resultando numa nova estruturação do direito que cria novos
237

locais de produção normativa com sentido inovador para atender às necessidades de


uma sociedade crescentemente especializada e de um Estado com fortes missões
compensatórias.
É certo que essas demandas oriundas dos sistemas econômico e político-
burocrático geram a necessidade de uma normatização de conjuntura no âmbito da
Administração, que por sua especialização e dinâmica própria não pode ter como sede
o Legislativo. No entanto, em razão dos riscos e potenciais de coerção envolvidos na
regulação, há sentido para se atribuir ao Executivo um poder amorfo e, por isso, de
difícil controle. Por isso, há necessidade de delimitação da competência regulatória
abrangendo pelo menos três dimensões: limites, conformações e diretrizes.
No que diz respeito aos princípios, a concepção de Dworkin sobre tal tema
origina-se na crítica que ele empreendeu ao positivismo. O ponto inicial desse ataque é
a verificação de que as palavras direito e dever ocupam posição central na doutrina
jurídica, colocando-se de lado a preocupação com uma norma de reconhecimento ou
fundamental como origem do sistema normativo.
Assim, em casos difíceis, com problemas conceituais agravados, os juristas
operam com base em standards para definição de seus deveres como princípios ou
diretrizes políticas. Desse modo, os princípios são critérios a serem observados por
uma exigência de justiça e moral política, dizendo respeito a direitos dos indivíduos ou
de grupos delimitados. Já as diretrizes políticas são objetivos a serem alcançados para
melhora da comunidade em algum aspecto econômico, político ou social. Por sua vez,
as regras apresentam na sua estrutura os pressupostos de sua aplicação em contraste
com princípios e diretrizes políticas não específicos. Sobre a relação entre essas três
espécies de normas, a conclusão é a de que as regras se apoiam num conjunto de
diretrizes políticas a que se adéquam e de princípios que respeitam.
Os princípios devem ser concebidos como obrigatórios, embora não
determinem isoladamente, de forma peremptória, a solução do caso. Contudo, a
origem dos princípios não está numa decisão positivada, mas num sentido de
adequação e oportunidade que se desenvolve com o tempo e encontra fundamento na
própria esfera dos princípios que remetem a normas morais e políticas.
238

As autoridades, por sua vez, não podem praticar atos arbitrários com
poderes ilimitados, o que leva a concluir que os princípios são normas jurídicas
vinculativas e que elas têm o dever de aplicá-los para respeitar os direitos envolvidos.
É certo que a Administração tenha de se pautar pelas regras oriundas da Lei, mas não
menos correto é que deve observar princípios jurídicos e realizar diretrizes políticas.
Mais claramente, ao lado da aplicação da lei de ofício e da salvaguarda de interesses
públicos, as autoridades têm compromissos também com o respeito aos princípios e
seus decorrentes direitos.
A Constituição contém uma declaração de direitos e princípios, inclusive
com caráter contramajoritários, para tanto utilizando uma linguagem supostamente
vaga. Melhor que considerar os conceitos subjacentes como vagos é reconhecer sua
abertura para questões de moral política que colocam em jogo diversas concepções
para decidir a que melhor se amolda à constelação de princípios.
Não só o Judiciário tem de se submeter a tais discussões de moral política
inerentes à Constituição. Também a Administração deve deparar-se com tais questões,
principalmente no caso do exercício do poder regulador e da capacidade normativa de
conjuntura, em que se põe a lei autorizadora em termos abertos, estando por isso
necessariamente conectada ao eixo norteador formado pela constelação de direitos,
princípios e diretrizes políticas.
O caráter de argumentação dos direitos e princípios faz com que, mesmo no
caso de uma Suprema Corte, não se possa afirmar de modo peremptório que sua
decisão sobre determinado tema seja a correta, impedindo a evolução da discussão
para os casos subsequentes. Os direitos têm abertura interpretativa por sua própria
natureza, inserindo temas de moral política no debate jurídico. Dado isso, é inevitável
que todas as autoridades tenham, numa democracia, de se confrontar com intrincadas
questões em torno dos direitos. Isso, no entanto, não as exime da obrigação de
respeitá-los, procurando levá-los a sério, como é seu dever, atuando de maneira a
explicitar uma teoria coerente e concretizando uma prática institucional congruente
como forma de densificá-los, em que pese a sobrecarga que o caráter aberto dos
direitos constitucionais lhe imponha para cumprir a sua missão.
239

A mera positivação de normas contendo regras não exime a autoridade


diante de direitos de buscar sua fundamentação na constelação de princípios. É
necessário justificar o ato, especialmente com juízos de moral política, mormente
quando os direitos em questão envolvem entes regulatórios que exercem competências
abertas, o que obviamente exige alta reflexividade e não meros juízos
descompromissados de subsunção. No que diz respeito à Administração, é certo que o
bem comum, a eficiência e o bem-estar geral são diretrizes norteadoras de sua atuação.
O problema é que a dignidade da pessoa humana e o direito a igual respeito e
consideração são mais que meros objetivos, são questões de princípios e de direitos
que impõem, em primeiro plano, deveres para as autoridades. Assim, a par de se
preocupar com objetivos que dizem respeito à coletividade, algo que enfaticamente se
impõe aos administradores é a realização e o respeito aos direitos, ainda que não
vazados em textos legais. Em suma, o interesse público e a legalidade são nortes na
atividade administrativa, mas os princípios e os direitos constitucionais são obrigações
perante os cidadãos, ainda mais quando se trata de um exercício de uma competência
aberta, como a da regulação.
Dworkin apresenta na sua obra o Império do Direito, uma concepção
coerente dos princípios que ele denomina de direito como integridade. A integridade
forma um tipo especial de comunidade: a dos princípios. Sob o signo da integridade,
ao reconhecer princípios de moral política em comum, os cidadãos devem aceitar as
exigências que lhes são feitas e fazer exigências. Os cidadãos de boa-fé devem
interpretar e construir uma organização comum e coerente, embora sob a base da
divergência. Cada cidadão tem a responsabilidade de fidedignamente procurar
identificar um sistema de princípios e de direitos para reger a vida da sua comunidade,
em que sejam virtudes políticas a equidade, a justiça e o devido processo legal adjetivo
com distribuição de papéis sociais de igual interesse e consideração na construção e
obediência ao direito. Nessa comunidade, direitos e deveres vão além das decisões e
das regras, tendo sua origem no conjunto de princípios que ambas pressupõem e
endossam.
No que diz respeito à competência reguladora, ocorre a partir de uma
autorização legal, em face da necessidade de um poder normativo de conjuntura.
240

Obviamente não se trata de um cheque em branco para os entes reguladores. A Lei traz
limites, conformações e diretrizes, expressando o direito como integridade. As
agências estão inseridas em idêntica comunidade de princípios revelada pela Lei, mas
não contam com a legitimação pelo sufrágio. Por isso, a necessidade de um esforço
mais fidedigno para revelar regras que correspondam adequadamente e
justificadamente a um conjunto coerente de princípios e acurado de diretrizes políticas.
Os entes reguladores são intérpretes da Constituição e das Leis. Não lhes cabe
emendá-las. O campo de ação dos entes reguladores, sob o ponto de vista da
integridade, é o dos direitos e das diretrizes políticas definidas por Lei e pela
Constituição.
É dizer, as agências reguladoras cuidam de oportunidades de acesso a
mercados, da normalização das condições de seu funcionamento e da distribuição de
utilidades (public utilities) com vistas à manutenção de eficiência que possibilite
contínuo crescimento da economia e justa distribuição de bens. Obviamente, não é
apenas uma questão de direitos e de princípios. Outros diversos fatores têm de ser
considerados por imperativos de ordem científica, técnica, econômica, política etc.
Contudo, ao se valerem do direito como meio para realizá-los, o respeito à integridade
faz-se necessário com a busca de uma coerência nas diretrizes políticas relacionadas a
esses diversos fatores e também com a devida fidedignidade à comunidade de
princípios, que exige sofisticação e reflexão de seus aplicadores.
O direito tem uma feição bifronte, em que se apresenta como instrumento
conectado aos sistemas econômico e político-burocrático e como instituição vinculada
ao mundo da vida, em que circulam discursos ético-morais. Para realizar a tradução e a
articulação dessas esferas, o direito se vale de um tríplice sistema de regras que
favorece um conjunto de diretrizes políticas e respeita uma comunidade de princípios.
A atividade regulatória tem-se desenvolvido sobretudo no eixo das regras para
satisfação de demandas sistêmicas oriundas de uma sociedade de especialistas.
Ainda no que diz respeito ao eixo das regras, a comunicação promovida
pelo direito torna-se audível pelos sistemas em razão de sua coercibilidade, de sua
calculabilidade, de sua dinamicidade, de sua artificialidade, de sua linguagem e de sua
hierarquização. Todavia, essas mesmas características têm elevado poder deletério em
241

relação ao mundo da vida por sua instrumentalização. Daí a importância dos princípios
dotados de conteúdo de moral política e indutores de agregação, de reflexividade, de
universalidade, de argumentação, de coerência, de perenidade, de complementaridade,
constituindo uma metalinguagem com elevado poder de legitimação. Por último, no
eixo das diretrizes políticas de caráter teleológico e utilitário se formam ordens de
preferências para o atingimento de finalidades coletivas por decisões da comunidade
ou, mais especificamente, de suas autoridades, o que leva a uma grande instabilidade e
variabilidade na seleção desses objetivos, que pode ser amenizada com a vinculação
aos princípios num processo argumentativo em que se procure justiça e coerência.
A abordagem da regulação a partir de casos concretos visou a um
fechamento do trabalho com reflexões de razão prática que pudessem evidenciar os
espaços de liberdade e emancipação que cercam o tema. No Recurso Extraordinário n.º
511.961 merece destaque o estabelecimento de um núcleo para o direito de livre
exercício profissional, que implica limitações até mesmo para o exercício de uma
reserva qualificada pelo legislador, o que permite concluir que qualquer atividade
regulatória está imediatamente vinculada e referida aos direitos e seus princípios, que
reservam ao cidadão espaços de liberdade oriundos de argumentações de moral
política. Em contraste, o Recurso Especial n.º 572.070 evidenciou os riscos da
assunção instrumental dos discursos de verdade técnica das agências reguladoras para
a realização do Estado Democrático de Direito, já que, por imperativos de ordem
econômica e burocrática, deixou-se de debater o caso a partir de regras e princípios
jurídicos. O Recurso Extraordinário n.º 349.686 permitiu ressaltar que inerente à
análise jurídica da regulação está a abordagem de uma comunidade de princípios e de
diretrizes políticas coerentes de caráter econômico e social que não se compatibilizam
com uma concepção amorfa e definidora de deveres negativos pelo poder de polícia. O
último caso sobre a regulação da ortotanásia pelo Conselho Federal de Medicina
mostrou a capacidade crítica e reflexiva dos princípios que, com sua abertura,
permitem extrair regras legítima e fundamentadamente a partir da conjugação de
saberes morais, éticos, religiosos, técnicos, científicos e jurídicos.
Uma abordagem principiológica do direito pode abrir acessos para suavizar
o tecnicismo e os excessos burocráticos da pletória normativa de cada setor fiscalizado
242

e controlado por entes estatais, legitimando-os e conferindo-lhes unidade. O direito é


capaz de verter a razão calculadora vinculada a conceitos precisos e determinados
numa razão reflexiva efetuada por meio de juízos. A possibilidade de transformar o
saber da ciência e da técnica do direito num conhecimento prudencial e filosófico
contido nos princípios fundamenta e legitima o direito. Essa é a síntese da crítica
principiológica do direito, que lhe dá um lugar e um valor no mundo das vivências dos
indivíduos. De outro lado, é o sistema lógico-operativo de regras que possibilita ao
direito acoplar-se com a economia e com o poder administrativo-burocrático,
produzindo comunicações por eles assimiláveis, com influência nos códigos
específicos de uma Administração regulada pelo poder e de um mercado regulado pelo
dinheiro. Daí a possibilidade de o direito traduzir expectativas do mundo da vida para
esferas sociais sistemicamente constituídas.
243

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