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UMA BUSCA INTERIOR EM

PSICOLOGIA E RELIGIÃO
(James Hillman)

Por

Gilberto Pires de Moraes

Resenha apresentada em cumprimento

às exigências da disciplina

O perfil do conselheiro e seus procedimentos

do

Curso de Mestrado em Teologia Pastoral - Aconselhamento

CENTRO DE PÓS GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER

DEZEMBRO DE 2002
2

IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL


CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER

Nome: Gilberto Pires de Moraess. Curso: Mestrado em Teologia Pastoral


Área: Aconselhamento Data: 09.12.02. Professor: Rev. Dr. José Cássio Martins.

RESENHA
I) BIBLIOGRAFIA:

HILLMAN, JAMES. Uma busca interior em Psicologia e Religião. 3a Ed. São


Paulo: Ed. Paulus. 1998. 136 págs.

II) TEMA/TESE/IDÉIA CENTRAL DO AUTOR:


Hillman procura mostrar em sua obra a percepção da experiência analítica e sua
relevância dentro do aconselhamento. O autor faz um paralelo entre o trabalho do
psicólogo (analista) e do pastor trazendo algumas reflexões quanto a teologia e
psicologia. Alma e psique são temas profundamente abordados nesta obra. Seu enfoque
visa perscrutar a interioridade humana, seus conflitos, e estimular um trabalho pastoral
mais vinculado a vocação do que ao profissionalismo.

III) REFLEXÃO DOS PONTOS DE VALOR E IMPORTÂNCIA DO TEXTO:


James Hillman divide a sua obra em quatro capítulos, cujos conteúdos visam
levar o leitor a uma busca interior em psicologia e religião. São muitas as considerações
e os aspectos levantados. Abordarei as principais idéias de cada capítulo, levantando os
pontos de valor e importância do texto.

1) Encontros humanos e conexão interior.


Neste capítulo, Hillman aborda no trabalho psicológico a relação entre
analista/conselheiro e o paciente. Nesta relação são avaliadas e discutidas as
expectativas, necessidades e exigências na busca da interioridade. Hillman esclarece que
tanto o conselheiro com o aconselhando interagem profundamente na busca de verdades
sobre si mesmos. Na relação terapêutica, o “ouvir” é de vital importância para a
3

consciência. Esta escuta interpessoal pode produzir “insights”, descobertas das


necessidades de quem ouve como de quem escuta, o que Hillman chama de um
“encontro de almas”.
Na busca por uma intimidade que traga liberdade ao ser, a “curiosidade” é um
mecanismo comum nas relações entre pessoas. Hillman diz que a curiosidade nasce de
sentimentos de dúvida e de incerteza: Quando não existe confiança em si mesmo, é
preciso encontrar nos outros a confirmação das suas experiências 1. Na relação analista
/ analisando, é comum perceber no paciente sua resistência à curiosidade do que o
analisa. Esta curiosidade é em grande parte aguçada por meio de perguntas. Neste
aspecto o analista ou conselheiro deve ter bom senso e inteligência em suas abordagens,
discernindo a relevância de suas perguntas, como também avaliando seus próprios
traços e tendências, encontrados na curiosidade pelo “outro”. Não podemos olhar para
as pessoas como se elas fossem uma charada 2. Hillman afirma que todo método de
curiosidade mental bloqueia o encontro de duas mentes, ou seja, o principal
impedimento de conhecer o outro é exatamente o desejo de conhece-lo. Portanto, é vital
não uma entrevista inquisitorial com a pessoa, mas a busca objetiva de um “encontro”.
Dentro desta tema, Hillman faz um comentário muito interessante quanto aos padrões
de comportamento dos animais e os posicionamentos humanos. Assim como muito
animais buscam um distanciamento quanto aos outros animais que estão ao seu redor,
assim também, o ser humano demonstra sua dificuldade em se expor ao próximo. A
figura do analista e/ou conselheiro pode ser interpretada como a de um “domador”.
Portanto, aquele que orienta, deve ser sensível a necessidades que as pessoas tem de
encontrar seu próprio espaço.
Hillman aborda também a questão do amor. Dentro de um contexto analítico e
de aconselhamento, ele analisa o amor enquanto atividade do estado de ser. Ao discorrer
sobre intimidade e comunidade, o autor ressalta que comunhão não é apenas
comunicação, esta comunhão manifesta-se num acolhimento mútuo. Hillman diz que
encontramos um ao outro tanto ao refletirmos o inconsciente coletivo quanto ao
expressarmos exteriormente nossa comunicação pessoal3.

1
HILLMAN, James. Uma busca interior em psicologia e religião. Pág. 21.
2
Ibid, pág. 22.
3
Ibid, pág. 36.
4

Os temas levantados neste capítulo são importantes para refletirmos na beleza e


perplexidade da alma humana. O papel do conselheiro exige sensibilidade quanto aos
seus próprios dilemas e os conflitos dos outros. Esta interação com a natureza humana é
vital na conquista de “insights” na avaliação e cuidado das pessoas.

2) Vida interior: o inconsciente enquanto experiência.


Neste capítulo, o autor faz uma análise interessante quanto ao conceito de
“alma”. Hillman explora de que forma a análise profunda conduz a alma, e como esta
por sua vez, envolve inevitavelmente a análise com a religião e mesmo com a teologia,
visto que a religião vivida como experiência nasce da psique humana, sendo por causa
disso um fenômeno psicológico.4
No tema “perda da alma” , o autor discorre quanto ao aspecto antropológico que
envolve os povos primitivos, nos quais a pessoa se aliena e assume uma postura de
infelicidade quanto a vida, abandonando seus ritos e tradições. Em contextos adversos,
encontramos pessoas que experimentam este fenômeno de abatimento, esvaziamento e
alienação do viver. A crise da meia idade é um exemplo disto. Hillman afirma que
diante deste conflito, os pastores buscam explorar apoio na psicologia, pois a mente é
que o que mais se aproxima da alma. Diante de algumas circunstancias, o treinamento
pastoral se confunde cada vez mais com o clínico. Há muita controvérsia quanto ao
espaço que a psicologia tenta conquistar na teologia e vice-versa. Para Hillman o pastor
não deve perder sua identidade como um “curador de almas”. A missão do orientador
pastoral difere fundamentalmente do analista e dos psicólogos clínicos e acadêmicos. 5
Hillman faz alusão a Jesus e a forma como ele interagia com as pessoas. Da mesma
forma, o pastor deve imitar a Jesus e não a psicologia. 6 Hillman vai “mais fundo” ao
afirmar que a missão do pastor é a dedicação da alma, sendo que esta dedicação deve
iniciar-se pela sua própria alma. Ou seja, o ministro deve “irrigar” sua vocação através
de um crescimento e manutenção contínua da alma, isto gerará um ambiente de “cura”
tanto para o pastor como para suas “ovelhas”.
Quando se perde o “sentido da alma” é comum vermos pessoas vivendo enormes
confusões de ordem moral, incertezas nas suas atitudes e inconstância nas emoções.
4
Ibid, pág. 42
5
ibid., pág. 45
6
ibid. pág. 45
5

Neste sentido Hillman diz que não adiante haver conflito entre teologia e psicologia na
luta pela alma. Ambas tem seu papel e sua relevância no cuidado da alma. Hillman ao
abordar a alma no campo analítico, mostra a importância do inconsciente e os meios de
perscruta-lo. Atos falhos, sonhos, associação livre são instrumentos da psicanálise que
podem descortinar o “iceberg” do inconsciente. Diante desta viagem a interioridade
humana, se encontra complexos, recalques, profundas emoções, que servem como
diagnóstico de uma alma triste e vazia. Não há como negar que alma está
profundamente ligada às emoções. E dentro desta dimensão a religiosidade tem um
lugar importante na vida afetiva das pessoas. Para Hillman, o pastor pode se aproveitar
de alguns recursos da psicanálise, no sentido de aprofundar-se mais na interioridade
humana. Por exemplo, Hillman sugere que os pastores valorizem mais os sonhos. 7 O
autor sugere que sejamos “amigos do sonho”. Nada é mais nosso do que nossos próprios
sonhos... Esta amizade propiciará uma clarificação maior dos nosso conflitos
mergulhados no inconsciente.
Concluindo este capítulo, Hillman faz um paralelo entre a alma e sua relação
com a psicologia e a teologia. Hillman afirma que a preocupação religiosa torna-se uma
manifestação espontânea de cada um de nós, quando a alma é reencontrada. 8 Ou seja, a
mera religiosidade sem o aprofundamento da alma pode torna-se uma “camisa de força”
terrível, alienando e cauterizando consciências e roubando a perspectiva de vida
espiritual e afetiva. Na busca pela alma, Hillman indaga se a prioridade é da psicologia
ou da religião. Neste aspecto ele afirma que para a psicologia, o que vem primeiro é a
alma, depois a religião. Mesmo assim, a alma não atinge a plenificação sem concretizar
o seu envolvimento religioso.9 A conclusão que Hillman chega diante deste
questionamento é que a redescoberta da alma através do inconsciente resulta num
interesse ao mesmo tempo teológico e religioso.
Creio que como pastores, a alma é um assunto que gira tanto no aspecto
dogmático, teológico, como também no aspecto emocional, psicológico, intrínseco a
vida e a felicidade. Cabe a nós, refletirmos no tema, usando todos os meios possíveis
para propiciar saídas aos conflitos humanos, a começar dos nossos..

7
ibid. pág. 60
8
Ibid, pág. 66.
9
Ibid., pág. 67.
6

3) A escuridão interior: o inconsciente enquanto problema moral.


Hillman inicia este capítulo denunciando a hipocrisia vivenciada em muitos
gabinetes pastorais, onde se requer e exige-se muita coisa, que na prática não é vivida.
Ou seja, existe uma ruptura entre prédica e prática. Apesar disto, não se pode também
forçar a “prática” aos moldes de uma prédica moralista, fortalecendo ainda mais os
conflitos. É preciso balizar o discurso a uma postura real e equilibrada da vida, evitando
assim um adoecimento maior da alma, e possibilitando uma visão clara e restauradora
do que somos.
Hillman faz uma análise interessante sobre o ponto de vista das pessoas quanto a
psicanálise e a religião. Alguns vêem a análise como um instrumento de libertação da
moralidade, liberando o Id e o Ego, outros vêem a religião como um agente da
moralidade. Para Hillman esta realidade mudou, a nova teologia condena os exageros da
antiga moralidade, desafiando os fiéis a terem um estilo de vida baseado no amor.
Hillman busca mostrar neste capítulo, como é complexo o inconsciente enquanto
problema moral. O inconsciente é como uma porta, que uma vez aberta, pode-se
encontrar escuridão no sentido de mazelas e conflitos de uma natureza reprimida. O ser
humano é uma “caixinha de surpresas”, e isto se torna evidente na existência dos
recalques e neuroses da alma humana. Muitas atitudes aparentemente gentis podem
revelar no seu bojo muita sujeira e opressão. Um exemplo são pessoas aparentemente
altruístas. Este altruísmo pode ser uma hipocrisia compensada, por um egoísmo
fracassado.10 Hillman fala da moral coletiva e dos infantilismos envoltos em nosso
inconsciente. Para atingir uma “estatura” emocionalmente falando é necessário
abandonar todo e qualquer infantilismo. Nossas neuroses nada mais são do que
infantilismos recalcados e reprimidos em nosso inconsciente.
A cura da sombra é para Hillman, um problema de amor. Exercitarmos muita
dedicação a nossas fraquezas e doenças. Amar a si mesmo não é fácil, isto porque, este
amor inclui nossa sombra, onde somos inferiores e socialmente não aceitos.11
Ao analisar os vários aspectos que envolvem a sombra e sua cura, Hillman faz
uma alusão sobre os paradoxos que a envolvem o amar e o julgar. 12 De forma prática o
autor levanta alguns questionamentos quantos aos problemas do amor e do sexo
10
Ibid. pág. 77.
11
Ibid, pág. 79.
12
Ibid, pág. 81.
7

enfrentados pelas pessoas. A nova moralidade em algumas situações sustenta em nome


do “politicamente correto” práticas como a luxúria e o adultério. Tais práticas são
justificadas sobre a premissa de que tragam significado, transcendência e profundidade
às pessoas. Esta forma de pensar é questionada por Hillman:13
“Será que ‘significação’, ‘transcendência’, ‘profundidade’ e ‘inocuidade’ são critérios
adequados para o amor de alguém quando através dele se justificam a luxúria e o adultério.....
Mesmo que o amor traga significação e cura, ele vai abrindo novas feridas enquanto cicatriza
as outras mais antigas e não oferece proteção alguma contra o seu despertar, por vezes
destrutivo.
Para Hillman a questão a ser levantada quanto a nova moralidade não é
sabermos se ela é moral ou teologicamente correta, mas sim se ela é psicologicamente
válida! È preciso conhecer um pouco da escuridão interna que contamina o nosso amor,
ou seja, é preciso refletir as razões e justificativas que levantamos para dizer que
“amamos” . O amor romântico disseminado no Ocidente é ilusório e torna-se uma “doce
resposta enganadora endereçada a um mundo árido e tecnologizado...”. 14
Muitas
pessoas ao dizerem que estão se entregando totalmente em amor à alguém, estão na
verdade entregando um monstro interior para alguém tomar conta. Este comentário de
Hillman desvenda as inúmeras relações de amor, marcadas por traços neuróticos e
infantis, os quais trazem muitas pessoas aos consultórios de psicologia e gabinetes
pastorais. Hillman expressa sua posição sobre o amor dizendo: “O amor é mais
complexo que suas emoções, da mesma forma que Deus é mistério e não
entusiasmo...”.15
Uma outra abordagem relevante quanto a moralidade é a luta contra o “mal”:
“O mal arquetípico não pode ser curado, integrado ou humanizado. Só resta vigia-ló!” 16
Hillman afirma que a realidade da sombra no aconselhamento demonstra que a
honestidade é uma graça que não podemos esperar de quem nos procura, nem de nós em
relação as pessoas, e nem de ninguém em relação a Deus. A realidade da sombra
implica o reconhecimento por parte do orientador pastoral da vastidão de seu próprio
inconsciente coletivo, das sombras de sua alma, pois é exatamente a ignorância de tudo
isso a responsável pelo longo declínio de sua vocação e também de nossa fé.
13
Ibid, pág. 83.
14
Ibid, pág. 85.
15
Ibid, pág. 86.
16
Ibid, pág. 94.
8

Dentro deste comentário é importante ressaltar como é atribuído ao “maligno”


nos dias de hoje grande parte dos problemas das pessoas. O diabo tem “costas bem
largas”, diante de tantos conflitos que são decorrentes dos próprios pecados ou feridas
nos corações das pessoas. É preciso se abrir para uma leitura daquilo que está oculto
dentre de nós, buscando na graça de Deus, o remédio para nossas feridas, como o
complemento para nosso vazio interior.

4) A feminilidade interior: a realidade da “anima” e a religião.


Diante da leitura feita, este capítulo foi um dos que mais me chamaram a
atenção, principalmente por abordar partes de nossa personalidade que precisam ser
estimuladas a envolver-se com a vida na sua plenitude. Hillman afirma que não
podemos aprofundar a abordagem da experiência do inconsciente, nem a conexão do
mesmo com a religião sem nos familiarizarmos com a feminilidade interior. Hillman
discorre aqui muitos traços do inconsciente do homem e da mulher que retratam esta
necessidade de afetividade e sensibilidade em espaços vazios e carentes da alma
humana. Hillman a firma que os valores e profundidades da alma são, às vezes,
representados por uma figura feminina sem muita personalidade, um rosto indistinto,
uma figura do passado que nem chegamos a notar e que, mesmo assim, reaparece em
sonhos sob vários disfarces, à espera de atenção.17
Hillman apresenta vários exemplos desta “mulher interior” que podem
representar a figura materna; a mulher mais velha, sabia e conselheira; a mulher
simples, mas de bom coração; a mulher pálida e loira; a prostituta; a menina pássaro;
etc. Todas estas figuras representam traços de nossa personalidade que correspondem a
atitudes, e áreas que precisam ser compreendidas e resgatadas em nossa alma. Todas
estas mulheres são imagens da anima, da alma. E através delas desvenda-se a vida
interior de um homem, o relacionamento que ele tem consigo mesmo e com tudo aquilo
que está além dele.18 Hillman afirma que o caminho para o masculino mais amplo, forte
e firme se dá através da associação íntima com a nossa feminilidade interior,e ninguém
pode se esquivar desta confrontação evitando a “anima”, pois isso apenas a tornará mais
desordenada, sedutora e exigente.

17
Ibid, pág. 103.
18
Ibid. pág. 108.
9

Hillman faz um paralelo entre a relação da anima com a religião, dizendo que a
“anima” expressa nossa capacidade de responder e de interiorizar, como também nos
mostra formas de desdobramento de nossa vida religiosa. Se a imagem da minha alma
for jovem demais, ou então muito fria ou materialista, ou ainda muito crítica, é certo
que haverá distorções correspondentes em minha vida religiosa. 19 O que Hillman diz faz
sentido quando olhamos para o embrutecimento de alguns líderes eclesiásticos, que
necessitam desesperadamente em descobrir sua “anima”, visto que desprezam um lado
do qual são tão carentes para se encontrarem com a linguagem do afeto e do amor.
Hillman diz que para nos aproximarmos da feminilidade interior, é necessário
avaliarmos nossas emoções e estados de ânimo. O inconsciente desvenda por meio de
sonhos, fantasias e emoções expressões de nossa interioridade. O lado feminino é visto
em atitudes como autopiedade, sensibilidade, sentimentalismo, consciência de
fraqueza, desânimo e depressão. Esses tipos de emoções realmente diminuem a
eficiência de um homem, assim como discutir e brigar quase sempre diminui a
capacidade feminina de criar relacionamentos. Apenas em situações íntimas, é que os
homens conseguem revelar essa feminilidade, esse aspecto sensível, delicado e até
mesmo suscetível.
Estas observações que Hillman faz, nos desafia a conhecer e perscrutar o que há
em nossa interioridade. Muitos pais não compreendem seus filhos adolescentes, pois
não houve acerto com a criança ou adolescente interno; da mesma forma muitos homens
que passam pela crise da meia idade necessitam entender e discernir os sintomas que os
levam a romper com família, sociedade, etc., e isto tem a ver com a descoberta do que
somos interiormente e nossas necessidades. É necessário, neste caso, como afirma
Hillman, uma reorientação do ponto de vista masculino que parece ser o propósito das
emoções femininas que nos deprimem e enfraquecem.20
Hillman aprofunda mais o tema, ao relacionar os símbolos e modelos do aspecto
feminino que aparecem na experiência religiosa. O autor cita exemplos como xamãs,
Hércules; Orfeu; Buda; A cabala judaica; a Mariologia; etc.
O movimento em direção à alma é um movimento de interiorização. Esta
interiorização não deve ser entendida como o interior do homem, mas sim o interior das
coisas, de todas as coisas. Hillman resgata a antiga idéia da anima-mundi, a alma do
19
Ibid, pág. 109.
20
Ibid, pág. 112.
10

mundo, para mostrar que tudo possui alma, que em tudo é possível haver
interiorizações. Cultivar a alma é, portanto, entrar gradualmente em contato com a base
poética da mente, expressão utilizada por Hillman para apontar o caráter imagético do
psiquismo.
Hillman faz uma alusão também aos conflitos encontrados no casamento e na
relação familiar. Temas como intimidade, sexo e paixão, nos leva a refletir no desprezo
ou ignorância quanto aos aspectos pertencentes a “anima” ou ao “animus”. No
casamento, por exemplo, temos a chance de viver a união dos opostos e de cultivar Eros
todos os dias. Hillman afirma que no casamento, duas metades não fazem um inteiro.
Esta afirmação denuncia o conceito que existe em muitas de nossas igrejas, que levam
os jovens a esperar do casamento, o meio pelo qual eles se sentirão “inteiros”. No
casamento, devem se unir pessoas “inteiras” que estejam abertos para uma relação de
troca e afeto. Hillman faz um balanço interessante das responsabilidades e influência do
homem e da mulher na relação. Hillman afirma que a perda da “anima” do homem e os
seus laços maternos ultracompensatórios, bem como o fato de a mulher esconder-se da
feminilidade no envelhecimento, são os fatores que rapidamente ressecam e congelam o
casal em maridos e mulheres pré-fabricados, tão arquetipicamente iguais em todos os
cantos do mundo.21
Toda abordagem levantada por Hillman neste capítulo revela a contundência da
feminilidade interior, a realidade da anima nos principais conflitos e dilemas do ser
humano, conflitos estes que englobam a religião. Cabe aos conselheiros refletirem estas
questões no gabinete pastoral com o coração aberto, partindo das próprias necessidades
que nós “curadores feridos” vivenciamos. Há muitos aspectos no temperamento e na
alma das pessoas, que necessitam de uma leitura mais profunda e significativa quanto as
origens de seus dilemas e conflitos.

IV) CRÍTICA - DEFICIÊNCIAS OU OBJEÇÕES.


Na minha opinião ao discorrer cada capítulo, o autor poderia estruturar em
tópicos e sub-tópicos os vários temas abordados, isto enriqueceria muito a progressão
do raciocínio, e as idéias seriam distribuídas sistematicamente. Em alguns momentos

21
Ibid, pág. 119.
11

ficou difícil associar o tema proposto no capítulo, nas várias idéias desenvolvidas, sem
uma devida estruturação de subtemas.
Em alguns parágrafos, senti um pouco de dificuldade em compreender os
pressupostos levantados pelo autor, principalmente em situações que ele postulava
conceitos de psicologia. Mas de qualquer forma os temas desenvolvidos nestes quatro
capítulos disseminaram idéias interessantes na relação entre teologia e psicologia.
No geral, creio que a proposta de Hillman por uma busca interior no campo da
religião e psicologia, é relevante aos tempos em que vivemos e esta obra deve ser lida e
analisada por conselheiros que postulam trabalhar com pessoas na restauração de seus
conflitos e na busca de uma vida mais plena.

V) CONCLUSÃO – DESAFIO PESSOAL


Como pastor e conselheiro, entendo que a proposta difundida no livro de James
Hillman é relevante à nossa geração. No que concerne ao campo religioso, precisamos
de pastores que se preocupem mais com a “alma” no sentido de explorar-se a plenitude
e beleza da vida. Muitos líderes religiosos agem diante do rebanho mais como
“vendedores de mapas” do que verdadeiramente “guias do rebanho”. Vendedores de
mapas possuem idéias tremendas acerca dos desertos, no entanto, eles não ousam
caminhar ao lado das pessoas debaixo do sol escaldante ou em meio às noites frias. 22 O
papel deles restringe-se a oferecer mapas para os mais variados desertos da vida. Isto
acontece, porque eles mesmos estão fechados a uma busca interior de si mesmos, não
encaram seus desertos, e se sustentam nas falsas bases de um poder religioso que ofusca
e tira a beleza de uma vida plena diante de Deus e dos homens.
Como curadores de almas, não podemos negar a realidade do inconsciente e das
tremendas demandas que surgem neste “iceberg”, cuja maior parte está submersa nas
entranhas do ser. Necessitamos de uma busca interior, que traga descoberta e
encantamento com a graça de Deus que cura e restaura. Psicólogos, terapeutas e
analistas necessitam de alguém que os analise regularmente, a fim de que as
transferências e contra-transferências que ocorrem comumente no seu campo de
trabalho não os “suguem” totalmente. Da mesma forma, necessitamos dentro do campo

22
AGRESTE, Ricardo. Artigo 4 - www.fortunecity.com/victorian/pictureway/147/
12

pastoral, de encontrarmos “ouvidos” abertos e sem preconceitos para dilemas comuns


por nós enfrentados. A figura do “mentor” necessita ser resgatada no meio pastoral, a
fim de que apresentemos uma proposta pastoral coerente com a realidade humana, a
começar dos próprios pastores, que não são onipotentes nem detentores de toda verdade.
Num contexto onde se valoriza muito a ortodoxia, devemos estar abertos a uma
ortopraxia coerente com nossos valores e com a temática de nossos discursos. As
pessoas hoje não estão tão preocupadas com discursos, mas com uma preocupação
autêntica para com elas, por parte dos pastores e conselheiros. Uma vida plena e
abundante é o resultado de alguém que busca a intimidade e a solitude com Deus, e
neste caso, o primeiro a ser tratado somos nós mesmos. Só podemos abençoar os
desertos das pessoas, quando enfrentamos nosso próprio deserto. Neste aspecto creio
que a classe pastoral necessita de cuidados, a fim que geremos em nosso meio mais
graça e cura do que doença e culpa. A “alma” não pode ser vista apenas não seu aspecto
dogmático, escatológico, mas deve ser cuidada no seu campo espiritual, existencial e
afetivo. Vida abundante pressupõe uma alma redimida da culpa, da dor e dos estigmas
dos quais a existência humana nos expõe. Necessitamos de pastores e conselheiros
contemplativos, abertos para a poesia da alma e do significado pleno do viver. Que
Deus nos ajude a caminhar nesta viagem em busca desta vida interior que Jesus
vivenciou plenamente como um curador ferido, um curador de almas. Amém.

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