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Abstract The article explores João de Barros Resumo O artigo explora ideias e propostas de
Barreto’s ideas and proposals for the field of the João de Barros Barreto para o campo da organi-
organization of health services in Brazil. Based zação dos serviços de saúde no Brasil. A partir da
on the proposal of the Capanema Reform (1937- proposição da Reforma Capanema (1937-1941),
1941), the text reveals the context of the formula- o texto constrói historicamente o contexto da for-
tion of the so-called district health model in Brazil mulação do chamado modelo distrital em saúde
historically, focusing on its logic, conceptual and no Brasil, com foco em sua lógica, bases concei-
theoretical principles and resources employed. The tuais e teóricas e recursos empregados. Conclui-
conclusion drawn is that Barros Barreto’s profes- se que a trajetória profissional de Barros Barre-
sional career, contextualized in a specific scenario to, contextualizada em um cenário específico de
of ideas, state agenda and organizational perspec- ideias, de agenda de Estado e de perspectivas orga-
tives, contributed decisively to the constitution of nizacionais, colaborou decisivamente para a cons-
modeling achievements of relevant organizational tituição de realizações modeladoras de um arranjo
arrangements in the trajectory of Brazilian public organizacional importante na trajetória da saúde
health. pública brasileira.
Key words History of public health, History of Palavras-chave História da saúde pública, His-
the organization of health services, Capanema tória da organização dos serviços de saúde, Refor-
Reform, João de Barros Barreto ma Capanema, João de Barros Barreto
1
Observatório História e
Saúde, Casa de Oswaldo
Cruz, Fundação Oswaldo
Cruz. Av. Brasil 4036,
Manguinhos. 21040-361
Rio de Janeiro RJ Brasil.
carlos.paiva@fiocruz.br
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Paiva CHA
medalha de ouro Oswaldo Cruz, concedida pelo realizações do setor, bem como as orientações
Instituto Oswaldo Cruz. Em 1950, cerca de seis específicas, inclusive em suas conexões interna-
anos antes de sua morte, receberia a comenda da cionais; as controvérsias e a emergências de no-
Ordem Nacional do Mérito, uma condecoração ções e conceitos que, no terreno da saúde pública,
concedida pelo Estado brasileiro somente àque- teriam vigência longa. Há que se considerar, em
las pessoas reconhecidas pelas suas grandes con- resumo, as especificidades do debate organiza-
tribuições ao país12. cional em saúde.
Quando assumiu a direção do Departamento
Nacional de Saúde, em 1937, Barros Barreto já O debate organizacional brasileiro
era um sanitarista maduro e consagrado. Na altu- em saúde: ideias e propostas
ra dos seus 47 anos de idade, tinha vivido tempo
suficiente para acompanhar e ser um operador, No terreno estritamente do que chamaríamos
de relativo destaque, de mudanças organizacio- hoje de “organização dos serviços de saúde”, as
nais na saúde que, no contexto dos anos 1920, re- diferentes gerações de sanitaristas brasileiros que
velavam-se ainda incipientes se tomarmos como atuaram nos anos 1920 e 1930, em parte ancora-
referência o que viria adiante. Não estava sozi- dos na experiência internacional, especialmente
nho, Barros Barreto era parte de uma nascente da Fundação Rockefeller, foi protagonista da de-
comunidade de especialistas em administração fesa do atendimento às necessidades de saúde lo-
da saúde pública, juntava-se a diferentes gerações cais baseado em centros de saúde de ação integral
de pesquisadores e especialistas, como Geraldo e permanente; da ênfase na educação sanitária e
de Paula Souza, Rodolfo Mascarenhas, Francisco do desenvolvimento de ações compatíveis com a
Borges Vieira, José Paranhos Fontenelle, Mario noção de promoção à saúde; da valorização da
Pinotti, Aquiles Scorzelli, Claudio Magalhães da base multiprofissional dos serviços; da ação sani-
Silveira, Virgilio Correia, Alfredo Bica e outros9,12. tária disseminada por agentes de saúde visitado-
A este respeito, há que se pensar o período res e da atuação em tempo integral dos profissio-
Vargas (1930-1945) como uma fase que, em boa nais ligados a pesquisa e ao ensino em saúde19,20.
medida, se cristalizam orientações e tendências Àquela altura, por meio de bolsas de estudo,
anteriores, mas também como um período em distintos sanitaristas brasileiros já registravam
que novas ideias e propostas ganharam contor- formação profissional nos Estados Unidos. Ha-
nos institucionais mais precisos e marcantes. No via, por assim dizer, uma elite de médicos-sani-
terreno das experiências que conformariam os taristas que, a partir dos anos 1930, construiriam,
debates sobre organização dos serviços de saúde, gradualmente, uma arena de problemas acerca
por exemplo, as décadas que se seguem a 1930 do que ficou conhecido como “a questão organi-
parecem-nos, neste ponto, decisivas. zacional da saúde pública”, em boa medida, como
O fato é que a Saúde, como um setor admi- dissemos, em sintonia com uma tradição rocke-
nistrativo, não ficou imune às orientações e ten- felleriana19,21-23.
dências mais gerais do período Vargas, sobretudo Ocorre que os anos 1930 e 1940 representa-
no que concerne à centralização político-admi- ram uma fase da história brasileira – e até certo
nistrativa e à formatação de uma “cultura téc- ponto global – em que o debate organizacional
nica” acerca dos assuntos da administração. Tal ganhou inegável musculatura. A ideia de que o
cultura considerava uma desejada separação en- Estado deveria ser objeto de uma “organização”,
tre Administração e Política, de modo que, me- que lhe atribuísse maior racionalidade e eficiên-
diante a introdução de mecanismos burocráticos cia, pautou condutas de diversos atores15-18,24,25.
na Administração Pública, se promoveria uma Tal ideia ganhou destaque e importância, em
necessária condução “técnica” e apolítica dos boa medida, porque foi habilmente conduzida
processos decisórios do Estado15-18. Hochman, por pessoas que reuniram tanto capacidade de
por exemplo, chega a referir a reforma conduzida produzir conhecimento sobre o assunto quanto
por Barros Barreto como uma espécie de “atu- de compartilhá-lo com seus contemporâneos.
alização” da organização da saúde pública aos Barros Barreto, assim como outros personagens
preceitos político-organizacionais mais gerais do de seu tempo, pela importância que adquiriu na
Estado brasileiro3. produção de ideias e conhecimentos, pelo desta-
Tal “atualização”, contudo, não fez da admi- que de suas posições institucionais e envergadura
nistração da saúde pública um epifenômeno da dos projetos que idealizou e implementou, colo-
organização geral do Estado. Há que se conside- ca-se como personagem importante num proces-
rar as tendências já estabelecidas no debate e nas so de definição dos termos do debate organiza-
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O segundo ponto, que trata dos males de necessária profissionalização dos gestores hospi-
alcance coletivo, remete a uma modalidade de talares, mas também uma forma de organização
trabalho profissional cujo foco é, por meio do que instituísse racionalidade no fluxo de usuá-
tratamento e preservação da saúde dos indivídu- rios entre os hospitais e entre estes e os centros de
os de um dado território, a melhoria constante saúde, dispensários e outros organismos31.
e permanente das condições gerais de vida e de Uma segunda dificuldade que seria enfrenta-
saúde. A dimensão coletiva do exercício do tra- da com a implantação de centros de saúde distri-
balho materializa-se na oferta de serviços e na ca- tais envolvia a carência de informações sobre a
pacidade coordenadora do centro em sua região. realidade sanitária. Nesse sentido, o centro seria
Tal “capacidade coordenadora” se expressaria, no também o organismo capaz de centralizar, or-
contexto da Reforma Capanema, no que se refe- ganizar e produzir estatísticas vitais, inquéritos
re à conduta profissional, por exemplo, na já co- e estudos capazes de permitir uma melhor com-
mentada operação de um “sistema de cartas entre preensão acerca da realidade médico-sanitária no
clínicos”, mecanismo imaginado para promover escopo do distrito. A ideia de que o trabalho em
a coordenação do consumo de produtos e ser- saúde deveria, portanto, ser subsidiado por infor-
viços de saúde e à troca de informações clínicas mação qualificada já estava igualmente colocada.
sobre a situação de saúde das pessoas10. Nos primeiros anos da década de 1940, em
Salienta-se que a dimensão coletiva do traba- termos práticos, os centros de saúde tinham um
lho profissional se encontra especialmente pre- alcance territorial que não era modesto nas ca-
servada, notadamente no âmbito de atuação da pitais. Em Salvador, por exemplo, registramos
visitadora sanitária, com o foco não no cuidado três centros de saúde distritais; em Recife, quatro
de saúde individual, mas na família como unida- centros; no Distrito Federal, sob a batuta de Bar-
de de cuidado essencial. ros Barreto, doze centros; em São Paulo, onde a
As bases tanto de um papel institucional ino- experiência justamente se iniciou, três.
vador, concebido para o centro de saúde, quanto No entanto, se considerarmos os níveis po-
de desempenho e organização do trabalho pro- pulacionais de cobertura imaginados em cada
fissional para seus trabalhadores estavam clara- distrito (100.000 a 150.000 habitantes)28, pode-se
mente lançadas no contexto dos anos 1920-1940 concluir que a extensão dos centros de saúde so-
e se pode dizer com boa dose de segurança que bre o território nacional era bastante ambiciosa.
tal papel passou pela mente inquieta de figuras O fato é que, nas circunstâncias da época, com
como Barros Barreto, Paula Souza, Borges Vieira fortes limitações de comunicação e transporte,
e outros personagens. não nos parece sensato imaginar que a função
No que tange propriamente à dimensão or- dos centros de saúde, tal como descrita acima,
ganizacional, os centros teriam um papel na co- fosse desempenhada satisfatoriamente. Mas esse
ordenação de serviços, uma vez que “serviços de é um ponto que não só foge aos objetivos deste
assistência médica ou sanitária em grandes co- texto quanto é carente de estudos históricos que
munidades, se não forem coordenados, trazem, permitam, de fato, aquilatar a relação entre as
geralmente, dificuldades”27. Mas que dificuldades ideias e propostas em tela ou sua real implanta-
seriam evitadas com a implantação de centros de ção em políticas efetivas naquele período.
saúde distritais? Para aquilo que nos interessa, pode-se inferir,
O primeiro deles é a duplicação de esforços. diante de tudo que dissemos, que no contexto dos
A ideia de que, dentro de um determinado terri- anos 1930-1940, com um certo alcance, Barros
tório, deveria haver alguma racionalidade tanto Barreto foi um construtor com elevado nível de
na oferta e prestação dos serviços quanto no con- protagonismo na elaboração de ideias e propostas
sumo de serviços é a base do pensamento distri- acerca da organização da saúde pública brasileira.
tal. Nessa linha, cada instituição deveria cumprir Pode-se, ainda, especular acerca da importância
um papel em um “sistema” funcional que previa de suas ideias, especialmente aquelas assentadas
a existência de instituições de atendimento geral na noção de território e num papel protagonista
e especializado. Atente-se que, como premissa, do centro de saúde, como contribuições para um
a ideia do que convencionamos chamar de uma pujante e não linear processo de construção do
organização sistêmica não era monopólio dos campo da administração e organização dos ser-
defensores dos centros de saúde e da organização viços de saúde no país. Um movimento que, cer-
distrital. No terreno hospitalar, a Divisão de Or- tamente, envolveu estas e outras gerações de sani-
ganização Hospitalar (DOH) do Departamento taristas brasileiros, da qual Barros Barreto é, sem
Nacional de Saúde (DNS) não só defendia uma sombras de dúvida, uma importante referência.
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