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DOI: 10.1590/1413-81232021268.

16842020 3245

João de Barros Barreto: um construtor do debate organizacional

construtores da saúde COLETIVa Collective Health Builders


em saúde no Brasil

João de Barros Barreto: a builder of the organizational debate


on health in Brazil

Fonte: Inventário do Instituto Oswaldo Cruz.


Departamento de Arquivo e Documentação da
Carlos Henrique Assunção Paiva (https://orcid.org/0000-0002-7478-9628) 1 Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz (sem data).

Abstract The article explores João de Barros Resumo O artigo explora ideias e propostas de
Barreto’s ideas and proposals for the field of the João de Barros Barreto para o campo da organi-
organization of health services in Brazil. Based zação dos serviços de saúde no Brasil. A partir da
on the proposal of the Capanema Reform (1937- proposição da Reforma Capanema (1937-1941),
1941), the text reveals the context of the formula- o texto constrói historicamente o contexto da for-
tion of the so-called district health model in Brazil mulação do chamado modelo distrital em saúde
historically, focusing on its logic, conceptual and no Brasil, com foco em sua lógica, bases concei-
theoretical principles and resources employed. The tuais e teóricas e recursos empregados. Conclui-
conclusion drawn is that Barros Barreto’s profes- se que a trajetória profissional de Barros Barre-
sional career, contextualized in a specific scenario to, contextualizada em um cenário específico de
of ideas, state agenda and organizational perspec- ideias, de agenda de Estado e de perspectivas orga-
tives, contributed decisively to the constitution of nizacionais, colaborou decisivamente para a cons-
modeling achievements of relevant organizational tituição de realizações modeladoras de um arranjo
arrangements in the trajectory of Brazilian public organizacional importante na trajetória da saúde
health. pública brasileira.
Key words History of public health, History of Palavras-chave História da saúde pública, His-
the organization of health services, Capanema tória da organização dos serviços de saúde, Refor-
Reform, João de Barros Barreto ma Capanema, João de Barros Barreto

1
Observatório História e
Saúde, Casa de Oswaldo
Cruz, Fundação Oswaldo
Cruz. Av. Brasil 4036,
Manguinhos. 21040-361
Rio de Janeiro RJ Brasil.
carlos.paiva@fiocruz.br
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Introdução de intervenção da União, tivessem correspondên-


cia nos assuntos da saúde. Ao formular e condu-
O contexto histórico que dá sequência à Primeira zir a reforma na saúde, o chefe do DNS produziu
República só mais recentemente tem recebido a uma centralização normativa em torno do execu-
atenção sistemática de estudiosos do campo da tivo federal e a criação de serviços verticais cen-
saúde pública. Esses diferentes estudos têm re- trados em doenças especificas3,6. Adicionalmente,
velado certo protagonismo do recém-criado Mi- o mesmo conjunto de reformas administrativas
nistério da Educação e Saúde Pública (1930), so- permitiu a criação de uma estrutura organizacio-
bretudo sob a liderança de seu mais importante nal do tipo distrital como uma forma de melhor
e longevo ministro, o mineiro Gustavo Capane- oferecer a prestação da saúde pública no país5,7.
ma (1900-1985), tanto na formulação quanto na Ambos os movimentos representaram, sem dú-
implementação de políticas de saúde de caráter vida, uma maior presença do governo federal no
nacional. Outrora identificado como um minis- território nacional.
tro e uma pasta consagrada pelas realizações no Os distritos sanitários, tal como concebidos
campo educacional1,2, hoje, graças a uma reno- por Barros Barreto8-10, permitiriam um primei-
vada historiografia3-6, as realizações no campo da ro arranjo nacional de organização da oferta dos
saúde do período Vargas também ganham o seu serviços de saúde segundo critérios territoriais
lugar na história da saúde pública brasileira. e populacionais. Por intermédio de instâncias
Ao atentarmos para a trajetória de figuras como as Delegacias Federais de Saúde e as Con-
como Geraldo Paula Souza, Rodolfo Mascare- ferências Nacionais de Saúde foi concebida uma
nhas e João de Barros Barreto, só para citar al- articulação entre instituições de saúde federais,
guns, poderemos também atestar o vigor das estaduais, municipais e privadas, na presente es-
ideias e iniciativas no campo sanitário naqueles cala, sem precedentes na trajetória da organiza-
anos 1930 e 1940. O último, objeto de nosso tex- ção da saúde brasileira.
to, foi um médico-sanitarista carioca nascido em Em um desenho institucional que, do ponto
1890, peça fundamental para compreendermos de vista estritamente organizacional, mantem
as mudanças pelas quais passará a organização da relativa semelhança com os arranjos modernos
saúde pública brasileira a partir do final dos anos de organização da atenção à saúde com base na
1930. Não foram mudanças pontuais e efêmeras, Atenção Primária à Saúde, Barros Barreto, assim
em boa medida, Barros Barreto esteve na lideran- como diferentes gerações de sanitaristas que atu-
ça da mais importante reforma da saúde pública aram no período 1920-1940, entenderam que os
da primeira metade do século passado. centros de saúde poderiam servir como institui-
No presente artigo exploraremos algumas ções organizadoras do fluxo de serviços e pro-
ideias e propostas de Barros Barreto, especial- cedimentos diagnósticos e terapêuticos no inte-
mente no ambiente da reforma que ganharia o rior de um distrito sanitário. Para tal, o médico
nome do ministro a que este esteve subordinado: chegou a conceber a existência de um sistema de
respectivamente a chamada Reforma Capanema “cartas” entre clínicos que pudesse impor alguma
e o ministro Gustavo Capanema. Menos de um racionalidade para o “bom serviço” dos produtos
ano após assumir o Ministério, em 1935, Capa- e serviços diagnósticos previstos no interior dos
nema propõe uma reforma geral na organização distritos de saúde10.
da saúde pública nacional. Seu primeiro ato, pos- Desta forma, a experiência de organização
to em prática com base na Lei nº 378, de janeiro distrital dos anos 1930-1940, a que a trajetória de
de 1937, envolveu uma vigorosa revisão na es- Barros Barreto se encontra ligada, revela que o
trutura político-administrativa do Ministério, a debate organizacional e o processo efetivo de im-
partir de então denominado Ministério da Edu- plantação de políticas nacionais de saúde, como
cação e Saúde (MES). Um segundo importante arenas para onde convergiram diversos enuncia-
movimento viria cerca de 4 anos depois, quando dos relativos às práticas profissionais e gerenciais,
o ministro se voltou, segundo nos informa Ho- tem na trajetória brasileira um contexto e perso-
chman3, mais especificamente para as ações de nagens de destaque naquele período.
saúde. Sem perder de vista tal horizonte de ques-
Na direção do Departamento Nacional de tões, o presente texto procurará explorar algumas
Saúde (DNS), órgão diretamente subordinado ao ideias e propostas de Barros Barreto como uma
ministro, Barros Barreto permitiu que orienta- forma de examinar algumas das matrizes do pen-
ções políticas mais gerais do governo, sobretudo samento organizacional em saúde no país. Nosso
no que se refere ao fortalecimento da capacidade foco recairá na formulação, via Reforma Capane-
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ma, do chamado modelo distrital em saúde no É verdade que a influência anglo-saxã na for-
Brasil, centrando nossa atenção em sua lógica, ba- mação profissional em saúde no Brasil não se res-
ses conceituais e teóricas e recursos empregados. tringiu às viagens de brasileiros aos Estados Uni-
Sem perder de vista, portanto, a trajetória de dos. Segundo nos refere Lima e Fonseca11, tanto
Barros Barreto, discutiremos suas ideias e pro- a criação do Instituto de Higiene de São Paulo
postas, com foco nas questões organizacionais quanto os cursos de saúde pública oferecidos
do aparato institucional da saúde brasileiro. Para pelo Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro,
tal, organizamos o texto em 3 partes. Na pri- sobretudo a partir de 1930, se aproximavam em
meira parte, com a finalidade de oferecer alguns muitos aspectos das propostas de profissionaliza-
elementos de um marco contextual mais amplo, ção oferecidas nos Estados Unidos. A rigor, am-
apresentamos nosso protagonista no contexto bos davam conta de questões e preocupações já
em que este se encontra inserido. Parece-nos im- razoavelmente debatidas em fóruns internacio-
portante que o leitor compreenda que as ideias e nais de saúde pública do período.
propostas de Barros Barreto eram partes de mu- Uma formação profissional sólida, em sinto-
danças gerais na organização do Estado brasilei- nia com a agenda internacional, foi o passaporte
ro. Na sequência, na parte 2, sempre no escopo de Barros Barreto para construir uma ampla ex-
da reforma, nos aprofundaremos no debate e nas periência à frente da burocracia pública da saúde
iniciativas organizacionais relativas ao setor da no Brasil. Ele serviu como diretor de Saneamento
saúde. A partir daí, na última parte, construímos Rural no Pará (1920) e no Paraná (1921-1924);
a atividade de Barros Barreto à frente da Reforma serviu como assistente do Diretor geral do De-
Capanema. partamento Nacional de Saúde (1926-1929) e foi
Sendo assim, não é nosso propósito fazer uma diretor do Departamento de Saúde do Estado de
“história de vida” do personagem, mas contextu- São Paulo (1931). Destaque, como já sinalizamos,
alizar alguns elementos de seu pensamento e em- para o mais alto cargo da saúde pública abaixo
preendimentos em um cenário específico, cujas do ministro, ao dirigir em momento tão decisivo,
realizações serão modeladoras de um arranjo or- por mais de cinco anos, o Departamento Nacio-
ganizacional para a saúde pública brasileira. Na nal de Saúde (1937-1939/1941-1945)12.
última parte do texto, convidamos o leitor para à Sua vida profissional envolveu também ati-
conclusão do artigo. vidades no campo acadêmico e na docência. No
início dos anos 1920, foi professor de Medicina
Barros Barreto: protagonista e filho do Legal da Faculdade de Medicina do Paraná; foi
seu tempo secretário geral dos 4º e 5º Congressos Brasilei-
ros de Higiene; membro fundador e presidente
João de Barros Barreto formou-se pela Fa- honorário da Repartição Sanitária Panamericana
culdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1912. (1942-1946). Foi também professor de Higiene
Cerca de seis anos depois concluiu curso de da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, da
aperfeiçoamento no Instituto Oswaldo Cruz, em Faculdade Fluminense de Medicina e da Faculda-
Manguinhos. Nas norte-americanas Johns Ho- de de Ciências Médicas do Rio de Janeiro12.
pkins School of Hygiene and Health e na Harvard Barros Barreto presidiu a 11ª Conferência
School of Public Health, por volta de meados dos Sanitária Panamericana, realizada no Rio de Ja-
anos 1920, complementaria sua sólida formação neiro, em 1942. Um evento que contou com a
como sanitarista. participação das principais lideranças da saúde
Àquela altura, a formação nos Estados Uni- pública brasileira e, sob o enquadramento da II
dos representou para Barros Barreto e outros Grande Guerra, representou um marco na pro-
médicos brasileiros o contato com “ideias novas”, dução de enunciados favoráveis à defesa con-
que conectavam a medicina à saúde pública. A tinental por intermédio das ações de saúde. A
importância atribuída ao centro de saúde como defesa da cooperação em saúde, de modo a pro-
uma unidade sanitária nucleadora de ações de mover uma melhor integração entre estruturas
cura, de acompanhamento e de prevenção de do- e serviços de saúde militares e civis, foi uma das
enças mais prevalentes, com importante destaque orientações legadas pelo evento13,14.
para as ações de educação sanitária em um dado Além de membro da Academia Nacional de
território, eram parte fundamental das propostas Medicina, Barros Barreto foi membro da Aca-
e da formação profissional oferecida por institui- demia de Medicina de Lima e do México e da
ções de ensino e pesquisa norte-americanas, com Sociedade Argentina de Medicina Social. Rece-
destaque às duas acima mencionadas. beu inúmeros prêmios e honrarias, entre elas a
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medalha de ouro Oswaldo Cruz, concedida pelo realizações do setor, bem como as orientações
Instituto Oswaldo Cruz. Em 1950, cerca de seis específicas, inclusive em suas conexões interna-
anos antes de sua morte, receberia a comenda da cionais; as controvérsias e a emergências de no-
Ordem Nacional do Mérito, uma condecoração ções e conceitos que, no terreno da saúde pública,
concedida pelo Estado brasileiro somente àque- teriam vigência longa. Há que se considerar, em
las pessoas reconhecidas pelas suas grandes con- resumo, as especificidades do debate organiza-
tribuições ao país12. cional em saúde.
Quando assumiu a direção do Departamento
Nacional de Saúde, em 1937, Barros Barreto já O debate organizacional brasileiro
era um sanitarista maduro e consagrado. Na altu- em saúde: ideias e propostas
ra dos seus 47 anos de idade, tinha vivido tempo
suficiente para acompanhar e ser um operador, No terreno estritamente do que chamaríamos
de relativo destaque, de mudanças organizacio- hoje de “organização dos serviços de saúde”, as
nais na saúde que, no contexto dos anos 1920, re- diferentes gerações de sanitaristas brasileiros que
velavam-se ainda incipientes se tomarmos como atuaram nos anos 1920 e 1930, em parte ancora-
referência o que viria adiante. Não estava sozi- dos na experiência internacional, especialmente
nho, Barros Barreto era parte de uma nascente da Fundação Rockefeller, foi protagonista da de-
comunidade de especialistas em administração fesa do atendimento às necessidades de saúde lo-
da saúde pública, juntava-se a diferentes gerações cais baseado em centros de saúde de ação integral
de pesquisadores e especialistas, como Geraldo e permanente; da ênfase na educação sanitária e
de Paula Souza, Rodolfo Mascarenhas, Francisco do desenvolvimento de ações compatíveis com a
Borges Vieira, José Paranhos Fontenelle, Mario noção de promoção à saúde; da valorização da
Pinotti, Aquiles Scorzelli, Claudio Magalhães da base multiprofissional dos serviços; da ação sani-
Silveira, Virgilio Correia, Alfredo Bica e outros9,12. tária disseminada por agentes de saúde visitado-
A este respeito, há que se pensar o período res e da atuação em tempo integral dos profissio-
Vargas (1930-1945) como uma fase que, em boa nais ligados a pesquisa e ao ensino em saúde19,20.
medida, se cristalizam orientações e tendências Àquela altura, por meio de bolsas de estudo,
anteriores, mas também como um período em distintos sanitaristas brasileiros já registravam
que novas ideias e propostas ganharam contor- formação profissional nos Estados Unidos. Ha-
nos institucionais mais precisos e marcantes. No via, por assim dizer, uma elite de médicos-sani-
terreno das experiências que conformariam os taristas que, a partir dos anos 1930, construiriam,
debates sobre organização dos serviços de saúde, gradualmente, uma arena de problemas acerca
por exemplo, as décadas que se seguem a 1930 do que ficou conhecido como “a questão organi-
parecem-nos, neste ponto, decisivas. zacional da saúde pública”, em boa medida, como
O fato é que a Saúde, como um setor admi- dissemos, em sintonia com uma tradição rocke-
nistrativo, não ficou imune às orientações e ten- felleriana19,21-23.
dências mais gerais do período Vargas, sobretudo Ocorre que os anos 1930 e 1940 representa-
no que concerne à centralização político-admi- ram uma fase da história brasileira – e até certo
nistrativa e à formatação de uma “cultura téc- ponto global – em que o debate organizacional
nica” acerca dos assuntos da administração. Tal ganhou inegável musculatura. A ideia de que o
cultura considerava uma desejada separação en- Estado deveria ser objeto de uma “organização”,
tre Administração e Política, de modo que, me- que lhe atribuísse maior racionalidade e eficiên-
diante a introdução de mecanismos burocráticos cia, pautou condutas de diversos atores15-18,24,25.
na Administração Pública, se promoveria uma Tal ideia ganhou destaque e importância, em
necessária condução “técnica” e apolítica dos boa medida, porque foi habilmente conduzida
processos decisórios do Estado15-18. Hochman, por pessoas que reuniram tanto capacidade de
por exemplo, chega a referir a reforma conduzida produzir conhecimento sobre o assunto quanto
por Barros Barreto como uma espécie de “atu- de compartilhá-lo com seus contemporâneos.
alização” da organização da saúde pública aos Barros Barreto, assim como outros personagens
preceitos político-organizacionais mais gerais do de seu tempo, pela importância que adquiriu na
Estado brasileiro3. produção de ideias e conhecimentos, pelo desta-
Tal “atualização”, contudo, não fez da admi- que de suas posições institucionais e envergadura
nistração da saúde pública um epifenômeno da dos projetos que idealizou e implementou, colo-
organização geral do Estado. Há que se conside- ca-se como personagem importante num proces-
rar as tendências já estabelecidas no debate e nas so de definição dos termos do debate organiza-
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cional em saúde e, a partir deles, na conformação O que mais chama a atenção neste conjunto
de uma subárea de imensa ebulição intelectual de proposições é a defesa de uma determinada
no campo da saúde pública de sua época. “racionalidade” que apela para noções de efici-
A rigor, Barros Barreto não manejava àquela ência e economia. Um arranjo institucional e or-
altura questões de todo novas. A reformada saú- ganizacional cuja promessa é de maximização do
de pública de 1906, bem como a reforma paulista uso dos recursos materiais e humanos em prol de
dos anos 1920, já lidavam com a ideia de distrita- resultados sanitários supostamente mais promis-
lização, então compreendida como o fatiamento sores. O cuidado com a tomada de decisões com
do território e da autoridade estatal em regiões base em dados estatísticos, por exemplo, é parte
de saúde19. Além da conformação de enfoques e das ideias-força daquele ambiente9.
aparatos institucionais afinados com um discur- Será sob a notável posição institucional de
so que impunha uma hegemonia da “técnica” chefe do DNS que Barros Barreto não apenas
na formulação de políticas, a novidade, por as- reuniria condições de implementar políticas
sim dizer, dizia respeito à organização nacional alinhadas com as “novas ideias”, mas, especial-
das instituições de saúde sob a coordenação de mente, desenvolvê-las, agora organizadas em um
centros de saúde. O centro de saúde, portanto, se corpus técnico-doutrinário mais orgânico e, pela
apresentava, em âmbito nacional, como a figura primeira vez, com alcance verdadeiramente na-
institucional nucleadora da organização sanitá- cional.
ria9. Nessa linha, Mello5,28 nos chama a atenção
Sendo assim, parece-nos que os desafios para para o vocabulário que emergirá, a partir daí,
a implantação da política giraram mais entorno com crescente mobilização de atores no campo
do conjunto de suas proposições, pela primeira da saúde pública: “coordenação”, “distrito”, “saú-
vez organizadas na forma de um pacote poten- de coletiva”, “tempo parcial e integral”, “exame
cialmente orgânico e nacional, do que propria- médico periódico”, “generalidade” (em oposição
mente pelo ineditismo de sua agenda. à especializado), “descentralização”, “visita domi-
Nessa linha, Rodolfo Mascarenhas26 nos cha- ciliária” e “comunidade”. No seu conjunto, tal vo-
ma a atenção que, ainda que Barros Barreto te- cabulário tanto apontava para uma prática médi-
nha permanecido por apenas 4 meses à frente dos ca necessariamente menos centrada no indivíduo
serviços de São Paulo, ele teria sido o real respon- e mais articulada aos demais profissionais e à co-
sável pela organização do departamento de saúde munidade, quanto implicava num modelo orga-
do Estado, provendo-o de centros de saúde e, pela nizacional de base territorial, cujo foco recairia
primeira vez, prevendo a existência do cargo de nas ações preventivas e de saúde pública.
visitador sanitário. Por essa mesma razão, Bertol-
do Arruda12 sugere que a embrionária experiên- A Reforma Capanema
cia paulista permitiu à Barros Barreto uma maior
clareza quanto à relação entre os centros de saúde Em meados de 1934, Gustavo Capanema
e a chamada organização distrital no Brasil, em assume a direção do Ministério da Educação e
especial sobre o papel institucional do centro no Saúde Pública (MESP). Antes dele três diferen-
território em que este se insere e também sobre a tes ministros haviam conduzido a pasta sem que
possibilidade de se desenvolver um vigoroso tra- mudanças importantes fossem, de fato, realiza-
balho de educação sanitária nucleado nos centros das, entre eles Washington Pires, médico mineiro
e postos de saúde. que conduzia o ministério desde 1932 e a quem
Trabalhos assinados por Paula Souza e por coube, segundo nos conta Arruda12, o processo
Borges Vieira revelam que a estratégia da edu- inicial de formulação da reforma para a saúde.
cação sanitária se prestava, por intermédio das Até a data de posse de Capanema, o MESP cor-
atividades dos centros de saúde, ao objetivo cen- respondia, portanto, essencialmente, à estrutura
tral de ampliar a cobertura assistencial para todo administrativa do antigo Departamento Nacio-
o território de saúde27. Ainda que não vedasse nal de Saúde Pública (DNSP), criado no contexto
ações consideradas necessárias no terreno da da Reforma Sanitária da Primeira República3.
cura e reabilitação, o centro se voltava, com espe- Menos de um ano após assumir o Ministério,
cial atenção, para a execução de tarefas no campo Capanema propõe uma reforma geral na organi-
da prevenção e da saúde pública: educação sani- zação da saúde pública nacional. Seu primeiro ato,
tária, com foco nas visitas domiciliares; estatística posto em prática com base na já mencionada Lei
sanitária; monitoramento e ações nas populações nº 378, de janeiro de 1937, envolveu uma vigoro-
adultas, gestantes e puericultura. sa revisão na estrutura político-administrativa do
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Ministério, a partir de então denominado Minis- do defendida a doutrina da maior amplitude de


tério da Educação e Saúde (MES). O segundo mo- comando para as organizações estaduais8.
vimento viria em 1941, quando o ministro se vol- Não se trata, contudo, de um mero transplan-
tou mais especificamente para as ações de saúde. tar de um arranjo estrangeiro à realidade brasilei-
Na condição de operador da política, Barros ra. Considerando o cenário nacional, por “local”,
Barreto assumiu a direção do Departamento Na- Barros Barreto entendia que:
cional de Saúde em fevereiro de 1937, apenas um Possam cada vez mais, com esse tipo de orga-
mês após o início da implementação da Refor- nização, o comando e a execução para a repartição
ma. Atente-se que o DNS era o órgão responsável estadual, ao invés de tê-la apenas como órgão de
pela formulação e execução da reforma da saúde. orientação, de controle e como centro de forneci-
Não é exagero, portanto, concluir que o médico mento de recursos técnicos e materiais para as or-
carioca assumia a liderança do órgão responsável ganizações municipais. É a fórmula que mais se
pelo redesenho mais importante da organização adapta ao Brasil...10.
da saúde pública naqueles anos 1930 e 1940. Adicionalmente, em texto dirigido ao minis-
Barros Barreto revelou-se empolgado e genu- tro, publicado em 1939, Barros Barreto adverte
íno defensor da organização do território brasi- que a reforma não deveria ser “estereotipada”
leiro em oito grandes regiões de saúde12. Em cada como uma mera iniciativa de organização dos
uma delas, como previa a Lei nº 378, uma auto- “serviços básicos de saúde pública” nos estados.
ridade sanitária institucionalizada na forma de Em sua compreensão, ela conferia “bases moder-
uma Delegacia Federal de Saúde. As Delegacias, nas [ao] aparelhamento sanitário”, na forma do
por sua vez, tinham como função supervisionar estabelecimento de cooperação do DNS com os
as atividades relativas à colaboração da União estados para o desenvolvimento de várias inicia-
com os serviços locais de saúde pública e assis- tivas, entre elas cursos e concursos para técnicos
tência médica, inclusive com instituições priva- locais, formação de guardas e visitadoras sanitá-
das3. Representavam, portanto, uma forma de o rias, instalação de laboratórios e levantamento de
governo Federal, instituindo padrões e mecanis- dados estatísticos9.
mos de fiscalização, se fazer presente em diferen- Cabe, assim, sinalizar que a centralização po-
tes regiões do território nacional9. lítico-administrativa, há muito popularizada pela
A Reforma, por assim dizer, instituía, de literatura que trata da gestão Vargas, não deve ser
modo inédito, uma forma de descentralização e compreendida como um movimento centrali-
regionalização da gestão da saúde pública nacio- zador tout court ou, em outras palavras, como
nal. Ainda que os padrões de organização do apa- um recurso que representou mera imposição da
rato de saúde pública fossem objeto de formula- vontade do governante central e o consequente
ção dos técnicos federais, a execução, a operação desprezo aos interesses das elites e lideranças lo-
das políticas e orientações técnicas deveriam es- cais. Tanto essa imagem não corresponde à reali-
tar em afinidade com os arranjos políticos e ne- dade que para que seja possível compreendermos
cessidades definidas localmente. Daí a importân- o real alcance da reforma conduzida por Barros
cia de instâncias como as Conferências Nacionais Barreto torna-se necessário um olhar atento aos
de Saúde. Para Barros Barreto: fóruns que permitiram determinada concertação
Não era, de fato, prático e quiçá mesmo pouco inter-elites, sinal de que a centralização – até cer-
realizável, em território extenso, como é o brasi- to ponto – foi fruto de um entendimento entre
leiro, centralizar a administração sanitária. Mais lideranças. Tal entendimento, por sua vez, tornou
se deve cuidar de tê-la coordenada e de procurar possível a construção de aparatos organizacio-
conseguir fixar normas técnicas gerais, com a ne- nais que ramificaram iniciativas, programas e
cessária amplitude para adaptá-la às exigências e políticas estatais no território nacional. O mode-
possibilidades locais8. lo organizacional de saúde do tipo distrital é, sem
Em artigo publicado com José Paranhos Fon- dúvida, parte deste processo.
tenelle29, em 1935, Barros Barreto compreendia Como partes essenciais da engenharia insti-
que a “descentralização ou divisão distrital” de- tucional da Reforma, criaram-se duas instâncias
veria ser pensada como uma “forma mista, a da técnico-políticas cuja longevidade, ainda que
descentralização sem excesso”. A rigor, o chefe do com significativas mudanças, revela o papel es-
DNS se revelava um entusiasta do modelo norte truturante do empreendimento administrativo
-americano, em suas palavras: pensado por Barros Barreto. A criação de um co-
Nos Estados Unidos, onde a norma é dar-se legiado de técnicos, com caráter consultivo e nor-
grande autonomia às organizações locais, vai sen- mativo, convocado pelo ministro toda vez que o
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estabelecimento de normas, diretrizes e pareceres que diz respeito às primeiras, os centros lança-
técnicos se fizessem necessários, revela o lugar vam-se prioritariamente sobre os problemas
que teria o discurso e a valorização da “técnica” sanitários mais em evidência, tratando doentes,
na tomada de decisão nos assuntos da saúde. produzindo inquéritos, estatísticas e estudos
Com o nome de Conselho Nacional de Saúde, científicos. Além de ações de reabilitação, desen-
tal formato só seria modificado mais de 50 anos volviam atividades que diziam respeito à “con-
depois, quando o Decreto nº 99.438/1990 intro- servação da saúde coletiva”27. Na experiência
duziria uma série de alterações em seu papel ins- brasileira, portanto, os centros de saúde foram
titucional, passando, desde então, a desempenhar pensados para atuar nas frentes assistencial e de
formalmente função deliberativa, além de envol- saúde pública. Segundo seus idealizadores:
ver diversos segmentos da sociedade organizada. Essa separação [assistência e saúde pública] não
Já a segunda instância, por convocação do deve ser absoluta quanto aos métodos, pois a medi-
Presidente da República, estabelecia a organiza- cina clínica e as obras de prevenção não são antagô-
ção periódica de conferências nacionais de saúde, nicas nem diferentes entre si, mas devem colaborar
em prazo máximo de dois anos, com o propósito mutuamente em tudo que tenha por finalidade a
de promover um maior conhecimento do gover- melhoria da saúde da coletividade humana27.
no federal dos assuntos relativos à saúde púbica Portanto, ainda que figuras como Barros Bar-
no âmbito dos estados federativos. Concebidas, reto concebessem diferentes papéis institucionais
igualmente, como “fóruns técnicos”, as conferên- para a assistência e a saúde pública, ao fim e ao
cias representavam, nos termos de seu discurso cabo, eles compreendiam que deveria haver uma
oficial, oportunidade para se orientar a concessão estreita colaboração entre as atividades de saúde
de auxílio e apoio federal às políticas e iniciativas pública e as de assistência médica.
realizadas em âmbito local30. Tendo em vista tais expectativas, o trabalho
Em que pese a existência de uma poderosa re- médico, como era de se esperar, também deve-
tórica em torno de um papel apolítico no empre- ria se organizar sob novas bases. Nas palavras de
go da “técnica” nas ações de saúde por parte de Paula Souza e Vieira:
Barros Barreto e demais operadores da reforma, O médico que vai fazer parte de um serviço des-
Fonseca6 nos chama a atenção que o Conselho e ta natureza, por força do objetivo visado, não pode-
as conferências nacionais de saúde representa- rá atuar como o faria na clínica privada, hospitalar
ram, na prática, a constituição de fóruns políti- ou dispensários, e sim, revestir-se da consciência de
cos em que o processo de centralização e norma- higienista, tendo em mira a preservação da saúde
tização federal foi conduzido e, até certo ponto, dos matriculados e não o tratamento de males que
negociado junto às lideranças locais. não repercutam na coletividade ou descendência,
A convocação da primeira conferência nacio- pois, de outra forma, prejudicaria a função da or-
nal de saúde só se daria, mediante o Decreto nº ganização27.
6.788, no final de janeiro de 1941. Na Exposição É preciso enfatizar alguns pontos especial-
de motivos considerou-se as conferências como mente importantes no documento acima. Quan-
“órgãos destinados a promover o permanente do se trata de estabelecer a diferença esperada na
entendimento [do] Ministério com os gover- prática profissional de médicos no âmbito do ex-
nos estaduais”30. Tudo isto nos faz pensar que o clusivo exercício da clínica e no trabalho exerci-
aprofundamento da centralização político-admi- do na saúde pública é logo mobilizada a ideia de
nistrativa, que tanto caracterizou a gestão Var- “consciência higienista”, cujo exercício envolveria
gas, como também a atualização da organização tanto a “preservação da saúde dos matriculados”
da saúde a estas mesmas orientações, só foram quanto o “tratamento dos males” de alcance co-
possíveis graças à implementação de fóruns de letivo. O primeiro ponto remete, ainda que pri-
“entendimento” político que, ao fim e ao cabo, mariamente, ao desenvolvimento de ações de
viabilizaram a organização de um modelo orga- prevenção e promoção. Mas há, para estas ações,
nizacional capilarizado, cuja base de operação logo embutida uma noção de território e abran-
era o território geográfico brasileiro. gência, pois a “preservação” da saúde não se dá
Tal modelo organizacional, no corpo da re- de forma abstrata, mas envolve ações concretas
forma compreendido como “distrital”, passava em um dado contingente populacional definido,
necessariamente pelo centro de saúde8-10,12. Suas aquele dos “matriculados”. A noção de território
funções, já segundo projeto de Paula Souza, Bor- de abrangência, portanto, pilar da organização
ges Vieira e Barros Barreto, estavam circunscritas distrital, se encontra referida no exercício do tra-
às ações médico-sanitárias e organizacionais. No balho profissional.
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O segundo ponto, que trata dos males de necessária profissionalização dos gestores hospi-
alcance coletivo, remete a uma modalidade de talares, mas também uma forma de organização
trabalho profissional cujo foco é, por meio do que instituísse racionalidade no fluxo de usuá-
tratamento e preservação da saúde dos indivídu- rios entre os hospitais e entre estes e os centros de
os de um dado território, a melhoria constante saúde, dispensários e outros organismos31.
e permanente das condições gerais de vida e de Uma segunda dificuldade que seria enfrenta-
saúde. A dimensão coletiva do exercício do tra- da com a implantação de centros de saúde distri-
balho materializa-se na oferta de serviços e na ca- tais envolvia a carência de informações sobre a
pacidade coordenadora do centro em sua região. realidade sanitária. Nesse sentido, o centro seria
Tal “capacidade coordenadora” se expressaria, no também o organismo capaz de centralizar, or-
contexto da Reforma Capanema, no que se refe- ganizar e produzir estatísticas vitais, inquéritos
re à conduta profissional, por exemplo, na já co- e estudos capazes de permitir uma melhor com-
mentada operação de um “sistema de cartas entre preensão acerca da realidade médico-sanitária no
clínicos”, mecanismo imaginado para promover escopo do distrito. A ideia de que o trabalho em
a coordenação do consumo de produtos e ser- saúde deveria, portanto, ser subsidiado por infor-
viços de saúde e à troca de informações clínicas mação qualificada já estava igualmente colocada.
sobre a situação de saúde das pessoas10. Nos primeiros anos da década de 1940, em
Salienta-se que a dimensão coletiva do traba- termos práticos, os centros de saúde tinham um
lho profissional se encontra especialmente pre- alcance territorial que não era modesto nas ca-
servada, notadamente no âmbito de atuação da pitais. Em Salvador, por exemplo, registramos
visitadora sanitária, com o foco não no cuidado três centros de saúde distritais; em Recife, quatro
de saúde individual, mas na família como unida- centros; no Distrito Federal, sob a batuta de Bar-
de de cuidado essencial. ros Barreto, doze centros; em São Paulo, onde a
As bases tanto de um papel institucional ino- experiência justamente se iniciou, três.
vador, concebido para o centro de saúde, quanto No entanto, se considerarmos os níveis po-
de desempenho e organização do trabalho pro- pulacionais de cobertura imaginados em cada
fissional para seus trabalhadores estavam clara- distrito (100.000 a 150.000 habitantes)28, pode-se
mente lançadas no contexto dos anos 1920-1940 concluir que a extensão dos centros de saúde so-
e se pode dizer com boa dose de segurança que bre o território nacional era bastante ambiciosa.
tal papel passou pela mente inquieta de figuras O fato é que, nas circunstâncias da época, com
como Barros Barreto, Paula Souza, Borges Vieira fortes limitações de comunicação e transporte,
e outros personagens. não nos parece sensato imaginar que a função
No que tange propriamente à dimensão or- dos centros de saúde, tal como descrita acima,
ganizacional, os centros teriam um papel na co- fosse desempenhada satisfatoriamente. Mas esse
ordenação de serviços, uma vez que “serviços de é um ponto que não só foge aos objetivos deste
assistência médica ou sanitária em grandes co- texto quanto é carente de estudos históricos que
munidades, se não forem coordenados, trazem, permitam, de fato, aquilatar a relação entre as
geralmente, dificuldades”27. Mas que dificuldades ideias e propostas em tela ou sua real implanta-
seriam evitadas com a implantação de centros de ção em políticas efetivas naquele período.
saúde distritais? Para aquilo que nos interessa, pode-se inferir,
O primeiro deles é a duplicação de esforços. diante de tudo que dissemos, que no contexto dos
A ideia de que, dentro de um determinado terri- anos 1930-1940, com um certo alcance, Barros
tório, deveria haver alguma racionalidade tanto Barreto foi um construtor com elevado nível de
na oferta e prestação dos serviços quanto no con- protagonismo na elaboração de ideias e propostas
sumo de serviços é a base do pensamento distri- acerca da organização da saúde pública brasileira.
tal. Nessa linha, cada instituição deveria cumprir Pode-se, ainda, especular acerca da importância
um papel em um “sistema” funcional que previa de suas ideias, especialmente aquelas assentadas
a existência de instituições de atendimento geral na noção de território e num papel protagonista
e especializado. Atente-se que, como premissa, do centro de saúde, como contribuições para um
a ideia do que convencionamos chamar de uma pujante e não linear processo de construção do
organização sistêmica não era monopólio dos campo da administração e organização dos ser-
defensores dos centros de saúde e da organização viços de saúde no país. Um movimento que, cer-
distrital. No terreno hospitalar, a Divisão de Or- tamente, envolveu estas e outras gerações de sani-
ganização Hospitalar (DOH) do Departamento taristas brasileiros, da qual Barros Barreto é, sem
Nacional de Saúde (DNS) não só defendia uma sombras de dúvida, uma importante referência.
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Considerações finais do DNS foi capaz de construir, com os recursos
técnicos e tecnológicos que se podia contar à sua
Se compreendermos, em nossos dias, a Saúde época, uma reforma que procurava responder à
Coletiva, tal como ela se autorrefere, como uma problemática da saúde de seu tempo. Qual pro-
espécie de ponto de confluência entre as ciências blemática? Essencialmente, como ampliar a co-
humanas e sociais, a epidemiologia e também bertura assistencial e enfrentar os problemas de
a gestão e o planejamento, seremos capazes de saúde mais prevalentes, mobilizando abordagens
percebera importância das contribuições semi- organizacionais que permitissem os melhores re-
nais das gerações de sanitaristas que atuaram nos sultados com o emprego de menos recursos.
anos 1930-1940, em particular de Barros Barreto, Outro ponto que merece reflexão diz respeito
para a conformação de uma trajetória de debate ao papel daquilo que aqui chamamos de “bases”
e realizações no campo da administração dos ser- para a compreensão das ideias, práticas, processos
viços de saúde. e inovações promovidas pela Reforma Capanema.
Nesse ponto, convém reconhecer a trajetória Como discutimos ao longo do texto, a reorgani-
de Barros Barreto tanto como um protagonista zação da saúde pública no contexto da reforma
de um conjunto de medidas que produziram conduzida por Barros Barreto sistematizou e mo-
transformações concretas na forma como se or- bilizou, pela primeira vez, com alcance nacional,
ganizava a saúde pública em todo o território na- uma série de abordagens e noções organizacio-
cional, mas também como um personagem que nais. Coordenação dos serviços, abordagem dis-
produziria mudanças na modalidade de discurso trital, território de saúde, formação profissional
e racionalidade que conformaram práticas. As com foco em “generalistas”, descentralização e ca-
noções, conceitos e racionalidade que ampara- pilarização, visita domiciliária e foco na família e
ram a reforma por ele conduzida foram também na comunidade são algumas das concepções-cha-
discutidas no texto como uma forma de tentar ve que passaram a habitar, de forma mais sistemá-
trazer alguns elementos para a construção de tica, os escritos e as preocupações dos sanitaristas.
uma história do pensamento organizacional em Desde então mobilizamos essas mesmas catego-
saúde. Deste modo, apresentamos João de Bar- rias com o mesmo sentido e alcance? Parece-nos
ros Barreto como um dos construtores das bases incorreto afirmar que a Reforma Capanema seja
teóricas e das iniciativas que, em outros cenários, uma espécie de marco-zero de um debate que, em
diversos atores e lideranças se debruçarão, ora diferentes contextos e sempre contando com dife-
adensando entendimentos e orientações; ora in- rentes personagens, ganhará novas orientações e
troduzindo modificações e rupturas conceituais perspectivas doutrinárias e conceituais.
e de enfoque. Eis, portanto, uma história que se Barros Barreto, pela complexidade de suas
define pelas suas diferentes camadas e certamen- ideias e extensão de suas iniciativas, moveu lon-
te pelas suas muitas cabeças pensantes. gevos moinhos e diversos atores não necessaria-
É importante sinalizar para alguns aspectos mente comprometidos com o processo que, ori-
importantes. O primeiro deles é que, com isso, ginariamente, ele conduziu. Diferentes correntes
não queremos afirmar que as “bases” construídas do debate da saúde pública repercutiram, cada
por Barros Barreto e seus apoiadores foram uma qual movendo aquilo que interessa, a expertise
espécie de marco-zero de um processo linear e o conhecimento que envolveu tanto a implan-
cujo desfecho seria, décadas depois, a proposição tação de uma renovada engenharia institucional
do sistema de saúde vigente, por exemplo. Sig- para a organização da saúde quanto questões que
nifica dizer, em termos históricos, que o diretor envolvem o exercício do trabalho profissional.
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