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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................ 2

2 POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE ........................................................... 3

3 A EVOLUÇÃO DA ASSISTÊNCIA PÚBLICA À SAÚDE NO BRASIL ......... 5

4 A SAÚDE COMO DIREITO......................................................................... 9

4.1 A Reforma Sanitária no Brasil ............................................................ 11

4.2 A 8ª Conferência Nacional de Saúde ................................................. 15

4.3 A Constituição Federal de 1988 ......................................................... 17

4.4 Histórico do Conselho Nacional de Saúde ......................................... 19

4.5 A aprovação das leis Nº 8.080 E Nº 8.142/1990 .............................. 22

5 A DESCENTRALIZAÇÃO DO SUS .......................................................... 24

6 O DIREITO À SAÚDE COMO BEM FUNDAMENTAL E A


INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS ........................................... 31

7 A ESF E SEU CONTEXTO HISTÓRICO NO BRASIL .............................. 35

8 A POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL E A SITUAÇÃO DO SUS NA


CONTEMPORANEIDADE ......................................................................................... 39

8.1 A situação crítica do financiamento do SUS ....................................... 41

9 POLÍTICAS PÚBLICAS E O ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA DE


COVID – 19 NO BRASIL ........................................................................................... 43

10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................... 48


1 INTRODUÇÃO

Prezado aluno!

O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante


ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um
aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma
pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é
que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a
resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas
poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em
tempo hábil.
Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa
disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das
avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora
que lhe convier para isso.
A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser
seguida e prazos definidos para as atividades.

Bons estudos!
2 POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE

Fonte: ufes.br

Foi notório o avanço da avaliação de Políticas Públicas e Programas


Governamentais nas últimas décadas, assumindo papel de grande relevância nas
funções de planejamento e gestão governamental. Esse progresso fora impulsionado
pela modernização da Administração Pública, onde, em vários países esse movimento
foi seguido pelos princípios da Gestão Pública empreendedora e as transformações
das relações entre a sociedade e o Estado. Há um consenso na literatura sobre a
existência de uma grande relação entre a transformação da administração pública
com a mudança para uma administração mais eficiente e moderna devido à realização
e o crescimento dos estudos de avaliação de políticas públicas e programas públicos
(BETIN, 2018).
As políticas públicas podem ser compreendidas de acordo com a forma que o
Estado age para reduzir os conflitos e desigualdades que surgem na sociedade,
contribuindo para a efetivação dos direitos fundamentais e do Princípio da Dignidade
da Pessoa Humana. Assim, a implantação de políticas públicas na saúde objetiva
efetivar o direito à saúde, diminuir o número de doenças de grave risco, ofertar o
acesso igualitário e universal à saúde e a promoção de políticas preventivas e de
recuperação ao direito à saúde (BRITO et al, 2019).
Segundo autor, no Brasil, a política de saúde pública está consolidada, desde
a Constituição Federal de 1988, no Sistema Único de Saúde (SUS). Produto da luta
do movimento da reforma sanitária brasileira, o SUS se instituiu no contexto de
redemocratização do Brasil e na contramão das propostas hegemônicas de
organização de sistemas de saúde focalizados vigentes nos anos oitenta. No SUS, a
saúde é um direito universal e uma proposta de mudança profunda no modelo de
planejar, organizar e gerir as ações e serviços de saúde, por meio de ações destinadas
à promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como à reabilitação.
O desafio posto pelo SUS é de que a política de saúde no Brasil se construa e
se implemente na perspectiva do acesso universal, reconhecendo as desigualdades
existentes no interior da sociedade e criando respostas para minimizá-las. Para isso,
a gestão das políticas públicas promove maior interlocução entre atores e
organizações que, uma vez reunidos em diferentes espaços de interesse público,
podem viabilizar processos participativos e democráticos na relação entre governo e
sociedade civil (BRITO et al, 2019).
No entanto, ao discutirmos políticas públicas, torna-se fundamental
destacarmos a formulação de políticas públicas. É nesse momento em que os
governos democráticos manifestam seus propósitos e plataformas eleitorais em
programas e ações que causarão mudanças e resultados no mundo real (BETIN,
2018).
Segundo Betin (2018), com os avanços das políticas de saúde no país e
principalmente com a implantação da Estratégia de Saúde da Família (ESF), através
de um modelo inovador no trabalho, a mesma passa a ser reconhecida como uma
política de reorganização das ações da atenção básica nos sistemas municipais de
saúde. Parte com o fortalecimento do investimento nessas políticas, com destaque
para a priorização das ações de promoção da saúde e da qualidade de vida, mudando
o foco que sempre foi centrado no indivíduo, passando para as famílias e
comunidades.
3 A EVOLUÇÃO DA ASSISTÊNCIA PÚBLICA À SAÚDE NO BRASIL

Fonte: conhecimentocientifico.r7.com

Durante muitos séculos no Brasil, a estruturação de serviços de saúde para


atendimento à população sustentou-se na oferta de atendimento público apenas
como filantropia e caridade. O modelo empregado tinha como inspiração as
santas casas de misericórdia já existentes na Europa, a exemplo da Santa Casa
de Lisboa,fundada em 1498, na capital portuguesa (CRUZ, 2020).
Segundo o autor, a primeira experiência brasileira de santa casa de
misericórdia foi inaugurada em 1543, na cidade de Santos, em São Paulo, a partir
da criação da Irmandade da Misericórdia e do Hospital de Todos os Santos. No
Brasil Colônia, a atenção à saúde seguia a “prática das obras da misericórdia
compiladas por Tomás de Aquino no século XII: dar de comer a quem tem fome;
dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; visitar os doentes e presos; dar
abrigo a todos os viajantes; resgatar os cativos; enterrar os mortos”. Entre os
séculos XVI e XVIII, mais 16 instituições de orientação tomista foram
inauguradas. Os dados da Confederação das Misericórdias do Brasil – CMB.
Dados apontam que hoje existem 2.100 Santas Casas em atividade no país,
conveniadas ao Sistema Único de Saúde.
Quando da chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil, em 1808,
não havia ainda médicos formados no país, como explica Polignano:

A cura para os problemas de saúde até então era alcançada a partir do uso
dos recursos próprios da terra, como plantas e ervas, agregado aos
conhecimentos empíricos e habilidades dos chamados curandeiros [...] Dom
João VI fundou os primeiros centros de formação de profissionais médicos no
Brasil: o Colégio Médico-Cirúrgico no Real Hospital Militar da Cidade de
Salvador, Bahia, e a Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro, no Real Hospital
Militar. (POLIGNANO, 6, p. 3 e 4 apud CRUZ, 2020).

Da mesma forma, ao final do império, em 1889, a assistência à saúde


permanecia rudimentar e centralizada, conforme explica Paim:

[...] a organização sanitária brasileira era incapaz de responder às epidemias


e de assegurar assistência aos doentes, sem discriminação. As pessoas que
dispunham de recursos eram cuidadas por médicos particulares, enquanto os
indigentes eram atendidos nas Santas Casas de Misericórdia, pela caridade
e pela filantropia.

A carência de médicos, a fundação recente de escolas médicas e o


atendimento à saúde ainda concentrado nas santas casas de misericórdia
difundiam uma visão de atenção à saúde médico-centrada e hospitalocêntrica –
modelo, aliás, que ainda hoje permanece no imaginário social. Além disso, a falta
de um modelo sanitário que respondesse às situações epidemiológicas da época
deixava a população a mercê das epidemias de doenças (CRUZ, 2020).
De acordo com o autor, na República Velha (1889-1930), “a concepção
liberal do Estado era definida pelo princípio de que só caberia intervir nas situações
em que o indivíduo sozinho ou a iniciativa privada não fosse capaz de responder às
suas demandas” (3, p.30). Assim,as epidemias eram combatidas com uso da força
e da autoridade, a partir da atuação de uma espécie de “polícia sanitária”, com
ações episódicas e verticais conhecidas por “campanhistas”. Não havia ainda uma
política de prevenção, orientada por ações de promoção à saúde, a exemplo das
campanhas de conscientização sobre cuidadosem saúde e prevenção de doenças.
Epidemias de febre amarela, peste e varíola avançavam rapidamente sobre
a população, de forma indiscriminada, atingindo todas as classes sociais. A
situação fora de controle começou a prejudicar também a economia, o que exigiu
do poder público uma tomada de decisão a respeito do controle de vetores e da
vacinação. Na década de 1910, ocorreu um movimento pela mudança da
organização sanitária, liderado por médicos e contando com a presença de
autoridades políticas e intelectuais. Essas decisões políticas produziram a criação
de um Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), as campanhas sanitárias,
a implantação de instituições científicas, influenciando na criação de uma
comunidade científica e de políticas de saúde (CRUZ, 2020).
Nas décadas seguintes, ainda de acordo com o autor, o país viveria
diferentes ciclos históricos, políticos e econômicos. O primeiro ciclo, que vai de
1930 a 1945, conhecido como Estado Novo,foi implementado a partir da ascensão
de Getúlio Vargas à Presidência da República,por meio de golpe militar, em 1930.
A eleição de Juscelino Kubistchek (JK), em 1955, deu início ao ciclo
desenvolvimentista, marcado pelo slogan “50 anos em 5: Plano deMetas de JK”.
Em 1960, Jânio Quadros foi eleito presidente e renunciou ao cargo menos de um
ano depois, sendo substituído por João Goulart, que levou à frente as Reformas de
Base de 1961 até 1964. A partir de 1964, após um golpe civil-militar, o Brasil se viu
mergulhado em 21 anos de ditadura, regime de exceção que durou até 1985.
Durante esses ciclos de poder, o Brasil passou por momentos de avanços e
retrocessos em relação aos direitos civis, políticos e sociais. Tais mudanças
impactaram diretamente as condições de vida da população e, da mesma forma,
definiriam a organização dos serviços e ações de saúde.
Com o advento da industrialização no Brasil, no início do século XX, o
aumento de imigrantes substituindo a mão de obra escrava, no campo e
principalmente nas cidades, deu início à geração de sistemas de apoio mútuo entre
trabalhadores. Em 1923, a Lei Elói Chaves criou o primeiro sistema de previdência
social no Brasil, representado nas Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAP),
que abrangiam também assistência médica. Esse sistema, criado no período da
República Velha, cresceria consideravelmente no período do Estado Novo. As
CAPs, então, se converteram emInstitutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), que
se organizavam em categorias de trabalhadores. Assim, havia o IAP dos bancários,
conhecido como IAPB; dos comerciários, o IAPC; e o dos industriários, o IAPI, entre
outros (CRUZ, 2020).
O sistema de institutos, iniciado em 1930, perpassou três décadas, sendo
alterado somente no período do Governo Militar, em 1966, com a unificação dos
diversos IAPs num único instituto, o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).
O INPS, então, passou a ser responsável também por garantir a assistência médica
aos trabalhadores oriundos dos antigos institutos por categorias e agora
unificados. Em 1977, foi criado o Instituto Nacional de Assistência Médica
Previdenciária Social (Inamps). Derivado política e financeiramente do INPS, o
Inamps assumiu papel de gerenciar a assistência à saúde dos trabalhadores com
carteira assinada, ou seja, daqueles que contribuíam com a previdência social
(CRUZ, 2020).
De acordo com Paim, antes do SUS, os serviços de saúde se organizavam
de forma fragmentada. Era como se vivêssemos em “mundos separados”:

[...] de um lado, as ações voltadas para a prevenção, o ambiente e a


coletividade, conhecida como saúde pública; de outro, a saúde do
trabalhador, inserida no Ministério do Trabalho; e ainda, as ações curativas e
individuais, integrando a medicina previdenciária e as modalidades de
assistência médica liberal, filantrópica e, progressivamente, empresarial” (3,
p. 35).

A organização da saúde nesses “mundos separados” pressupunha que os


serviços curativos, ou médico-assistenciais, se colocassem à frente de ações de
promoção, proteção, prevenção e recuperação da saúde. Isso impactava na tomadade
decisões políticas sobre a destinação dos recursos financeiros para o setor saúde. A
insuficiência da oferta de serviços de saúde e a dificuldade de acesso da população
aos serviços existentes motivaram os debates e proposições de criação de um sistema
público pautado nas reais necessidades da sociedade e em determinantes e
condicionantes sociais. Era preciso ampliar o conceito de atenção à saúde, até então
visto apenas sob o aspecto curativo e ofertado para determinados grupos, para uma
política de promoção à saúde e qualidade de vida,de acesso universal (CRUZ, 2020).
Para tanto, segundo o autor, era necessário politizar o direito à saúde como
primeira condição para envolvimento da sociedade com as bandeiras de luta da
reforma sanitária, alimentando os movimentos em direção à organização social.
4 A SAÚDE COMO DIREITO

Fonte: revide.com

Para Hipócrates, filósofo grego que viveu no século V a.C., a saúde se referia
a influência da cidade e do tipo de vida de seus habitantes sobre a saúde,
afirmando que o médico não cometeria erros ao tratar as doenças de
determinada localidade quando tivesse compreendido adequadamente tais
influências.

Cruz aponta que a corrente de pensamento que entendia saúde apenas como
ausência de doença tem origem no século XVII, a partir de trabalhos do filósofofrancês
Descartes, que comparava o corpo humano a uma máquina. Nesses estudos,
Descartes enfatizava “o caráter mecanicista da doença” e indicava também uma
abordagem tecnicista de “reparo especializado”. Em 10 de dezembro de 1948, a
Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada na Organização das Nações
Unidas (ONU) após as atrocidades causadas à humanidade pela 2ª Guerra Mundial,
subscreveu em seu artigo 25 o direito à saúdeda seguinte forma:

Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à
sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao
vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços
sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença,
na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de
subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. A
maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas
as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma
proteção social.
Conforme aponta o autor, novos pactos aprovados em 1966 – um deles sobre
direitos civis e políticos e outro sobre direitos econômicos, sociais e culturais –, bem
como o fortalecimento de organismos internacionais, a exemplo da Organização
Mundial de Saúde (OMS), criada em 1948, foram fundamentais para construir o
entendimento sobre o direito à saúde universal.
No cômputo dessas importantes ações, está a I Conferência Internacional
sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada na cidade de Alma-Ata, Cazaquistão,
em 1978. Na ocasião, os 134 países participantes propuseram uma meta de, por meio
da atenção primária à saúde, “atingir o maior nível de saúde possível até o ano 2000”.
Essa política internacional ficou conhecida como ‘Saúde para Todos no Ano 2000’. No
Brasil, até que a saúde se efetivasse enquanto direito fundamental, garantido na
Constituição, muitas ações foram desenvolvidas. Nos anos de 1960, porexemplo, o
Governo João Goulart, iniciou as chamadas “reformas de base”, que reuniam sob
essa ampla denominação um conjunto de iniciativas: as reformas bancária, fiscal,
urbana, administrativa, agrária, sanitária e universitária (CRUZ, 2020).
Na área da saúde, um passo importante se deu em 1963, quando o presidente
da República João Goulart e o então ministro da Saúde, Wilson Fadul, convocaram a
3ª Conferência Nacional de Saúde, que ocorreu de 9 a 15 de dezembro daquele ano,
no Rio de Janeiro/RJ. De acordo com Decreto nº 52.301, de 24 de julho de 1963 (11),
a referida Conferência deveria discutir os seguintes temas: a situação sanitária da
população brasileira; a distribuição e coordenação das atividades médico-sanitárias
dos níveis federal estadual e municipal; a municipalização dos serviços de saúde; e a
fixação de um plano nacional de saúde (CRUZ, 2020).
No Relatório Final da 3ª Conferência Nacional de Saúde (3ª CNS) (12), foram
propostos e aprovados cinco indicativos para organização dos serviços de saúde,
visando ampliar a qualidade de vida: medidas primárias de saneamento do meio
ambiente; fiscalização dos gêneros alimentícios, das habitações e dos
estabelecimentos que lidam com a produção e o comércio de alimentos; imunização
contra as doenças transmissíveis; prestação dos primeiros socorros de assistência a
doentes; e levantamento dos dados de estatística vital (CRUZ, 2020).
Segundo o autor, no processo de adoção das reformas de base na área de
saúde, reforçado pela 3ª CNS, foi interrompido pelo Golpe Militar de 1º de abril de
1964, mas a defesa de um sistema de saúde público germinou. A 7a Conferência
Nacional de Saúde (7ª CNS), realizada no Itamaraty, em Brasília, de 24 a 28 de março
de 1980, com participação expressiva de sanitaristas, debateu a “Extensão das ações
de saúde por meio dos serviços básicos”, uma temática ancorada na Conferência
Internacional de Alma-Ata, a qual preconizou a atenção primária à saúde como um dos
pilares de organização dos sistemas de saúdeno mundo.
Tanto o ministro da Saúde, Waldyr Arcoverde, quanto o presidente da
República, João Figueiredo, marcaram presença na abertura da 7ª CNS. A atividade
reuniu 402 participantes, na maioria médicos, mas com representatividade dessa e de
outras categorias de trabalhadores ligadas ao movimento pela reforma sanitária. Após
a realização da 7ª Conferência, foram desenvolvidas duas edições do Simpósio
Nacional sobre Política de Saúde, na Câmara dos Deputados, em 1979 e 1982,
respectivamente. Esses eventos foram decisivos para expansão do Movimentopela
Reforma Sanitária, fazendo crescer, também no Legislativo, a bandeira pela criação
de um sistema de saúde com capacidade de atender às necessidades de toda a
população de forma irrestrita (CRUZ, 2020).
Aqui cabe ressaltar que a proposta de criação de um sistema universal de
saúde foi formulada no 1º Simpósio Nacional sobre Política de Saúde, intitulado “A
questão democrática na área de saúde”. Paim, conta que a primeira ideia de
Sistema Único de Saúde foi apresentada durante o referido simpósio pelo Centro
Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes). Vê-se, então, que “tanto a Reforma Sanitária
Brasileira, quanto o SUS nasceram da sociedade, e não de governos ou partidos”. A
população reconhecia, na prática, a existência de dois sistemas que promoviam
uma seletividade injusta no atendimento à saúde. Um sistema, sobcomando do INPS,
com serviços próprios e contratados, era destinado aostrabalhadores com registro
em carteira profissional emitida pelo Ministério do Trabalho. A outra parcela da
população que, mesmo trabalhando muito, não possuía registro em carteira
profissional, era atendida em serviços filantrópicos e de caridade. Portanto, a
necessidade de criação de um Sistema Único de Saúde encontrava simressonância
social (CRUZ, 2020).

4.1 A Reforma Sanitária no Brasil

Mesmo diante da tensão e do silêncio impostos pelo Golpe Militar de 1964,


movimentos sociais brasileiros se organizaram na luta pela redemocratizaçãopolítica
do país. O Movimento pela Reforma Sanitária destacou-se, na década de 1970, pela
defesa de um programa sanitário que organizasse os serviços de forma a promover
atenção irrestrita e solucionar os problemas de saúde constantes do quadro
epidemiológico do período, e para superar a fragmentação da saúde organizada por
blocos de demandas pautadas nos interesses da iniciativa privada (CRUZ, 2020).
De acordo com o autor, os debates sobre as situações de saúde e as linhas
epistêmicas que dirigirama formulação de propostas sobre a reforma da saúde pública
no Brasil inspiravam-sena reforma sanitária italiana, aprovada em 21 de dezembro de
1978. SegundoBerlinguer, que foi o relator do projeto no congresso italiano, a criação
do Istituzione del Servizio Sanitário Nazionale (Instituto do Serviço Sanitário
Nacional), por meio da lei a aprovação da Lei nº 8.333, de 23 de dezembro de 1978
transformouem realidade “aquilo que [...] era apenas uma aspiração, uma utopia”.
De acordo com Berlinguer, uma reforma sanitária, para ser bem-sucedida,não
pode se constituir apenas de processos burocráticos. Ao contrário, ela precisa
necessariamente passar por processos “de participação popular que envolvam um
contingente significativo de pessoas, de várias expressões sociais”. Assim, a reforma
sanitária deve impor:

...mudanças sociais, ambientais e comportamentais que tornem a existência


mais saudável; deve mobilizar dezenas de milhares de conselheiros de
regiões, de províncias de municípios, de circunscrições de quadros dos
movimentos sindicais, femininos, cooperativos, juvenis, e milhares de
assessores de prefeitos, técnicos e enfermeiros. (13, p. 3 apud CRUZ, 2020).

O autor destaca que as propostas de lei que modificaram o sistema de saúde


italiano expressavam as demandas apresentadas pelos movimentos sociais desde a
década de 1960. Para ele, mesmo após a aprovação da reforma sanitária emlei, era
preciso que o engajamento permanecesse e que os movimentos seguissem atentos
ao processo de desenvolvimento da reforma, tendo em vista a correlação de forças
políticas então vigentes naquele país. À época da aprovação da reforma sanitária
italiana, a correlação de forças se dava entre democratas cristãos, socialistas e
comunistas organizados em partidos. Esses grupos políticos disputavam as
concepções de saúde no seio da sociedade, nas casas legislativas e na estrutura
governamental e administrativa.
Considerando a conjuntura política da redemocratização do Brasil, os
defensores da reforma sanitária, tendo Berlinguer como expoente, acreditavam que a
nova conjuntura política permitiria a realização de uma ampla reforma do modelo de
atenção à saúde, visando à universalização dos serviços, em busca de gerar direitos
sociais aos setores mais frágeis da sociedade. Nas décadas de 1970 e 1980, o
Movimento pela Reforma Sanitária trazia para o debate público no Brasil os mesmos
elementos apresentados por Berlinguer, como essenciais para o sucesso da reforma
italiana: mobilização popular em prol da promoção da saúde; atenção ao processo de
aprovação e desenvolvimento dareforma sanitária, observando a correlação de forças
políticas que circundavam o espectro político nacional; e compromisso com uma
reforma sanitária sustentada pelademocracia (CRUZ, 2020).
Ao mesmo tempo, segundo o autor aponta, o Movimento pela Reforma
Sanitária no Brasil também pregava a adoção de um conceito mais amplo de atenção
à saúde. Para além de políticas médico-assistenciais, garantir o direito à saúde incluía
ofertar serviços de saúde comprometidos com a promoção e a proteção da saúde e
também um conjuntode outras políticas públicas, como o acesso à educação, moradia,
meio ambiente preservado, transporte e lazer, que garantisse à população condições
de vida mais saudáveis.
No processo de reabertura política, demarcado pela Lei da Anistia, em 1979,
os movimentos sociais fortaleceram suas organizações para superar inúmeras
necessidades básicas da população, como acesso à energia elétrica e água, nas
cidades dormitório das regiões metropolitanas; combate à recessão econômica, assim
como direito a terra. Em defesa dessas reivindicações, a atuação de movimentos
sociais e do sindicalismo – nos setores privado, público, nas áreas urbanas e rurais –
foi crescendo, passando da reivindicação a um projeto de disputa de poder entre
classes sociais.
O crescimento das forças populares se materializou na expansão dos
movimentos sociais em diferentes frentes de luta, tais como: a Confederação Nacional
das Associações de Moradores (Conam), que agregava organizações de bairros
periféricos; o Movimento dos Sem Terra (MST) e a Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura (Contag), na luta contra o latifúndio; a Central Única dos
Trabalhadores (CUT), reunindo trabalhadores de diversos ramos da produção; as
Comunidades Eclesiais de Bases (CEB) e a Comissão Pastoral da Terra, ambas
ligadas à Igreja Católica, tendo como referencial de orientação políticaa “opção pelos
pobres”, defendida pela Teologia da Libertação. Esse foi um momento histórico e
político no qual a utopia por um país mais justo gerou vitórias para a democracia
política. No mesmo período, greves de várias categorias de trabalhadores,
especialmente as da região conhecida como ABC paulista, demarcaram as lutas por
melhores condições de vida e trabalho e incentivaram a composição de partidos
políticos operários (CRUZ, 2020).
Segundo o autor, em a recessão, a inflação, a violência e o desemprego,
característicos da conjuntura política e social dos anos de 1980, desmotivaram os
movimentos sociaisnas lutas pela redemocratização do país. Em 1984, milhões de
pessoas foram às ruas pela Campanha das Diretas Já, que reuniu diversas lideranças
sociais, partidárias, artistas e movimentos sociais insatisfeitos com os rumos do país
no quetange aos direitos civis, políticos e sociais. As alterações do cenário político
nacional na década de 1980 permitiram um processo de ação contínua pela melhoria
das condições de vida do povo brasileiro. Esse processo de transformação culminou
com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, a promulgação de
uma nova Constituição Federal, em 1988, e a realização de eleições diretas para a
Presidênciada República em 1989.
Na área da saúde, o Movimento pela Reforma Sanitária, constituído
inicialmente por intelectuais e técnicos da área, recebeu reforço de outros setores da
sociedade civil, como sindicatos, partidos, associações, movimentos populares. A
politização do direito à saúde passou a contar, por exemplo, com experiências locais,
como a dos Conselhos Populares de Saúde da Zona Leste de São Paulo, nas quais
a população assumia para si o debate e a luta pela ampliação do acessoà saúde. A
proposta de descentralização dos serviços, indicada pelo Movimento pela Reforma
Sanitária, ganhava adesão de gestores de saúde, de cidades e estados administrados
especialmente pelo MDB, partido que agregava as oposições ao Governo Militar
(CRUZ, 2020).

Em 1982, a oposição ganha às eleições para os governos estaduais, abrindo


a possibilidade de técnicos comprometidos com a Reforma Sanitária
ocuparem espaços políticos e técnicos importantes [...] o mesmoacontece em
relação às prefeituras e secretarias municipais de saúde, iniciando
experiências inovadoras e exitosas de gestão municipal da saúde. (14 p. 12)

Segundo o autor, a estrutura federativa do Brasil garante autonomia política e


administrativaà União, aos estados e aos municípios. Propunha-se, então, a adoção
de um pactofederativo para a implantação do SUS, a fim de fortalecer o município e
passar para ele o comando único dos serviços de saúde. Isso permitiria que o
planejamento e agestão dos serviços de saúde fossem desenvolvidos de acordo com
a realidade local.
O debate sobre o modelo assistencial versava sobre a necessidade de mais
recursos financeiros e prioridade política para as ações de promoção da saúde, e não
somente para o tratamento de doenças. Essas questões faziam com que os debates
sobre “saúde e doença” se harmonizassem em favor de um conceito de atenção
integral à saúde, que priorizasse as práticas voltadas à prevenção, promoção,
proteção, atenção e recuperação da saúde, ultrapassando a concepçãotecnicista de
medicina curativa. Inspirados na experiência de conselhos populares de saúde, os
movimentossociais articulados no Movimento pela Reforma Sanitária visualizavam a
efetivaçãode um sistema de participação social para a formulação e deliberação das
políticaspúblicas de saúde. Para tanto, indicavam a necessidade de democratização
dos espaços públicos, com a criação de conselhos e conferências, para possibilitar o
acompanhamento da reforma sanitária e sua defesa permanente, sustentando o
Sistema Único de Saúde (CRUZ, 2020).
O autor menciona que esses interesses convergentes permitiram a elaboração de
uma pauta unificada em torno da universalização do atendimento, da descentralização
da gestão, do modelo de atenção integral, e da participação popular. Mediante essa
pauta políticaunificada é que se desenvolveram os debates e propostas da histórica 8ª
ConferênciaNacional de Saúde, em 1986.

4.2 A 8ª Conferência Nacional de Saúde

Realizada de 17 a 21 de março de 1986, a 8ª Conferência Nacional de Saúde(8ª


CNS) (16) foi coordenada pelo médico sanitarista Sérgio Arouca, e teve como
principais temas de debate: a Saúde como Direito; a Reformulação do Sistema
Nacional de Saúde; e o Financiamento do Setor. A conferência aprovou propostas
referentes à: atenção integral à saúde, universalização da assistência,
descentralização dos serviços e participação popular (CRUZ, 2020).
Segundo Cruz, mais de cinco mil militantes, representando sociedade civil,
profissionais de saúde, gestores públicos, parlamentares e acadêmicos participaram
da 8a CNS, emBrasília/DF. O então ministro da Saúde, Roberto Figueira Santos, e o
presidente daRepública, José Sarney, também estiveram presentes na abertura da
conferência. A participação de pensadores da reforma sanitária, no Brasil,
organizados no Movimento pela Reforma Sanitária, tendo Arouca como importante
vocalizador social, foi marcante e decisiva para os resultados desse importante evento
da saúdepública em nosso país.
A ebulição política e social, dos anos 1980, oportunizou a articulação de
interesses em favor de um sistema público de saúde, com a realização da 8ª CNS,
mas também despertou forças políticas antagônicas a esse interesse social. Quando
da realização da 8ª CNS, o modelo de Estado estava em franca disputa no cenário
nacional e internacional. O neoliberalismo impunha a agenda de Estado mínimo,
difundida pelo Banco Mundial, segundo a qual o investimento em saúde deveria ser
focalizado e não universalizado. Essa conjuntura exigia muito empenho e mobilização
social para que as propostas da 8ª CNS chegassem ao patamar de legislação
nacional, e depois para a efetivação desta por parte da administração pública (CRUZ,
2020).
A 8ª Conferência foi um momento muito importante de exposição de
pensamentos e formulações entre os atores que trabalharam pela universalização da
saúde pública. Ela se estabeleceu como marco histórico da saúde pública brasileira
no século XX, especialmente no que se refere à aglutinação de forças sociais
comprometidas e à formulação de uma política pública de saúde, baseada nos
princípios de universalidade, integralidade e equidade. Para que a reforma sanitária
se consolidasse, a 8ª CNS aprovou o direito do cidadão brasileiro à saúde e o dever
do Estado de proporcionar condições dignas de vida à população e acesso universal
às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde em todo o
território nacional (CRUZ, 2020).
De acordo com o autor, o Relatório Final da Conferência enfrentou a focalização
de políticaspúblicas e aprovou o conceito amplo de saúde, segundo o qual o direito
à saúde resulta não apenas do acesso aos serviços de saúde, mas está diretamente
ligadoa outros fatores determinantes, como alimentação, habitação, educação, renda,
meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer e liberdade. O Relatório também
apontou que para garantir o direito à saúde era essencial ordenar o modo de produção
em favor do trabalhador, a fim de superar a desigualdade social no transcorrer da vida.
Mesmo após a conferência, os movimentos sociais mantiveram a mobilização
social, a fim de garantir que as propostas aprovadas fossem levadas à Assembleia
Nacional Constituinte e, assim, pudessem compor o texto da Constituição Federal de
1988. A Oitava Conferência, como é conhecida pela militância da área da saúde,tem
um papel histórico e político destacado nos estudos de saúde pública no Brasil,
permanecendo ainda hoje como referência na demarcação de forças dos movimentos
sociais, em favor da universalidade da saúde (CRUZ, 2020).

4.3 A Constituição Federal de 1988

As ações autoritárias do governo militar, por meio de dura repressão à sociedade


civil, manifestada em atos de censura, torturas e mortes, geraramfissuras no tecido
social, o que exigiu a revisão e uma repactuação dos processos no qual estavam
ancorados os direitos civis, políticos e sociais, no período da redemocratização do
país. A transição democrática, proposta em 1984/1985, incluía a elaboração de uma
nova Constituição Federal. Coube a Tancredo Neves, do Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB) – eleito de forma indireta, pelo Congresso Nacional
para a Presidência da República, em janeiro de 1985 – o papel de apresentar essa
proposta de nova constituinte (CRUZ, 2020).
Segundo o autor, Tancredo Neves não chegou a tomar posse. Faleceu em 21
de abril do mesmo ano, sendo substituído por seu vice, José Sarney, também do
PMDB. Sarney, então, assumiu o encargo de levar à frente a proposta de elaborar
uma nova Constituição Federal, de modo a superar o recente período de exceção
pelo qual o país havia passado. Tal transformação só poderia se dar por meio de um
espaço político democrático legítimo, uma Assembleia Nacional Constituinte, que
traria o ambiente oportuno para um debate nacional sobre a organização social,
política e econômica do país, com repercussões para a reorganização de todo o
Estado Brasileiro.
A Assembleia Nacional Constituinte, então, foi convocada e em 1986, foram
realizadas as eleições para governadores, deputados estaduais, deputados federaise
senadores; e em 1º de fevereiro de 1987, com a composição do novo Congresso
Nacional, a referida Assembleia foi instalada, tendo o deputado Ulysses Guimarães,do
PMDB, como presidente. O processo político de lutas para influenciar a elaboração
da nova Constituição iniciou, com muita organização e disposição da sociedade civil,
em direção a um Estado democratizado. Para Gohn “é inegável que os movimentos
sociais dos anos 70/80, contribuíram decisivamente, via demandas e pressões
organizadas, para a conquista de vários direitos sociais novos, que foram inscritos na
nova Constituição Brasileira de 1988” (25, p. 20) (CRUZ, 2020).
Ainda segundo Cruz, os debates políticos que promoveram a construção e
depois a promulgaçãoda Constituição Cidadã eram densos e envolviam interesses
antagônicos à própriademocracia, expressando divergências e disputas de classes, o
que permeou os debates, as proposições e as votações. Assim, a disputa de
hegemonia por um modelo de sociedade democrática agitava os bastidores da política
no Congresso Nacional e as ruas, com vitórias e derrotas em relação a propostas
apresentadas pelos parlamentares e pela sociedade civil. Um amplo movimento,
chamado Participação Popular na Constituinte, elaborou emendas populares à
Constituição e coletou subscrições em todo o país, marcando este momento de
inflexão dos movimentos sociais. “‘Na luta fazemos a lei’ era o slogan de muitos
candidatos do campo democrático-popular ao Congresso constituinte, revelando seu
caráter de espaço de afirmação das mobilizações sociais no plano dos direitos
instituídos. ”
Para a inclusão do direito à saúde e do conceito amplo de saúde no texto da
Constituição Federal de 1988, foi elaborada uma emenda popular com as propostas
da 8ª Conferência Nacional de Saúde (8ª CNS). Essa emenda recebeu assinaturas
de 54.133 pessoas, envolvendo 122 entidades, entre conselhos populares, centrais
sindicais, associações científicas, partidos políticos, entre outros(18 p. 153). Essa ação
articulada foi resultado político da mobilização social mantidaapós a 8ª CNS, que teve
destaque e influenciou a aprovação do SUS, no texto constitucional. Assim, o Capítulo
da Saúde na Constituição Federal, que perpassa os artigos 196 a 200, indica que:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante


políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação.

A participação popular organizada na área da saúde, como vimos, foi uma


das propostas defendidas e aprovadas na 8ª Conferência Nacional de Saúde. No
texto constitucional, a participação da comunidade está inscrita como uma das três
diretrizes de organização do SUS:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede


regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de
acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II -
atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade.
Assim, a descentralização, a atenção integral e a participação da
comunidade que formaram a pauta unificada do Movimento pela Reforma Sanitária,
foram incorporadas à Constituição Federal como pilares do Sistema Único de Saúde.
Uma importante vitória da sociedade (CRUZ, 2020).

4.4 Histórico do Conselho Nacional de Saúde

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) foi criado, durante o Governo Getúlio


Vargas, pela Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937. À época, o CNS era um órgão
técnico e consultivo do Ministério da Educação e Saúde, com o propósito de debater
questões internas e assessorar o ministro de Estado da Saúde. O colegiado seguiu
com estas mesmas funções após a separação dos ministérios da Saúde e da
Educação Pública, definida pelo Decreto no 34.347, de 8 de abril de 1954. Até 1990
a atuação do Conselho Nacional de Saúde se restringia a colaborar com o gestor
federal no estudo de assuntos pertinentes ao setor (CRUZ, 2020).
Para o Movimento pela Reforma Sanitária, a organização de um Estado
provedor de direitos presumia uma saúde pública organizada a partir dos princípios
da universalidade, integralidade e equidade. Também indicava que a participação
social seria a base de sustentação do Sistema Único de Saúde. A participação popular
está presente no Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde em várias
propostas, como se vê a seguir:

Participação da população na organização, gestão e controle dos serviços e


ações de saúde; direito à liberdade, à livre organização e expressão; acesso
universal e igualitário aos serviços setoriais em todos os níveis;
Diagnóstico sobre a debilidade da organização da sociedade civil, com
escassa participação popular no processo de formulação e controle das
políticas e dos serviços de saúde;
Para assegurar o direito a saúde indicou a participação da população, através
de suas entidades representativas, na formulação da política, no
planejamento,na gestão, na execução e na avaliação das ações de saúde;
Deverão também ser formados Conselhos de Saúde em níveis local,
municipal, regional e estadual, compostos de representantes eleitos pela
comunidade (usuários e prestadores de serviço), que permitam a participação
plena da sociedade no planejamento, execução e fiscalização dos programas
de saúde;
Deverá ser garantida a eleição das direções das unidades do sistema de
saúde pelos trabalhadores desses locais e pela comunidade atendida;
É indispensável garantir o acesso da população às informações necessárias
ao controle social dos serviços, assegurando, a partir da constituição de um
Sistema Nacional de Informação, maior transparência às atividades
desenvolvidas setor; pela adoção de políticas de saúde que respondem
efetivamente a complexidade do perfil sócio-sanitário da população brasileira.
Em 1990, o Movimento pela Reforma Sanitária conseguiu estabelecer uma
frente de negociação com o então ministro da Saúde, Alceni Guerra, para a
recomposição do Conselho Nacional de Saúde, possibilitando a entrada de
representantes da sociedade civil no colegiado. O resultado dessa negociação se
materializou na aprovação do Decreto nº 99.438, de 7 de julho de 1990,
estabelecendo uma nova composição para o CNS e novas atribuições de formular,
fiscalizar e deliberar sobre as políticas de saúde. Isso ocorreu antes mesmo da
aprovação das leis nº 8.080/1990 e nº 8.142/1990 (CRUZ, 2020).
A nova legislação fixou na composição do CNS representantes dos usuários
dos serviços de saúde, dos profissionais de saúde, dos gestores federais, estaduaise
municipais e dos prestadores de serviço de saúde. Os usuários passaram a contar
com 50% das vagas; e a outra metade seria dividida entre profissionais de saúde,
gestores e prestadores de serviço de saúde. Nesse contexto, os conselhos gestores
de políticas públicas, como o CNS, constituíram-se em “espaços públicos de
composição plural e paritária entre Estadoe sociedade civil, de natureza deliberativa,
cuja função é formular e controlar a execução das políticas setoriais”. (28, p. 54). De
1990 a 2004, a atuação do Conselho Nacional de Saúde foi marcada pelacondução
de quatro edições da Conferência Nacional de Saúde; pelo incentivo à criação de
conselhos de saúde nos municípios e estados; pelo acompanhamento da Plenária
Nacional de Saúde; e pelo estímulo à instituição de uma Plenária Nacional de
Conselhos de Saúde (CRUZ, 2020).
Segundo o autor, em 1992, o CNS editou a Resolução CNS no 33, de 1992,
que democratizou a composição dos conselhos no país, reordenando a distribuição
de vagas nos conselhos de saúde, paritariamente, da seguinte forma: 50% para
usuários do Sistema Único de Saúde; 25% para trabalhadores de saúde (alterando
a categoria de profissionais de saúde para trabalhadores de saúde, por considerá-
la, assim, mais abrangente, ou seja, não somente os profissionais de formação
universitária, mas o conjunto dos trabalhadores do setor saúde); e 25% paragestores
e prestadores de serviços.
A partir de 2003, no Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o diálogo entre os
movimentos sociais e a gestão governamental foi revitalizado, permitindo à
sociedade civil uma participação mais ativa na avaliação do conjunto de políticas
públicas, com destaque às pactuações sobre o modelo assistencial à saúde. “A
gestão Lula criou novos conselhos nacionais de políticas públicas e fortaleceu
aqueles criados anteriormente. Além disso, foram realizadas mais de 70
conferências nacionais em suas duas gestões. ” Em novembro de 2003, com a
aprovação do Decreto nº 4.878, de 2003, o Conselho Nacional de Saúde pôde,
finalmente, se recompor de acordo com os critérios de paridade estabelecidos na
Resolução CNS nº 33/1992. Nos anos de 2003 e 2004, diversas políticas de saúde,
foram debatidas e aprovadas no CNS, entre elas: o financiamento da saúde; a
reinstalação da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS (MNNPSUS); a
Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF); a Política Nacional de
Educação Permanente no SUS (PNEPSUS); e a Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde da Mulher (PNAISM). A Mesa Nacional de Negociação Permanente
do SUS foi extinta em 2019, e as outras políticas permanecem, mas com baixos
investimentos (CRUZ, 2020).
Outra importante conquista em relação à composição do Conselho Nacional
de Saúde foi alcançada em 2006. O Decreto nº 5.839, de 11 de julho de 2006,
constituiu processo eleitoral para incorporar outros movimentos e entidades ao Pleno
do CNS, bem como para escolha do presidente entre os conselheiros. Pela
legislação anterior, o presidente do Conselho Nacional de Saúde era o ministro da
Saúde. Nesse novo processo de recomposição, segmentos sociais relevantes
passaram a compor o colegiado, como os movimentos de negros, populações
indígenas, estudantes, mulheres, meio ambiente, entre outros, conforme estabelecia
a Resolução CNS nº 361, de 2006. O Conselho Nacional de Saúde, motivado pelo
compromisso das entidadesque o compõem, configurou-se ao longo dos anos como
um dos principais conselhos de políticas públicas do país, buscando cumprir com
qualidade seu papel de instância responsável pela formulação, deliberação e
fiscalização das políticas de saúde. Mesmo na atual conjuntura que vive o Brasil –
após o Golpe de 2016 e instalação de um governo de perfil antidemocrático, como
resultado das últimas eleições de 2018 – o colegiado segue se expressando de forma
corajosa sobre temas essenciais, politizando os efeitos da conjuntura política,
econômica e social na saúde pública e atuando pela manutenção do SUS (CRUZ,
2020).
O autor afirma que a participação ativa de movimentos sociais no Conselho
Nacional de Saúdeé um símbolo real de uma conquista social de que as tomadas de
decisão de gestores públicos sejam realizadas em espaços deliberativos de
participação social.No entanto, a democratização dos espaços de participação da
sociedade civil não é um processo acabado. Ele tem sofrido, ao longo da história,
muitos revezes políticos, especialmente diante de governos de posturas neoliberais
que atuam pelaredução do Estado e tendem a aniquilar os espaços de participação
social.
Em 2019, por meio do Decreto nº 9.759 (32), o governo brasileiro extinguiu
inúmeros conselhos e comissões que contavam com a participação da sociedade
civil. Houve quem avaliasse que essa medida não afetaria conselhos constituídos
por lei, como o CNS. No entanto, em setembro do mesmo ano, o Decreto 10.003
determinou a dispensa, de uma só vez, de todos os conselheiros do Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), colegiado constituído
por lei. Este é o cenário que vivemos atualmente no Brasil (CRUZ, 2020).

4.5 A aprovação das leis NO 8.080 E NO 8.142/1990

Após a promulgação da Constituição de 1988, o Movimento pela Reforma


Sanitária deu início à jornada pela regulamentação do Capítulo da Saúde. Um primeiro
passo neste sentido foi à aprovação da Lei no 8.080, de 19 de dezembro de 1990 (19),
com o objetivo de organizar as ações e serviços de saúde, consignados nas diretrizes
do Sistema Único de Saúde (SUS) (CRUZ, 2020).
A Lei nº 8.080/1990 acata o artigo 196 da Constituição Federal de 1988 e “dispõe
sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização
e o funcionamento dos serviços”. Também ratifica, em seu art. 3º,o conceito ampliado
de saúde, ao estabelecer que:

[...] a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros,


a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho,
a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços
essenciais; e que, os níveis de saúde da população expressam a organização
social e econômica do país.

Observa-se, então, que a Lei nº 8.080, de 1990, guarda sintonia com o Relatório
Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde, no que tange ao conceito ampliado de
saúde e várias outras questões. Assim, é possível denotar a nítida influência das
proposições do Movimento pela Reforma Sanitária no texto da chamada Lei Orgânica
da Saúde. No processo de aprovação da Lei nº 8.080/1990, o texto proposto
inicialmente pelos dirigentes do Ministério da Saúde sofreu cortes. Mantiveram-se os
itens relativos à descentralização dos serviços e à atenção integral, mas os referentes
à participação da comunidade foram vetados pelo então presidente da República,
Fernando Collor de Mello (CRUZ, 2020).
Diante dos vetos, segundo o autor, a sociedade civil organizada mais uma vez
se manifestoue a mobilização fez com que, em 28 de dezembro de 1990 – passados
apenas três meses da publicação da Lei 8.080/1990 – fosse publicada a Lei no 8.142
, que “dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de
Saúde(SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros
na área da saúde”. Essa lei foi essencial para a estruturação do controle social das
políticas públicas de saúde nas três esferas de governo, diminuindo as resistências
sobre aparticipação da sociedade nos processos de tomada decisão pública. Assim,
as conferências e conselhos de saúde foram acolhidos como parte integrante do
funcionamento do SUS.
De acordo com o estabelecido pela Lei nº 8.142/1990, o mecanismo da
conferência de saúde deveria se reunir “a cada quatro anos com a representação dos
vários segmentos sociais, para avaliar a situação de saúde e propor asdiretrizes para
a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes, convocada pelo Poder
Executivo ou, extraordinariamente, por esta ou pelo Conselho de Saúde”.
Em seu § 2°, a Lei 8.142/1990 definiu a missão e a composição dos conselhos
de saúde:

O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado


composto por representantes do governo, prestadores de serviço,
profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no
controle da execução da política de saúde na instância correspondente,
inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão
homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do
governo.

Segundo Cruz, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) passou a compor a


estrutura do Ministério da Saúde e os conselhos e conferências previstos na Lei nº
8.142, de 1990, foram formalmente incorporados ao SUS na missão de formular,
fiscalizar e deliberar sobre as políticas de saúde. Também começaram a atuar em
questões que dizem respeito “à dimensão da cidadania, à universalização de direitos
sociaise à garantia ao exercício desses direitos”.
A democratização do Conselho Nacional de Saúde, por meio do Decreto nº
99.438, de 7 de julho de 1990, contribuiu com a aprovação da Lei nº 8.142/1990,que
tornou obrigatória a existência dos conselhos e conferências de saúde, em todasas
esferas de gestão. Esse movimento pela regulamentação da Constituição Federal de
1988 repercutiria nas ações que se desdobraram para os cenários estaduais e
municipais, com a elaboração e aprovação das Constituições dos Estados e Leis
Orgânicas dos municípios; um momento rico para debates sobre a reforma sanitária e
a participação social, na base, contribuindo diretamente com fortalecimento dos
princípios dos SUS,nos estados e municípios (CRUZ, 2020).

5 A DESCENTRALIZAÇÃO DO SUS

Fonte: observatoriodasmetropoles.net

Até a institucionalização do SUS, na Constituição de 1988, a política de


assistência à saúde vinculava-se à política previdenciária, dependendo da
contribuição financeira dos beneficiários ao sistema de previdência. Esse modelo,
criado pela Lei Eloy Chaves (1923), por meio das Caixas de Aposentadoria e Pensão
(CAPs), manteve-se até o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência
Social (Inamps), criado em 1966 como parte integrante do Instituto Nacional de
Previdência Social (Inps). No início dos anos 1980 começam a se desenvolver
propostas de reforma do setor saúde, visando diminuir os custos da assistência
médica previdenciária e a centralização decisória no Inamps, que favorecia os
provedores privados, em função da captura da burocracia do instituto pela indústria
hospitalar e farmacêutica (LOTTA, 2019).
Nesse contexto, segundo o autor, descentralizar significava democratizar,
reduzindo o poder da iniciativa privada na formulação da política nacional de saúde.
Entre as propostas descentralizadoras estava o direcionamento das ações em
atenção básica à saúde para os níveis estadual e, sobretudo, municipal. O movimento
sanitário defendeu a unificação do Sistema de Saúde na 8ª Conferência Nacional de
Saúde, em 1986, que pavimentou o caminho para a aprovação do Sistema Unificado
e Descentralizado de Saúde (Suds), em 1987. Este embasou a criação do SUS,
estabelecendo a transferência de serviços de saúde para estados e municípios e um
gestor único da saúde em cada nível de governo.
O movimento sanitário conseguiu manter no texto constitucional vários
princípios aprovados na 8ª Conferência Nacional de Saúde. Concomitantemente, a
estatização da prestação de serviços foi bloqueada pelos provedores privados, que
garantiram a prestação privada de serviços pelas seguradoras e planos de saúde. A
partir de então, o debate sobre as regras para implantação do SUS passaria a ocorrer
no Congresso Nacional, culminando com a Lei Orgânica da Saúde. Com a
constituição e início da implantação do SUS, a diretriz prioritária da política de saúde
passou a ser a descentralização dos serviços em geral e a municipalização dos
serviços de atenção básica. Ainda não se tinha clareza sobre qual o papel de cada
ente federado, deixando estados e municípios com ampla autonomia para a
implementação da descentralização proposta pela Constituição de 1988. A primeira
regra criada para viabilização da municipalização foi a Norma Operacional Básica
(NOB) do Ministério da Saúde, a NOB 1/1991, que não definia qualquer modelo de
atenção à saúde nem previa mecanismos de articulação dos prestadores, dando
ampla autonomia aos gestores subnacionais para a adoção das ações que
consideravam adequadas, sem intervenção ou direcionamento por parte do gestor
nacional do sistema. Por isso, a primeira fase de implantação do SUS pode ser
chamada de fase da descentralização autonomista (LOTTA, 2019).
A principal característica dessa norma era o condicionamento dos repasses
financeiros à produção do serviço pelo prestador, com base na produção histórica,
favorecendo estados e municípios com capacidade instalada (postos, hospitais etc.)
e que, portanto, já prestavam serviços. As unidades da federação que não possuíam
serviços instalados eram penalizadas, já que só passariam a receber recursos após
estabelecerem unidades de atendimento e prestarem serviços de saúde à população.
Como consequência, apenas 22% dos municípios brasileiros aderiram ao SUS nesse
período (LOTTA, 2019).
De acordo com o autor, em função da baixíssima adesão dos municípios à NOB
1/1991, esta foi substituída pela NOB 1/1993, que introduziu as primeiras formas de
habilitação de estados e municípios ao SUS. Os estados podiam se habilitar como
gestores parcial ou semipleno, e os municípios habilitavam-se na gestão incipiente,
parcial ou semiplena. A diferença entre cada tipo de gestão encontrava-se no grau de
complexidade (e de obrigações) que o ente federativo assumia e, consequentemente,
na quantidade de recursos que passaria a receber do ministério para a prestação dos
serviços de saúde. A nova regra gerou um incentivo mais claro à adesão e cooperação
e 63% dos municípios habilitaram-se em uma das formas de gestão – um aumento
substantivo em relação à adesão obtida pela NOB anterior. Uma importante inovação
da nova NOB para as relações intergovernamentais foram as Comissões
Intergestores Tripartite (representantes dos três níveis de governo) e Bipartite
(estados e municípios), órgãos de representação interfederativa para a discussão das
prioridades da política conforme os interesses dos diferentes níveis governamentais.
As duas normas deram início ao processo de descentralização, impulsionado de fato
pela NOB 1/1996, voltada a fortalecer a atenção primária dos serviços de saúde.
O gestor federal ampliou o repasse de recursos fundo a fundo para estados e
municípios que se habilitaram em alguma das formas de gestão e diminuiu o repasse
determinado pela prestação de serviços. Apesar das novas regras de transferência de
recursos, somente a partir de 1998 os municípios aderiram massivamente ao Piso
Assistencial Básico (PAB), em função da transformação do PAB em Piso de Atenção
Básica e da introdução do PAB Variável, formado por recursos específicos para a
implementação, pelos municípios, de programas considerados prioritários e
desenhados pelo Ministério da Saúde. Os recursos federais seriam repassados
apenas aos municípios que implementassem os programas nos moldes determinados
pelo gestor nacional do sistema “[…] de modo que os governos locais têm reduzida
autonomia em sua implementação” (LOTTA, 2019).
Ainda segundo o autor, dado o caráter “dirigido” vinculado à nova forma de
financiamento, ele dá início ao que autores denominam como fase da
descentralização dirigida. Assim, a superação dos problemas de implementação
dessa fase se dá com a finalização do processo de municipalização e a garantia de
recursos federais para os municípios a partir de 1998, com ampla adesão às
habilitações propostas pelo Ministério da Saúde e a garantia de recursos para a
cooperação entre municípios e governo federal. As relações intergovernamentais, que
foram ao longo da fase da descentralização autonomista marcadas pelo
“municipalismo autárquico”, nos termos de Celso Daniel, entraram numa fase de maior
cooperação, em especial entre os municípios e o gestor federal do SUS. Naquele
momento, a nova diretriz prioritária passou a ser a diminuição das desigualdades
regionais em termos de indicadores básicos de saúde. A descentralização aconteceu,
mas as desigualdades regionais permaneciam gritantes, o que demandava novos
instrumentos da política: priorização de programas considerados essenciais para o
enfrentamento das condições mínimas de saúde e garantia de recursos nas distintas
regiões e realidades do país.
Com o PAB, composto por PAB Fixo (valor per capita fixo) e PAB Variável (valor
condicionado à implementação de programas específicos pelos municípios), o
governo federal passou atuar fortemente na atenção básica em saúde. Ao condicionar
o repasse de recursos por meio do PAB Variável, passou também a decidir quais
seriam os programas prioritários em atenção básica; paulatinamente, os recursos
condicionados do PAB Variável se tornaram a maior parte do total de recursos
repassados pela União. Com isso, o governo federal não apenas estimulou a adesão
dos municípios ao SUS como também introduziu um mecanismo de diminuição das
desigualdades existentes nos serviços providos pelas diferentes municipalidades,
uma vez que criou incentivos àquelas com piores indicadores em áreas consideradas
estratégicas a implantar e desenvolver programas voltados à sua melhoria. A garantia
de recursos para atenção básica por parte do governo federal fez com que 99% dos
municípios aderissem às novas regras de gestão até 2000, além de haver um aumento
substancial dos recursos públicos gastos em saúde, em especial nesse nível de
atenção (LOTTA, 2019).
A ampliação do Programa Saúde da Família (PSF), segundo Lotta (2019) foi a
principal estratégia para a melhoria da atenção básica em saúde, conseguiu atingir
resultados exitosos, refletindo o êxito da atuação federal na saúde municipal. Os
repasses para a Estratégia de Saúde da Família (ESF) e suas equipes, parte do PAB
Variável, correspondem à maior parte dos repasses realizados pelo PAB Variável e
cresceram expressivamente ao longo dos anos, bem como a cobertura do programa:
enquanto em 1998 a cobertura populacional dos agentes comunitários de saúde era
de 4,4% da população, em 2017 chega a quase 70% da população. Soma-se a esse
aumento outra medida que garantiu mais recursos para a atenção básica nos
municípios. Trata-se da Emenda Constitucional no 29/2000, que criou a
obrigatoriedade para União, Estados e Municípios de um gasto próprio mínimo em
saúde, o qual devia ser ampliado gradativamente no período de 2000 a 2004.
O gasto federal seria ajustado ano a ano, de acordo com a variação nominal do
Produto Interno Bruto (PIB), partindo de um acréscimo, em 2000, de 5% em relação
ao ano de 1999. Os gastos estaduais e municipais deveriam corresponder a 7% dos
recursos próprios, a partir do ano 2000, aumentando ano a ano até atingir 12% para
os estados e 15% para os municípios. Aquelas unidades subnacionais que já
gastavam o mínimo em 2000 teriam um ajuste anual correspondente à diferença dos
valores máximos e daqueles já aplicados, dividida pelos cinco anos do período de
adequação à emenda. Somado a isso, e dando continuidade ao processo de
“descentralização dirigida”, o Ministério da Saúde editou duas Normas Operacionais
de Assistência à Saúde (NOAS), a NOAS 2001 e a NOAS 2002, definindo as
responsabilidades mínimas e os conteúdos para a atenção básica, de forma a
delimitar as responsabilidades dos municípios dentro do sistema público de saúde;
criou novas formas de habilitação, transformando a Gestão Plena da Atenção Básica
em Gestão Plena da Atenção Básica Ampliada, cuja consequência principal foi
aumentar o rol de responsabilidades incluídas no conjunto de atividades da atenção
básica; exigiu a apresentação, pelos municípios, do Plano Municipal de Saúde, o qual
deve conter uma agenda de compromissos, um quadro de metas municipais e as
formas de articulação do município na rede locorregional de saúde (LOTTA, 2019).
De acordo com o autor, em 2004 algumas alterações foram introduzidas pelo
novo governo federal. A Portaria Ministerial no 2.023/2004 põe fim às formas de
habilitação. Todos os municípios passaram a ser responsáveis e a receber um valor
per capita para a execução de ações básicas em saúde. As ações estratégicas, pagas
de acordo com a adesão, continuaram com o pagamento em separado. Enfim, as
diversas regras criadas no período para a melhoria da atenção básica em saúde
aumentaram substancialmente os recursos disponíveis aos municípios, ainda que
com limitação de autonomia municipal na definição das estratégias de gasto em
saúde, dado que muitos dos recursos repassados estavam vinculados a programas
criados centralmente para os (distintos) 5.570 municípios brasileiros. Somada a isso,
a ampliação do PSF garantiu a ampliação significativa do acesso a serviços básicos
de saúde nos municípios brasileiros. Grande parte desse avanço decorreu da forte
atuação do governo federal na política de atenção básica. Ainda que as desigualdades
regionais não tenham sido de fato superadas, conforme apontou Oliveira (2008), e
que tenha havido uma diminuição da autonomia dos municípios na definição da
política municipal de saúde, os indicadores básicos de saúde melhoraram
significativamente pelo país, superando os problemas de implementação da diretriz
da fase da descentralização dirigida. Municípios e governo federal conseguiram
cooperar e garantir recursos e serviços básicos em saúde nos mais de 5 mil
municípios brasileiros. Essa relação direta entre governo federal e municípios, sem a
participação dos governos estaduais, foi denominada por Oliveira (2007) como
“federalismo pulverizado” – há cooperação, mas numa relação direta entre Ministério
da Saúde e os 5.570 municípios; esta foi a politica resultante da opção de policy.
O problema de implementação anterior, de diminuição das desigualdades e de
melhoria dos principais indicadores da atenção básica, fora alcançado, abrindo
espaço para uma nova diretriz e novo problema de implementação: o acesso a
serviços de média e alta complexidade, exigindo mecanismos para a cooperação
regional. Essa necessidade levou a política a uma nova etapa, em que a
regionalização prevista nas primeiras leis do SUS tornou-se a nova diretriz prioritária.
É nela que nos encontramos agora: a fase da descentralização regionalizada. A
primeira medida no sentido de impulsionar a regionalização foi tomada ao final da fase
da descentralização dirigida. A NOAS SUS 1/2001 apontava para a necessidade de
se atentar para a regionalização, sem o quê os princípios da universalidade,
integralidade e equidade do SUS não seriam alcançados. Além da oferta dos serviços
de atenção básica, os gestores devem ser capazes de garantir acesso a serviços de
maior complexidade, organizando regionalmente a demanda. Tal norma, contudo, não
apresentava instrumentos necessários para sua implementação, requerendo nova
regulamentação, que veio com a NOAS SUS 1/2002. Apesar de se apresentarem
como a primeira tentativa de impulsionar a regionalização, no final da fase da
descentralização dirigida, as NOAS mencionadas não foram capazes de atingir seus
objetivos. Nesse contexto para deflagrar a fase da descentralização regionalizada,
instituiu-se o Pacto pela Saúde (PS), de 2006, integrado por três instrumentos: o Pacto
pela Vida (PV), o Pacto em Defesa do SUS (PDSUS) e o Pacto de Gestão (PG)
(LOTTA, 2019).
O autor afirma que o Pacto pela Vida é “o compromisso entre os gestores do
SUS em torno de prioridades, estabelecidas por meio de metas nacionais, estaduais
ou municipais, que apresentam impacto sobre a situação de saúde da população
brasileira”, fortemente vinculado ao desenvolvimento da atenção básica em saúde. Já
o PDSUS visa assegurar o compromisso dos gestores do SUS com o seu
desenvolvimento enquanto política pública, retomando as discussões políticas em
torno da saúde pública, bem como o fortalecimento e a ampliação do diálogo com os
movimentos sociais, ampliando o controle social e a transparência. Por fim, o Pacto
de Gestão estabelece “as diretrizes para a gestão do sistema nos aspectos de
descentralização, regionalização, financiamento, planejamento, programação
pactuada e integrada, regulação, participação social e gestão do trabalho e da
educação na saúde”. O eixo estruturante do PG é a regionalização. A articulação entre
os gestores, indispensável para a regionalização, deve se dar por meio da Comissão
Intergestores Bipartite (CIB) e da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), ambas
constituídas de forma paritária e definindo as diretrizes para a alocação dos recursos
financeiros.
Embora criando um novo instrumento para implementação da política voltada
à regionalização, o pacto não teve grande adesão imediata. Alguns municípios e
estados firmaram o Termo de Compromisso de Gestão de maneira meramente
burocrática, sem implementar os instrumentos previstos no pacto, limitando seu
alcance. Constituíram-se colegiados regionais e os delimitaram-se melhor as regiões
de saúde, mas objetivos essenciais não foram alcançados. Em 2011, diante da não
adesão ao pacto por vários municípios, um novo instrumento foi aprovado, por meio
do Decreto no 7.508/2011, que trata da “articulação interfederativa” no SUS, definindo
região de saúde e instituindo o Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde
(Coap), o qual é um:

[…] acordo de colaboração firmado entre entes federativos com a finalidade


de organizar e integrar as ações e serviços de saúde na rede regionalizada e
hierarquizada, com definição de responsabilidades, indicadores e metas de
saúde, critérios de avaliação de desempenho, recursos financeiros que serão
disponibilizados, forma de controle e fiscalização de sua execução e demais
elementos necessários à implementação integrada das ações e serviços de
saúde (BRASIL, 2011 apud LOTTA, 2019).

De acordo com um dos entrevistados de Menicucci e colaboradores (2018, p.


37), “a ideia era que o Coap viesse substituir o Pacto pela Saúde, com uma
metodologia permanente de integração intergovernamental, que reduziria a
fragmentação da gestão de saúde”. Todavia, apesar dessa intenção, o Coap não
resolveu o problema do financiamento, tornando-se um instrumento ainda menos
aceito pelos gestores do que o pacto. Tanto o pacto quanto o Coap, portanto, podem
ser vistos como instrumentos que buscaram definir as relações federativas na saúde,
sem que um tenha superado os problemas de implementação enfrentados pelo outro,
mantendo em aberto a diretriz prioritária da regionalização. Por isso, pode-se afirmar
que a “fase da descentralização regionalizada” ainda está em curso quando
completamos trinta anos de SUS no país. Quando seus problemas de implementação
forem superados ou sobrerrestados por novas questões, outras fases virão (LOTTA,
2019).

6 O DIREITO À SAÚDE COMO BEM FUNDAMENTAL E A


INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Fonte: setorsaude.com

Explorar as relações entre direito e políticas e políticas e direitos se faz


necessária considerando o fato de que a consagração do direito fundamental à saúde
– enquanto direito social – sempre esteve acoplada às políticas sociais, tanto no
âmbito interno como no âmbito externo. A leitura dos dispositivos enunciados em
tratados internacionais e na Constituição da República de 1988 confirmam esta
ligação. É a partir deste acoplamento que se poderá extrair o caráter mandamental
destes enunciados normativos, vinculando não só o legislador, mas também a todos
os poderes públicos, na tarefa de concretização. Afirmar a imperatividade da
enunciação de políticas públicas como determinação constitucional reforça, portanto,
os mecanismos recíprocos de controle do poder – objetivo que, por si só, também
caminha na direção do prestígio à Carta Fundamental, como moldura que é das
possibilidades de agir desse mesmo poder. Em consequência, tem-se que o controle
– jurisdicional inclusive – de políticas públicas é um instrumento necessário de
preservação do caráter cogente da determinação constitucional de que seja através
delas que se programe e traduza a ação da Administração (ROCHA, 2018).
Canotilho (2008, pp. 130-131 apud Rocha, 2018), embora não divirja do fato de
que a positivação constitucional de políticas de direitos sociais implique num mandato
constitucional de otimização dos direitos, adverte que poderá existir uma negação da
pluralidade da racionalidade dos mundos parciais e da pluralidade da posição do
observador. Afirma o autor: “[...] as políticas constitucionalizadas fecham a
comunicação quer com o direito responsável expresso na criação jurídica através de
pactos e de concertação social, quer com o direito reflexivo gerado na ‘rua’, no
‘asfalto’, no ‘emprego paralelo’, na ‘economia subterrânea’”. Entende-se, portanto, que
se faz necessária a leitura do direito à saúde como um bem fundamental, já que ao
assim considerá-lo subtrai-se do campo deliberativo a possibilidade de que este direito
não seja ameaçado pelas circunstâncias políticas; às maiorias ocasionais. Esta
possibilidade seria possível se houvesse a compreensão de que a saúde, não só se
constitui em um direito assegurado na Constituição, com todas as consequências daí
decorrentes, mas que a saúde é um bem fundamental. Tal compreensão retira a
possibilidade de que se vulnere o direito à saúde e promove a vinculação dos poderes
públicos.
A defesa de que a saúde deve se constituir em um bem fundamental decorre
do fato que esta caracterização salvaguardaria a saúde das manifestações
parlamentares que lhe são contrárias; dos ataques das maiorias eventuais.
Caracterizá-la como bem fundamental é estabelecer o condicionamento de que
qualquer deliberação acerca da saúde pública esteja condicionada a observância dos
direitos fundamentais. Em outras palavras, é condicionar a política aos direitos, e não
fazer depender da política o reconhecimento dos direitos, o que os torna vulneráveis
as ingerências externas comprometendo a sua garantia. Retoma-se aqui a referência
feita à saúde como bem público nos documentos internacionais, assim como a
configuração que é dispensada à saúde na Constituição, conforme já esboçado acima.
Compreender a saúde com um bem fundamental, e não apenas como um direito
fundamental com as implicações que são daí decorrentes, é reconhecer que a
institucionalização normativa deste direito, por si só não é suficiente para lhe a
assegurar as adequadas garantias. A compreensão da saúde como um bem
fundamental é construído a partir do referencial de Luigi Ferrajoli, que se passa a
expor.
Ferrajoli (2011, p. 53 apud Rocha, 2018) a partir da crítica que estabelece a
conceituação de bens existentes no Código Civil, advoga a necessidade de ampliar o
conceito de bens para além da compreensão destes como objeto de direito
patrimonial.

bem “[...] é aquilo que pode ser objeto de uma situação jurídica”. Distingue os
bens patrimoniais dos bens fundamentais, sendo que estes são: “[...] os bens
cuja acessibilidade é garantida a todos e a cada um porque objeto de outros
tantos direitos fundamentais e que por isso, da mesma forma que estes, são
subtraídos à lógica do mercado [...]” (FERRAJOLI, 2011, p. 54 apud ROCHA,
2018).

Ferrajoli irá propor uma tipologia dos bens fundamentais, dividindo-o em três
grandes classes: bens personalíssimos, bens comuns e bens sociais. Interessa, para
os limites deste trabalho a categoria dos bens sociais, por se entender que a saúde
deve ser assim configurada, com um bem fundamental. Os bens sociais “são objeto
de direitos sociais à subsistência e à saúde, garantidos pela obrigação de sua
prestação: como a água, os alimentos básicos e os assim chamados ‘medicamentos
essenciais” (ROCHA, 2018).
Para o autor esta compreensão salvaguarda os direitos das ingerências do
mercado. Proteger um bem como fundamental quer dizer em todo caso torna-lo
indisponível, isto é, inalienável e inviolável, e, portanto, subtraí-lo ao mercado e ao
arbítrio das decisões políticas, portanto de maioria. Também sob este aspecto os bens
fundamentais reafirmam o paradigma dos direitos fundamentais, dado que também as
suas garantias equivalem a limites e a vínculos impostos, para a tutela de todos e de
cada um, seja aos poderes privados, através da estipulação da sua indisponibilidade,
seja aos poderes públicos, através da estipulação da sua inviolabilidade, e ao mesmo
tempo, a obrigação de garantir a todos a sua fruição. Evidencia-se, aqui, a
necessidade de que a partir da vinculação dos poderes públicos aos direitos
fundamentais, em especial, ao direito fundamental a saúde a partir da sua
configuração constitucional, exija-se para sua concretização a existência de
instituições públicas voltadas à proteção e à sua prestação.
A garantia dos bens sociais, sejam as primárias – consistentes na
institucionalização de mecanismos de efetivação das políticas públicas -, sejam as
secundárias, aquelas que autorizam o acesso à justiça para a efetivação das garantias
primárias -, somente se concretizam com a atuação do Estado. O constitucionalismo
dos bens sociais, não diferentemente daquele dos bens comuns, também é um
constitucionalismo a longo prazo: como a experiência dos países ricos ensina, o
investimento em despesas sociais – a instrução, a saúde, a subsistência – é o primeiro
investimento produtivo, dado que realiza, com a garantia dos mínimos vitais, a
primeira condição da produtividade tanto individual como coletiva e portanto do
desenvolvimento econômico. Em suma, se é verdade que os direitos sociais custam,
o custo da falta da sua satisfação é muito maior, condenando bilhões de seres
humanos à indigência e ao desenvolvimento e sendo fonte inevitável de migrações de
massa e de conflito (ROCHA, 2018).
Ferrajoli (2011, pp. 76-80 apud Rocha, 2018) elenca três situações problemas:
acesso à agua, acesso aos alimentos e ainda aos denominados medicamentos
essenciais. A base da discussão dos bens sociais formam o núcleo material do direito
à saúde. Daí a necessidade de tratar a saúde não somente como um direito
fundamental na sua dupla perspectiva, objetiva e subjetiva, mas também de
compreendê-la como um bem fundamental, ao qual se deve proteger e garantir. Umas
das condições para que se tenha a garantia da saúde enquanto bem fundamental é
de caráter institucional e está vinculada a análise do federalismo e das políticas
públicas, em especial, no contexto de formação constitucional do Estado Brasileiro.
7 A ESF E SEU CONTEXTO HISTÓRICO NO BRASIL

Fonte: cnm.org.br

De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), a ESF é


considerada uma estratégia prioritária na reorganização da atenção básica em Saúde,
conforme os princípios do Sistema Único de Saúde. Destaca-se que na PNAB a
atenção básica é compreendida como: Um conjunto de ações de saúde, no âmbito
individual e coletivo, que abrangem a promoção e proteção da saúde, a prevenção de
agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e manutenção da saúde. [...] É
realizada sob a forma de trabalho de equipe, dirigida a população de territórios
delimitados, pelos quais assume a responsabilidade sanitária [...] Utiliza tecnologia de
elevada complexidade e baixa densidade, que deve resolver os problemas mais
frequentes [...] e orienta-se pelos princípios de universalidade, da acessibilidade e
coordenação do cuidado, do vínculo de continuidade, da integralidade e
responsabilização (BETIN, 2018).
Segundo o autor, a ESF, considerada como política reorganizadora da atenção
primária em saúde no país possibilitou diversas mudanças no padrão de saúde
vigorante, transformando a partir de então, a atenção básica como prioridade nas
políticas públicas de saúde. Portanto, a ESF passa a ser considerada como uma forma
inovadora de trabalho em saúde, fortalecendo as ações da atenção primária em saúde
e organizando as ações da atenção básica nos sistemas de saúde dos municípios.
Tais ações sempre priorizando a promoção da saúde, a qualidade de vida, com
valorização das comunidades e famílias, com delimitação territorial e
corresponsabilidade acerca das condições de saúde local. As equipes
multiprofissionais implantadas nas Unidades de Saúde da Família são compostas por
um enfermeiro, um médico, um técnico de enfermagem e mais agentes comunitários
de saúde.
De acordo com a PNAB, essas equipes atuam em áreas delimitadas e devem
realizar o acompanhamento de no máximo 1.000 famílias, correspondendo em média
a 4.500 habitantes, atuando como corresponsáveis pela saúde dessa população. As
prioridades nas atuações das equipes de ESF estão centradas nas ações de
promoção da saúde, prevenção de doenças, recuperação, reabilitação e os agravos
mais frequentes. A ESF é o primeiro contato entre os usuários e os serviços de saúde,
sendo considerada porta de entrada da população aos serviços. Pode resolver até
85% dos problemas de saúde da população local, se funcionar de forma adequada e
bem articulada. Como política pública prioritária no país, a ESF possibilitou diversos
avanços, tais como a melhoria no acesso aos serviços de saúde, implantação de
práticas mais humanizadas e que contribuíram para uma melhor satisfação dos
usuários. Esses avanços ocorreram devido ao aprimoramento nas relações entre
profissionais de saúde e a população e contribuíram de forma significativa para o
aumento na cobertura e assistência da mulher e gestantes, das crianças e
adolescentes, dos adultos e idosos e na ampliação das coberturas vacinais (BETIN,
2018).
Segundo autor, a ESF vem cumprindo seu papel como reorganizadora do
modelo assistencial em saúde, através da efetivação de práticas inovadoras e
dinâmicas dentro das Unidades Básicas de Saúde (UBS). Devido a esses fatores e
dentro desta reorganização na assistência constituída pela ESF, torna-se possível
perceber a importância dessa política, sendo a mesma considerada a mais importante
mudança estrutural já realizada na saúde pública no país.
A ESF reformulou o tipo de assistência prestada através da inversão da lógica
anterior onde o foco prioritário era tratar as doenças nos hospitais, passando a
priorizar ações multiprofissionais nas UBS, com ênfase para a promoção em saúde e
prevenção de doenças. Recebe destaque nesta política a atuação conjunta da ESF
com a Estratégia de Agentes Comunitários de Saúde (EACS), colaborando para o
sucesso desta iniciativa. A formação do vínculo seja ele entre profissionais e
população e ou profissionais e profissionais fica evidenciada como uma das inúmeras
contribuições para a atenção primária em saúde trazida pela ESF. Portanto, a
formação do vínculo surge como consequência da proximidade de relações e contatos
entre os profissionais de saúde e a população, ocorrendo pelo meio da assistência
continuada disponibilizada pelos profissionais de saúde e também pelos atendimentos
domiciliares, procedimento esse de grande importância dentro do serviço,
denominado visita domiciliar (BETIN, 2018).
Segundo o autor, tais particularidades facilitam a adesão da comunidade ao
serviço e, sobretudo, estabelecem compromissos entre os trabalhadores com a saúde
da comunidade, configurando a partir dessas relações a corresponsabilização dos
profissionais para com a saúde da população residente no território de abrangência
da equipe. A concepção do vínculo entre os profissionais de saúde e a população,
assim como a corresponsabilidade para com a saúde da comunidade são importantes
fatores a serem considerados para que a equipe de saúde da família tenha uma boa
interação com a comunidade e a partir daí possa atender as necessidades das famílias
e principalmente, o compromisso com a qualidade de vida da população pela qual
tornou-se responsável.
Muitas são as contribuições positivas trazidas pela ESF junto à atenção
primária em saúde. Dois aspectos importantes comprovam esses fatos significativos,
são eles a significativa melhora nos indicadores de saúde, colaborando positivamente
para o crescimento nas coberturas vacinais, na assistência a saúde da criança, da
mulher, dos adultos e idosos. Também podemos citar a melhora no acesso ao serviço
por meio de práticas humanizadas desempenhadas pelas equipes de saúde da
família, sempre no aperfeiçoamento dos relacionamentos entre os trabalhadores e a
população e também na busca pela satisfação dos usuários. Ao longo dos mais de 22
anos de sua criação e de acordo com Indicadores do Ministério da Saúde, onde tais
indicadores revelam que a ESF conseguiu uma importante expansão ao longo desses
anos. A mesma já fora implantada em mais de 5.481 municípios do país (BETIN,
2018).
Sabe-se das importantes contribuições trazidas pela implantação da ESF,
sendo a principal delas a reorganização do modelo assistência na saúde pública do
país. Porém, ainda existem muitos desafios e dificuldades que podem ser observados
desde a sua implantação. Tais dificuldades representam verdadeiras barreiras para a
sua consolidação de fato, ou seja, para que a mesma possa ser considerada uma
estratégia capaz de atender de forma integral as ações de saúde propostas pela
política, garantindo assim a prevenção e promoção da saúde como práticas
humanizadas e garantia de acesso equânime e universal (BETIN, 2018).
Segundo autor, a maior parte dos desafios e dificuldades enfrentadas pela ESF
na sua ampliação, implementação e aprimoramento se assemelham aos próprios
problemas enfrentados pelo SUS. Recebem destaque como principais dificuldades
enfrentadas no processo de consolidação da ESF a falta de compreensão dos
gestores municipais acerca da ESF e seu reconhecimento e valorização como
estratégia reorganizadora da assistência em saúde, os baixos investimentos em
saúde, especificamente na ESF, a ampliação das equipes sem consequente
ampliação dos serviços, a falta de materiais ambulatoriais, equipamentos e
medicamentos nas UBS e as condições deficitárias em que os trabalhadores são
submetidos.
De acordo Betin (2018), outra importante barreira a ser considerada e que
dificulta o desenvolvimento desta excelente política de saúde são os diversos
problemas estruturais existentes. Como problemas estruturais podemos destacar a
fragilidade financeira, a infraestrutura da rede de saúde deficitária na maioria dos
municípios brasileiros, com unidades de saúde em condições estruturais
inadequadas, com equipamentos velhos e sucateados. Outro fator importante e que
dificulta o avanço desta política em muitos municípios brasileiros é a lei de
responsabilidade fiscal, que limita as contratações de novos profissionais para atuar
junto ao serviço. Mesmo com todos os avanços descritos e os princípios diferenciados
propostos pela ESF, em muitas UBS o modelo assistencial prestado ainda encontra-
se centrado no modelo médico assistencial. No seu cotidiano, este modelo trabalha
atendendo as demandas espontâneas através de ações curativas, diferentemente do
que propõe a PNAB, que entende como ações prioritárias no serviço as ações
multiprofissionais em saúde voltadas à promoção em saúde da população.
A falta quantitativa e qualitativa de profissionais qualificados e com perfil para
atuar na ESF também pode ser considerado um importante ponto negativo dentro da
política de saúde. Isto ocorre, porque muitos profissionais que atuam na estratégia
possuem formação distanciada da saúde pública, evidenciando uma realidade com
poucos profissionais especialistas nas áreas de saúde da família, saúde coletiva ou
saúde pública, em alguns casos, alguns profissionais que sequer conhecem os
princípios básicos do SUS e da ESF. Podemos considerar ainda a política local como
um importante fator de influência negativa para com a ESF, influência esta que
contribuiu para dificultar a expansão da estratégia. Dois exemplos podem evidenciar
essas influências negativas, o primeiro refere-se aos conflitos políticos, onde, em
locais de gestão partidária contrária, observa-se uma maior resistência acerca da
implantação desta estratégia. Outro exemplo que contribui para o desmantelamento
da ESF está nas trocas frequentes dos profissionais e das equipes, onde, a cada troca
de gestor municipal, ocorrem também substituições de profissionais e equipes
(BETIN, 2018).
O autor ainda afirma que tais especificidades exemplificam o quanto a ESF
pode servir apenas como forma de fortalecimento de campanhas eleitorais e com isso,
causar sérios comprometimento nos atendimentos e consequentemente, interrupção
de uma das principais virtudes da ESF, o vínculo. Esses exemplos demonstram o
quanto ações políticas podem prejudicar as ações da ESF e nada contribuem para
melhora na saúde e qualidade de vida da população.

8 A POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL E A SITUAÇÃO DO SUS NA


CONTEMPORANEIDADE

Fonte: terracoeconomico.com

O Sistema Único de Saúde, como parte da política social brasileira, tem sido
campo de esforços e avanços significativos na qualidade e garantia de condições de
vida da população, porém não consegue alcançar seus princípios: universalidade,
integralidade e equidade (WEILLER, 2019).

O quadro econômico e social que se seguiu àcriação do SUS foi diferente


daquele dos países capitalistas avançados, fundamentalmente os europeus
que construíram seus sistemas de saúde de forma universal (MENDES et al.
2017 apud WEILLER, 2019).

Os autores descrevem que, “se antes era possível verificar grande magnitude
de recursos e um ambiente político e social favorável à construção da cidadania
social”, principalmente no pós-guerra; atualmente, com a vigência de uma agenda
neoliberal em todo o mundo, tais aspectos se tornaram “disputados com o movimento
do capital contemporâneo, sob a predominância do financeiro, cujo interesse é manter
o pagamento dos juros da dívida pública e acessar recursos antes a ele proibidos”.
A agenda da política econômica brasileira tem colocado de forma hegemônica
os direitos sociais, dentre eles o SUS, em disputa direta com o movimento do capital
contemporâneo, sob a predominância do financeiro, principalmente sob a égide do
capital portador de juros com interesse em manter o pagamento dos juros da dívida
pública. Este fato nos revela como o tripé macroeconômico brasileiro tem mantido o
Estado como controlador dos preços (câmbio flutuante e metas de inflação), que ao
mesmo tempo se dissolve (alcance dos superávits primários), abrindo campo para que
o setor privado se expanda. Assim, o SUS tem seu desenvolvimento diretamente
ligado à ordem econômica e política que se desenvolveram e se desenvolvem no
Brasil (WEILLER, 2019).
Segundo o autor, quando consideramos o boom ocorrido no consumo das
famílias no Brasil durante os governos Lula e, em parte, no de Dilma, o setor Saúde
não ficou atrás. Houve sim a construção de um movimento focado em construir uma
“cidadania consumista”, contrário à forma de acesso a serviços de saúde por meio do
direito à saúde. Para termos uma dimensão dessa expansão do consumo das famílias
no setor Saúde, analisamos os dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar
(ANS), que apresenta o volume de beneficiários por tipo de contratação e a taxa de
cobertura para a Assistência Médica (excluindo-se planos odontológicos). Assim,
podemos observar um importante crescimento iniciado em 2006 e que tem seu maior
volume em 2014, quando aproximadamente 50 milhões de pessoas possuiam algum
tipo de plano de saúde, sendo que 2015 foi o ano com a maior taxa de cobertura, a
de 25,9%.
Um dado interessante é que o crescimento do número de beneficiários de planos
de saúde se deu, principalmente, pelo tipo “Coletivo Empresarial”, que guarda uma
relação com o nível de empregabilidade, pois se trata de planos de saúde garantidos
pelas empresas aos trabalhadores como forma de “benefício” ao empregado. Assim,
como consequência deste fato, quando a empregabilidade declina, também cai à
cobertura de planos de saúde que chegou a aproximadamente 47 milhões de pessoas
cobertas, indicando assim um “retorno” de 3 milhões de pessoas aos serviços públicos
de saúde deforma exclusiva. Além da ampliação do número de pessoas cobertas por
planos de saúde, houve também um aumento na concentração de empresas
prestadoras. Em dezembro de 2000 havia 2.037 operadoras médico-hospitalares em
atividade e 726 exclusivamente odontológicas, ao passo que em janeiro de 2019 os
números foram reduzidos para 918 e 305, respectivamente, ou seja, o número de
operadoras de planos de saúde cai de um total de 2.763 para 1.223, uma redução de
56% aproximadamente (WEILLER, 2019).
Segundo o autor, todos esses pontos destacados quanto à expansão dos
serviços privados de saúde no Brasil, tanto na sua forma quanto no conteúdo,
demonstram um aumento da relação do Setor Saúde com o capital estrangeiro e, ao
mesmo tempo, com o setor bancário- financeiro. Tal expansão do privado sobre o
acesso da população brasileira à saúde se deu, principalmente, a um cenário de
subfinanciamento do SUS em seus mais de 30 anos de existência.
O movimento no trajeto do financiamento do SUS se expressou por meio de
dois princípios contraditórios no Brasil: a defesa da universalidade, um dos princípios
do SUS que se expressa pelo direito de cidadania às ações e aos serviços de saúde
para todos, por meio da defesa permanente de recursos financeiros; e a contenção
de gasto, que já se relaciona com o objetivo do superávit primário, diminuindo as
despesas do Estado, principalmente relacionadas aos gastos sociais. (WEILLER,
2019).

8.1 A situação crítica do financiamento do SUS

O SUS, como parte do fundo público que ocupa um papel relevante na articulação
das políticas sociais e na reprodução da força de trabalho, é uma questão estrutural
para o capitalismo. Assim, a Saúde Pública, ao compor parte do fundo público, tem a
capacidade de mobilizar recursos que o Estado dispõe para intervir na economia
que, pode ser por meio de políticas monetárias, fiscais e sociais (WEILLER, 2019).
Behring (2010) apud Weiller (2019) nos ajuda a compreender como o fundo
público se expressa, principalmente, por meio do orçamento público constituído de
impostos, contribuições, taxas e da mais-valia (parte do trabalho excedente que se
transformou em lucro, juros ou renda de terra). Todo este orçamento está disponível
ao Estado para a realização de diversas funções que, constantes como os direitos
sociais, podem ter a fundamental função de garantir a reprodução do capital e da
força de trabalho, debatidas aqui pela manutenção e ampliação das políticas sociais.
Assim, os embates por recursos financeiros para assegurar o SUS sempre foram uma
constante desde sua criação, em 1988, até o presente momento. Tais embates não
alcançaram condições adequadas de financiamento da Saúde Pública como a
indefinição de fontes seguras (vinculações específicas e legais de recursos), além da
fragilidade das que foram propostas, como o caso da Contribuição Provisória sobre
Movimentação Financeira (CPMF), extinta em 2007.
A história de tensões no financiamento desse sistema não deixou de ser intensa
antes e durante os anos 2000, após a aprovação da Emenda Constitucional 29. Ao
mesmo tempo, nesse período, a fragilidade do financiamento foi percebida no
crescimento da renúncia fiscal decorrente da dedução dos gastos com planos de
saúde e símiles no imposto de renda e das concessões fiscais às entidades privadas
sem fins lucrativos (hospitais) e à indústria químico-farmacêutica, enfraquecendo a
capacidade de arrecadação do Estado brasileiro e convertendo-se no que se
convencionou denominar por gasto tributário. Verifica-se, ao longo de mais de trinta
anos de existência do SUS, um quadro de baixa disponibilidade de recursos, com
fontes inseguras. Inicia-se a década de 2010 sem a resolução desta questão, à medida
que a Lei 141/2012 (regulamentação da EC-29) não assegurou novos recursos
financeiros para a saúde universal, especialmente por parte da União (WEILLER,
2019).
É importante destacar segundo o autor, que, centralmente, há consequências
perversas da política macroeconômica restritiva com o objetivo central de assegurar
o cumprimento de metas de inflação e a obtenção de elevados superávits primários,
resultando em constante pressão para que o gasto público em políticas sociais fosse
diminuído. Para se ter uma ideia do gasto público em saúde no Brasil apresenta-se, a
partir de dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico,
uma comparação com países que possuem sistemas universais de saúde como o
Canadá, França, Japão e Reino Unido, contando ainda com os Estados Unidos da
América que possuem um sistema de saúde do tipo liberal que, entretanto, passou
por uma recente reforma na saúde pública. Quando analisados os dados do percentual
do gasto em saúde como proporção do PIB (%), nota-se que na média, os países de
sistemas universais gastaram 10,64% de seu PIB com ações e serviços de saúde,
tanto públicos quanto privados, acima do valor encontrado para o Brasil que também
possui um sistema de saúde do tipo universal, como o SUS. Nota-se ainda, que os
EUA apresentaram um gasto, como percentual do PIB, muito superior ao encontrado
nos países de sistemas universais e Brasil. Podemos afirmar que para que o Brasil
alcance um sistema de saúde universal e possível deve aproximar seu gasto público
em saúde dos países que já possuem sistemas universais de saúde, ou seja, garantir
um aumento do gasto público em 200%.

9 POLÍTICAS PÚBLICAS E O ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA DE COVID –


19 NO BRASIL

Fonte: cidade-pandemia.com

No Brasil, a situação inicial da epidemia apontava para uma característica


ascensional e veloz da curva epidêmica, saindo, em 2 de março de 2020, de dois
casos alóctones confirmados para 2201 casos autóctones no dia 24 de março, e já
com a expectativa de atingir 6981 casos (IC 95%: 6243 – 7807) no dia 29 do mesmo
mês. Parece fundamental relatar que a observação dos períodos iniciais das curvas
epidêmicas do Brasil e da Itália apresentavam semelhanças. Por outro lado, estudos
técnicos que compararam projeções da epidemia e os casos observados para o
mesmo período refletiu uma perspectiva otimista para o comportamento do Covid-19
no país, apresentando, em médio prazo, uma tendência ao achatamento da ascensão
da curva, ou seja, para a redução da velocidade da epidemia. Corroborando para esta
informação, até o dia 16 de março de 2020, momento em que a primeira medida de
isolamento físico social foi imposta no país – especificamente pelo Governo do Estado
do Rio de Janeiro -, a reprodução da doença esteve estimada entre 2,4 a 4,6 pessoas,
caindo para uma estimativa entre 2,1 e 3,8 pessoas no dia 24 (RAFAEL et al, 2020).
Segundo o autor, o tempo de duplicação da epidemia também apresentou
discreta melhora quando comparados os dois períodos: entre 2,0 e 2,9 dias e 2,9 e
3,3 dias, respectivamente. Mesmo frente a aparente perda de velocidade na curva
epidêmica no Brasil, aos menos três aspectos ainda merecem reflexão nesta seção.
Sobre o primeiro aspecto, é importante refletir que a literatura já tem certa robustez
teórico-prática sobre o reconhecimento do status de adoecimento e a prevenção de
novos casos da doença. Isso se justifica pela possibilidade de identificação precoce
dos casos positivos, a adoção de ações de isolamento domiciliar e/ou assistenciais
hospitalares e, consequentemente, a redução nos indicadores de reprodução da
doença e de aumento no tempo de duplicação. No inicio da epidemia, o Brasil não
possuía exames suficientes para a testagem em larga escala. As recomendações do
Ministério da Saúde caminhavam para a priorização de testes apenas para os casos
graves internados em terapia intensiva. Os demais casos recomendava-se realizar
autoisolamento domiciliar sem necessariamente notificar as autoridades sanitárias.
Ocorre que a opção por ampliar a sensibilidade no diagnóstico tem,
potencialmente, produzido ampliação dos casos suspeitos sem a necessária
documentação de casos confirmados que estejam em cursos mais brandos, e que
representam a maior parte dos casos de Covid-19. Deste modo, é provável que a
curva epidêmica brasileira esteja subdimensionada, fragilizando as estratégias de
contenção da epidemia. Se a ampliação de testes para Covid-19 tornou-se matéria
urgente, a retomada de investimentos no Sistema Único de Saúde (SUS) parece estar
em condições de igualdade. Estudo técnico realizado no Brasil projetou a taxa de
ocupação pela infecção de SARS-CoV-2 em leitos adultos de unidades de terapia
intensiva no SUS. Utilizando a taxa de 2019, simulou-se um cenário em que 20% da
população estaria infectada, sendo que 5% necessitaria de internação em terapia
intensiva por 5 dias. O resultado demonstra que das 436 regiões de saúde do país
67,4% ultrapassaria a taxa de ocupação de 100%. Mais da metade dessas regiões
necessitaria do dobro de leitos por dia para assistir os casos graves. Adicionalmente,
o estudo aponta que uma taxa de infecção de 9% da população seria o suficiente para
ocupar a totalidade de leitos de terapia intensiva na metade das regiões em saúde.
Situação similar é observada para a existência de ventiladores mecânicos, mesmo em
grandes capitais como Rio de Janeiro e São Paulo (RAFAEL et al, 2020).
De acordo com o autor, um estudo que mapeou os leitos de unidades de terapia
intensiva em países europeus apresentou diferenças significativas na razão de leito
por 100 mil habitantes, aspecto que pode ser considerado nesta análise. Enquanto a
Alemanha apresenta resultado de 29,2, Itália e Espanha tem razões de 12,5 e 9,723.
Estados Unidos e China apresentam, respectivamente, razões de 31,7 e 4,624. É
importante notar que a Alemanha, com o maior número de leitos na Europa, tem uma
das menores taxas de letalidade da região. Situação similar é observada nos Estados
Unidos da América, ainda que estes leitos tenham o maior custo per capita de todo o
globo ($7.164). Chama-se atenção que o resultado chinês é anterior à construção
recorde (em 10 dias) de dois hospitais para recepção de pacientes com Covid-19,
aspecto que pode ter contribuído para uma baixa letalidade quando comparada ao
desempenho da Itália e Espanha. Não se pretende, com isso, atribuir a letalidade da
doença exclusivamente ao número de leitos de terapia intensiva disponíveis, mas este
certamente é um dos elementos necessários para análise da situação. De toda forma,
um outro estudo realizado sobre a razão de leitos por habitante no SUS demonstrou
valores inferiores à parte dos países analisados anteriormente: 7,1 leitos por 100.000
habitantes.
É importante considerar que ao longo dos últimos anos o subfinanciamento do
SUS produziu acentuada redução de leitos assistenciais. Com a promulgação da
Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos Públicos), em 2016, o país fixou o
orçamento das políticas sociais por 20 anos, incluindo os recursos destinados à
saúde. Frente às emergências de saúde pública, como no caso desta pandemia,
elevam-se as necessidades de investimento sem o acompanhamento orçamentário
de médio e longo prazos. A distribuição da força de trabalho nos países também é
fator a ser considerado. Dados do Observatório global de Saúde da Organização
Mundial da Saúde informam que a proporção da força médica é maior em países
europeus como Itália (2017) e Espanha (2016) - de 40,9 e 40,6 para cada 10 mil
habitantes, respectivamente -, enquanto no Brasil, o informado para o ano de 2018
era de 21,4 e na China (2015) era de 17,8 por 10 mil habitantes. A distribuição
proporcional de trabalhadores de enfermagem na Itália e Espanha, nos mesmos anos,
é mais próxima à de médicos (58,6 e 55,3 para 10 mil habitantes) e maior do que na
China, de 23,0/10.000 habitantes. Os dados do Brasil informam uma proporção
acentuadamente maior da enfermagem, de 97,0/10.000, em 2018. No entanto,
diferente da Espanha e Itália, países onde cuidados diretos de saúde são prestados
quase exclusivamente por enfermeiro graduados, no Brasil o maior número de
profissionais dentro da categoria é de pessoal de nível médio, o que dificulta comparar
o alcance e efetividade das ações. Vale ainda lembrar que a concentração de
profissionais é tradicionalmente maior nos grandes centros urbanos brasileiros.
Adicionalmente é importante refletir que, mesmo com o volume de estudos sobre a
contenção da pandemia, o Governo Federal brasileiro, na figura do Presidente da
República, parece desprezar esta produção de conhecimento. Deste modo, o terceiro
aspecto em análise é a formulação discursiva e prática de atores políticos sobre a
experiência com pandemia no Brasil. Sistemáticos pronunciamentos presidenciais
demonstram resistência à prática de isolamento domiciliar e à negação da real
gravidade da epidemia, produzindo efeitos antagônicos as diretrizes dos
governadores estudais (RAFAEL et al, 2020).
Ainda segundo o autor, acredita-se que estas ações discursivas embacem a
compreensão da população sobre qual é a diretriz a ser adotada, implicando em falhas
no isolamento social e prejuízo nas barreiras sanitárias implementadas. Em tempos,
como os atuais, nos quais há evidente confusão entre uma narrativa que parte de uma
opinião e uma que se baseia em evidências ou acontecimentos observáveis, a
disseminação irrestrita das “fake news” pouco contribui para um enfrentamento
coletivo e racional da situação. Reforçando esta problemática, as taxas de
desocupação (incluindo desemprego) e emprego informal já estavam elevados antes
mesmo do início da pandemia, com precarização da força de trabalho em geral, e
feminina, em particular. A retirada de direitos e garantias trabalhistas, e a crescente
perda do poder aquisitivo das famílias nos últimos anos, permitem pensar em um
aumento difuso, porém significativo, da vulnerabilidade das populações mais pobres
para o enfrentamento da pandemia. Frente a necessidade de subsistência das
famílias e o já anunciado agravamento da crise econômica no Estado brasileiro,
reflete-se: quão universal é o direito ao isolamento social? Mesmo cientes de uma
massa de subempregos na saúde, o Governo Federal aposta em medidas para a
utilização de alunos de último ano de cursos de Medicina e de Enfermagem. No limite,
contraria as próprias experiências de segurança profissional e expõe discentes ainda
em processo de formação em um cenário já reconhecido de contaminação profissional
(RAFAEL et al, 2020).
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