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RODOLPHO THEOPHILO

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ofundo, um incentivo tão poderoso, que é

- um serviço á sociedade o fazel- os bem


idos do publico .

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é quasi regulada pelas conveniencias, e
de pelos resultados obtidos, parece que a
escança e toma alento na contemplação
bom caracter varonil.

am exemplo de cuja fecundidade sempre


Os um pouco de coragem para as luctas

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desgraças que podem pesar sobre uma caba
' esses bons caracteres que
loura de dez annos, elle as supportou tend a
Darecem e attrahem as vis
rara fortuna de não succumbir! Soule abrir
odos . Um raro typo de pa
caminho pelo meandro inextricavel da adver
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a além de mediana, alon homens de bem e dos cidadãos uteis ao
olhos pouco luminosos e
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co de imaginação e poesia ,
se possa obter um triumpho n'essa lucta des
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igual e incessante da encia contra o
scuras e as conversações
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do, da creança que se quer fazer ho
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mem contra o destino que o tenta annullar!
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contrao anjo.Vencer então é maisdo que trium
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idade não são precisos para que
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Porto : 1890 Typ . de A. J. da Silva Teixeira, Cancella Velha, 70


VENERANDA MEMORIA

DE

SEU MUITO PREZADO AMIGO

Henrique Gonçalves da Justa

MUITA AMIZADE, RESPEITO E GRATIDÃO

O auctor.
17Y1583
D
.
RODOLPHO THEOPHILO

Homens ha cuja vida é um ensinamento


tão profundo, um incentivo tão poderoso, que é
prestar um serviço á sociedade o fazel-os bem
conhecidos do publico .

N'uma época de rebaixamento de cara


cter, como esta que atravessamos, em que a

moral é quasi regulada pelas conveniencias, e


a virtude pelos resultados obtidos, parece que a
gente descança e toma alento na contemplação
de um bom caracter varonil.

É um exemplo de cuja fecundidade sempre


haurimos um pouco de coragem para as luctas
da vida .

Rodolpho Marcos Theophilo, o moço traba


VIII RODOLPHO THEOPHILO

lhador e perseverante, o espirito emprehendedor


e esclarecido, é um d'esses bons caracteres que
de longe em longe apparecem e attrahem as vis
tas sympathicas de todos. Um raro typo de pa
ciencia e constancia.

Com sua estatura além de mediana , alon


gado e magro , seus olhos pouco luminosos e
muito meditativos, um indefectivel charuto ao
canto da boca, a fronte cheia de firmeza e ca

racter ; dyspeptico, rico de imaginação e poesia ,


poeta e manipulador, historiador e chimico,
odiando as roupas escuras e as conversações
prolongadas , deixando cahir sobre o rosto pal
lido um tenue véo de tristeza , que a sombra
de sua barba castanha e longa mais accentúa ;
tendo em muita conta uma boa fama ; de poucas

palavras e muitos actos, tudo porém de man


so como quem tem preguiça, Rodolpho acima
de tudo isto é um muito alevantado espirito,
um muito leal coração , possuindo o preciosis
simo talento da coragem.

A vida é uma batalha em que succumbem


os carecedores de aptidões . Elle o sabe e encara
a situação com calma e philosophia.
Debutou na vida pelo que ella tem de mais
acerbo ! Orphandade e pobreza, as duas maiores

2.
RODOLPHO THEOPHILO IX

desgraças que podem pesar sobre uma cabeça


loura de dez annos, elle as supportou tendo a
rara fortuna de não succumbir ! Soube abrir

caminho pelo meandro inextricavel da adver


sidade e fazer para si um logar no circulo dos
homens de bem e dos cidadãos uteis ao seu

} paiz.
Bem poucos sabem talvez quanto heroismo

e quanta tenacidade não são precisos para que


se possa obter um triumpho n'essa lucta des

igual e incessante da inexperiencia contra o


desconhecido , da creança que se quer fazer ho
mem contra o destino que o tenta annullar !
É uma especie de lucta na treva de Jacob
contra o anjo. Vencer então é mais do que trium

phar, é transfigurar-se, é ser forte contra Deus,


como diz a Escriptura.
Nascido a 6 de maio de 1853 foram seus

paes o dr. Marcos José Theophilo, medico, e


D. Antonia Josephina Sarmento Theophilo. A
pequena cidade de Maranguope, cercada de
montanhas escabrosas , queimada por um clima
equatorial, foi o theatro em que começou a desen
volver-se a sua organisação, que recebeu o cu
nho de inflexibilidade d'aquelles alcantis. Sua
alma de creança abriu-se, como flôr tropical,
X RODOLPHO THEOPHILO

ás quentes impressões d'essa natureza violenta


e fecunda.

Alli permaneceu elle até que lhe morreu o


pae a 15 de dezembro de 1864, deixando -lhe

um esplendido legado physico-psychologico e


uma grande pobreza.
Ficando pobrissimo , sem meios de prover

á sua educação, um seu parente, o honrado


commerciante coronel José Francisco da Silva

Albano, hoje barão de Aratanha, fel -o entrar


em junho de 1865 para o collegio Atheneu
Cearense, onde concluiu seus estudos primarios .
Obtendo elle no fim d'aquelle anno approvação

com louvor nas primeiras letras , o seu dire


ctor João de Araujo Costa Mendes , interessa
do em conservar junto de si uma creança tão
cheia de aptidões , instou com aquelle commer
ciante para deixal- o continuar no collegio, pelo
que nenhuma retribuição exigiria.
Accedeu o parente áquella instancia, que
redundaria sem duvida no beneficio do pequeno

Rodolpho.
O director não correspondeu á confiança
que n'elle se depositou. Vendo o menino activo

e intelligente, quiz d'elle tirar todo o proveito


em bem do seu collegio e encarregou- o, a elle
RODOLPHO THEOPHILO XI

tão creança, tão franzino, de leccionar as clas


ses atrazadas, o que roubava-lhe todo o dia,

não lhe deixando tempo para a cultura do seu


espirito.
Á noite, com o fragil corpo moído pelo tra
balho, deixava-se vencer pelo cançaço e ador
mecia pesadamente. Nos dias que se seguiam
era o mesmo lidar e ás noites a mesma fadiga
dominadora, e os seus estudos sendo olvidados

com prejuizo notavel.


Ao tempo das provas, Rodolpho estava tão
atrazado como no começo do anno.

O seu parente, entretanto, queria saber o


grau de adiantamento do seu protegido, e o dire
ctor para dar-lhe satisfação, fez submetter-se o
pobre rapazinho a exame de materias prepara
torias, que elle mal conhecia, resultando d'essa
imprudencia uma reprovação, que foi recebida
com a resignação de quem soffre uma injustiça
e tem bastante longanimidade para collocar- se
de cima !

Era esse o unico estabelecimento regular


de educação que havia na Fortaleza ; forçoso
era portanto Rodolpho continuar no Atheneu,
onde finalmente com grande esforço pôde em

um anno readquirir o tempo perdido e prepa


XII RODOLPHO THEOPHILO

rar- se em mais algumas materias do curso se


cundario.

Tinha elle então quatorze annos e já a sua

intelligencia e caracter deixavam perceber o ho


mem futuro.

Toda a sua aspiração era uma carreira lit


teraria ; sentia em si uns impulsos que o leva
ram a sonhar com um nome brilhante, que fos
se recompensa aos difficeis dias que atraves
sava.

A mingoa de meios , porém, traçava-lhe um


bem diverso caminho e bem aspero para o seu

temperamento impressionavel e imaginoso.


Na impossibilidade de continuar com os es
tudos teve de resignar-se a sahir do collegio
em dezembro de 1867 , e em março de 1868 en
trava como caixeiro para a casa commercial de
Albano & Irmão, da qual era chefe aquelle seu
parente.
Foi esta porventura a mais triste quadra
de sua vida. Arrancado bruscamente ao meio a

que se tinha afeito e para o qual o impellia a


sua organisação ; lançado em um mundo intei
ramente estranho e adverso ; cercado de uma
infinidade de coisas illogicas , variadas , contra
dictorias, absurdas , de caixas e fardos , de rus
RODOLPHO THEOPHILO XIII

ticos freguezes e somnolentos livros de escripta ;


sujeito a um regulamento inflexivel, a um tra
balho severo e rude, em que mais o corpo do

que o espirito se empenhava, e para o qual não


se sentia com forças ; .ah ! quantos desfalleci
mentos não lhe magoaram a alma juvenil !
Quando pela manhã, antes do sol, os com
panheiros de trabalho levantavam-se ruidosos

a assobiar, a cantar, vestindo- se para os labo


res que iam começar, elle, o fragil rapazinho, a
creança nervosa, deixava-se ficar ao fundo da

rêde n'uma molle covardia, de que eram cum


plices uns restos de somno e o secreto horror á

lucta que iria travar com algum terrivel fardo


de mercadorias. A idéa do dever, porém, dava
lhe força contra si mesmo, e então era triste e
comico ao mesmo tempo vêl -o deitado, com a
cara desgostosa e somnolenta, de pernas para o
ar, a enfiar as calças, ao som das gostosas ri
sadas dos companheiros. Este lidar consumiu
lhe cinco annos do seu melhor tempo !
O capitão Henrique Gonçalves da Justa en
tendeu dever dar uma outra orientação á vida
de Rodolpho e chegou não sem difficuldades a

conseguir que a Assembléa provincial votasse


uma subvenção de quinhentos mil reis annuaes
XIV RODOLPHO THEOPHILO

para occorrer ás despezas com os novos estudos


d'elle.

Avalie-se com que alvoroço de coração não


recebeu elle a certeza de que afinal iria entrar
no seu mundo e viver no meio para que o cha
mava o seu temperamento !
Em 9 de novembro de 1872 tomou passa

gem para Pernambuco com o fim de fazer os

preparatorios necessarios ao curso de pharma


cia, o unico que lhe era permittido seguir em
face das circumstancias financeiras.

A subvenção que fora votada só teria effe


ctividade depois de matriculado, e pois urgia
encontrar um meio de subsistencia no Recife

até que completasse os estudos referidos . Obte

ve do então presidente d'aquella provincia, o dr.


H. P. de Lucena, uma collocação como ama
nuense do hospital militar d'aquella capital.
Com os pequenos vencimentos d'este emprego,
dividindo sabiamente o tempo entre os deveres
de empregado e estudante, pôde afinal concluir
os preparatorios e seguir para a Bahia, em cuja
faculdade se matriculou em março de 1873.

Feito o primeiro anno obteve approvação


plena . A provincia, porém, que o subvencionava ,
em difficuldades de finanças, retirou-lhe a pe
RODOLPHO THEOPHILO XV

quena quantia, que lhe fôra votada, ficando

elle em terra estranha, longe dos seus, na mais


embaraçosa e afflictiva situação !
Succedeu comtudo que o ministro da guerra

mandasse prover dois logares vagos de pensio


nistas de pharmacia do hospital militar da
Bahia.
Aberto que foi o concurso, apresentaram-se

sete candidatos, entre os quaes estava o nosso


corajoso moço. Exhibidas as provas, verificou
se ser elle o mais habilitado, logrando por isto,

que o collocassem no primeiro logar da lista,


que tinha de subir ao ministro.
A nomeação não se fez esperar ; o ministro
fez-lhe a devida justiça.
De posse d'este modesto emprego, que dava

lhe o rigorosamente necessario para viver e es


tudar, sentiu-se mais a salvo de vicissitudes, e,

seguro pelo dia de ámanhã, entregou- se aos


seus livros com vontade e coragem, conseguin

do ser no segundo anno o unico de seus qua


renta collegas approvado com distincção !
Correu-lhe sem incidentes o anno de 1875.
A 20 de dezembro d'esse anno diplomou-se e

voltou para o Ceará no anno seguinte, onde


chegou a 11 de fevereiro, doente pela lucta que
XVI RODOLPHO THEOPHILO

havia tantos annos sustentava e que afinal


proporcionava-lhe tão bellos triumphos !
Ia viver de seu titulo scientifico conquista

do com muito sacrificio e muitas decepções . Es


tavam realisados os seus mais ardentes dese

jos ; entrava para a vida real com o espirito


enriquecido e o coração formado.

* *

Começa então a segunda phase da vida de


Rodolpho Theophilo, cheia de serviços á sua
provincia e á humanidade soffredora.
Chegado ao Ceará procurou a villa de Pa
catuba, a duas horas da capital , e ahi estabele
ceu-se com pharmacia. O pequeno povoado sem
recursos não podia offerecer ao genio empre
hendedor de Rodolpho um theatro bastante am
plo e fecundo. Forçoso foi procurar um outro
ponto de maiores vantagens e a escolha natu
ralmente recahiu sobre a capital .

Em janeiro de 1877 tinha aberta a sua


botica á rua do Major Facundo , e em breve os
seus preparados therapeuticos , os seus escri
ptos, os seus sonoros versos , a sua caridade ar

dente, fizeram com que o nome de Rodolpho


RODOLPHO THEOPHILO XVII

Theophilo voasse de boca em bôca até o mais


remoto sertão.
N'este anno de 77 rebentou a tremenda ca

lamidade que por tres eternos annos dilacerou


esta infeliz provincia. Foi n'esta época terri
vel que o seu coração philantropico mostrou-se
em todo esplendor da caridade.
A sua pharmacia e a sua bolsa eram refu
gio aos miseraveis famintos !
Em contacto com a desgraça, apalpando

como medico e como christão a profunda ferida


aberta na alma da familia cearense, revoltado

contra as tremendas injustiças feitas á honra


e ao caracter de seus patricios, sujeitos a tão
crueis provações, ferido por tão contristadora
desventura, Rodolpho Theophilo emprehendeu
escrever um livro, que fosse reparação a tama
nhas dôres, e começou a colher dados para a
Historia da sêcca do Ceará.
Este livro não é só uma obra scientifica

revelando os grandes dotes do escriptor : é tam


bem e principalmente um vivo e eloquentissi
mo protesto contra as revoltantes calumnias e

injurias atiradas aos desgraçados filhos do


Ceará. É mais do que um livro : é uma grande
justiça, uma reparação.
2
XVIII RODOLPHO THEOPHILO

Depois de tanto trabalho precisava seu co


ração repousar no regaço da familia, e a 24 de
maio de 1879 casou-se com a exc.ma snr.a D.

Raymunda Cabral de Mello, filha do commen


dador Antonio Cabral de Mello .

Seu caracter generoso não se considerava


desobrigado para com a provincia, que nos
maus dias de sua campanha lhe votára um
auxilio pecuniario. Agora que tão funda des
graça pesava sobre ella, achava ensejo de lhe
pagar a sua divida de gratidão ; e , embora
aquella subvenção tivesse sido suspensa no

momento em que mais necessaria se tornava,


nem por isto se julgou menos obrigado por ella .
Levado por este motivo e pelo sentimento
de piedade que lhe inspiravam mais de uma
centena de orphãos da Colonia Christina, Ro
dolpho Theophilo durante o anno de 1881 for
neceu medicamentos aos doentes d'aquella co
lonia, sem remuneração alguma !
Isto, porém, que já era muito, não pareceu
bastante á sua generosidade .
Depois da grande sêcca desenvolveu- se em
toda a provincia um mal terrivel. A cascavel,
crotalus horridus, L., devastava os sertões de
um modo assombroso. Appareciam estes terri
RODOLPHO THEOPHILO XIX

veis reptis com tal abundancia, que individuos


havia que tinham morto para mais de qui
nhentos em pouco tempo !
A vida do sertanejo e o gado que escapou
da sêcca corriam o risco de acabar ao dente do

peçonhento animal.
Rodolpho Theophilo teve a idéa de salvar a

provincia d'este novo infortunio, e em 1882, de


pois de assegurar-se por uma attenciosa leitu

ra das experiencias do dr. Lacerda, de que da


ria bons resultados a applicação do permanga

nato de potassa contra o veneno ophidico, man


dou vir os apparelhos necessarios, fez imprimir
directorios, e os distribuiu gratuitamente por

todos os municipios da provincia do Ceará.


Este novo esforço foi coroado do mais bri
lhante successo. O numero das victimas dimi
nuiu de um modo consideravel.

Fervia no espirito cearense a grandiosa


idéa da libertação da provincia. A redempção

do municipio do Acarape foi a primeira pedra


lançada, e o primeiro golpe de clava no escla
vagismo.
Rodolpho Theophilo não podia ficar indiffe
rente ao movimento que se operava, nem tam
bem n'elle entrar sem um grande feito.
*
XX RODOLPHO THEOPHILO

Tinha-se de libertar a comarca de Pacatu

ba, um dos centros da lavoura da provincia. A


empreza era difficil. Rodolpho foi encarregado
d'ella e houve-se com tanto geito no desempe

nho d'este encargo, que conseguiu , não sem


grandes despezas suas, libertar pacificamente
a comarca em 2 de fevereiro de 1883.

Havia alli uma sociedade abolicionista que


The conferiu o titulo de socio benemerito, e a

população penhorada, no dia da redempção da


comarca, offereceu-lhe um magnifico retrato a
oleo, como prova do muito apreço em que o
tinha.

*
*

Diante de tão bons serviços prestados á

causa publica, o governo de S. M. I. quiz re


compensal- os, como recompensam os reis, pen
durando ao peito do distincto moço uma conde
coração, fazendo de Rodolpho Theophilo, d'este
espirito democratico, bom, d'este poeta humani

tario, d'esta intelligencia productiva e scintil


lante... um official da Ordem da Rosa ! ...

Rodolpho é d'estes homens que se condeco


ram a si mesmos e sabem por ignota magia
RODOLPHO THEOPHILO XXI

por em torno de seu nome uma aureola mais

brilhante que todas as condecorações mais re


tumbantes.

O livro que publicou em 1884 sobre a sêc²


ca do Ceará, é por si só bastante para dar-lhe
os fóros da fidalguia do talento, a unica verda
deiramente respeitavel.

Trabalha elle agora n'um livro que ha de


contar a historia da libertação do Ceará e que
brevemente sahirá a lume, como tambem um

volume de versos, que denominou Campezinas.

Ha de sua penna publicado, depois que dei


xou a pharmacia por uma cadeira de sciencias
naturaes da Escóla Normal, um compendio de
botanica elementar, uma monographia da mu
cună e ultimamente um livro intitulado Scien

cias Naturaes, em contos, no genero o primeiro


que se publíca no Brazil.

Não ficará n'isto. Rodolpho Theophilo está


moço, cheio de coragem e na vida placida que
leva em sua fazenda « Alto da Bonança », nos
dará livros preciosos , como a Fome, que acaba
de publicar, e mais outros productos de sua in
telligencia fecunda.

Vigilio Brigido.
EXODO

O mez de novembro é sempre calmoso nas pro


vincias do Brazil mais proximas do equador. Mesmo
no littoral, que é bafejado pelas brizas do mar, os
dias são quentes, a temperatura, á sombra, chega a
33° centigrados.
Foi na tarde de um d'esses dias, no anno de
1877, o anno da fome, que na Jacarecanga, um
dos arrabaldes tristes da Fortaleza, arranchava-se
á sombra de um cajueiro uma familia de retiran
tes, de infelizes, que, depois das torturas de uma
viagem penosa de cem leguas, vinham augmentar
a onda dos famintos.
Sentado em um toro de madeira, na primeira
manhã, ao lado da palhoça, meditava um homem
de pouco mais de cincoenta annos : era o chefe da
2 A FOME

familia. Profundamente triste olhava para os aloja


mentos dos companheiros de infortunio, abrigados
tambem á sombra de velhos cajueiros. A fome com
o cortejo de dôres não podéra apagar os traços
d'aquella carnação athletica . A musculatura estava
reduzida a um terço ; mesmo assim ninguem duvi
daria que os braços d'aquelle homem podessem sus
ter um touro pelos cornos. A caixa thoracica bastan
te larga e bem conformada guardava os orgãos mais
importantes da vida todos sãos e vigorosos . N'aquel
las fórmas não havia um traço que não denotasse
virilidade. Os tons de tristeza carregando-se até ás
nuances da nostalgia assentavam mal n'aquella fi
gura mascula. O gigante, entretanto, absorvido todo
em cavar o passado e desvendar o futuro, meio
desalentado, deixava as tristezas, que havia escon
dido dentro d'alma, sahirem e se collocarem em
frente das retinas, como imagens lutuosas e immo
veis . Era digna de reverencia a postura meditativa
do retirante a procurar seguir as miragens, que fu
giam pela imaginação fóra. D'aquella apparente mor
te do espirito, estado apathico e quasi comatoso, bas
tava para uma prompta resurreição ouvir o gemido
de um filho, um ai da esposa. A physionomia do
lente vestiria então a vizeira da energia, a muscu
latura entraria em acção, e ai de quem com elle se
batesse.
A par da energia inherente á inteireza do cara
cter estava a bondade do coração, a dôce expansibi
lidade no lar entre a familia e os amigos. Aquella
A FOME 3

figura de aço, cuja espinha jámais dobrou a curva da


bajulação, desfazia-se em carinhos no berço dos fi
lhos, em serviços junto dos opprimidos.
Manoel de Freitas é o seu nome. Descendente
de uma das mais antigas e importantes familias do
alto sertão, herdára do pae modesta fortuna e a in
fluencia eleitoral na localidade. Sua educação havia
sido completa para o tempo e estado do interior da
provincia. Sabia as primeiras letras e um pouco de
latim, lingua esta com que os sertanejos ricos cos
tumavam prendar os filhos. O vigario da freguezia,
que fora seu mestre, tinha orgulho do discipulo, que
em tres annos traduzia bem o Cornelio. Emancipado
ainda em vida de seu pae, fez-se criador, como todos
os seus ascendentes. Era estreito o circulo em que
vivia ; não procurára conhecer um meio mais culto,
como a capital da provincia, embora para isso tives
se convites instantes dos chefes politicos, convites
que precediam sempre os pleitos eleitoraes. Era ge
ralmente estimado e considerado por seus conterra
neos. A moderação como chefe de partido na época
em que as luctas politicas eram decididas pelo baca
marte, o havia tornado crédor do respeito dos pro
prios adversarios. Casára aos quarenta annos com
D. Josepha Maciel, senhora pobre, porém bella e de
familia respeitavel.
As estações foram regulares durante trinta e um
annos ; a fortuna de Manoel de Freitas, que augmen
tava annualmente, estava toda empregada em gados
e escravos. Em começo de 1877 os amigos, preven
4 A FOME

do os effeitos desastrados de uma secca, aconselha


ram-no de vender uma parte dos rebanhos. Freitas
se oppoz a isso, acreditando que haveria um inverno
tardio. Os prejuizos que lhe causára a sêcca de 1845
não lhe serviram de lição. Obstinado se recusava a
acreditar que estivesse proxima a calamidade. A idéa
de inverno preconcebida quando os signaes meteoro
logicos deixavam prevêr um anno senão sêcco, ao
menos escasso, foi-lhe muito fatal.
A crise foi accentuando - se e o mal tomando de
dia a dia maiores proporções. Os campos seccavam e
as aguas desappareciam das fontes. As searas por ter
ra não tinham produzido uma espiga ! O arado se
oxydava encostado na senzala. Na casa de farinha o
caitatú cegava-se ralando a raiz estopenta da mu
cunã.
O aspecto da floresta era lugubre e desolador.
Apenas alguns joazeiros enfolhados vegetavam como
representantes da vida, que havia cessado n'aquelles
sitios.
O sólo tinha uma physionomia particular. Jun
cado de folhas torradas e enroladas em espiral, como
embuás adormecidos, servia de domicilio a lacraus e
aranhas caranguejeiras.
A floresta, reduzida a esqueletos ennegrecidos,
bracejava desfolhada no espaço , estendia-se, e pouco
a pouco se diluindo no ether confundia-se muito
além com o firmamento, que se arqueava sobre ella
azul e puro.
As tristezas da terra faziam contraste com as
A FOME 5

alegrias do céo, que lhe servia de cupula. Nem um


nimbo toldava a limpidez d'aquelle immenso plano
de saphira ! Apenas alguns cirrus de uma alvura ar
gentina, tendo a fórma de uma aza de gaivota, im
moveis nas alturas, escapavam do vento de léste,
que soprava rijo em outro quadrante.
Os raios do sol cahindo verticalmente sobre a
terra aqueciam as rochas e os vegetaes mortos como
um fôrno de reverbero. O calor emittido por aquel
les fócos era, á sombra, de 38° centigrados.
Os homens e os rebanhos erravam á tôa n'aquella
natureza tocada de morte, procurando a vida.
As searas não tinham criado um grão para os
celeiros.
Manoel de Freitas e a familia estavam tambem
sujeitos áquellas duras contingencias. Os seus reba
nhos eram dizimados pela fome. Os prodromos de
uma calamidade terribilissima se accentuavam cada
vez mais. A energia do fazendeiro posta em campo
nada conseguia em favor de sua fortuna, que se
aniquilava. As fontes não vertiam mais uma gotta
d'agua ! Os gados mortos de sêde urravam á beira
dos bebedoiros com um sentimento que commovia !
Era necessario rasgar a terra e arrancar-lhe agua
das entranhas.

Freitas empenha-se na lucta, reune todos os ele


mentos de que dispõe, e resoluto decide-se a arcar
contra o flagello. De alvião ás costas e acompanha
do dos escravos vai dar combate aos elementos. Des
ce á primeira cacimba, que encontra sêcca, e, com
CO
6 A FOME

uma coragem heroica, é elle quem começa o traba


lho. Os alviões retalham a rocha e as pás atiram
na para longe da excavação. Os escravos, a exemplo
do senhor, redobram de esforços , de actividade. Duas
horas depois d'aquelle trabalho arduo e penoso re
tarda-se o compasso dos ferros contra o sólo, a res
piração dos trabalhadores torna-se mais curta e offe
gante, a amalgama de suor e pó, que cobria-lhes a
pelle núa como uma camada de verniz, corre arras
tada por uma onda mais abundante, que se extrava
sa dos póros e agua não apparece ! O calor do sol,
e o cançaço extenua-os. Os gazes rejeitados pelos
pulmões escaldam-lhes as narinas, como se sahissem
de uma caldeira a ferver !
Manoel de Freitas não desacoroçôa com as diffi
culdades que se levantam. Sua pertinacia recrudesce
com a chegada de algumas rezes, que ouvindo de
longe o som dos ferros, vêm instinctivamente á ca
cimba. O gado cerca o bebedoiro e chora cavando a
terra como se pranteasse a morte de um companhei
ro. Aquelle côro de gemidos commove o fazendeiro,
que procura redobrar de esforços . O seu alvião, en
tretanto, torna-se cada vez menos aguçoso, retalha
a terra com menor afan.
A fadiga retarda a marcha do serviço, mas não o
interrompe.
Freitas estava quasi sem esperança de encontrar
agua, quando sentiu que pisava terra humida. Esta
va proximo o termo d'aquelle trabalho insano.
A rocha cada vez mais se humedecia. Já não ha
A FOME 7

via mais que fazer para o alvião, a camada de argil


la tinha sido substituida por uma de areia grossa,
que as pás moviam para longe. Misturadas ao salão
estavam algumas pedras de origem plutonica, que
pelo pequeno volume não embaraçavam o serviço.
O cheiro da terra humida attrahiu o gado, que a
estalar de sêde, com a lingua aspera e longa lambia
a areia molhada com um frenesi de allucinado.
Os touros tristes e abatidos nem ciumes sentiam
dos rivaes d'outr'ora, nem amor ás novilhas, cuja
magreza apagára quasi os traços sexuaes, e todos
juntos cambaleavam nas pulverulentas malhadas.
Freitas continuava a trabalhar com perseverança.
As pás com difficuldade sustinham nas superfi
cies concavas a rocha, que em consistencia de papa
esboroava-se pelos bordos.
Julgavam a veia proxima, ella porém não appa
recia com a franqueza que desejavam .
A camada pastosa foi-se rarefazendo e em breve
tocavam os ferros no dorso de uma rocha de grani
to. Os olhos de Freitas faiscaram de colera. Tomou
ainda o alvião e golpeou a pedra, que immovel pare
cia assentar a extremidade inferior na arcada que fe
cha o centro da terra.
O fazendeiro sem proferir palavra pôz a picareta
ás costas e voltou para a vivenda seguido dos escra
VOS.
No dia seguinte logo pela manhã Freitas conti
nuou a tarefa. Desprezado o primeiro bebedoiro, pro
curou outros, e assim n'uma lucta sem treguas com
8 A FOME

a sêcca, ora vencedor, ora vencido, assistia ao aniqui


lamento de seus rebanhos . Já não era sómente a
sêde que os matava, era agora tambem a fome e
a peste !
As folhas sêccas de que o gado se alimentava o
vento levára. Era necessario decotar os joazeiros e
com elles alimentar os rebanhos. Todos os dias pela
manhã Freitas com os vaqueiros e escravos sahia, e
todos armados de machados iam deitar rama ao
gado.
O aspecto da floresta se tornava cada vez mais
lutuoso. D'aquelle panorama escuro desappareciam
pouco a pouco os pontos verdes. Os urubús, pousados
aos milhares nos galhos das arvores n'um crocitar
constante, tornavam aquella solidão mais tetrica e pa
vorosa. De uma gula insaciavel espreitavam as victi
mas, que cahiam aos centos mortas de fome e de
peste, e banqueteavam-se n'aquelle repasto de pelan
gas, de podridão.
A atmosphera que enchia os campos era delete
ria e pôdre.
Freitas luctou até ser de todo vencido . Não foi a
fome que o desarmou, foi a peste.
Epizootias de diversas naturezas se desenvolve
ram e faziam diariamente centenas de victimas. O
microbio da pustula maligna, o Bacillus anthracis,
reproduzia-se de uma maneira assombrosa. Aquelles
infimos sêres geravam-se á custa do calor e da po
dridão.
Manoel de Freitas, cançado e pobre, entregou á
A FOME 9

furia do flagello as poucas rezes que lhe restavam.


Mais de doze mil cabeças de gado havia perdido em
poucos mezes !
Fechados os curraes das fazendas e sem outros
recursos que não fossem terras e escravos, Freitas
reflectia nas providencias, que deveria tomar. A des
peza com a mallograda tentativa da salvação dos re
banhos o arruinára de todo. Já poucas eram as joias
que restavam a sua mulher e filha. Todos os dias
sahia mais uma para a gaveta do usurario e a preço
de quinhentos reis por quatro grammas de ouro de
lei. O producto da joia nem entrava em casa, ia para
o mercado e era empregado em farinha de man
dioca, importada do sul do Brazil por via da Forta
leza e levada ao sertão por mascates italianos, que
vendiam-na a mil reis o litro !
Não havia dinheiro que chegasse para sustentar
uma familia grande com generos tão caros. A ração
dos escravos havia já sido reduzida a um terço e a
mesa da familia era muito pobre ; mesmo assim na
da chegava, e a penuria a se aproximar sempre. Uma
manhã Freitas pediu á mulher algum ouro para as
despezas e ella trouxe-lhe a Cruz do santo lenho,
que entregou chorando.
O fazendeiro recebeu com mão tremula a cruz
da familia, o talisman, que havia passado a cinco ge
rações e que provavelmente agora a necessidade obri
garia a passar a outra familia. Desenrolou da cruz o
grosso cordão de ouro, de cujas extremidades abriu
os colchetes, e pôz o santo lenho ao pescoço. N'esse
10 A FOME

dia não foi ao mercado e o fogão quasi não se accen


deu.
Os mascates italianos eram tambem traficantes
de escravos. O seu grande negocio não era a farinha
de mandioca vendida com lucro fabuloso, era o com
mercio de escravos feito do modo mais illicito. Ma
garefes de gado humano tinham presentido um cur
ral com boas peças e que se esvasiaria com algumas
saccas de farinha. Espreitavam com interesse a vida
de Freitas, aguardando o momento opportuno para
a negociação . A fome, pensavam elles, estava encar
regada de rendel-o .
Freitas vivia de portas fechadas no mais comple
to anojamento. Havia deixado de ir ao mercado, o
que não passou desapercebido aos mascates. A occa
sião era opportuna e os traficantes não a perderam.
Eram elles dois calabrezes, que pelos gestos e figura
pareciam descender da mais vil canalha da Calabria.
Foram a casa do fazendeiro sondar-lhe o animo.
Freitas recebeu-os e logo á primeira vista conhe
ceu que tratava com os vendedores de farinha, e adi
vinhou o motivo da visita. Em poucas palavras des
pediu-os se recusando a aceitar as propostas.
A noticia da visita dos italianos chegou á senza
la e pôl-a em sobresalto .
Na noite d'esse dia, depois que a familia se re
colheu, os escravos se reuniram e resolveram procu
rar a liberdade. A fuga effectuou-se muito antes de
romper o dia. Foram caminho do Piauhy, guiados
por um captivo, filho d'aquella provincia. Apenas cin
A FOME 11

co escravos por cumulo de lealdade se recusaram


obstinadamente a seguir os companheiros.
Pela manhã a senzala estava deserta e Freitas
inteirado do que havia acontecido. Não os maldisse
e muito menos perseguiu-os. De si para si lástimou
que não tivessem fugido todos.
Os mascates com a noticia da fuga dos escravos
voltaram á casa de Freitas ; este porém não quiz re
cebel-os.
Crescia a penuria, já o fazendeiro vivia do soccor
ro de amigos e parentes, soccorro escasso e que em
face das circumstancias em breve não teria : a mise
ria o levaria de vencida. Apenas lhe restavam terras
sem cotação, cinco escravos e a Cruz do santo lenho.
Freitas passava os dias meditando ; estudava os
planos de batalha, que procurava acertar o mais pos
sivel para depois executal-os. A emigração para a ca
pital era a unica taboa de salvação que lhe restava
do naufragio. Decidiu-se por ella ; mas era preciso
viveres ou dinheiro, e onde havel- os ? A Cruz do san
to lenho vendida ao usurario pouco produziria. Os
escravos dariam um producto sufficiente ás necessi
dades da viagem, mas quem os compraria n'aquellas
paragens, se os mascates desenganados de qualquer
negocio tinham sahido para outra localidade ?
O fazendeiro comprehendia o perigo da situação.
Algumas semanas mais de espectativa tornariam im
possivel qualquer tentativa de salvação. Estava resol
vidó a emigrar, mas não sabia onde achar forças
para vender os escravos e a cruz da familia. Os seus
3
12 A FOME

parentes tinham sahido todos, excepto seu primo


Ignacio da Paixão, que vindo-se despedir para no dia
seguinte emigrar para a capital, despertou em Frei
tas uma idéa que encheu -lhe o cerebro, se transfor
mou depois em aspiração , e no fim de algumas horas
em necessidade imperiosa.
A venda dos escravos estava resolvida.
Ignacio da Paixão não partiria para a Fortaleza
acompanhado da familia e sim dos captivos, que lá
seriam vendidos , e o producto empregado em viveres.
Essa nova commissão, entretanto, não lhe adiaria a
partida, que seria na manhã seguinte.
Eram necessarios viveres para a caravana e não
os havia em casa, e nem dinheiro para compral-os.
Freitas estava resolvido a tudo . Jogava a ultima car
ta a favor da vida dos filhos. Para augmentar as pro
babilidades de ganhar, era necessario a Cruz do santo
lenho ; com muito constrangimento vendeu-a ao usu
rario, e o producto quasi todo empregou em viveres.
Assignada a procuração e preparadas as matricu
las e mais documentos , tudo foi entregue a Ignacio
da Paixão, que prometteu executar fielmente as or
dens de Freitas.
Á noite, reunidos pela ultima vez no quarto do
oratorio, senhores e escravos, depois de rezado o ter
ço com o maior respeito e devoção em frente de uma
imagem de Christo morto, Freitas communicou a to
dos seu acto.
Os captivos tremeram de pasmo e o sentimento
explodiu. Um côro de prantos entrecortado de solu
A FOME 13

ços tornava aquelle recinto lugubre e pavoroso. A


claridade das velas dava ao Crucificado uma côr
mortiça, que contrastava com o rubro do sangue, tão
vivo que parecia verter de uma ferida recente. Todos
estavam commovidos e choravam, excepto Freitas,
que retinha as lagrimas á custa das contracções espas
modicas, que, como um annel de aço, constringiam
lhe a garganta.
Os captivos deveriam partir ao alvorecer do dia.
Fizeram-se as despedidas, mas na mudez impos
ta pelas grandes dôres. Uma palavra não foi articu
lada. As ultimas lagrimas dos escravos cahiram quen
tes nos pés de Freitas e de Josepha, não como uma
supplica humilde, porém como um grito de revolta
contra a deshumanidade d'elles.
Feitas as despedidas, os escravos seguiram um
após outro até o altar, e cada um por sua vez beijou
os pés do Crucificado com profundo recolhimento.
Os olhos que se levantavam supplices a se encontra
rem com o olhar amortecido de Christo, baixavam-se,
e cravados no chão guiavam os infelizes á senzala.
Freitas sentia-se humilhado. Teve impetos de re
considerar o seu acto, mas isso era arriscar á sorte
a vida dos filhos. Pôde emfim vencer a tentação, e
uma vez traçado o plano de conducta teria a cora
gem precisa de cumpril-o á risca.
Josepha chorava em silencio ; seu espirito timo
rato recolhia-se meditava. Essas scenas a impres
sionavam como prodromos de uma grande desgraça.
As velas se gastavam alimentando a chamma,
*
14 A FOME

que alumiava pequena sala com uma luz baça e


triste . A figura lacrimosa de Josepha ao lado do
marido, cujo semblante taciturno deixava perceber
nos traços que o crispavam as luctas intimas , dava
áquelle quadro os tons da piedade . A sala tinha uma
physionomia funebre . Parecia que se guardava alli
um morto . As luzes já bruxuleavam em agudos esta
lidos, que o silencio e a acustica do quarto tornavam
mais percebiveis .
Freitas avisado da proxima escuridão se aproxima
de uma das velas e apaga-a . Josepha comprehende
que vai ficar ás escuras e sae.
O fazendeiro em seguida extinguiu a outra luz e
se encaminhou ás apalpadellas para a alcova. Lá já
encontrou Josepha e ainda chorando.
O resto da noite passou-se em afflictiva vigilia.
Na senzala o pranto havia estancado, mas de
quando em vez um gemido profundo, como o ester
tor da ultima agonia, quebrava aquelle silencio, ve
lado por alguns homens e mulheres , cuja vida moral
começava a ser uma angustia cruciante.
Aquelle tecto respeitado pela adversidade desde
o dia do levantamento, aquelle tecto que havia abri
gado cinco gerações, sem nunca ouvir uma maldição
a sorte, assistia n'aquella noite terrivel a todas as
phases de uma dôr sem cura, a uma angustia para
que não existe lenitivo.
Aos primeiros clarões crepusculares , os escravos
de maca ás costas deixaram a senzala e seguiram
para a casa de Ignacio da Paixão.
A FOME 15

Quando Freitas levantou-se pela manhã já iam


longe os malaventurados.
Um mez era o praso fatal e improrogavel dentro
do qual - regressaria Ignacio com o producto dos ca
ptivos.
Trinta dias ainda a passar quando restavam pou
cos mil reis da ultima joia!
Na despensa havia sómente carne de gado ma
gro e doente, e tão coberta de bolor que nem os
vermes queriam-na para repasto !
Freitas empregou todo o dinheiro, que possuia,
em viveres, que dividiu em trinta rações e recolheu
á despensa. Desde esse dia fez-se despenseiro e em
bora fossem escassas as refeições, não ouvia a mu
lher e filhos quando pediam que augmentasse a
mesa.
Josepha não encontrava explicação ao procedi
mento do marido, elle que fazia alarde de sua libe
ralidade. Por vezes exprobrou-lhe a mesquinharia pon
do debaixo de chave migalhas, quando não tardava
a chegar o primo com grande partida de viveres.
Freitas ouvia-a sem colera e não procurava jus
tificar-se.
No praso marcado acabaram-se as rações e Igna
cio não chegou. Freitas estava justificado. A alimen
tação passou a ser exclusivamente de carne ardida.
Alguns litros de farinha de longe em longe manda
dos por amigos abastados iam-se oppondo á inappe
tencia.
Mais um mez e Ignacio da Paixão não chegava !
16 A FOME

A cidade estava quasi deserta. Apenas o vigario


e muito poucas familias tinham ficado, na esperança
dos soccorros do governo. A travessia, entretanto,
ia-se tornando impraticavel, e Freitas decidido a emi
grar para a Fortaleza devia seguir emquanto havia
alguma probabilidade de vencer a distancia.
A carne assim mesmo pessima estava acabada.
Uma manhã Manoel de Freitas se levantou mais
cedo e chamando a mulher ordenou-lhe :
―― Acorda os filhos , reune depois a roupa indis

pensavel a cada um em uma maca, que vamos dei


xar esta terra antes de sahir o sol.
II

Josepha de Freitas ouviu a ordem do marido e


não replicou .
Arrumadas na mala as roupas indispensaveis,
uma muda para cada um e rêdes para os adultos,
distribuidas alpercatas a todos, fechou-se a porta e
seguiu a caravana.
Eram sete os viajantes.
Freitas caminhava na frente, levando ás costas a
maca da roupa, um sacco com um resto de carne,
uma borracha de agua presa ao cabo de um macha
do, e na cinta uma grande faca dentro de uma bai
nha de sola.
Seguiam-no tres creanças, ainda somnolentas, e
todas de menos de dez annos.
Fechavam o pequeno prestito duas mulheres, Jo
sepha e sua filha Carolina.
18 A FOME

Josepha caminhava chorosa levando nos braços


uma creança, que ainda amamentava.
Ignorante das vicissitudes d'aquella peregrinação
e agourando mal de seu exito, deixava na imagina
ção tomarem vulto as idéas mais terrorosas.
Era a primeira vez que punha á prova sua ener
gia.
Afeita unicamente aos gozos de uma vida tran
quilla e abastada, sem outra responsabilidade a não
ser a educação physica da familia, em parte dirigida
pelo marido, estranhava os primeiros embates com a
adversidade.
Carolina seguia os paes com uma passibilidade
de automato. Aquellas scenas não deixavam de im
pressional-a ; mas eram transmittidas ao cerebro como
se ella estivesse adormecida, como em um sonho agi
tado.
Tinha quinze annos e vigor das naturezas com
pletamente sadias. O seu todo denotava a saude dos
organismos desenvolvidos ao ar do campo, não con
taminados pelas nevroses endemicas nas cidades po
pulosas , frequentemente em publico sob as fórmas
mais caprichosas .
Havia em seu corpo uma perfeita harmonia de
fórmas, todas obedecendo ás leis de uma rigorosa
esthetica, e não o rachitismo das chloroticas ou as
fórmas pesadas e grosseiras da mulher do povo.
Tinha ella um aspecto nobre que se percebia no
rosto, logo á primeira vista .
Os olhos grandes e de um azul celeste tinham a
A FOME 19

suavidade das almas puras e castissimas. Elles da


vam uma expressão de bondade á physionomia ex
pandida em um rosto do mais correcto oval, emmol
durado por uma sanefa de cabellos louros.
O nariz era longo e aquilino. A bôca formada
pelos labios unidos em uma linha recta, conservava
a castidade dos primeiros annos, e nunca fôra macu
lada pela malicia ou desdem.
A rosea côr dos labios diluia-se até confundir-se
com a tez alva do rosto, que tinha a macieza do ar
minho e era de uma serenidade indescriptivel.
O clima equatorial com o seu sol de fogo creára
aquella flôr loura e de olhos azues.
A caravana seguia acompanhando a marcha va
garosa das creanças .
Andavam kilometros e kilometros sem dizer pa
lavra ; o silencio era apenas interrompido pelo taco
taco das alpercatas, que, em pés não habituados, fa
ziam retardar o passo.

Dos viajantes era Josepha quem mais soffria. Seu


corpo pesado de gordura resentia-se muito da soa
lheira, e a musculatura dos membros inferiores em
manifesto desaccordo com os preceitos esculpturaes,
cambaleava com o peso da armação do tronco.
No primeiro dia de viagem foi preciso descançar
quatro vezes menos pelos meninos do que por Jose
pha. Á noite dormiram á beira da estrada e ao ama
nhecer continuaram a caminhar.
Na tarde do quinto dia de viagem, a vinte leguas
da cidade natal, Freitas batia á porta de uma casa
20 A FOME

na margem do caminho e pedia agasalho. Nem uma


voz respondeu ás suas interrogações . Julgando aquel
la habitação uma das muitas abandonadas, forçou a
porta, que cedeu , partindo-se a taramela .
Entrou a caravana e se aboletou na primeira sala.
Havia alli o ar pesado das atmospheras confinadas .
Nem um movel descançava no pavimento sem ladri
lho. As paredes em preto faziam mais escura a sala,
que era o domicilio de centenas de morcegos. O fe
dor dos cheiropteros tresandava e mais se diffundia
pelo movimento do ar, que percutia o vôo de muitas
azas em precipite agitação . Espantados da caravana e
medrosos da luz descreviam rectas e curvas no estreito
espaço em um voar adoudado. Do pello côr de rato
cahia uma chuva de pulgas , que em saltos descom
munaes procuravam os emigrantes e um logar onde se
esconderem nas pregas dos vestidos .
Josepha achou que a sala tinha a tristeza d'um
necroterio. As pulgas em breve começaram a lhe fer
vilhar pelo corpo ainda molhado de suor. Não era a
dôr da sucção que a irritava, era a cocega dos pellos
dos aphanipteros a roçar-lhe nos pellos do corpo .
O crepusculo da tarde chegava ao fim ; a nature
za como n'um desmaio recolhia -se e esperava a noite,
que não tardaria a chegar.
Freitas aproveitava as derradeiras ondulações da
luz crepuscular para fazer a lenha necessaria ao fogo,
que deveria alumial-os toda aquella noite. Quando
voltou ao rancho ainda encontrou a mulher a se co
çar e a maldizer os morcegos e as pulgas. Já as crean
A FOME 21

ças dormiam todas deitadas em um lençol estendido


no chão.
Carolina sentada na rêde rezava o rosario quasi
a dormir.
Freitas accendeu o fogo em um canto da sala,
fechou depois a porta, armou a rêde, e, dando boa
noite a Josepha, deitou-se. Não dormiria, entretanto,
antes de resolver um problema, que desde a manhã
d'aquelle dia lhe estava fixo na mente : era o meio
de se refazer de viveres para continuar a jornada. Não
existia mais uma gramma de carne no sacco da ma
talotagem. Havia horas que Freitas meditava, mas
sem encontrar uma idéa que o alentasse, uma espe
rança de salvação. Por cumulo de desgraça a borra
cha estava sêcca. Encontraria fonte alli e onde seria
ella n'aquelle logar em que nunca havia andado?
Pensava seriamente no dia de ámanhã e nos elemen
tos a congregar para resistir ás contrariedades que
se levantassem, e quasi consternado conheceu que
não havia arma e nem braços capazes de pôr o ini
migo em debandada. Para aquella casa haveria uma
fonte e a mucunã vegeta em todos os terrenos : estas
idéas o alentaram um pouco, e ancioso esperava o
raiar da aurora, quando ouviu vagidos de creança
no interior da casa.
Josepha toda ouvidos levantou-se e correu para
junto do marido.
Freitas sentou- se e esperou.

Novos vagidos se fizeram ouvir.


-Que horas são, Manoel ?
22 A FOME

Meia noite , disse Freitas depois de ter aberto


a porta e olhado a via lactea.
-É choro de pagão, que sete annos depois de
enterrado , á hora da meia noite, vem pedir a agua
do baptismo, disse Josepha, que era tão supersticiosa
como um fetichista.
Freitas se aproximou do fogo e tirando alguns ti
ções fez d'elles um facho, que o alumiaria ao inte
rior da casa.
Josepha benzendo-se perguntou :
-Queres procurar o logar sem uma cuia d'agua
e uma pedra de sal na bôca ?
-
Sempre a acreditar em bruxarias , Josepha !
-A tia Antonia era uma mulher séria e devota,
e dizia que baptisar pagão enterrado sem sal na bôca
era caso de assombramento ! ...
―――――
-Veremos.

E Freitas seguiu pelo extenso corredor ao inte


rior da casa .
Josepha, medrosa de ficar só, acompanhou o ma
rido. Os vagidos foram-se tornando mais audiveis, até
que mui distinctamente ouviam-se que sahiam de um
quarto á esquerda. A porta, que estava cerrada, a um
leve impulso do braço de Freitas girou nas dobradi
ças e abriu-se.

A chamma do facho triplicou de intensidade ali


mentada por uma série de sopros de Freitas e en
cheu de luz o estreito aposento. Á visão succedeu a
claridade e deixou patente um quadro medonho . Dei
tado sobre uma cama de talos de carnahubeira es
A FOME 23

tava o cadaver de uma mulher branca reduzido á


magreza de mumia ; o corpo de uma infeliz, que
succumbira no acto da maternidade e não havia mui
tas horas. Os lochios tinham corrido, e misturados
com o sangue e a placenta começavam a apodrecer.
O ar tresandava a parto. O cadaver tinha ao regaço
e na postura em que as mães aleitam os filhos uma
creança, cuja pelle estava collada ao esqueleto.
A bôca esfomeada do recemnascido instinctivamen
te procurava os mamillões, mas embalde ; as mamas
estavam reduzidas a murchas pelangas, que se colla
vam ás costellas. A frieza do cadaver se transmittia
á creança, que tambem recebia a frialdade da pla
centa, a um canto da cama em uma poça de sangue
e lochios, e ainda presa á extremidade do cordão um
bilical. A vida estava alli em perigo imminente. As
fontes de calor eram fracas para se oppôrem á inva
são do frio. O estomago vasio n'aquelle organismo
era o mesmo que um fogão apagado em uma cozi
nha.
Manoel de Freitas e a mulher cercaram o leito
e cada vez mais o quadro os surprehendia.
Os vagidos da creança iam pouco a pouco enfra
quecendo. Era necessario um soccorro, um alento
áquella vida que se extinguia.
Freitas entregou o facho a Josepha e procurou
ageitar entre os dedos o corpo franzino do recemnas
cido.
A debil creaturinha sente-se bem em contacto
com a pelle aquecida do sertanejo. A piedade do ve
24 A FOME

lho proporciona-lhe todo o aconchego de suas mãos


callosas . Era necessario, entretanto, levar d'alli o pe
quenino e aquecel-o, mas o cadaver apertava-o ao re
gaço em um abraço estreito e de mãe, e que mais
apertado fazia agora a rigidez cadaverica. Foi difficil
a separação. Livre a creança, Freitas suppõe podel-a
levar logo á sala e aquecel-a ao fogo ; porém illudiu-se,
ella continuava presa ao leito da morta pelo cordão
umbilical. Era preciso cortar aquella amarra da morte.
Freitas deita a creança sobre o cadaver e prepa
ra uma ligadura com os fios de seus vestidos ; depois
ata com apertado nó o cordão umbilical acima da
inserção na região do abdomen. Certo da constric
ção dos vasos , sacca a faca da bainha e com seguro
golpe decepa o cordão, que cae vertendo sangue,
mas um sangue pobre, quasi incolor, sobre o peito
da defunta. Estava livre o pequenino d'aquella amar
ra morbida, á custa da qual se havia alimentado du
rante a vida uterina.
Freitas, com toda a piedade, toma a creança nos
braços e seguido da mulher volta á sala, que estava
quasi ás escuras.
Josepha alimenta o fogo com os tições que tra
zia e pede depois o menino para amamentar.
A creança arquejava, os labios já se abriam ao
estertor da agonia dos ultimos momentos.
Josepha commovida desmamava solicita um dos
peitos com a sofreguidão dos perigos eminentes. O
leite esguichava do mamillão e cahindo na bôca da
creança descia á garganta, onde ficava sem poder
A FOME 25

mais ser engulido a gargarejar movido pelo ar que


sahia dos pulmões.
-Já fez o primeiro termo, Manoel, baptisa-o,
disse Josepha .
-Com que agua?
- A da borracha.
-Está sêcca !
Sêcca ? !!
-Sim, sêcca ! ...
Freitas estava embaraçado. A theologia não havia
previsto aquelle caso. Catholico, apostolico, romano,
sem agua teria de deixar aquella alma ir para o
limbo.
―――― O segundo termo, Manoel !
-E agua, minha mulher?...
-N'esta casa havia gente, deve haver agua lá
por dentro.
Freitas tomando um tição vai ao interior da casa.
Percorre todos os aposentos e encontra um pote
debaixo da cama da defunta. Lança mão d'elle com
sofreguidão ; estava vasio. Apenas no fundo uma ca
mada de lama. Leva-o assim mesmo á sala, e en
chendo a mão d'aquella papa de argilla e agua, besun
ta com ella a cabeça da creança proferindo em latim
as palavras sacramentaes. Ao terceiro termo annun
ciado por Josepha o pequenino deixou de existir.
f

III

Ao clarear do dia Manoel de Freitas e a mulher,


carregando os mortos, foram dar-lhes sepultura. Dif
ficil foi-lhes abrir a cova, embora em uma rocha de
areia, e segundo a pragmatica mortuaria do sertão
com sete palmos de profundidade e á beira de um
caminho. Os cadaveres postos na excavação, os -covei
ros atiraram sobre elles alguns punhados de terra e
rezaram um Padre-Nosso. A areia cahiu depois em
massa sobre os corpos com um ruido lugubre. Ater
rada a cova viria o malho obrigal-a a receber o ex
cesso de terra, que a fazia convexa. Estupida cere
monia ainda em uso ! Um tronco de carnahubeira
serviu de instrumento. As pancadas do malho a so
car a cova echoavam no silencio d'aquella solidão de
um modo pavoroso. Recebida toda a terra pela se
4
28 A FOME

pultura, Freitas deu por concluida a tarefa, e voltou


com Josepha ao seu rancho.
Eram sete horas , e Carolina com os irmãos dor
mia somno tão profundo, que parecia uma syncope.
Freitas recommendou a Josepha que os deixasse
acordar por si, e tomando o machado, a faca e duas
borrachas sahiu para a matta a procurar alimento e
achar a fonte.
A floresta tocada de morte bracejava no espaço.

Compunha-se de plantas dicotyledoneas e legumi


nosas na maior parte. A perspectiva era desoladora.
A sêcca havia torrado e despovoado os campos.
Freitas caminhava por aquelle labyrintho de vere
das confiado em seu tino de bussola.
Não se ouvia o trinar de uma ave, o voar de um
insecto ! Apenas as rajadas dos aliseos, quentes já
áquella hora, faziam uma orchestra nos esqueletos
das arvores, e n'um diapasão lamentoso gemiam ,
rangiam e assobiavam .
Freitas seguia com pressa, mas observando tudo.
Não perdia um só dos traços physionomicos do sólo.
A vegetação, entretanto, não podia servir-lhe de
orientação : semi-morta, era a mesma por onde pas
sava. O terreno , ora baixo, ora accidentado, nú ou co
berto de seixos rolados , não dava indicios de fonte
proxima.
Freitas inquiria tudo que o cercava e continua
va no silencio da espectativa. Havia andado alguns
kilometros em todos os rumos sempre a natureza
com um aspecto morbido a desilludil-o ! Sentou-se
A FOME 29

para descançar, e olhando para o sul notou que ao


longe, lá onde a terra parece limitar com o céo, ha
via um ponto mais saliente como um capacete sobre
a linha da floresta. Um outeiro, acreditou elle, e an
cioso de uma eminencia de onde visse os horisontes
se abrirem, encaminhou-se para lá. Acostumado des
de menino a excursões pelas mattas, tinha tão gran
de tino, que seus passos pareciam guiados por uma
agulha magnetica. Em pouco tempo chegou ao sopé
do outeiro, que era formado por quatro grandes ro
chas plutonicas, umas sobre as outras.
Aquella mole de granito de milhares de tonela
das era uma prova geologica dos cataclysmos por que
passou o globo. A força que as collocou superpostas,
fel-as tambem inaccessiveis. Talhadas a pique em to
das as faces, eram de ascensão difficilima senão im
possivel. A superficie superior era eriçada de alguns
arbustos sêccos.
Freitas examinou com attenção e interesse a mu
ralha a escalar. Nem um ponto vulneravel ! A mole
tinha a fórma de um enorme polvo, cujos tentaculos
eram grossos cipós e desciam do vertice ladeando-a
até o sólo. As hastes sarmentosas lhe serviriam de
escada. Avaliou da resistencia d'ellas balançando
com força a que achou mais forte, pendurando-se
n'ella e executando alguns movimentos de vai-vem.
Estava presa á rocha como se fizesse parte de seus

elementos. A altura a galgar era de vinte metros.


Freitas pendurou-se ao cipó e sua musculatura agil
e forte como a de um acrobata, em um instante
*
30 A FOME

pôl-o no vertice da rocha. Os musculos não precisa


vam do apoio da pedra ; os braços guindavam o cor
po e, para ostentarem força durante a ascensão, a ca
beça esteve sempre no nivel dos punhos. Quando a
musculatura se contrahia, via-se a manga da camisa
no terço superior do braço se estiraçar com o volu
me do novello de musculos. Freitas chega ao vertice
da pedra, mas difficil é agora galgar-lhe a superficie.´
Dez vezes esteve quasi perdido, quasi se precipitou,
emfim por um esforço supremo pisou com firmeza a
rocha . Livre do perigo foi que viu o risco em que
estivera : o cipó, que lhe servira de escada, estava
em parte decepado pela quina da pedra ; apenas par
te do cortical e algumas camadas lenhosas haviam
no aguentado. De pé sobre tão alto pedestal, descor
tinava um panorama immenso ; os horisontes se alar
gavam e a vista perdia-se nos espaços habitados pela
floresta ou pelo ether. N'aquella enorme tela o azul
do céo era o tom alegre sombreado pelas tristezas,
pelas côres sombrias dos campos.
Freitas perscrutava com um olhar intelligente
tudo que o cercava. As pesquizas, entretanto , eram
improficuas, as qualidades investigadoras de seu es
pirito se nullificavam no descobrimento de um rumo
que o levasse feliz ao porto do destino. Nenhuma
orientação descobria ! As retinas deslumbradas por
tanta luz e cançadas de tanto vêr, descançaram um
pouco, veladas pelas palpebras.
De olhos fechados Manoel de Freitas reunia pelo
effeito miraculoso da reflexão no estreito espaço do
A FOME 31

cerebro o enorme panorama que descortinára. Sen


tindo dentro de si todo aquelle mundo mais palpa
vel ainda do que ha pouco, julgou assim poder me
lhor auscultar o sólo e ouvir a pulsação de alguma
arteria d'agua. Recolheu-se mais e meditou. Nada
ouviu que o guiasse á fonte ! Abriu os olhos e uma
surpreza agradavel deu-lhe novas esperanças. As re
tinas transmittiam agora ao cerebro as imagens de
mais longe. Entre ellas percebeu um ponto verde,
1 um pequeno oasis cravado no seio de uma floresta
de arvores mortas.
Freitas esfregou os olhos pretendendo assim acti
var o sentido da visão. A imagem continuou a se de
senhar nas retinas e o cerebro a recebel-a com os
tons ainda mais vivos do que da vez primeira. Era
um pedaço de terra que a sêcca havia respeitado.
Manoel de Freitas tomou a direcção do oasis, e
tendo a precaução de matar com folhas sêccas a qui
na da pedra em que dobrava o cipó, que o desceria,
pendurou-se á haste e em poucos segundos pisava o
sólo.

Movido de justa curiosidade, o fazendeiro cami


nhava em rumo do ponto verde desejoso de expandir
a vista em um campo coberto de verdura. Não pen
sava em outra coisa senão em vêr d'ahi a minutos
resurgir de entre a enorme multidão de esqueletos
vegetaes uma colonia de individuos fortes e sadios
com todos os attractivos e bellezas da vida campezina.
Uma gotta d'agua e uma folha verde n'aquellas pa
ragens teria o encanto de uma resurreição. Foi-lhe
32 A FOME

preciso, entretanto, caminhar alguns kilometros para


chegar ao oasis .
Um grupo de oiticicas seculares sadias e vigoro
sas, opulentamente enfolhadas, enchiam uma área de
alguns decametros. Cada arvore era um colosso ves
tido de verdura a ostentar todo o luxo da vegetação
tropical. Sentiam-se alli as manifestações de vida e a
harmonia dos sêres da natureza. Os fetos que borda
vam o sólo com as folhas arrendadas viviam bem á
custa da humidade e da sombra, livres das rajadas
do vento da sêcca, que com seu halito quente tudo
crestava. A briza, que ciciava alli, era fresca e perfu
mosa . Lianas e aristolochias se balançavam em flôr
entrelaçadas nas oiticicas.
Manoel de Freitas contemplava absorto aquelle
sitio e procurava saber a causa da vida alli. Era a
agua, a agua, que entra na composição de tudo o
que vive. Mas como escaparia ella á acção da sêcca
e deixou de se evaporar ?
O fazendeiro não encontrava explicação ao mila
gre, só a vista da fonte , que não vira ainda, podia
explical-o. Elle se achava tão bem n'aquelle sitio ! ...
Os pulmões se dilatavam em inspirações plenas e
profundas n'aquella atmosphera leve e pura. As fadi
gas da ascensão e do caminho haviam desappareci
do. O velho sentia-se remoçar com aquellas libações
sadias . A temperatura agradavel do oasis, a sombra
das arvores, unica que o abrigou até alli, reparavam
The as forças. Tinha sêde, mas acreditava estar perto
d'agua. Aquelles vegetaes sem ella estariam reduzi
A FOME 33

dos aos esqueletos. Havia agua, elle ouvia nos rumo


res da briza o som de um liquido a gottejar sobre
uma superficie tambem liquida. Decidiu-se a procu
ral-a, e a passo lento seguiu a percorrer todo o sitio.
Caminhava para o sul quando em um declive do
terreno encontrou-se inesperadamente com uma ro
cha, que fechava o caminho. O som d'agua a gotte
jar se percebia distinctamente e parecia sahir de
dentro da pedra. O fazendeiro encostou o ouvido ao
granito, auscultou as entranhas da rocha e notou que
lá por dentro não reinava o silencio dos corpos in
animados, havia murmurios de liquidos e de gazes
que se moviam. Estava sem duvida no dorso de uma
gruta, mas do lado opposto á entrada. Quiz rodeal-a
á direita e á esquerda, mas não conseguiu romper
os balseiros de unha de gato e nem com o terçado
fazer caminho.
Voltar com sêde ouvindo agua gottejar tão perto
não era para o genio de Freitas. Não podendo ro
dear a pedra decidiu-se galgar-lhe o cume. A ascen
são foi difficil. Os musgos e os lichens fugiam-lhe
sob os pés e a escorregadela seria mortal se não en
contrasse pontos de apoio, que eram quasi sempre
grupos de bromeliaceas. O sitio tornava-se cada vez
mais aprazivel. As jurilys gemiam nos massiços de
verdura, os insectos volitavam no espaço, as rãs
coaxavam baixinho comendo as algas das fontes.
Freitas encontra na superficie da rocha, que julgava
inteiriça, uma fenda com sufficiente espaço á vista .
Deita-se na pedra e olha através da abertura. Uma
34 A FOME

fonte crystallina alimentada por um fio d'agua, que


desce do alto da rocha e n'ella cae gotta a gotta e
no centro de uma pequena sala francamente illumi
nada pelo sol, vêem os seus olhos. As estalagmites
que se erguiam do sólo, quasi encontravam-se com
as estalactites que desciam do tecto reflectindo a luz
que decompunham, e então os tons do iris offereciam
a Freitas um espectaculo , para elle, novo e que de
véras o maravilhava.
Era uma gruta digna de uma lenda. O fazendeiro
quiz vêr de mais perto aquelles crystaes, cuja lapi
dação refrangia tão bem os raios luminosos, e arras
tando-se pelo dorso da rocha, logrou , sem accidente,
chegar á entrada da gruta. Mal os olhos recebem a
primeira impressão do recinto, a perspectiva do local,
um espasmo veloz como o raio abala-lhe o systema
nervoso, e é seguido de uma situação difficil, a de
um perigo imminente.
Uma onça pintada, tão grande, que media quasi
dois metros da ponta do focinho á extremidade da
cauda, de pé no fundo da gruta, balançando aquelle
prolongamento da espinha, como fazem os gatos
quando têm ao alcance a victima appetecida, olhava
para Freitas. Os olhos do fazendeiro fitaram os da
fera como ordenando-lhe que se rendesse. O carni
voro e o homem não perdiam um movimento do seu
contrario. Manoel de Freitas tinha a lucta como tra
vada. Em taes condições era a vida pela vida. Teve
uma idéa, cuja elaboração foi rapida e o absorveu
com todos os seus sentidos. D'essa sahiu a resolução
A FOME 35

imprescindível de atacar promptamente a fera. Ani


ma-o a convicção de que a onça não resistirá á sua
musculatura e ao seu terçado, e prepara-se para o
ataque, o qual deve ser subito e terrivel. Sem tirar
os olhos de sobre o animal, com todo o vagar e não
menos precaução, lança no sólo as borrachas que
pendiam-lhe do cabo do machado e da mão esquer
da ; com a direita arranca da bainha o terçado e corre
sobre a fera. Esta encabrita-se e com a bôca escan
carada espera o aggressor. Freitas introduz-lhe entre
as arcadas das mandibulas o machado, cujo cabo aper
ta com a mão esquerda ; a onça morde o ferro que,
impellido com força, obriga-lhe a nuca a se collar á
rocha, e levantando as patas anteriores, já vai cravar
nas espadoas de Freitas suas aduncas e temiveis
garras ; mas o valente fazendeiro, mais agil do que
ella, atravessa-lhe o coração com o terçado. A fera
urra e cae estrebuxando na lage sobre a qual recebe
ainda alguns golpes nas carotidas e cessou de viver.
IV

Era meio dia e na sala do rancho conversavam


Josepha e Carolina em derredor do leito das crean
ças ainda adormecidas. Não havia em casa alimento
de especie alguma. Carolina sentia fome, sabia-se
pela pallidez das feições, não porque ella se quei
xasse : herdára de seu pae muitas de suas qualida
des psychologicas e physicas ; a fibra de seus muscu
los não se abatia com qualquer jejum. Josepha tinha
um ar desalentado, não podia dominar a impressão
de qualquer dôr do corpo ou d'alma. Enfraquecida
com a má qualidade de alimentos e exiguidade das
refeições, era-lhe uma tortura o jejum.
Qualquer demora na satisfação das exigencias do
estomago excitava-lhe os centros nervosos e as des
ordens se manifestavam pelos phenomenos mais ex
38 A FOME

quisitos . Ás vezes era o ouvido a séde das perturba


ções ; um murmurio de cascata percebia o nervo
acustico ; outras vezes era uma bala que subia - lhe
do estomago á garganta e produzia uma sensação de
estrangulamento ; agora era um grande vagalume
que passava-lhe em frente ao olho esquerdo, repas
sando muitas vezes n'um segundo. Josepha esfregava
o olho, fechava-o, mas logo que a retina funccionava,
a primeira imagem percebida era a do pyrilampo .
Carolina de quando em quando olhava para a mãe e
notava-lhe o desassocego. Era necessario soccorrel-a ;
e como não tinha alimento a dar-lhe, tratou de ti
rar-lhe d'alli o espirito ; procurou, cavando o passado ,
leval-a aos logares queridos da infancia.
-Esta noite, mamãe, sonhei com Filippa, e que
sonho triste ! Ella pedia esmolas pelas ruas da For
taleza, cega e esfarrapada.
-- Infeliz creatura ! disse Josepha deixando ca
hirem dos olhos duas lagrimas.
-N'aquella noite horrivel, depois do terço, ella
foi ao meu quarto e acordou-me para despedir- se
de mim. Eu ignorava tudo. Áquella mesma hora
quiz ir ter com o papá e pedir-lhe justiça ; mas ella
se oppoz, dizendo-me que não era mais tempo, que
estava no seu brio rejeitar todo e qualquer favor
nosso. As suas palavras humilharam-me, porque ella
tinha razão ; eu procederia do mesmo modo.
-Eu lhe havia promettido a liberdade em re
compensa de seus sacrificios . Ella nunca te fallou de
minha promessa ?
A FOME 39

-Nunca, mamãe. No dia que succedeu á fuga


dos escravos, ella pediu-me que obtivesse do papá,
caso elle quizesse vendel-a, deixar a filha em nossa
companhia.
-E fallaste n'isso ?
―――― Não, porque julguei que Filippa era livre des

de o dia em que amamentou-me.


-Eu o havia dito. Amamentou não só a ti como
ainda a tres de teus irmãos, e durante vinte annos
prestou a mim os serviços de uma amiga incansavel,
dedicada e verdadeira. E que grande coração tinha !
Dava a propria liberdade pela da filha !
Josepha não via mais o vagalume ; tinha o espi
rito todo preoccupado com a desgraça de Filippa.
Os meninos tinham acordado, e, sentados no
leito, olhavam com desgosto e piedade para a mãe,
que, entregue a outros pensamentos, não via o ar
desalentado das creanças pallidas como figuras de
cera. A imaginação de Josepha errava muito longe
d'alli ; acompanhava a idéa em seu curso phantasti
co, sentindo todas as impressões do meio em que a
mente estacionava.
O silencio da filha, que, recolhida em si, tambem
pensava em Filippa, amorteceu-lhe algum tanto as
lembranças do passado, e seu espirito foi pouco a
pouco acordando da lethargia e pondo-se em com
municação mais intima com tudo o que a cercava.
Doloroso foi-lhe o despertar ; já não eram o va
galume, a bala, a cascata, o tormento com que a tor
turavam seus nervos, mas a fome dos filhos que ella
40 A FOME

phantasiava em quadro lugubre sob o dominio da


nevrose. Julgava-se abandonada com a familia á dis
crição da miseria ; pois que Freitas, perdido no
matto , não voltaria. Este e outros pensamentos ater
ravam-na e dominavam-na de tal modo que ella os
seguia com uma passividade de sombra. Essas visões
pavorosas succediam-se com incrivel rapidez, dando
logar a crises repetidas. Não tinha forças para repel
lil-as, para afastal-as de si. Depois de uma crise
mais forte, Josepha apertando a cabeça com as mãos ,
exclamou :
Quem me soccorre ? !
-Meu Deus ! Reze, minha mãe, disse Carolina
com voz dôce e resignada.
As palavras da moça produziram o effeito mira
culoso de um calmante applicado opportunamente.
Josepha ajoelhou-se e cruzando as mãos sobre o
peito, e extatica, olhando para o tecto, em fervorosa
oração, pediu ao céo protecção e lenitivo ás suas
afflicções. O scenographo mudára o scenario ; a fome
com todas as suas dôres e a morte seguida de todos
os seus espectros haviam desapparecido do palco ;
agora das sombras hediondas surgiam mysticas vi
sões. Deus apparecia, não impalpavel em espirito,
mas encarnado no Christo macilento e suppliciado . O
seu olhar amortecido e terno, Josepha acreditava uma
promessa muda de soccorro, de salvação, e n'um ex
tasis d'alma, que se absorvia toda na contemplação
da vida celestial, sentia- se desprendida da terra, e
como n'um espasmo cataleptico.
A FOME 41

Manoel de Freitas, cuja energia e valor o haviam


feito triumphar da morte quando, affrontando-a em
frente da fera, a esta disputou peito a peito a vida,
chegava á porta da sala do rancho sem ser presen
tido e com tamanha carga, que difficil lhe era cami
nhar. Josepha em extasis orava ainda, Carolina scis
mava e os meninos sentiam-se devorados de tedio e
fome. Freitas comprehendeu pelo ar e postura das
figuras a scena que se passava. Um pouco de carne
a elles e voltaria a paz ao coração, e ao semblante
a tranquillidade. Estava-o torturando a contemplação
d'aquellas tristezas, e pondo o pé no limiar, excla
mou:
- A paz esteja n'esta casa.

Carolina levantou-se e em seguida os meninos


que, com algum alvoroço, acercaram-se do velho. To
dos reanimaram-se : a presença de Freitas fortale
cia-os, tinha um effeito todo moral. A carne da onça
e as borrachas d'agua completavam o conforto ; em
breve saciariam a fome e matariam a sêde. Josepha,
alheia ao que se passava perto de si, continuaria a
vagar pelas regiões celestes, se Freitas, depois de ali
jar a carga, não a despertasse batendo-lhe no hom
bro. N'ella foram iguaes a surpreza e o contenta
mento. Tanta carne, tanta agua só por milagre. A
promessa muda de Christo havia-se cumprido, cria
ella firmemente.

Prompta a refeição e por todos aceita com espe


cial agrado, foi o resto da carne posto ao sol para
seccar. Havia ração para oito dias e agua para qua
42 A FOME

tro. Aquelle incidente feliz augmentava as probabili


dades de chegarem ao porto do destino, pois que
proporcionou-lhes o indispensavel para percorrerem a
extensão de vinte leguas do ponto onde estavam até
á Varzea do Meio, logar destinado por Freitas para
refazerem-se de viveres, que consistiam na fecula ex
trahida da mucuna e da carnahubeira, e depois conti
nuarem a viagem .
A refeição havia acalmado os nervos de Josepha ;
por ella descera dos desconhecidos páramos celestes,
e muito humana se achava agora ao pé dos filhos e
do marido. Inteirada de que proseguiriam a jornada
na madrugada do dia seguinte, lembrou a Freitas a
falta em que estavam para com a defunta proprie
taria d'aquella casa ; haviam dado-lhe sepultura ; mas
não botaram a cruz na cova, a cruz, o signal do chris
tão e o chamariz das rezas dos viajantes pelos mor
tos enterrados á beira do caminho. Assim não terá
ella um Padre-Nosso nem uma Ave-Maria do cami
m
nheiro e menos ainda um raminho verde como lem
to
brança dos vivos, accrescentou meia contrariada por
The parecer que seu marido tinha má vontade ao seu
pedido. Freitas não a tinha ; mas fadiga tinha elle de Fo
mais para não desculpar-se da falta d'aquella home Cul
nagem á morta ; fez porém a cruz para satisfazer a dry
Josepha, levando a tarde inteira a preparar a obra a
machado. Antes de sahir o sol, iria collocal-a. A noite
gen
passou-se sem incidente algum.
poz
Aos primeiros clarões d'alva Freitas levantou-se, se,
acordou Josepha, e, fazendo-se acompanhar d'ella, pôz das
A FOME 43

a cruz ao hombro e encaminhou-se para o sitio da


cova. Muito perto da sepultura notou Josepha que
estava um vulto branco. Eriçaram-se-lhe os cabellos
com a idéa de um encontro com a alma da defun
ta, e, com as pernas já a tremer, chamou a attenção
do marido para o phantasma visivel a mui pequena
distancia. Freitas viu effectivamente um vulto branco,
e sobre a cova.

Voltemos, Manoel, disse Josepha cada vez
mais apavorada.
-O que for soará. Se voltas, eu vou só, tornou
lhe Freitas.
O vulto de repente duplicou de volume. Josepha,
que não o perdia de vista, não sustinha os queixos,
que em tremor nervoso batiam um contra o outro.
A quatro metros de distancia o vulto disparou
em carreira vertiginosa pela estrada fóra. Josepha,
assombrada, soltou um grito agudo e agarrou- se ao
marido de um modo tão violento e brusco, que dei
tou-o por terra em risco de contundil-o, e até ma
tal-o a cruz que trazia.
O vulto era um retirante, que emigrára para a
Fortaleza, e havendo pernoitado sobre aquelle monti
culo de terra que achou bom para cama, de ma
drugada ao acordar, avistou Freitas e Josepha, que
á primeira vista pareceram-lhe companheiros de via
gem ; achando, porém, exquisita a fórma do guia,
poz-se de pé para melhor observal-o. Aproximaram
se, e quando elle reconheceu um homem de compri
das barbas brancas carregando volumosa cruz e como
5
44 A FOME

avançando ao seu encontro, suppoz uma alma penada


e fugiu a bom correr.
Freitas conseguiu levantar-se, e chegando á cova,
convenceu a Josepha de seu engano : alli estavam a
maca do retirante e o seu cacete.
Erguida a cruz voltaram para o rancho e cuida
ram de despertar a familia e de arrumar a bagagem.
Ás seis horas da manhã seguia a caravana caminho
da Varzea do Meio.
Manoel de Freitas havia encarregado sua filha de
conduzir a maca de roupa, e comtudo o sacco da ma
talotagem, o machado e as borrachas que elle reser
vou para si, eram uma carga quasi superior ás suas
forças. Ao meio dia tomaram rancho em uma casa
abandonada ; e sendo o sol muito quente, a luz in
tensa e insupportavel, as rajadas de vento um tor
mento para os olhos e bronchios, e já estando todos
muito tostados, Freitas resolveu aproveitar as noites,
que eram de um luar esplendido , para viajar.
I

V
1

Manoel de Freitas, por mais esforços que empre


gasse, não conseguiu acostumar as creanças a cami
nhar á noite. Tropegas e somnolentas, protestavam
chorando contra a vigilia imposta pelo pae.
Bastaram duas noites de experiencia para con
vencer a Freitas da impossibilidade de trocar a noite
pelo dia. A viagem tinha-se atrazado e isto seria cau
sa de grandes transtornos.
A estrada, que até áquelle ponto recebia un ca
minho ou outro, servia agora de grossa arteria a mi
lhares de veredas, que n'ella desembocavam. O pres
tito dos famintos era agora consideravel. N'aquella
immensa procissão viam-se individuos de todas as ida
des e tendo em vista o mesmo fim. Acossados pela
fome, seguiam caminho da Fortaleza a reclamar a
assistencia publica.
46 A FOME

Freitas achava-se mal com sua caravana n'aquelle


meio. fo
Individuos de todas as castas se confundiam alli. n
Haviam perdido o senso intimo e deixavam-se domi
nar pelas necessidades da animalidade . Poucos eram
os que não estavam reduzidos a magreza extrema. a
No leito da estrada encontravam-se, a cada passo, OT
ossos humanos, cuja pelle sêcca e collada a elles os 0
conservava articulados.
0
Freitas comprehendia o perigo da situação. Pre m
cavia-se á hora das refeições, deixando a estrada e se f
internando com a familia pela matta. Trazia as bor a
rachas d'agua escondidas no sacco da matalotagem.
Ainda assim os famintos, com o instincto de animal
esfomeado, presentiam que elle levava alimento e I
cercavam -no pedindo de joelhos uma migalha pelo
amor de Deus .
Freitas fechava o coração aos rogos, e procurava I
convencel-os de que nada tinha tambem para comer.
Havia cinco dias que a caravana caminhava em
sobresalto entre aquella turbamulta. A agua havia- se
acabado e a Varzea do Meio ainda ficava distante
cinco leguas. .C
Freitas afastou-se da estrada e arranchou-se por
traz de um barranco. Estavam livres da vista dos
viandantes. Era necessario agua e onde encontral-a ? I
O sol ainda estava alto, e Freitas, arrostando a
sêde, a fadiga, o calor, decidiu-se, animado por um
supremo esforço, a procurar a fonte. Tomou o macha
do e as borrachas, e sahiu .
A FOME 47

O sólo tinha um aspecto de deserto. Arvores des


folhadas enchiam áreas de leguas e leguas com uma
monotonia de cemiterio.
Freitas errava pela matta. Examinava o terreno,
procurava indicios de aguada e nem uma esperan
ça ! Sentia-se desalentar cada vez mais quando no
tou que o firmamento se cobria de pesados nim
bos, o vento emmudecia e os vapores se condensan
do mais escureciam o ar. Julgou-se salvo, a chuva
em breve regaria a terra e mataria a sêde dos filhos.
Afagava tão dôce illusão, quando ouviu que o vento
da sêcca desencadeava-se impetuoso e varria a terra
e o espaço. Os esqueletos das arvores rangiam bati
dos pelas rajadas, ao mesmo tempo que as nuvens
em vertiginosa desfilada corriam para oeste deixando
após si o espaço limpido e azul.
Freitas olhou desilludido o firmamento e conti
nuou a caminhar á tôa. Suppunha-se longe do ran
cho quando inesperadamente o descobriu.
Estamos salvos ! teu pae, meus filhos !! ...
Mal Josepha acabava de pronunciar estas pala
vras, notou que as borrachas estavam sêccas como
foram. Um gesto expressivo de desgosto contrahiu
lhe todos os musculos do rosto e sem articular mais
phrase alguma fitou o marido , que a seu lado tinha
o coração despedaçado de dôr.
Freitas sentia-se esmorecer. O quadro que tinha
diante de si representava a sêde com todas as suas
angustias. Havia dezoito horas que não bebiam ! 0
exercicio muscular, o calor, haviam gasto quasi a
1
48 A FOME

agua do sangue ! Os adultos ainda resistiam, mas as


creanças deitadas no sólo, entorpecidas no mais com
pleto marasmo, com os olhos a saltar das orbitas,
immoveis, e com as pupillas muito dilatadas olhavam atte
inconscientes para o espaço. Tinham a bôca aberta, mar

2 9 9 23
e a lingua sêcca sahia e pendurava-se sobre a arca
da dentaria inferior ; assim exposta fendia-se a mu
cosa com o calor da atmosphera e o halito quente san
dos pulmões, que agora trabalhavam mais em movi pro
mentos accelerados pela febre. The
Carolina tinha um ar triste, mas resignado. No cac
olhar vago deixava vêr o somno dos sentidos que d'a
seu espirito vivia n'aquelle momento das recordações esf
do passado . pot
Era a hora das saudades. A luz crepuscular baça ra
e triste em morbidos reflexos, derramava a mornidão
pela natureza, que parecia em extasis, nos primeiros var

25
transportes de um desmaio. O vento emmudecera, e
alguns nimbos, que elles tangiam para oeste enfilei
rados e immoveis no zenith, coloriam-se de rubro,
reflectindo os ultimos raios do sol, que se escondia pe
na fimbria do horisonte. não
Manoel de Freitas viu-se perdido. A contempla Sup
ção das dôres da familia quasi superava-lhe a ener rac
gia, e temendo o aniquilamento de todos os meios der
de acção afastou-se do rancho. 00
— É tarde, Manoel !! ... ma
Freitas deu alguns passos e parou junto ao tronco ee
de uma arvore. Immovel, com o rosto coberto com
as mãos, esteve alguns minutos . O seu espirito reco cer
A FOME 49

lhia-se e meditava. O cerebro elaborava uma idéa


preconcebida entre uma multidão de pensamentos
tristes. Elaborada que foi, o fazendeiro olhou com
attenção as arvores que o cercavam, e se aproxi
mando de uma, que tinha enrolada ao tronco uma
haste sarmentosa, feriu de leve com o terçado o cor
tical do cipó. Algumas gottas de um liquido côr de
sangue brotaram da ferida. Tinha achado o que
procurava, a mucuna lisa, a planta que tantas vezes
lhe matára a sêde quando, embrenhado pelas florestas,
caçava abelhas e veados. A familia morria á falta
d'agua, porque os seus pensamentos, todos os seus
esforços convergiam para um ponto : achar uma fonte
potavel e abundante como a da gruta da onça. Ago
ra que, desilludido, não pensava em encontrar bebe
doiro, mas em salvar-se com a mulher e filhos, avi
varam-se as reminiscencias e entre ellas uma im
pressionou-o agradavelmente : era a mucuna a verter
agua como o rochedo do deserto tocado por Moysés.
Freitas, reanimado, decepa a haste de um só gol
pe a pouca altura do sólo, agua não corre, mas isso
não o surprehende. Introduz depois a extremidade
superior do caule decepado dentro da bôca da bor
racha, que ageita apoiando-a ao tronco da arvore, e
depois marinhando pelos galhos em que se enrolava
o cipó, vai ter á extremidade d'elle. O sarmento tinha
mais de cinco metros de comprimento, bom diametro
e era vivaz e annoso.
Freitas chegando ao ponto terminal da haste de
cepa-a pouco abaixo do olho. A pressão atmospherica
50 A FOME

se exerce sobre o liquido que circula nos vasos, e ou


ve-se o murmurio d'agua que desce e despeja- se na

,

borracha. Aquelle susurro suave enche de contenta
mento a alma do fazendeiro . Deseja chegar a terra
ao mesmo tempo que a agua, mas não póde. Quando

2
pisou no chão já a borracha regorgitava de cheia.
Sem demorar-se, levou-a ao rancho. Tan
Josepha recebeu o marido com exclamações. tar
Carolina comprehendeu que primeiro se devia
soccorrer as creanças e se aproximou d'ellas levan
do uma cuia e uma colhér. Cheio o vaso começou a COS
medicação. As primeiras colheres d'agua foram engu
lidas com difficuldade. Foram-se reanimando aos
poucos, até que no fim de duas horas sentados con
versavam.
Freitas, Josepha e Carolina tinham-se saciado
d'agua, que embora tivesse um ligeiro travo, comtu
do matava a sêde e era agradavel ao paladar. 0S
Estavam a cinco leguas do ponto escolhido para Sua
estação, estação que duraria o tempo necessario a se cest
refazerem de alimento para o resto do caminho.
Freitas temia novos transes, não pela sêde, con
et
tra a qual estava armado, mas pela fome. Havia tra
carne sómente para uma refeição e escassa ! Era
preciso empregar esforços e até sacrificios, afim de
de
amanhecerem na Varzea do Meio. Lá teriam agua dei
necessaria á extracção da gomma da carnahubeira um
e da mucunã. Em face de necessidades tão palpi esp
tantes, Freitas resolveu continuar a viagem depois gal
da meia noite. Agasalhada, a familia dormia, em coz
A FOME 51

quanto elle, sem somno, passeiava em derredor do


rancho.
A lua nos ultimos dias do crescente mostrava á
terra a face argentina e fazia a trajectoria no espaço,
que, desnublado, tornava pela sua mortecôr mais bri
lhante a superficie do astro. Os seus raios illumina
vam a terra, mas com um brilho morbido que delei
tava. Os tons da tela representando aquelle pedaço
de sólo com os sêres que o povoavam, confundiam-se
em uma nuance escura. As rochas e os areaes bran
cos se diluiam na pretidão da floresta em uma agua
rella desmaiada e sombria.
Freitas, como sentinella perdida, guardava o ca
minho do rancho. Com a alma abalada ainda pelas
impressões da ultima tarde, sentia-se fatigado e os
musculos participaram do cançaço que lhe tolhia o
espirito. Era necessario que os sentidos dormitassem ;
o somno o tornaria incommunicavel com o mundo e
suas miserias. O fazendeiro conheceu que tinha ne
cessidade de dormir, não só para recuperar as forças
perdidas pelo corpo, como para descançar o espirito
e tornal-o apto a enfrentar com energia os futuros
transes. Para poder tranquillamente repousar, alargou
a área da vistoria afim de se convencer de que além
de sua caravana ninguem mais alli pernoitava. Ia
deitar-se quando notou o apparecimento d'um vulto
um pouco distante do rancho. Algum infeliz que nos
espreita e aguarda o meu somno para vir furtar mi
galhas como fazem os cães sem dono a deshoras nas
cozinhas alheias, pensou Freitas. Deitou-se e fingiu
52 A FOME

dormir. Mais de uma hora esteve assim e o vulto


sempre immovel. Sentindo que as palpebras pesavam
cada vez mais, pôz-se de pé decidido a fazer um re
conhecimento. Encaminhou-se para o vulto, mas an
tes de enfrental-o reconheceu a figura de um homem.
――― Quem está ahi ? perguntou Freitas.
3
O echo das palavras repercutiu com monotonia
além nos mais proximos outeiros, e voltou o silencio
a dominar outra vez aquelles logares ermos.
Freitas adverte ao desconhecido que vai-se apro
CO
ximar, e animoso segue até ficar cara a cara com
elle.
re
Surpreza horrivel ! O fazendeiro, sem querer, re
ca
cúa um passo e procura dominar-se. Tinha diante
Te
de si uma mumia de pé e encostada ao tronco de
uma arvore. A figura era horripilante. Uma caveira
coberta de pelle sêcca e lustrosa eriçada de cabel
fra
los duros como as sêdas do caitatú, de orbitas va
zias, as fossas nazaes abertas e sem nariz, a bôca
Tei
cerrada pelas filas de dentes de branco esmalte, ar
ticulava-se ao esqueleto, que se conservava na po
esq
sição vertical, devido ao equilibrio mantido pelos lan
membros superiores agarrados á arvore. Pendente
das vertebras do pescoço cahia um rosario de vi
dro formando uma curva oval. Mirrados todos os
musculos, as visceras se collaram aos ossos, dispen
sando o concurso da fermentação putrida, o banque
te dos vermes .
Freitas commovido contemplava aquella victima
da fome. Desejou sepultal-a, mas com que ferros
A FOME 53

abriria a cova? Pelo corpo nada podia fazer, pela


alma sim, se é que as orações servem-lhe de con
solo, tinha que rezar, e ajoelhou-se com muita devo
ção, como se alli houvesse alguma coisa mais que
uma retorta em que durante um periodo de annos
deram-se muitos e diversos actos chimicos ; as peças
de uma machina que activa funccionou mantendo e
regulando a vida.
Freitas rezava, mas com certo pavor. Antes de
concluir a oração foi surprehendido por um estre
meção do esqueleto ; assustado ergue os olhos e fe
re-lhe as retinas o fogo em chispas vomitado pela
caveira. Sente-se amedrontar, mas em tempo pôde
vencer o medo e terminar a reza. Concluida a ora
ção levanta-se ; não havia mais fogo e nem o esque
leto estremecia. O vidro das contas do rosario re
frangia á luz da lua, e visto de baixo para cima
illudia collocando fócos luminosos na boca da ca
veira.
Freitas convencido da illusão e certo de que o
esqueleto estremecera agitado pelo vento que ba
lançava a arvore, volta ao rancho dizendo comsigo :
---
É assim que se contam as historias de almas
do outro mundo.
223

toda
Con
mei
VI

Manoel de Freitas chegou com a caravana a


Varzea do Meio logo ao amanhecer do dia.
O sólo tinha alli outro aspecto e a natureza um
ar mais sadio. Uma área de mais de dois kilometros
de extensão arborisada de carnahubeiras seculares,
todas verdes, limitada com a floresta semi-morta,
constituia a varzea, aprazivel pela vida de suas pal
meiras.

As brumas crepusculares rarefaziam-se e os va


pores subtis desappareciam diluidos pelos raios sola
res, que chegavam á terra.
Algumas espiraes de fumo ennovelavam-se nos
leques das carnahubeiras, desprendidas dos fogos
nos ranchos dos retirantes.
Havia alli algumas centenas de viajantes fazendo
56 A FOME

estação . Todos estavam magros, cançados, e grande


numero enfermos de anasarca.
Freitas notou com desgosto o crescido numero de
companheiros. Era-lhe necessario agora maior som
ma de trabalho. Era grande perigo viver no meio
d'aquella onda de infelizes, que a perversão mo
pre
ral havia reduzido sómente ao instincto da animali
Con
dade.
Freitas procurou um logar mais retirado e ar Vari
ranchou-se. O local escolhido era magnifico. Um ma
grupo de carnahubeiras, cujas hastes marcavam no sal
sólo uma circumferencia, sustentando como colum fon
nas um tecto de folhas verdes, formava um kiosque
end
natural com proporções sufficientes a accommodar a
fon
caravana.
O fazendeiro depois de riscar o logar do rancho
installou-se com a familia.
O movimento dos famintos era alli consideravel.
Entravam e sahiam centenas todos os dias . Os re
cursos naturaes , como a fecula da mucunã, a gomma a
da carnahubeira e agua em abundancia, faziam da
varzea estação obrigada.
Freitas quiz logo se pôr a par das aguadas, e
0
sahiu a colher informações.
As fontes ficavam a duzentos metros do rancho.
m
Eram tres grandes caldeirões, que estavam sempre
a
cheios, alimentados por alguma veia d'agua do sub
sólo. A agua era clara, mas tinha a superficie velada
por uma tenue nata de saes de ferro.
Freitas encheu as borrachas sem provar o li
A FOME 57

quido levou-as ao rancho, certo de que elle continha


muita caparrosa .
As creanças sequiosas quasi esvaziaram uma das
borrachas, mas o effeito da agua não se fez esperar e
foram atacadas de cólicas e diarrhêa. O fazendeiro
previa isto, tanto que preveniu-as do resultado, re
commendando-lhes que bebessem pouca agua.
Era necessario procurar outra fonte, aquella ser
viria para a extracção das feculas. Indagando do
mais proximo visinho de algum bebedoiro menos
salgado, soube que a oeste da varzea havia uma
fonte d'agua dôce, chamada a encantada, pois só
enchia de tres em tres dias. Tratava-se de uma
fonte intermittente, cuja causa Freitas não compre
hendia e cujos phenomenos muito menos podia ex
plicar por lhe faltarem conhecimentos de hydrosta
tica.
A nova fonte era mais potavel, mas comtudo não
deixava de ser um pouco alcalina. O fazendeiro achou
a agua soffrivel e apanhou-a para uso da caravana.
Freitas resolveu que a estação alli seria de tres
dias, e para não perder tempo, cuidou logo em tirar
o palmito dos mais viçosos quandús, que em grande
numero cercavam o kiosque, reduzil-o a massa es
magando-o entre duas pedras, e depois entregal-o
a Josepha para com a filha laval-o e tirar-lhe a
gomma.
Começado o trabalho, depois de tomada a pri
meira e unica refeição d'aquelle dia, Freitas ancioso
de explorar aquelles sitios e desejoso da carne de
58 A FOME

um animal de sangue quente, sahiu da varzea fóra


com o machado ao hombro e terçado á cinta . Seguia
rumo de léste. A terra era núa. As malvas, os mar
meleiros, as sensitivas tinham morrido e o vento der
rubado os esqueletos. Nem uma habitação, um ran
cho d'aquelle lado ! Freitas entrou no extremo da
varzea para a matta e começou a ouvir muito ao
longe o ladrar de um cão. Tomou o rumo e seguiu
por uma vereda. Depois de andar muito e já sem
esperança de carne n'aquelles sitios mortos, avistou
uma casa, que além fechava a vereda. O caminho
morreu no pateo da vivenda, que de telhas, caiada,
com porta e janella para o nascente , era a habitação
da familia e ao mesmo tempo um pequeno estabele
cimento rural . Nos outões sahiam duas azas, dois
grandes alpendres, occupados um pelos toscos ma
chinismos de madeira do fabrico da farinha de man
dioca e o outro por uma engenhoca tambem de pau
e mais pertences destinados ao fazimento de rapa
duras. Ao lado do sul um curral de pau a pique,
com a porteira fechada, e pousado em um dos mou
rões jejuava um grande carcará faminto olhando of
sitio onde outr'ora viveu luzido gado. A janella da
casa estava aberta, e a porta fechada deixava vêr
bem riscos a carvão formando innumeras e diversas
figuras . Á primeira vista parecia uma pagina de
hierogliphos. Aproximando-se, via-se que eram dese
nhos de marcas de tamanho e fórmas differentes não
só das fazendas da visinhança como das mais dis
tantes, cujos vaqueiros na pista de animaes fugidos
A FOME 59

deixavam os ferros alli desenhados, afim de não se


apagarem da memoria.
Manoel de Freitas chegando á janella se debruça
no peitoril e diz para dentro :
- Ó da casa!

O echo de suas palavras repercutiu nos escuros


aposentos, e foi respondido pelo ladrar do cão.
Freitas notou que de quando em vez um ruido
semelhante ao vôo de aves se fazia ouvir. Não se
conteve e pulou a janella, mas antes de chegar ao
corredor o cão sahiu-lhe ao encontro. Foi difficil de
fender-se sem o auxilio do terçado. O animal, leve 1
mente ferido, cedeu o caminho á sala de jantar. An
tes de entrar n'ella, Freitas começou a sentir um
cheiro insupportavel de carniça . A atmosphera pare
cia pôdre. Havia pouca luz. Aberta a porta renovou
se o ar e fez-se a claridade. Os raios do sol bateram
em cheio no pavimento e um espectaculo horrivel
viu o fazendeiro. Apodrecia alli o cadaver de um ho
mem, cujo rosto já estava medonho pela decomposi
ção. A pelle cyanotica estilhava a putrefacção, que
fazia a cara disforme e horripilante. A physionomia
mais horrida tornava o nariz, que, diluido em uma
amalgama de pús e vermes, cahia sobre a bôca, já
sem labios, e em parte cobria os dentes alvos e
sãos. Os olhos arregalados a saltar das orbitas, n'um
olhar de morto sem luz e consciencia, pareciam fi
tar-se no fazendeiro. O cadaver estava vestido de
camisa e calça de algodão. O habito, entretanto, na
altura do ventre estava rasgado, e rasgado tambem
6
60 A FOME

estava o abdomen pelo cão , que cevava-se nos intes


tinos e visceras do morto. O terreno onde descançava
o corpo estava revolvido. Parecia ter havido alli uma
lucta.
Manoel de Freitas aproxima- se mais da carniça
para melhor observal-a, quando o cão, vendo-o junto
do seu repasto, ataca-o de novo. O animal vinha fu
rioso. Para se livrar d'elle o fazendeiro mata-o a gol
pes de machado.
Parecia a Freitas que o morto não era uma vi
ctima da fome. Quasi putrefacto se percebia assim
mesmo gordura nos tecidos, gordura que a fome te
ria gasto antes de tudo.
O fazendeiro examinava o cadaver com interesse
quando notou signaes de um crime : um suicidio por
estrangulamento. O pescoço do defunto ainda aper
tava o mortifero laço .
Prescindindo de mais conjecturas, Freitas voltava
á sala pelo corredor quando ao passar pela porta de
um quarto foi vivamente impressionado por um rui
do de vôo que vinha de dentro. Parou, forçou a porta
e entrou no escuro aposento. Uma nuvem de mor
cegos pairava no ar. Freitas vai ás apalpadellas á
porta fronteira guiado pelas estreitas frestas abertas
entre as taboas e por onde a luz se coava descre
vendo linhas verticaes e parallelas. Aberta a porta,
entra a luz em feixes e os cheiropteros deslumbra- .
dos esvoaçam doudamente pelo quarto . A um canto
estava uma rêde armada, que oscillava brandamente
como impellida pelos movimentos respiratorios de
A FOME 61

animal que vive. O fazendeiro se aproxima e não vê


senão uma massa preta a mover-se ; olha com mais
attenção e vê que centenas de morcegos se ennove
lam alli grunhindo. Observa attentamente e com sur
preza divulga encravadas na pretidão da nuvem dois
pontos azues aureolados de branco . Eram olhos, e
olhos humanos. Aproxima-se mais e tocando o pello
dos animaes com a mão procura assim enxotal-os.
Poucos foram os que voaram deixando o repasto de
sangue. Rarefeito o véo negro percebe o fazendeiro as
fórmas de um corpo de creança. Os morcegos agar
rados a elle sugavam o sangue, embora de cheios já
não podessem voar.
Freitas toma a creança nos braços com uma pie
dade paternal. Alguns dos cheiropteros soltaram o
corpo e pesados de sangue arrastavam-se no chão
como reptis ou animaes apteros. Outros mais gulosos
do sabor do sangue e n'um delirio famelico não viam
o fazendeiro, que tomava a indifferença d'elles pelo
mais requintado atrevimento. Pagariam com a vida
os instinctos carniceiros e a audacia.
Manoel de Freitas arrancava os morcegos um a
um e ia- os estrangulando entre os dedos, que a co
lera havia tornado capazes da pressão de uma prensa
hydraulica. O animal obrigado a despegar-se da vi
ctima, raivoso batia com os dentes uns contra os ou
tros, mas era logo esmagado, o corpo sem fórma era
atirado para longe emquanto debaixo da rêde ficava
uma poça de sangue. O ultimo morcego se enchia de

sangue, indifferente á matança dos companheiros ,


*
62 A FOME

agarrado ao labio inferior da menina. Freitas segu


ra-o, mas elle resiste agarrando-se mais com os den
tes á macia carne, que chupava . O fazendeiro em
prega mais força, aperta-o entre os dedos a ponto de
quebrar-lhe todos os ossos de uma vez, do sangue
esguichar por todos os póros, mas o cheiroptero nas
convulsões da morte cravou mais ainda os dentes no
labio da creança. Freitas procura arrancal- o e o ca
daver cede, porém trazendo entre as arcadas denta
rias quasi todo o beiço da menina.
Mortos e em fuga todos os morcegos, o fazendei
ro pergunta a si mesmo que soccorro ha a prestar
áquella creaturinha. Uma só ferida cobria-lhe o cor
po. Já se lhe ouve a agonia. O velho com toda a
piedade assiste á morte da creança que se annuncia
pela frialdade da pelle, pelas ultimas contracções dos
musculos. A vida cessa n'um suspiro, que os labios
entre-abertos deixam passar.
Freitas estava commovido. A frieza do cadaver
chegava-lhe ás carnes impressionando-o desagrada
velmente. Compadecido olha ainda uma vez para a
creança e, deitando-a na rêde, voltou ao rancho.
1

VII

No rancho Josepha e a filha concluiam a tarefa.


Os meninos, depois de repetidas dejecções, dormiam
a somno solto. O kiosque dava-lhes o conforto de
uma excellente sombra e o ar puro dos sitios arbo
risados. Estavam bem alli.
A gomma da carnahubeira enchia uma grande
cuia com uma alvura de neve. Como a tamareira dos
desertos africanos, a carnahubeira nos sertões do Ceará
abriga as caravanas de retirantes á sombra das fron
des e dá-lhes para comer a fecula das hastes no
vas.
O sol já cahia muito para o occaso quando Frei
tas chegou ao rancho. Fervia uma panella de mingau
e Josepha de vez em quando atiçava o fogo, agui
lhoada pelo appetite que o laxante aguçára : depois
64 A FOME

do effeito da agua ferrea, convinha apressar o ponto


do mingau. Freitas louvou-lhe a diligencia e admirou
a quantidade de gomma extrahida de tão pouco pal
mito.
Preparada a refeição, foi servida a todos. Aquella
gomma dava excellente papa e tão sadia como a de
araruta. Arvore utilissima, a carnahubeira desde a
raiz até o pó das folhas é aproveitada pelo homem.
É o boi vegetal.
Manoel de Freitas, cercado da familia, no dôce
conchego da vida intima, sentia-se mais feliz e mos
trava- se mais expansivo n'aquella tarde. Ás lagrimas
succedem os risos como á noite o dia. A sua alegria
resultava da comparação da scena de hoje com a
scena de hontem. O meio era outro e as condições de
vida mais favoraveis. A felicidade consistia alli na
posse da sombra de algumas arvores e em uma ali
mentação muito frugal. Conversavam todos animados.
pelo ar que circumdava livre e purificado pela vege
tação d'aquelle sitio.
Chegou a noite e ainda fatigados da viagem da
vespera e mal satisfeita a necessidade de dormir,
cedo se recolheram ás rêdes.
Freitas fez um fogo valente, que duraria até pela
manhã, e deu depois uma volta para certificar-se de
que estavam sós . Quando voltou, já todos dormiam .
Deitou-se e procurou conciliar o somno, mas a scena
do enforcado impedia-o de dormir, não o apavorando,
porém dando á imaginação o trabalho de muitas ho
ras de conjecturas. Virava-se de um para o outro pu
A FOME 65

nho da rêde parafusando sempre, e nada de somno.


O silencio da noite e a solidão do descampado avo
lumavam-lhe no cerebro a figura horrenda do estran
gulado, cujo olhar mortiço e immovel fitava-se em
suas retinas, muito embora veladas pelas palpebras
somnolentas. Os nervos crispavam-se e os póros em
arripio medroso distillavam gelado suor que molha
va-lhe os cabellos do corpo hirtos pelo calefrio . Aquel
la scena estacionada sempre diante dos olhos come
çava a incommodal-o, a elle que os mais perigosos
transes nunca tinham podido deixar perceber-lhe na
physionomia um traço meticuloso. Contra a visão
que pretendia dominal-o, elle reage abrindo os olhos
e procurando novas e reaes impressões. A sombra
desappareceu, mas quando as palpebras fecharam-se,
eil-a de novo : os olhos do estrangulado a saltar das
orbitas, com uma rigidez de carne petrificada, um
olhar sem vida e luz vêem os seus sentidos.
Um pesadelo, uma allucinação, pensou o fazen
deiro, e dispoz-se a esperar o somno de olhos abertos.
Immovel na rêde, com uma das entradas do kios
que debaixo de vista, continuava a parafusar no en
forcado, quando notou á sua frente o apparecimento
de uma sombra, que interceptava a luz em um es
paço limitado do pavimento do rancho. A imagem
era imperfeita, e a confusão de fórmas não permittia
conhecer o corpo que a projectava.
Freitas não perdeu mais de vista a sombra, que
immovel e sem augmentar e nem diminuir de exten
são, se conservava inteiriça, dando ao logar que oc
66 A FOME

cupava uma mortecôr escura e sem gradações de


tons.
O fazendeiro decidiu-se a fazer um reconhecimen
to, e quando ia levantar-se viu que a sombra caminha
va para si. Ficou immovel e esperou. A sombra con
tinuava a se projectar e a seguir, porém informe,
até que parou , e á entrada do kiosque assomou um
vulto escuro, caminhando lentamente e como um
quadrupede. A atmosphera do rancho de inodora
que era, tresandava a maritacaca, tinha um fedor
que embebedava.

Freitas, por mais attenção que prestasse ao vulto,


não divulgava-lhe as fórmas e muito menos as fei
ções ; não sabia que especie de animal elle era. Pa
recia-lhe onça, raposa ou cão de monturo. O facto é
que elle ou farejava ou espreitava.
O fazendeiro apercebeu a espectativa do bicho e se
lembrou dos famintos. Um homem a andar de gati
nhas no ultimo periodo da fome, a farejar migalhas,
seria possível.
Freitas não perdia um só movimento do vulto, e
com a mão no cabo do terçado esperou.
Elle se aproximou mais e pôde ser reconhecido.
Não era um bicho mas um homem que a fome redu
zira a bicho. Chegado ao centro do kiosque poz-se
de pé. Do chão alevantou-se o esqueleto, que media
mais de um metro e meio, e tinha a tetrica morbi
dez dos espectros. O tronco largo e bem desenvolvi
do mostrava ter sido vestido de uma carnação vigo
rosa, que havia consumido a fome e deixado núas
A FOME 67

as vertebras e as costellas. O espinhaço, como uma


columna de nós, apenas coberto de pelle, deixava eon
tar todos os ossos. A elle se articulava a cabeça, um
pouco mais vestida que uma caveira, com um rosto
esqualido e a physionomia carregada da ferocidade
de animal carnivoro e faminto. Os dentes completos
e de branco esmalte, sem labios mais que os cobris
sem, n'um riso de ironia e mofa, brilhavam em lugu
bres scintillações e mais horripilante tornava-lhe a
figura. O olhar era vago. As pupillas dilatadas quasi
tocavam o disco do iris, que lhes servia de debrum,
e sepultadas no fundo das orbitas davam á caveira
uma expressão de vida, mas de vida de besta. Os
braços se estiravam ao longo do tronco envolvidos
na pelle, que tendo perdido a frescura e macieza,
enrugada e aspera, parecia de amarrotado pergami
nho. As pernas magras, apenas os ossos e um quin
to da musculatura, cambaleavam com o peso da car
ga, pelangas e ossos. O abdomen retrahido e collado
á espinha deixava perceber as cristas dos illiacos e a
fórma da bacia.
Manoel de Freitas, temendo pelo pudor da filha,
cuja virgindade moral se macularia percebendo os
seus sentidos as fórmas de um homem todo nú, le
vantou-se e poz-se á frente do faminto. Aquella nu
dez obscena que o delirio famelico expunha sem re
buço, sem consciencia, mas tambem sem sensualida
de ; a vista de um esqueleto, mas de um esqueleto
com sexo o aterrava, porque iria violentar a castida
de dos sentidos de Carolina. Era necessario retirar
68 A FOME

já d'alli aquelle homem, fazel-o sahir emquanto o


somno da filha, como um véo pesado e negro, cobria
a figura impudica do retirante.
O fazendeiro aproximando- se do faminto fitou- o
com energia e com um gesto ordenou-lhe que sahisse.
O infeliz coçou-se, roeu as unhas com gula e de
sespero, rangeu os dentes, mastigou a saliva e arti
culou com difficuldade --fome― mas em um som
abafado e todo guttural .
Freitas ouviu- o e com um leve movimento mos
trou-se entendido, ordenando-lhe depois com um ges
to ainda mais imperioso que se retirasse .
O faminto não obedecia e continuava a roer as
unhas e a comer as escharas que se desaggregavam
da epiderme. Agora fitava elle o rosto de Carolina
perto de si e completamente exposto e alumiado em
cheio pela luz da fogueira. Percebia os tons d'aquella
carnação, mas com o appetite de besta esfomeada. As
narinas dilatam - se-lhe mais, fareja, procura o cheiro
d'aquella carne sadia na qual tem impetos de saciar
a fome, de resgal- a a dentadas. O delirio augmenta,
0
os musculos das faces retezam-se, relaxam- se, execu
tam emfim uma série de movimentos desordenados, de
contracções espasmodicas e, na esperança de mastigar
V
as faces da moça, o faminto dá um passo para ella,
vacilla, mas depois firma-se melhor nas pernas, que p
cambaleiam .
Freitas se colloca entre elle e a filha, e para in
timidal-o mostra-lhe a faca que lhe aponta ao cora
St
ção. No delirio famelico que o domina, o outro não
u
A FOME 69

vê o ferro nem quem o brande, só enxerga a carne,


que a imaginação lhe mostra sangrenta, e deseja
mordel-a até de todo saciar-se. Mais um passo vacil
lante dá o esqueleto, que não é varado pelo terçado,
porque Freitas pôde retiral-o em tempo.
O fazendeiro comprehendeu que estava na frente
de uma besta humana e procurou ainda dominal-a.
Põe-lhe a mão no hombro, que balança, e indica-lhe
uma das entradas do kiosque com um gesto. Com o
sacalão os ossos do esqueleto rangeram dentro do in
volucro de pelle , mas o faminto nem ouviu e muito
menos obedeceu á ordem.
A frialdade do retirante impressionou desagrada
vélmente o fazendeiro, que retirando a mão tratou
de fazer sahir d'alli aquelle homem, fossem quaes
fossem os meios. N'um impeto de colera e irritado
pela teimosia do bruto, fere-o no ante-braço. O famin
to leva a ferida á bôca e, com uma avidez que desar
ma e commove a Freitas, suga o sangue que sae
do ferimento, mas um sangue quasi incolor como
o dos echinodermes. A sucção era feita com uma
gula infrene. O faminto parecia querer sugar pela fe
rida todos os liquidos do corpo. Nem uma gotta mais
vertendo o ferimento , começou elle a comer as pro
prias carnes !
Freitas com surpreza e magoa notou que o des
graçado se devorava em vida. Era preciso retiral-o
do rancho e procurar alimental-o. Como conduzil-o
se o contacto de seu corpo era tão repugnante como
uma cobra ? Se fedia tanto como uma carniça ? Pôde
70 A FOME

dominar a repugnancia de seus nervos, e largando o


terçado tomou o faminto nos braços e levou-o a
vinte metros do rancho. Ahi deixou-o e voltando ao
kiosque preparou um pouco de mingau, que levou
ao retirante. O infeliz tinha cahido no marasmo de
pois de ter comido as carnes de todo o antebraço.
Agonisava.
O fazendeiro assim mesmo procurou alimental- o ,
mas embalde ; os queixos cerrados não permittiam a
passagem de corpo algum. A morte foi immediata
mente precedida de uma horrivel convulsão. Distendi
dos e contrahidos os musculos em um espasmo vio
lento , em um minuto, a vida cessou com todas as
suas miserias.
Freitas abandonou o cadaver por não poder sup
portar o fedor que elle exalava . Voltou ao rancho,
mas lá a atmosphera tresandava ainda a carniça.
Deitou-se, mas não dormiu . Pela madrugada acordou
a mulher, que deixou de conta da familia, e foi pro
curar esconder o cadaver em alguma gruta.

r
J

VIII

Manoel de Freitas tomou o cadaver do faminto


ás costas e sahiu de matta fóra. O peso da carga era
pequeno para a sua musculatura de acrobata, mas a
repugnancia ao defunto era para elle uma tortura.
A frialdade do morto transia-lhe a carne das espa
doas e se irradiava a todos os nervos do corpo cris
pando-os em um arripio tetanico. O fedor que exha
lava o cadaver nauseava.
O fazendeiro esforçava-se por dominar a excita
ção nervosa, em grande parte augmentada pelas im
pressões do olfato. Quasi esmoreceu e atirou o cor
po ao chão, mas um resto de energia fêl-o triumphar,
e conseguiu chegar á beira de um formigueiro. Abria
se alli uma funda excavação, uma grande toca, um
casarão abandonado de formigas e cujos comparti
72 A FOME

mentos subterraneos a agua de alguns invernos havia


demolido e reduzido a uma só e profunda cavidade.
Freitas achou aquelle logar optimo para descan
ço eterno e atirou á valla o cadaver. Livre da carga,
mas sempre a tresandar a carniça, decidiu-se a ir-se
desinfectar na fonte encantada e para lá seguiu.
Não quiz o caminho da varzea e continuou a romper
a floresta.
Havia amanhecido e a luz do sol não reanimava
aquella vegetação moribunda. Os esqueletos braceja
vam no espaço procurando a luz, que devia alimen
tar-lhes nos tecidos um resto de vida latente, de vi
da de animal hibernante no periodo da lethargia.
As arvores tinham o aspecto dos individuos de
sua raça nos climas frios e no rigor do inverno. Nem
uma folha viva, um gomo, uma bractea ! O panas
co desfeito em pó, era levantado pelo vento e em nu
vens espessas atufava-se na matta. As hastes sar
mentosas das parasitas, quebradas as gavinhas, es
tendidas desenrolavam as espiraes na terra quente,
como serpentes, que adormecidas fossem lançadas no
rescaldo de um forno. Nem um insecto se aquecia
ao sol nascente. A vida animal desapparecera d'aquel
les sitios ; só os infimos sêres talvez habitassem aquel
les logares desolados.
Freitas caminhava somnolento. Duas noites de
completa vigilia a testemunhar scenas commovedo
ras haviam-lhe abalado os nervos. Tinha necessidade
do somno, do modificador por excellencia do systema
nervoso e não devia dormir. Era preciso se prover
A FOME 73

de alimento e repousar algumas horas, mas uma


parcella do dia perdida podia diminuir as probabili
dades de triumphar da fome. Seguia caminho da
fonte, quando, ao passar pela ribanceira de um riacho
sêcco, ouviu alguns gemidos. Parou e pensou logo em
alguma nova desgraça. Os gemidos se repetiram ; to
mando o rumo de onde elles lhe pareciam vir, Frei
tas caminhou. Não foi preciso andar muito para ser
espectador de uma scena terrivel. Um grande lagedo
estirado ao rez do chão, guardado por um grupo de
angicos desfolhados, servia de palco a um drama da
fome. Deitada sobre a pedra, na postura de crucifi
cada, uma mulher tão magra como uma mumia, era
devorada ainda viva pelos urubús. Banquete horrivel !
Como o Prometheu da mythologia, immovel e sem
acção, ella sente rasgarem-lhe as entranhas as garras
e os bicos acerados das aves malditas ! Vivia ainda
quando gulosos urubús, que das alturas devassavam
a terra procurando repasto á fome, vêem-na e des
cem sobre ella.
O crocitar tetrico das aves disputando o melhor
quinhão da presa, seu passo lento e grave, e a vesti
dura negra, como os convivas de um prestito funebre,
aterram a desgraçada, sem forças para reagir, mas
ainda com consciencia para temer sentir, e como o
unico e derradeiro esforço da vontade, que se ani
quila, ella lança um olhar supplice para o céo, um
olhar cuja luz vacillante reflectem duas lagrimas que
tremem entre as palpebras mal cerradas.
Os urubús crocitando sempre, alternando o canto
74 A FOME

pavoroso com pios agudos e longos, aproximam-se da


victima e o banquete começa. Os bicos compridos e
aguçados rasgam o ventre e puxam o intestino que
se desenrola á mercê da gula das aves. As visceras
são arrancadas do tronco e devoradas com gula fa
melica ! Os mais fracos receiam disputar aos compa
nheiros um pedaço de intestino, e , covardes, cercam a
cabeça da victima e lhe vasam os olhos ás bicadas !
Ella vivia ainda ; suas pupillas se fitavam no azul do
céo, quando a luz se apaga de repente e nas agonias
de dôr tão cruciante sente que a vida foge com as ul
timas ondas da do dia que para sempre desapparece
de seus olhos .
Freitas chegou a tempo de ouvir-lhe o ultimo ar
quejo. Enxotou as aves, que voam crocitando com pe
daços de tripa nos bicos pendurados. Voam, porém
pousam logo nas grandes arvores a espreitar a presa .
O fazendeiro procura sepultar os restos da morta
n'uma fenda do lagedo, o que consegue com alguma
difficuldade, e continuou o caminho.
O mesmo céo azul a se arquear sobre um sólo
esteril ! As scenas se succediam n'uma monotonia
crescente. A sequidão da terra a constringir as rai
zes das plantas, que morrem de fome, porque não
têm agua que tire do humus a vida de seus orgãos.
O fazendeiro deixa as tristezas da matta pelas
alegrias da varzea, que, com as verdes carnahubeiras,
tinha os attractivos e a louçania de um oasis resur
gido de um campo torrado pela sêcca. As retinas
excitadas pela luz, que superficies brilhantes refran
A FOME 75

giam, descançavam agora nos massiços verde-escuros


das frondes, que coroavam o vertice dos estipes das
palmeiras. Á sombra do palmeiral, n'um perfeito con
traste com a vida d'aquelle sitio, fervilha uma onda
de famintos carregando agua ou procurando raizes
silvestres para comer. Aquella procissão de esquele
tos n'um formigar incessante, enche de profunda me
lancolia aquelle pedaço de terra ainda fecundo, ain
da habitado. A physionomia dos retirantes tinha uma
gravidade particular ; nas linhas do rosto escaveirado
e macilento se distinguia uma gradação de tons mor
bidos. Não se percebia um traço alegre, uma expres
são de contentamento intimo.
O fazendeiro atravessou a turma de esfomeados e
continuou caminho da fonte. Ainda fedia a carniça.
Para melhor se desinfectar havia colhido alguns fru
ctos de uma sapindacea, o saboneteiro. Estavam sêc
cos ; porém, mesmo assim faziam o effeito de um bom
sabão.
A fonte estava cheia de uma agua tão crystallina
que deixava vêr o fundo da bacia. Ninguem havia
por alli perto. O fazendeiro despiu-se muito á vonta
de. E que o vissem as famintas, não arderiam em
desejos sensuaes, a vista resvalando nas fórmas núas,
na carnação ainda vigorosa do velho. Ensaboou a rou
pa, que deitou ao sol a córar, e fez depois o mesmo
em si. A loção abria-lhe os póros ao ar, tonificava-lhe
os nervos, restaurava-lhe a força muscular gasta em
excesso nas luctas pela existencia. Depois do banho,
Freitas sentiu-se mais novo e mais forte. Enxaguou
76 A FOME

a roupa, que estendeu a seccar. O calor gastaria pou


co tempo em evaporar a agua da vestimenta, mas
não fazer coisa alguma durante esse tempo era es
perdiçar o dia e Freitas aproveitava-o com a maior
usura. Sentia-se disposto e limpo. Um pedaço de sa
bão e uma batega d'agua produzem ás vezes os effei
tos miraculosos de uma resurreição. Emquanto a rou
pa enxugava, o fazendeiro foi á matta proxima e cor
tou uma vergontea forte de jucá, um espeque, que
tratou de aguçar. Tinha necessidade de um instru
mento para cavar a terra e aproveitou aquella ma
deira, rija como o aço, no fazimento de um ferro de
cova.
Preparado o cavador, Freitas vestiu a roupa e le
pido voltou ao rancho. Ia mais moço. A pelle do rosto
tinha menos rugas e os nervos não se resentiam
mais das crispações da noite anterior.
No kiosque a familia, depois da refeição de min
gau, reunida conversava sobre o mau cheiro que se
sentia alli. Alguma carniça perto, pensava Josepha.
Ignoravam as scenas que se tinham passado durante
a noite.
Freitas chegou ao rancho e saudou-os com bon
dade. d
Carolina e os irmãos, com respeito e ternura, bei
jaram as mãos callosas do velho.
Josepha serviu uma copiosa refeição de mingau
ao marido, que, com o appetite aguçado pelo banho, a
comeu em alguns instantes. e
-É preciso começarmos hoje uma farinhada de
A FOME 77

mucunã, Josepha ; eu vou procurar as raizes, emquan


to ficas preparando o necessario para o trabalho,
disse Freitas sahindo de varzea fóra com o machado,
espeque e terçado.
Ia procurar a mucuna lisa, planta tradicional e
figura obrigada de todas as sêccas.
Logo que o fazendeiro entrou na matta, achou a
leguminosa papilionacea que procurava. Estendida ao
sólo, sem orgãos apprehensores e entrelaçada nas gran
des arvores, ella compartilhava da sorte das compa
nheiras : havia perdido as folhas e o viço. Reduzida
ao cipó, sem os verdes foliolos trifoliados e as flôres
roxas de corolla papilionacea, a mucună parecia hi
bernar até que voltasse o inverno.
Freitas examinou a haste da leguminosa e lhe
pareceu ter ella muita raiz. Entretanto o terreno era
de argilla, e de uma argilla tão compacta, que seria
muito penoso revolvel-o, embora em pequena profun
didade. Temeu o massapez pela pouca resistencia do
seu ferro de cova e foi procurar mucuna vivendo em
chão arenoso. Não , lhe foi custoso encontral-a. Ella
parece ter sido semeada por mão previdente. Vegeta
nas Indias e na America, mas sómente nas regiões
assoladas pelas sêccas.
Freitas achou entre outros pés de mucuna, um,
que pelo diametro da haste pareceu-lhe annoso e por
isso rico de raiz. Cavou a rocha, que, de silica, se des
aggregava com facilidade. Meia hora de trabalho a
escarnar a terra onde as raizes da mucună se irra
diavam do tronco lateralmente, e apparece á luz do
*
78 A FOME

dia o thesouro vegetal, avaramente escondido no sub


sólo. N'uma circumferencia, cujo raio media dois me
tros, as raizes dispostas como os raios de uma roda,
unidas pelos bordos, enchiam toda a área com seus
corpos vermelhos.
Freitas estava maravilhado de tanta abundancia.
Mais de duas dezenas de raizes e algumas tão desen
volvidas, que um homem forçoso não podia com uma !
Separadas dos colletos, o fazendeiro, empregando o
espeque como alavanca , virou-as para fóra da cava e
foi conduzindo-as uma a uma para o rancho. O tra
jecto era curto, e por isso pouco depois de meio dia
chegava elle ao rancho com a ultima raiz. Tinha
mais de quinhentas kilogrammas de materia vege
tal, que daria dez por cento de fecula, de uma sub
stancia alimenticia, a gomma da mucunã.
Josepha recebeu mal a leguminosa . A sua pre
sença acordára-lhe na mente adormecidas reminis
cencias ; causára-lhe a mesma impressão que a che
gada do ultimo conviva de um enterro, após a qual
foi-lhe arrancado dos braços o feretro do filho amado.
Freitas via a mucuna por prisma differente. Ti
nha certeza de ser ella muito venenosa e, como tal,
a maior assassina que o Ceará tem tido durante as
sêccas ; mas tambem sabia que a acção toxica póde D
ser modificada ou mesmo destruida segundo o pro
cesso empregado na extracção da fecula. Preparada
por mãos ignorantes é sempre um veneno e nunca
um alimento. Convencido d'isso, dispõe-se a preparal- a
com o maximo escrupulo. Faltavam-lhe, entretanto,
A FOME 79

certos aprestos e entre elles um indispensavel : um


deposito para repousarem as lavagens da mucună.
Era, senão impossivel, ao menos difficil encontrar
aquelle aviamento, sem o qual a extracção da fecula
seria inexequivel.
« Tantas raizes perdidas e tambem o meu tra
balho ! » pensou Freitas. Não podia-se conformar com
a idéa d'aquelle prejuizo. A inacção para elle era um
crime, quando havia necessidades a prover. Se fosse
possivel obter o vaso de que precisava á custa mes
mo de uma fadiga de horas, se resignaria a soffrel-a,
mas por maior que fosse o esforço não poderia adqui
ril-o com a presteza do momento.
O dia seguia o curso e Freitas via pezaroso o sol
descambar para o occaso, e com elle a esperança de
remediar-se a falta do aviamento. Estava resolvido a
perder as raizes quando teve uma idéa que julgou
salvar a situação : havia uma casa proxima, a do en
forcado, e n'ella aviamentos de farinha. Dois kilome
tros era a distancia a vencer, e sem mais reflectir o
fazendeiro pôz-se a caminho.
Josepha não tirava os olhos da tulha de raizes.
A partida do marido convenceu-a de que elle havia
resolvido as difficuldades, e pezarosa esperava que elle
voltasse.
Freitas fez a viagem com incrivel rapidez. Sua
mulher ainda se conservava na mesma posição fitan
do a mucunã, quando elle assomou na extremidade
da varzea. Vinha com passo firme, apesar da carga
que trazia ás costas. Achára o indispensavel á fari
1

80 A FOME

nhada, um grande cocho de mulungú, que na casa de


farinha abandonada servira outr'ora nos dias festivos
da desmancha para aparar a manipoeira, que corria
da prensa. O cocho tinha uma capacidade de duzen
tos litros.
O fazendeiro alijou a carga perto do kiosque e
entrou no rancho. A familia ia tomar a segunda re
feição de mingau, uma papa sadia e nutritiva, mas
á custa só da qual não se podia viver. Uma alimen
tação aquella que, embora copiosa, não dispensava o
organismo de gastar as reservas reparando as perdas
dos tecidos. Assim em breve estariam inanidos e mor
reriam á mingoa de alimentos plasticos.
Os conhecimentos de Freitas eram resumidos ,
nada sabia de physiologia. Para elle a vida se man
tinha á custa de qualquer alimentação. Pensando
assim, a mucună era a mais util de todas as plantas
indigenas.
Tudo preparado para a extracção da fecula, Frei
tas deu começo ao trabalho. As raizes seriam primei
ramente reduzidas a massa, o que fez com muita in
telligencia e facilidade machucando-as a cacete sobre
um plano de pedra. Em pouco tempo estava conclui
do o primeiro processo. As fibras vegetaes foram de
pois lavadas e as lavagens postas no côcho, afim de
se depositar a fecula em suspensão n'agua. O vaso
transbordava de um liquido vermelho, côr que lhe
havia communicado um principio córante da raiz.
O fazendeiro deu por concluida a tarefa, deixando
as outras lavagens da fecula para o sol vindouro .
A FOME 81

O dia findava-se, as ondulações crepusculares es


moreciam nas cristas dos outeiros, e as sombras, se
elevando da terra, em breve dominariam tudo.
Freitas estava morto de somno. A claridade baça
do pôr do sol e a mornidão da natureza quasi n'um
desmaio, incitavam o descanço, a quietação. O fazen
deiro quasi não podia suspender as palpebras. A ne
cessidade que tinha de dormir era invencivel. Aos co
xillos e tropeções preparou lenha para a fogueira e
voltando ao rancho disse á mulher :
-Vou dormir. Tu ficarás de guarda ; á meia
noite me acorda.
r
IX

Josepha cumpriu fielmente a ordem do marido.


Sentada na rêde, de onde só levantava-se para atiçar
o fogo, rezava com um grande rosario de contas de
côco.
Freitas dormia a somno solto. Duas noites de vi
gilia e um dia de pesada lida tinham-no amarrotado.
Á meia noite pouco mais ou menos, Josepha des
pertou o marido com muito trabalho.
O fazendeiro parecia em syncope, tão profundo
era o somno. Ouvia a mulher chamal-o, comprehen
dia a necessidade de acordar, mas tão agradavel
era-lhe a quietação do leito, tão salutar o descanço
aos membros fatigados, que foi preciso grande esfor
ço para se erguer da rêde. Finalmente, depois de al
guns sacalões, Freitas levantou-se gemendo de somno,
84 A FOME

e a mulher rendida da sentinella deitou-se immedia


tamente para dormir.
O silencio dominava tudo ; apenas de vez em
quando ouvia-se a aragem da madrugada farfalhar
nos verdes leques das carnahubeiras .
O fazendeiro acocorado junto ao fogo, ainda
somnolento, olhava os tições roídos pela labareda,
cavando o passado. Pensava na fortuna perdida e na
sorte dos filhos . A sêcca e a emigração trouxeram-lhe
mui logicamente a idéa da mucunã. Rediviva ella ,
Freitas levantou-se e foi ter ao côcho. Todas as ma
terias solidas estavam depositadas. A claridade da
fogueira deixava vêr a agua ligeiramente córada de
rosa.
O fazendeiro para ganhar tempo decantou o li
quido e ficou surprehendido da quantidade de sedi
mento. Uma massa côr de carne enchia mais de
metade do côcho ; era a gomma de mucuna ainda
imprestavel aos usos da vida, porque só havia sido
lavada uma vez e deveria sel-o nove, afim de se des
pojar nas repetidas lavagens do principio venenoso
associado á fecula. Era necessario nova agua e antes
de amanhecer seria impossivel carregal-a.
Freitas esperava a manhã passeiando em derre
dor do rancho tonificando os musculos com as liba
ções sadias, que os pulmões faziam do puro ar do
campo. Sentia-se alentar com aquellas inspirações,
inspirações tão profundas que chegavam-lhe até ás
ultimas ramificações bronchicas. Tinha restaurado as
forças gastas pela lida e vigilia.
A FOME 85

O fazendeiro continuava a pensar no passado,


quando a viração do norte traz-lhe, entre outros sons,
um que devéras o impressionou : era o tilintar de
chocalhos. Todo ouvidos ao rumo de onde vinham as
ondulações sonoras, percebia outros sons, e novos ho
risontes mentalmente descortinava. A idéa de um
comboio associou-se logo á da volta de Ignacio da
Paixão. Era possivel ser elle o comboieiro arranchado
alli com os viveres comprados em Fortaleza. Conven
cido da possibilidade de se encontrar com o primo,
prestava toda a attenção aos rumores que o vento
trazia. O tilintar dos chocalhos se misturava agora
ao som de uma confusa vozeria alternado com o
echo de gemidos e prantos. As ondas sonoras vibra
vam n'aquelle meio elastico em uma confusão de ba
rathro, impossivel de diapasão.
Freitas pretendia ouvir o tinir de ferros em re
nhida lucta. Ignacio da Paixão sem duvida estava
sendo atacado pelos famintos e corria perigo o pão da
familia. Cumpria-lhe o dever de ir em soccorro, e,
despertando a mulher e filha, deixou-as de guarda ao
rancho e partiu de terçado em punho para o logar
onde lhe parecia travado o conflicto. Seguia para o
extremo da varzea ao norte. A lua já pendida para
o poente alumiava com feixes de argentina luz a
natureza completamente adormecida.
Freitas ia com pressa. A vozeria tornava-se mais
audivel e os sons cada vez mais distinctos ; perce
biam-se já as palavras, umas de supplica, outras de
ameaça.
86 A FOME

O fazendeiro poucos minutos gastou para lá che


gar e se inteirar de tudo .
Uma grande área coalhada de famintos de todas
as idades e soffrendo o supplicio de Tantalo foi o que
Freitas encontrou . Mais de mil infelizes magros e es
farrapados, cercando a distancia um comboio de vi
veres, pediam aos comboieiros punhados de farinha
para matar a fome .
O fazendeiro condoído dos desgraçados indagou
d'elles o que faziam alli. Disseram-lhe que espera
vam que o freteiro se compadecesse d'elles e distri
buisse ao menos uma sacca de farinha das vinte do
governo que levava para o interior da provincia ; que
o freteiro os tinha já maltratado esmurrando alguns,
mas que a fome os prendia áquelle sitio .
O fazendeiro espreitou o comboio e ficou conven
cido de que os generos. eram do governo ; as saccas
tinham a marca S. P. (soccorros publicos) ; eram tres
os freteiros, e pelas palavras e gestos estavam dispos
tos a levar os retirantes a murro e a ferro.
Freitas pensava no desenlace d'aquella scena já
a poucos metros dos freteiros, quando uma retirante
se aproxima d'estes e de joelhos apresenta o filho,
uma creancinha a expirar de fome, e pede um pouco
de farinha pelo amor de Deus. Uma bofetada tre
menda dada por um dos comboieiros fal-a rolar no
chão por cima do filho.
Freitas, indignado com aquelle acto de barbaria,
decide-se pelos infelizes e se prepara para luctar. En
tre todos aquelles retirantes muito poucos encontra
A FOME 87

ria com forças para auxilial-o ; sem contar muito com


o valor d'elles vai á matta proxima e volta armado
de cacete e terçado .
O freteiro vociferava contra os famintos amea
çando de leval-os á faca se persistissem em matar a
fome com os generos do governo.
Freitas não esteve pelas ameaças, e, atravessando
a turbamulta, põe-se rosto a rosto com os freteiros
e pergunta-lhes :
Com que direito esmurram estes infelizes ?
Os comboieiros surprehendidos com a ousadia de
Freitas e com sua attitude energica e ameaçadora,
desembainham as facas, e responde-lhe o patrão qua
si convencido da derrota do fazendeiro :
-Não espanco ninguem, garanto è defendo os
viveres, que me foram entregues e pelos quaes sou
responsavel.
As palavras de Freitas acordaram nos famintos
um resto de energia, um ultimo esforço da vontade,
e a onda de creaturas immoveis e supplices moveu
se na direcção dos contendores. A multidão se evo
lucionava, seguia movida unicamente pelo instincto
da conservação. Todos avançavam tendo em mira a
farinha defendida pelos comboieiros. Os mais fortes
vociferavam contra os freteiros ; os mais fracos os se
guiam tambem, mas de gatinhas ou de rastos como
reptis. Depois de uma marcha de minutos, uma con
fusão infrene, como se delirio famelico houvesse
accommettido a todos e allucinado, tornava mais re
volta a onda dos famintos, que se movia sempre
88 A FOME

ao som de gritos, gemidos e prantos . Em crescente


allucinação seguiam, acotovelando-se ; os que sem for
ças cahiam, morriam pisados ou asphyxiados em uma
atmosphera quasi solida, quasi poeira.
O fazendeiro comprehendeu o perigo que os amea
çava. A sua voz havia levantado um exercito de es
fomeados, que uma vez em operação ninguem mais
immobilisaria. Não viam senão o alimento e não ou
viam palavras que não fossem estas : avancemos á
farinha, que é do rei e tambem nossa -
.
Freitas, receioso de ser envolvido na onda e obri
gado depois, para salvar-se, a abrir caminho com o
terçado , dispoz - se a ultimar com o freteiro as suas
negociações :
-O perigo está imminente ; se prezam a vida
abandonem o campo.
-Miseravel , amotinaste o povo e agora me acon
selhas a fuga, disse o patrão n'um impeto de colera,
se lançando com os companheiros sobre o fazendeiro
para feril-o .
Freitas, que jogava cacete com muita destreza e
arte, esperou a aggressão e antes de alcançarem-no
as facas dos comboieiros, como uma intimação ao dono
do comboio desarmou-o com um golpe n'um abrir e
fechar de olhos. Aquelle acto de bravura intimidou
os freteiros, que, temendo mais a colera e o terçado
de Freitas do que o prejuizo de metade do frete dos
viveres, cederam o campo já á ultima hora, quando
as bestas de carga, que perto do rancho comiam a
ração de alfafa, espantadas com o motim e medrosas.
A FOME 89

do cêrco que mais e mais se apertava, dispararam de


varzea fóra.
A carreira dos animaes foi um desastre para a
multidão que se agrupava em derredor do rancho.
As bestas perseguidas pelos freteiros corriam desem
bestadas deixando na massa compacta de famintos
um grande claro. Dezenas de infelizes, com os mem
bros fracturados pelas patas dos animaes, rolavam
no chão estorcendo-se em dôres atrozes.
Manoel de Freitas, surprehendido com o triste in
cidente e vendo que o cêrco não tardava a se resta
belecer, sahiu pelo caminho que as bestas tinham
aberto. Custava-lhe supportar o cheiro que sahia dos
famintos. Aquella atmosphera era quasi irrespiravel.
Antes do fazendeiro vencer o acampamento, era o
rancho invadido pelos famintos. Uma algazarra horri
vel ouvia-se e era repercutida ao longe pelos mais
proximos outeiros.
Travou-se uma lucta tremenda, uma briga de fe
ras esfomeadas sobre um minguado repasto. Os vive
res seriam dos mais fortes e não dos mais necessita
dos. Os que podiam aggredir eram em muito peque
no numero. Tomaram conta das saccas, que abriram,
e começou a lucta. Os mais esfomeados precipitavam
se sobre a farinha com uma gula e teimosia para as
quaes não havia opposição possivel. Eram repellidos
a empuxões, a murros ; cahiam, mas voltavam de
gatinhas gemendo ou praguejando. Não havia meio
de debandal-os. Os que sustentavam a peleja não tar
dariam a enfraquecer, pois os fracos eram cem vezes
90 A FOME

mais. As turmas de famintos augmentavam e a con


fusão crescia sempre. A victoria seria do mais forte,
e entre os que defendiam os viveres travou-se umą
lucta, mas uma lucta impossivel de termo. Pelejavam
corpo a corpo. Não se ouvia o tinir de um ferro, mas
percebia-se que as carnes dos luctadores eram rasga
das a dentadas. Emquanto os contendores rolavam
no chão ennovelados n'um amplexo fratricida, o sitio
foi invadido pela onda que avançava sempre, e com
uma gula difficil de descrever comiam a farinha a
mãos cheias. Freitas observava compungido aquella
lucta pela existencia. Lembrou-se ainda de pôr termo
a ella, mas como, se no delirio famelico embota-se o
senso intimo e homem fica reduzido a bruto , a ani
mal carnivoro, e que se vê faminto ? Havia alli uma J
multidão de homens em tudo semelhantes a uma
manada de porcos esfomeados a disputar o maior "
quinhão da ceva.
Manoel de Freitas deixou-os e voltou ao rancho .
A luz crepuscular em ondulações suaves chega
va á terra. No oriente alguns nimbos azues franja d
vam-se de ouro, precediam o sol, que não tardaria a
assomar com o seu disco luminoso.
O fazendeiro entrou no kiosque . Reinava alli a el
paz da vida tranquilla. As creanças dormiam ainda. Sa
Freitas olhou-as com ternura e foi cuidar da mucu
nã. Era preciso agua para lavar ainda oito vezes o q
sedimento ; tomando as borrachas seguiu para a fonte.
Todo esse dia gastou elle em carregar agua para as
lavagens da fecula. Ao pôr do sol tinha concluido o ell
A FOME 91

trabalho. A substancia alimenticia extrahida da mu


cunã, depois de lavada nove vezes, ficou depositada
no fundo do cocho sob fórma de uma massa côr de
rosa. No outro dia seria sêcca ao sol e então utilisa
da como alimento.
A noite passou-se sem incidentes.
Pela manhã o fazendeiro, depois da refeição de
mingau e de ordenar á mulher que pozesse a gomma
a seccar, sahiu a explorar a varzea. Os acontecimen
tos da madrugada pintaram-se-lhe na imaginação, e
elle se dirigiu ao rancho dos freteiros do governo.
Consummava-se alli o drama da fome. Na arena da
lucta mais de trinta cadaveres apodreciam ao sol e
serviam de repasto a centenas de urubús, que, em lu
gubre crocitar cevavam-se n'aquelle repasto de podri
dão. Nem um fragmento de farinha misturado á ar
gilla do sólo ! Freitas olhou compungido para os restos
mortaes das victimas da fome e continuou o seu ca
minho. Andou por toda a varzea, passou por quasi
todos os ranchos e nada viu entre os retirantes que
denotasse pezar pela morte dos parentes ou compa
nheiros.
O fazendeiro entrou na matta, na esperança de
encontrar alguma caça, carne de algum animal de
sangue vermelho que restaurasse-lhe as forças de
pauperadas pela alimentação de gomma. Não sabia
que o homem não póde viver se alimentando exclu
sivamente de carne, assucar ou gomma, mas por ins
tincto procurava carne para comer, como sentindo que
ella estava fazendo-lhe falta ás funcções e conserva
8
92 A FOME

ção dos orgãos. Errou pela matta e nada encontrou


para se alimentar. Despovoada e solitaria, tinha ella
um aspecto desolador. Nem um insecto, uma revoada
dos verdes papagaios, que cantarolavam outr'ora pou
sados nas frondes das palmeiras. O pastio torrado
parecia ter sido lavado por uma inundação de lavas
e tinha agora ares de uma solfatára. Ao tronco das
arvores o vento havia encostado medas de capim
sêcco. O sol tostára tudo ! A terra coberta de uma
floresta de esqueletos, com os tons da tristeza, vestia
se de uma expressão lutuosa e desoladora, e além o
seu perfil sombrio esbatia-se na transparencia do fir
mamento azul, todo nú e sereno, como a superficie de
um lago tranquillo. Nem um vivente n'aquelle sitio !
As proprias aranhas caranguejeiras recolhidas ás tocas
morriam de fome, não sahiam mais a caçar os inse
ctos, que tinham morrido ou emigrado.
Cançado de vêr tantas tristezas, Freitas voltou á
varzea. Antes, porém, de sahir da matta, foi surpre
hendido com estas palavras :
-Passageiro, soccorrei-nos pelo amor de Deus.
O fazendeiro parou immediatamente e procurou
quem lhe fallava. Á direita, por traz de um tufo de
cactaceas, viu um rancho de retirantes e para lá se
guiu um casal de emigrantes com seis filhos, todos
menores, tostados do sol e magros, fugiam da sêcca, I
quando alli uma desgraça sem nome surprehendeu-os
e fêl-os parar. O chefe da familia, percebendo que
Freitas se aproximava, ajoelhou-se e com as mãos
supplices a elle se dirigiu :
A FOME 93

Valha-nos pelo amor de Deus, irmão.


Levante-se, meu filho, disse-lhe o fazendeiro
pegando-lhe no braço e fazendo - o levantar. O que
deseja de mim ?
É mui grande a nossa infelicidade, meu bom
senhor. Ha tres dias chegamos aqui e nos arrancha
mos. Iamos para a capital afim de escapar da fome.
No primeiro dia de rancho passamos sem comer nada ;
no segundo dia era quasi ao pôr do sol e os meni
nos desde manhã que choravam com fome ; afflicto,
quasi desesperado com o soffrimento d'elles sahi pro
curando com que alimental-os, e aqui bem perto do
rancho encontrei uma planta trepadeira muito delica
da, com a rama verde e em flôr, vivendo bem n'esta
sequidão e á sombra de um balseiro de macambira.
Em nada pensei : atirei-me a ella com sofreguidão
para arrancar-lhe as folhas e leval-as ao rancho para
a familia comer. A um dos cipós veio agarrado um pe
daço de batata. Alegrei-me, abria-se uma fonte de re
cursos naturaes que nos garantiria a vida. Escarnei a
terra com as unhas, e tirei todas as batatas sentindo
no meu estomago a fome de todos os meus filhos.
Chegando ao rancho não perdemos tempo em cozi
nhal-as e comel-as. Sua massa era côr de carne, o sa
bor suave e adocicado, e os tecidos de uma macieza
que muito agradava o paladar. Comemos até a sacie
dade. Á noite dormimos sem incommodo algum. Ne
nhum de nós suspeitava que na doçura do alimento,
que tomamos, se mascarasse o mais horrido veneno.
Acordamos pela manhã e já a mim e a alguns de
*
94 A FOME

meus filhos não foi permittido mais vêr a luz do dia !


Quasi enlouqueci ! Chamei minha mulher em meu
soccorro, mas ella, tão desgraçada como eu, não me
ouvia : estava muda e surda ! Dos filhos, o menor es
tava paralytico ; emfim não havia um de nós que não
tivesse perdido um dos sentidos ! Agora, senhor, que a
historia de nossa desgraça não lhe é estranha, deixe
que lhe supplique piedade para estes innocentes. Le
ve-nos ao primeiro povoado, que fica d'aqui a cinco le
guas, e ahi nos deixe entregues á caridade publica .
Compadeça-se d'estas creanças nascidas e acostuma
das aos gozos da abastança e que pela primeira vez
sentem o frio da desgraça !
- Eu os levarei commigo, meus filhos ; podem crêr
que os não abandonarei.
O fazendeiro conduziu o cego com a familia ao ran
cho, seriamente preoccupado com tão horrendo facto.
Aquelle acontecimento, entretanto, não lhe era estra
nho ; crescera ouvindo o pae contar factos estupendos
e semelhantes, episodios contristadores durante as
fomes de que fôra contemporaneo. Em sua cidade
natal conhecera duas mulheres, já velhas, uma cega
e a outra muda e surda, que haviam perdido aquelles
sentidos na sêcca de 1825 , depois da refeição de
umas batatas tambem vermelhas e vivazes . Não havia
duvida que era um vegetal semelhante, e cuja acção
se fazia directamente sobre os centros nervosos ; tal
vez um grande agente therapeutico para combater as
nevroses até hoje incuraveis.
Freitas, chegando com os hospedes ao rancho, deu
A FOME 95

lhes todo o agasalho que lhe permittiam seus recur


f SOS.
Ás seis horas da tarde o fazendeiro preparou a
fogueira, e com a familia e hospedes se recolheram
ás rêdes para dormir algumas horas.
Á meia noite em ponto Freitas acordou e deu
signal de partida. Difficil foi despertar as creanças,
que, somnolentas, se levantavam e tornavam a cahir
no leito. Depois de algum trabalho conseguiram pôr
a caravana a caminho em rumo do norte. Na mais
proxima cidade, a cinco leguas da Varzea do Meio,
devia fazer ella estação .
1

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WisaSAJ,)AVE
X

A caravana chegou ás portas da cidade ao clarear


do dia.
A estrada estava deserta ; nem um passageiro
encontravam e não ouviam o trinar de uma ave. As
arvores despidas de folhas, reduzidas aos esqueletos,
enfileiradas nas orlas do caminho, parecia que abriam
alas a um prestito funebre. A briza que ciciava não
trazia um perfume : movia uma nuvem de pó impal
pavel que atirava aos olhos dos viandantes, ou na ins
piração levava aos bronchios e irritava-os.
A ala esquerda dos vegetaes foi rareando até dei
xar na linha um grande claro. Esta parte da avenida
cortava um dos flancos da cidade, edificada em ter
reno muito accidentado e composto de rochas de ar
gilla.
98 A FOME

A luz já permittia apreciar a tortuosidade das


ruas, todas de casas terreas e de taipa . Os telhados
ennegrecidos pelo tempo serviam de tela ás poucas
frentes caiadas que se destacavam d'aquelle panora
ma côr de barro. Os passeios das casas acompanha
vam as sinuosidades das ruas, fazendo uma curva
em cada esquina, que era marcada por um esteio de
aroeira fincado abaixo do cordão da calçada. No cen
tro destacava-se um edificio, cujas fórmas brancas
tornavam mais saliente a côr azul do céo : era a ma
triz, que, edificada contra as leis da architectura mo
derna, tinha o cunho portuguez, e, documento do es
tylo, attestava a arte lusitana de pouco mais de um
seculo . Uma pesada massa de alvenaria formando um
quadrilongo enfrentado por duas torres e um frontis
picio triangular, tendo no vertice do angulo superior
uma cruz de ferro, eis o templo.
No centro do triangulo, que era decorado com
uma sanefa azul, via-se um quadro em relevo e mui
to original : uma personagem biblica, o anjo do sacri
ficio, cujo esboço havia sido feito pelo cura de então
e dado ao esculptor, que em esthetica com elle podia
correr parelhas. Da ignorancia das regras d'arte re
sultou a originalidade do quadro ; o anjo do sacrificio
manifestava perfeita discrepancia nas proporções do
thorax e membros superiores e inferiores. As enormes
azas de corvo presas em parte na tunica branca esti
raçada pelo volume de um abdomen obeso, faziam
contraste com os braços, cujo humero tinha mais de
duas vezes o comprimento do antebraço . As mãos
A FOME 99

terminavam-se, uma por cinco e outra por seis dedos,


todos iguaes, segurando um calice, que em attitude
supplice o anjo offerecia ao céo, mas seu olhar estra
bico não correspondia á postura e muito menos aos
traços physionomicos, que reunidos davam ao rosto
uma expressão de ferocidade perceptivel á primeira
vista.
Manoel de Freitas, logo que avistou a matriz, en
caminhou para lá a caravana.
A cidade tinha um aspecto lugubre ! As portas
estavam fechadas e nos passeios das casas dormiam
ainda os infelizes, que a fome fizera emigrar. No tra
jecto até á igreja encontraram dezenas de corpos es
tirados a fio comprido nas calçadas, avassallados pelo
somno ou vencidos pela fome.
Freitas, chegando ao adro da matriz, prostrou-se
com os companheiros diante do cruzeiro e depois
oraram por algum tempo. Levantaram-se e o fazen
deiro ficou surprehendido vendo tanta miseria alli
reunida. A turma dos famintos começava-se a mo
ver-se. Havia n'ella creaturas de todas as idades. A
magreza de todos era extrema ! Não se via um ros
to que não fosse uma caveira, um corpo que não
fosse um esqueleto !
Era dia, mas ainda era a luz crepuscular que em
ondulações suaves se transmittia ao ether e alumia
va a terra. A maioria dos famintos sentada no adro
esperava raios mais vivos do sol, que impressionando
lhe mais a retina dissipassem a cegueira nocturna, a
hemeralopia.
100 A FOME

Voltados para o oriente affligia vêl-os de olhos ex


tremamente abertos, as pupillas muito dilatadas a es
perar a luz, a luz que em excesso e reflectida por
superficies brilhantes cegou-os, impossibilitou a reti
na de funccionar quando na terra ha pouca clari
dade.
N'aquella onda maltrapilha e esfomeada, que re
volvia-se como os vermes da podridão, havia dôres
cruciantes, mas que não podiam ser todas percebidas ;
não havia n'elles mais sensibilidade moral para ava
lial-as. O senso intimo havia-se embotado e com elle
a maioria das faculdades d'alma. As mães aleitavam
os filhos ou fingiam aleital-os , pois os murchos peitos
nem mais uma gotta vertiam . As mamas reduzidas
a pelangas, presas nas costellas, com os mamillões
atrophiados, assim mesmo eram sugadas pelas crean
ças com uma avidez famelica ! Os vagidos dos filhos
desalentados por não encontrarem uma gotta de leite
irritava-as em vez de commovel-as ; irritava - as a ma
madura anormal, porque produzia-lhes um frenesi
que as desesperava e que em parte era excitado pela
presença do sangue, um sangue côr de salmoira, sa
hido dos orificios dos mamillões e que tingia os la
bios dos pequeninos.
As mães não têm mais uma lagrima para lasti
mar os filhos ; avaras de sangue que elles tiravam
lhes dos magros seios, arrancavam-lhes com impeto
feroz da bôca o murcho peito como se desarmassem
um assassino que tentasse contra a existencia d'ellas !
O sol chegava e nem por isso a luz reanimava-os !
A FOME 101

Apenas a dilatação das pupillas permittia a entrada


de maior somma de raios luminosos, a impressão
mais viva da retina e portanto a dissipação da ce
gueira, que voltaria de novo quando o sol esconder
se no horisonte.
A luz vinha, mas não podia tonificar-lhes os mus
culos depauperados pela inanição, relaxados pela ato
nia, pela fome ! Nas physionomias macilentas perce
biam-se as torturas impostas pela profunda dyscrasia
do sangue. A miseria e os dias de jejum gastaram
as reservas nutritivas accumuladas no organismo, co
meram os globulos vermelhos do sangue, e, uma vez
desapparecidos estes da corrente da circulação, o li
quido nutritivo desfibrinado perdera uma das quali
dades mecanicas, a densidade, e a vida tornou-se
penosa e afflictiva.
O apparelho digestivo redobrava de esforços, gas
tava as forças em digerir a mucunã e outras raizes
silvestres, para depois assimilar algumas grammas de
um producto pouco alimenticio e ás vezes venenoso.
Os famintos foram pouco a pouco se levantando
do adro da igreja. Os seus movimentos eram morosos.
Os musculos tinham perdido a agilidade, a força, tor
nando assim difficil a locomoção. Não era sómente o
abatimento muscular que os privava de caminhar de
pressa, era o desfallecimento que sentiam estando
mesmo em repouso. Caminhavam, mas com que sa
crificio ?! Quanto lhes custava procurar as migalhas
que lhes prolongariam um pouco aquella vida de
miserias, de afflicções ?! A marcha era vagorosa, e
102 A FOME

ainda assim uma respiração offegante lhes dilatava


as narinas, o thorax crescia e diminuia de volume
mais de trinta vezes em um minuto, augmentando
lhes a fadiga, desalentando-os mais !
N'aquelles organismos a desordem era completa .
O coração, que a pouca densidade do sangue, a abun
dancia de leucocytos tornára irregular e tumultuoso,
os affligia com soffrimentos atrozes. A systole e dias
tole eram incompletas, accelerados os movimentos do
motor da circulação, as valvulas funccionando mal,
deixavam refluir em parte a onda sanguinea, já bas
tante reduzida, determinando a anemia do cerebro,
causando vertigens, fortes zumbidos nos ouvidos, que
os flagellava a todos os instantes . Por cumulo de in
felicidade não era pequeno o numero de infelizes que
se aproximavam do termo da cruel jornada. A ana
sarca, consequencia immediata d'aquella vida de fome,
chegava como a ultima tortura. Entre os famintos
conheciam-se os enfermos d'aquella molestia pelo as
pecto ainda mais triste e doentio das physionomias.
Marchavam com passo lento, pois os membros infe
riores infiltrados pesavam como chumbo, e ainda por
excesso de carga sustentavam um abdomen obeso,
mas obeso d'agua, que em tempo deixou de ser eli
minada.
E como era repugnante o aspecto da pelle dos
famintos ! As funcções da epiderme profundamente
alteradas modificavam as qualidades physicas do in
volucro cutaneo, tornando-se improficuo contra aquel
le estado physiologico o maior asseio. A pelle, de lisa
I

A FOME 103

que era, se tornára aspera e suja ; desaggregavam-se


escharas de tamanho irregular, ao mesmo tempo que

uma secreção fetida distillavam os póros !


Á proporção que no adro da igreja moviam-se os
retirantes, mais se impressionava o olfato com o mau
1 cheiro que exalavam seus corpos sujos e vestidos de
nojentos trapos.
Freitas, pasmado diante do quadro que tinha á
vista, deixou a matriz e foi com os companheiros pro
curar a commissão de soccorros publicos.
XI

Manoel de Freitas não precisou que lhe disses


sem onde era a commissão de soccorros publicos. Se
guiu com a caravana acompanhando o lento cami
nhar do prestito da miseria. Mais de trinta minutos
levaram para vencer uma distancia de cem metros.
As portas das casas começavam a se abrir e os
habitantes ainda somnolentos olhavam com indiffe
rença o cortejo de mendigos que pelas ruas desfilava.
Um pouco mais nutridos do que os retirantes, com
tudo os seus rostos, de uma côr mortiça, attestavam
de um modo vehemente a pobreza da mesa. Muito
raros eram os que tinham physionomia sadia.
A turba dos famintos parou em frente á casa do
vigario, que, embora fosse uma das habitações me
lhores da cidade, comtudo não se podia dizer confor
106 A FOME

tavel. Os retirantes ahi fizeram alto e sentaram -se na


rua esperando que se distribuisse a ração. A sua im
paciencia percebia-se em todas as linhas do rosto. A
fome roía-lhes o estomago, que não podia-se habituar
com tão grande jejum. Uma febre nervosa exaspera
va-os sem comtudo se denunciar pela temperatura da
epiderme, que profundamente alterada se conservava
fria . O calor do sol não os aquecia, nem uma gotta
de suor eliminavam os póros ; os liquidos se accumu
lavam como elemento necessario a um estado morbi
do que se accentuava .
Eram já nove horas da manhã e a ração não che
gava. Os famintos resignavam-se com a demora, por
que não tinham forças para reagir. Gemiam, suspira
vam , porém não blasphemavam. As lagrimas ou
haviam seccado, ou desviadas de seu curso seguiam
caminho diverso . De quando em vez os mais esfo
meados erguiam-se e olhavam de esguelha para a
sala do padre. O cura se conservava sentado a lêr o
breviario. Sentavam-se outra vez e procuravam illudir
a fome roendo as unhas ou comendo as escharas, que
se desaggregavam da epiderme.
Manoel de Freitas, que havia mais de tres horas
esperava que ò vigario distribuisse os soccorros pu
blicos, foi-se impacientando e guiou a caravana á
porta do cura.
A obesa figura do padre fazia um contraste per
feito com a magreza dos retirantes. Repotreado em
uma cadeira de braços de espaldar de sola, lia com
muita calma. Nas pausas da leitura lançava um
A FOME 107

olhar de piedade para um crucifixo, que a poucos


passos pendia da parede, e, carregando depois os so
brolhos, olhava de soslaio os retirantes que o esprei
tavam.
Freitas havia chegado á porta precisamente
quando o cura concluia um periodo. Christo teve,
como das outras vezes, um olhar supplice e terno, e
o fazendeiro recebeu uma olhadella de tedio e repre
hensão.
Freitas não desacoroçoou e continuou de pé im
pedindo um pouco a luz, que penetrava na sala só
mente pela porta em que se havia postado.
O fazendeiro esperava impaciente que o padre o
fitasse outra vez para dirigir-lhe a palavra ; mas em
balde, as paginas do breviario não tinham mais pon
tuação. Sabia que elle continuava a lêr, porque de
quando em vez a mão gorda e cabelluda até ás pha
langetas volvia as folhas do livro e com tanta pre
guiça, que deixava distinguir os caracteres vermelhos
dos pretos. Eram já dez horas e não havia esperança
de termo á leitura e nem de um periodo com
ponto.
Freitas não se conteve adiantou-se para o sa
cerdote. Mal a sombra do fazendeiro lança na pe
numbra o corpo obeso do cura, este marcando bre
viario com o index, olha-o com severidade e desdem,
dizendo -lhe ao mesmo tempo :
Entrou, perdeu a ração.
E depois de olhar com piedade o crucifixo conti
nuou a lêr.
9
108 A FOME

Sou passageiro, senhor ; trago em minha cara


vana uma familia de cegos que encontrei a morrer
de fome nos caminhos, e desejava deixal-a debaixo da
protecção de v. rev.ma, disse Freitas.
O vigario fez que não ouvia e continuou a lêr.
O fazendeiro, exasperado com a indifferença do
padre, teve impetos de arrancar-lhe o livro da mão e
obrigal-o a attendel-o . Conteve-se, e resignado espe
rou o desfecho d'aquella entrevista.
Meia hora ainda levou o padre a lêr ; depois le
vantou-se, poz as mãos sobre o peito, fitou com hu
mildade o crucifixo e persignou-se com recolhimento.
Freitas olhou - o com attenção, e antes de fallar
lhe diz-lhe o sacerdote :
-Serva te ipsum!
-Caritas super omnia.
A resposta adequada de Freitas e no mesmo
idioma fez voltar o vigario, que havia-se encaminha
do para o interior da casa .
Serva te ipsum, repito , meu filho, conduze sem
demora a tua caravana a porto seguro antes que ella
seja sepultada nas estradas desertas.
E entrou para o interior da casa .
Freitas ouviu as palavras do vigario ditas em tom
prophetico e incorporou- se aos companheiros.
Minutos depois voltava o cura trazendo ás costas
uma sacca de farinha, que encostou á porta da en
trada.
Um frenesi indescriptivel contaminou em um ins
tante os famintos. Nenhum sahiu de seu logar, mas
A FOME 109

movimentos desordenados agitavam-lhes os membros.


Moviam os labios, lambiam os beiços, coçavam-se,
roíam as unhas, mastigavam a saliva, arregalavam
os olhos, moviam o nariz como os coelhos, emfim
uma excitação nervosa determinada pela presença do
alimento tornava-lhes a razão dependente da anima
lidade, que sómente os dominava.
Freitas ficava alli desejoso de vêr o fim d'aquella
scena.
O vigario, depois de ter collocado a sacca de fari
nha em posição de ser aberta, levou para junto d'ella
a sua cadeira de espaldar, sentou-se e tirou do bolso
da batina uma chicara pequena e uma folha de pa
pel escripta a lapis.
O frenesi dos famintos quasi chegou ao delirio.
Os membros thoracicos e os musculos do rosto em
movimentos desordenados pareciam executar a dança
de S. Guido.
O vigario olhou-os com severidade e disse-lhes :
Aquietem-se ! e abriu a folha de papel, dobrada
em fórma de requerimento, e já bastante manchada
de gordura e pó.
N'ella estava escripta a relação dos chefes
d'aquellas malaventuradas familias.
O cura começou a chamada e a distribuição com
preguiça e calma. Uma chicara de farinha dava a
cada faminto adulto e meia ás creanças.

A ração era alli mesmo devorada com uma esfo


meação que commovia ! Muitos ingeriam-na com tal
avidez que não davam tempo á saliva humedecer o
**
110 A FOME

bolo alimenticio, que, penetrando fóra de tempo na


pharynge, encontrava a glotte mal fechada e determi
nava um accesso de tosse violento e suffocante. Parte
do bolo era rejeitado e sahia pelas fossas nasaes e
bôca, misturando-se á areia. Avaros das migalhas ca
hidas no pó, apanhavam-nas uma por uma e inge
riam-nas de novo cobertas de terra.
Distribuidas as rações, o vigario disse aos reti
rantes :
-
Vão agora para a matta procurar a vida ;
ainda ha muita mucunã na beira do rio. Os soccorros
que manda o rei, eu já tenho dito, meus filhos, são
para os pobres d'aqui e não para os que vêm de
fóra.
Esta pratica fazia o vigario todos os dias quando
concluia a distribuição dos soccorros . C
Freitas não se animou a pedir um grão de fari ro
nha e nem o padre se lembrou de dar-lh'a. Pediu n
sómente para ser incluido na relação o nome do chefe 0₁
da familia de cegos, o que obteve. la
O fazendeiro deixou a essa mesma hora a cidade
ouvindo ainda do vigario como despedida :
- Serva te ipsum .
Υ

1
;

XII

Havia seis dias que a caravana havia deixado a


cidade. Durante esse tempo nenhum incidente inter
rompeu a viagem, que continuava a ser de pouco
mais de vinte kilometros por dia. Todos estavam
magros e tostados do sol. Freitas havia encanecido
mais ; os cabellos brancos tinham duplicado em duas
semanas.
Josepha estava resignada ; a esperança do pro
ximo termo da viagem e as orações a todos os ins
tantes tinham-na armado um pouco contra a adver
sidade. Beata por indole, e em face de difficuldades
imprevistas, o seu espirito voltava-se para o céo pe
dindo soccorro e não seria impossivel que se decla
rasse uma monomania religiosa, e ella começasse a
conversar com mysticas visões.
Carolina era dos peregrinos a que mais soffria.
112 A FOME

A natureza a creára muito fraca para aquellas vi


cissitudes. A refracção da luz nos areaes molestava
lhe os olhos a ponto de se fecharem lacrimosos. O
pó das estradas, que o vento levantava em nuvens
espessas, irritava-lhe os bronchios, produzia-lhe uma
titillação na pharynge, titillação que provocava uma
tosse sêcca e importuna. As noites eram para ella
de pesadelos e vigilias. O leito e o dormitorio eram
muito rudes para a delicadeza de suas fórmas, de
sua sensibilidade moral. Desde que sahira de casa
nunca mais tivera um somno tranquillo.
As creanças tinham tambem um ar doentio. Nos
rostos accentuava-se a côr mortiça dos estados mor
bidos. Tinham os malleolos infiltrados e a pelle já
se ia tornando aspera.
Dos viandantes só Freitas e a mulher gozavam
mais ou menos saude.
Todos cançados da penosa jornada almejavam o
porto do destino. Já não estava longe. Seis dias e
algumas horas depois que deixaram a cidade chega
vam á povoação de Arronches e avistavam ao longe
as alvas torres da matriz da Fortaleza. A natureza
era mais sadia ; cajueiros seculares bracejavam opu
lentamente enfolhados, formando massiços de ver
dura, a cuja sombra se abrigavam os retirantes que
viviam dos soccorros publicos.
Circulando a antiga villa alguns abarracamentos
que regorgitavam tambem de famintos. Abarracados
ou não, era a sua vida de miserias, humilhações e
doenças.
A FOME 113

A povoação era pequena ; duas ruas calçadas de


seixos formando um T, uma igreja ainda construida
pelos padres da Companhia de Jesus, e uma velha
casa de camara onde se reuniam os edis da antiga
villa, em frente a ella um pellourinho ; eis como era
Arronches. A oeste da povoação o terreno deprimia-se
formando a bacia da lagoa da Porangaba, que, com
pletamente sêcca, recebia no leito o calor de um sol
abrazador, e que abria aquella enorme rocha de ar
gilla cinzenta em extensos sulcos mais ou menos pro
fundos.
Manoel de Freitas parou com a caravana á porta
de uma taverna a pedir o rumo da Fortaleza. A ta
verna era da tia Ignacia, octogenaria e a mais anti
ga creatura da povoação. Os visinhos tinham-na em
boa conta e os mais cultos acatavam-na como um
precioso documento historico. Conservava perfeitas
as faculdades intellectuaes e uma reminiscencia fe
liz quanto podia ser. A sua taverna era a que tinha
maior numero de freguezes, não só por contar os
seus cincoenta annos de existencia, como pelo dom
da proprietaria de attrahil-os com suas lendas e his
torias. Conhecia todos os episodios do Ceará nos ul
timos setenta annos, e de muitos fallava como tes
temunha ocular. Havia assistido a todas as sêccas
d'este seculo, e da de 1792 referia muitos factos que
lhe contaram seus paes. Dizia-se descendente dos
Algodões, tribu que habitava a Porangaba, e por
isso tinha natural antipathia aos portuguezes. Quan
do referia-se aos governadores da capitania, espe
114 A FOME

cialmente a Robim, seus olhos faiscavam de có


lera.
Freitas chegou á porta da taverna, que estava
repleta de freguezes, uns a comprar e outros a pa
lestrar. O Cachimbo , artista funileiro, bebado por in
dole e figura obrigada das ruas de Arronches, escar
rapachado em um canto sobre um feixe de lenha, de
quando em vez com uma risada epileptica, mais des
concertada do que o zurro de um asno, interrompia
a palestra. Um dos palradores aproximava- se d'elle
e ameaçava-o com o punho cerrado. Continuava a
animar-se a conversação, a aguardente corria a roda,
quando interrompia a tagarellice, não a risada do
Cachimbo, mas um bemdito cantado á queima-rou
pa pela S. Damiana, idiota que se cria santa e não
se alimentava de comida que tivesse padecido morte,
mas bebia aguardente como um cassaco. Davam-lhe
caxaça, e emquanto o alcool aquecia-lhe a garganta,
os tagarellas fallavam sem interrupção.
A palestra attingia o maximo da animação. A 6
tia Ignacia toda ouvidos, encostada ao balcão, archi
vava mais aquelle caso para contar nas horas vagas
aos freguezes. Todos reunidos em um grupo cerca
vam e escutavam a creada do sub-delegado, que a
meia voz contava um facto, que ouvira por bôcas
pequenas em casa do amo. O Cachimbo não riu
mais e nem a S. Damiana cantou ; aproximaram-se 0
tambem e curiosos escutavam a historia.
Freitas entrou na taverna e com pasmo ouviu
~

que se tratava de um crime commettido nas imme


A FOME 115

diações da povoação. Commentavam o assassinato


d'um retirante, que entrando em uma roça furtou
um pau de macaxeira, e foi preso pelo lavrador,
amarrado e surrado até morrer, e o cadaver en
terrado no cannavial. A cozinheira do vigario, depois
de ouvir a creada do sub-delegado, tomou a palavra
e disse que tambem por sua casa já ouvira rosnar
aquella historia, mas com uma differença : o corpo
do morto foi sepultado na casa do engenho ; o que
foi visto pela Quiteria do sacristão no responso que
fez a Santo Antonio.
Freitas ouviu a historia do crime, e vendo que
os commentarios dos palradores continuavam, e sem
esperança de um termo a elles, sahiu e esperou um
transeunte que lhe indicasse a direcção da Forta
leza.
Siga por esta estrada de pedra que irá ter á
capital, quer queira, quer não.
Assim orientado, Freitas pôz-se a caminho com a
caravana.
Oito kilometros era a distancia a vencer. O po
voamento da estrada tornava difficil o transito.
N'aquella grossa arteria desembocavam os innu
meros caminhos do sul e parte dos de leste e oeste
da provincia. Eram nove horas do dia e desde cinco
horas da manhã que o prestito de retirantes enchia
o calçamento de orla a orla.
A caravana de Freitas seguia incorporada á pro
cissão.
A luz intensa do sol era em parte amortecida
116 A FOME

pela vegetação ás margens do caminho . Se os olhos


não eram molestados pela refracção da luz, se a briza
do mar era mais fresca que o vento do sertão , os
pés, doloridos de tanto caminhar, se estropeavam de
encontro ás pedras desiguaes do calçamento . Em
compensação ás dôres da epiderme, que se rompia
na escabrosidade dos seixos, o espirito se alentava
de uma esperança, o proximo termo da viagem.
As creanças e mesmo Carolina, já muito estro
peadas, pediram para descançar, e Freitas mostrou
lhes as torres da matriz, como o proximo pharol do
porto do destino ; alentaram-se e seguiram.
As casas, que eram raras na estrada, começavam
a se enfileirar ás margens do calçamento . As cêrcas e
as moitas de manipuçás iam pouco a pouco sendo
substituidas por habitações de telhas ou de pa
lhas.
Ás dez horas da manhã chegava Freitas com a
caravana ás portas da Fortaleza. O fazendeiro teve
pejo de entrar na cidade como retirante e procurou
uma vereda que descia á esquerda, e por ella seguiu
com os seus até o arrabalde da Jacarecanga. Um
grande taboleiro coberto de uma vegetação rachitica
e enfezada, cortado por um labyrintho de veredas
estreitas e tortuosas, atravessava a caravana. A areia
frouxa ẹ movediça fugia sob os pés, duplicando a
força muscular, que devia gastar a locomoção. A
areia escaldava as plantas estropeadas e cobertas de
ecchymoses.
Freitas seguiu com a familia até encontrar a 18
A FOME 117

sombra de uma arvore que os abrigasse. Um ca


jueiro lhe serviu de tenda : arrancharam-se.
O sacco das provisões pouco mais de um litro ti
nha de gomma de carnahubeira, que foi gasta em
um mingau para a refeição de todo aquelle dia.
Á tarde, Freitas e a mulher cercaram com uma
fragil paliçada de galhos de manipuçás e guajerús a
sombra da arvore e fizeram uma latada, que cobri
ram de ramos . Assim estabelecidos esperaram o al
vorecer do dia seguinte, para continuarem a lucta
pela vida.
A CASA NEGREIRA

Os prejuizos que soffria a fortuna particular com


a sêcca, eram enormes. O Ceará tinha empregado
suas economias em gados, economias de mais de
trinta annos, e que subiam a algumas dezenas de
mil contos. Além d'essa riqueza, representada pela
industria pastoril, havia no milhão de habitantes da
provincia uma população escrava de cêrca de trinta
e cinco mil almas.
Esgotados todos os recursos com o aniquilamento
de quatro quintos dos rebanhos mortos de fome e
peste, tornava-se cada vez mais precaria a sorte do
criador, que, para escapar da miseria, tinha apenas
terras sem valor e o escravo, considerado quasi como
uma pessoa da familia.
A propriedade escrava ficou sendo a unica fonte
de receita.
120 A FOME

A maioria dos negociantes da Fortaleza entrega


vam-se ao commercio de captivos, que faziam em
barcar para o sul do imperio, como faziam outr'ora
com o algodão, café e assucar para o estrangeiro.
Raro era o dia em que não entravam no mercado
da capital levas de escravos trazidos do sertão por
seus senhores ou pelos mascates italianos. Á entrada
da cidade, nas diversas estradas, os corretores açam
barcavam a mercadoria com a gana da gorgeta, cujo
valor dependia do numero das peças levadas ao es
criptorio do traficante.
Ignacio da Paixão não escaparia ao faro dos cor
retores. Entrou, já dia claro, pela estrada empedrada
de Arronches, com um matuto, que tambem vinha á
capital, como procurador de seu amo, a vender um
magote de escravos.
Viriato de Maria, corretor do traficante commen
dador Prisco da Trindade, tinha amanhecido em
Bemfica, arrabalde da Fortaleza, e sentado á sombra
de uma das mungubeiras que enfeitam as orlas da
estrada, esperava a entrada de alguma partida de ca
ptivos.
- Oh lá, amigo, os negrinhos são para negocio ?

perguntou Viriato sahindo ao encontro de Ignacio da


Paixão e do companheiro.
Sim, senhor, conforme o preço.
- Pelo maior
- da praça : meu patrão é quem
paga hoje melhor este genero, disse Viriato já de
braço ao pescoço de Ignacio e caminhando em direc
ção á Fortaleza como dois antigos conhecidos.
A FOME 121

-Os negros vieram, foi para vender, disse o


matuto.

-E pelo melhor preço do mercado. O meu pa


trão, que é o commendador Prisco da Trindade, o
homem mais rico e mais honrado d'esta terra, está
agora quasi intrigado com todos os collegas de nego
cio, e porque ? por estar pagando melhor do que to
dos a mercadoria. Coisas da vida : teve um pedido
de um fazendeiro, seu parente, de S. Paulo, de cem
escravos de flôr, e querendo aviar com presteza a en
commenda apresentou-se no mercado pagando melhor
do que os outros ; eis a intriga, o barulho todo.
Queremos é encontrar um homem sério e que
nos despache logo.
-Nada mais justo do que esta exigencia. Quanto
a seriedade, juro que ninguem tem mais do que o
commendador.
Viriato de Maria seguiu conversando com os ma
tutos até á casa de Prisco da Trindade, dispondo -lhes
o animo quanto lhe era possivel em favor do com
mendador. As informações foram taes e prestadas
com tanta habilidade, que os sertanejos acreditavam
poder sem receio effectuar as suas transacções com o
traficante, em quem suppunham um cumulo de pro
bidade. Com as melhores disposições a seu respeito
chegaram á porta do palacete : um casarão de rica
fachada, onde as gradações da mortecôr esbatiam a
cornija e as molduras brancas das janellas. A porta
estava aberta e as vidraças fechadas reflectiam a luz
do sol nascente em clarões de incendio.
122 A FOME

Ignacio da Paixão e o companheiro, Miguel das


Andorinhas, sentaram-se com os escravos no cordão
da calçada, emquanto o corretor ia ter com o trafi
cante.
Uma das portas lateraes do salão de visita aberta
para o corredor, deixava entrar a claridade necessa
ria ás escravas, que espanavam os moveis. Era um
salão de luxo, porém ornado á moda parisiense e que
seria um conforto, uma delicia n'um clima frio, mas
no equador era uma estufa, uma tortura. Uma mobi
lia de mogno á Luiz XIV, estofada, com as cadeiras
em duas filas aos lados do sofá, n'uma symetria mo
notona e rotineira, enchia o espaço da parede do ou
tão ao meio da sala. As cadeiras pisavam com os pés
calçados de cadeados de metal amarello um espesso
tapete francez, verdoengo com allegoricas figuras chi
nezas.
Sobre o marmore dos dunkerques espelhos de
crystal encaixilhados em quadrilongas molduras dou
radas, com festões aureos de narcisos e tulipas. Dois
a dois, sobre a pedra do movel, empinavam-se os jar
ros de porcelana, mostrando na convexidade do bojo
ramalhetes de rosas em relevo apparentando a côr e
frescura naturaes. Entre as flôres petrificadas appa
reciam as figuras esbeltas e sadias de camponezas
meio núas, deixando perceber nas fórmas descobertas
a morbidez da carnação feminina. Do centro do te
cto, um forro de pesado estuque, em desaccordo na
altura com os preceitos architectonicos, descia o sup
porte de um candieiro de gaz com doze luzes. As
A FOME 123

tres janellas, que se abriam para a rua, eram deco


radas de cortinados de sêda branca franjados de
ouro. Os pannos de parede eram forrados de papel
azul celeste com flôres douradas. Nos claros das ja
nellas e nos espaços vazios dos lados do grande es
pelho oval sobre o sofá, pendiam retratos de familia
em telas ricamente molduradas. Entre as persona
gens, que o pincel do artista copiou, duas prendiam
a attenção : uma pela exquisitice do trajo, outra
pela irregularidade das feições. Eram ellas um ho
mem e uma mulher. De vis-à- vis olhavam um para
o outro, mas com um olhar morto, um olhar apa
thico de animal que rumina. As duas escravas encar
regadas da espanação, depois de concluida a tarefa,
pararam defronte de um dos retratos e apupavam-no
com uma vaia muda de gestos e de sorrisos de mofa.
O retrato era de um homem de meia idade cuja
fealdade de feições e a moda antiga do trajo provo
cavam o motejo das raparigas. A espessa cabelleira
empoada reunia-se em uma comprida trança, que se
terminava apertada por um laço de fita preta e cahia
nas costas. Vestia o tronco uma casaca de panno
azul de mangas estreitas e apertadas terminadas em
um canhão justo ao punho e abotoadas por dois bo
tões. A golla da casaca dobra-se na base de um col
larinho de linho branco bem teso e tão alto que to
cava as orelhas. Os membros inferiores, vestidos tam
bem á côrte de D. João vi, trajavam calções largos
de panno fino até o joelho, onde se terminavam por
umas ligas negras com fivelas de ouro e que pren
10
124 A FOME

diam as meias de sêda côr de rosa . Os pés eram cal


çados por sapatos de couro envernisado, entrada bai
xa, rosto curto e ornados de grandes fivelas de ouro.
Do peito do retrato pendia uma commenda da
ordem de Nossa Senhora de Villa Viçosa de Portu
gal.
As raparigas faziam uma zombaria innocente
d'aquelle documento antigo, zombavam de um trajo,
que ainda no começo d'este seculo no Ceará, no go
verno de Manoel Ignacio Sampaio, era usado por este
governador e por todos que desejavam agradal-o ar
remedando os nobres da metropole.
Surprehendidas pelo corretor, as escravas julga
vam-se rés de um grande delicto e iam-se retirar
para o interior da casa quando Viriato perguntou
lhes :
O senhor já se levantou ?
-
1 Está no gabinete, responderam ellas a uma
voz meio desorientadas.
O corretor deu as costas á entrada do salão, e,
aproximando-se de uma porta fechada vis-à- vis áquel
la, deu tres pancadas compassadas com o cabo do cha
péo de sol .
Immediatamente ouviu-se o soar de uma cam
painha electrica e minutos depois a porta era aberta
por um escravo ainda rapaz.
Viriato entrou no gabinete do commendador e
saudou o traficante com uma respeitosa venia. O
creado retirou-se.
Prisco da Trindade deitado em uma espreguiça
A FOME 125

deira, lia os jornaes do dia ainda de chambre de li


nho branco.
A vista do corretor áquella hora indicava alguma
transacção, e interrompendo a leitura interrogou-o :
O que temos de novo ?

Uma partida de escravos, que acaba de en
trar do sertão.
Onde está ella ?
- Em frente do palacete de v. exc.ª
-Que taes as peças ?
-De primeira qualidade. Custou-me obter dos
matutos a preferencia ; vinham com destino a outra
casa.
-Peça permissão aos vendedores para recolher
os escravos á senzala e depois leve os matutos ao
hotel onde almoçará com elles, disse Prisco dando ao
corretor uma nota de vinte mil reis.
―――――
E a que horas poderemos procurar v. exc.ª ?
- Depois de onze horas.
Viriato retirou-se. O creado, avisado pela cam
painha, veio fechar a porta e o commendador conti
nuou a lêr.

*
II

Prisco da Trindade tinha no gabinete o escripto


rio de compra de escravos. Era uma sala um pouco
menor do que a das visitas, esteirada, com algumas
cadeiras de descanço, um sofá, uma secretária de
ebano e uma grande burra de ferro á prova de fogo.
Este compartimento communicava pela parte poste
rior por duas portas com um grande quarto, cuja
mobilia constava de um sofá sem verniz, duas ca
deiras ordinarias, um lavatorio de ferro com os per
tences, dois cabides tendo cada um uma toalha fel
puda de algodão : este era o quarto em que o me
dico examinava os captivos.
O commendador tinha uns quarenta annos e pos
suia algumas dezenas de contos de reis, ganhas quasi
todas no commercio de escravos. Pela regularidade
128 A FOME

das feições não se diria que a ambição era uma de


suas qualidades psychologicas .
O rosto tinha uma expressão agradavel, embora
deixasse perceber a sensualidade do temperamento,
sensualidade que corria parelhas com a dos bodes.
A questão capital de Prisco era ser millionario,
e no pé em que estavam os seus negocios, com al
gum esforço e improbidade sel-o-ia em breve. A qua
dra para a realisação de seus desejos era a melhor
possivel ; no sul do imperio a propriedade escrava
subia de valor, era o sustentaculo da industria agri
cola, que se alargando todos os dias tinha necessi
dade de braços, que o Ceará fornecia por elevados
preços.
Prisco tinha uma ambição desmedida e contra
qual o coração e a consciencia nada podiam. Um
cofre cheio de ouro e mulheres para gozar, eis o seu
ideal.
Ás dez horas da manhã o commendador deixou
o gabinete e foi para o quarto de vestir preparar-se
para o almoço. Na sala de jantar esperavam-no uma
mulher e um menino. A mulher era D. Faustina,
esposa de Prisco, e a creança seu filho.
D. Faustina era um typo commum . Não era feia,
nem bonita. Pela flacidez das carnes balofas e des
coramento da pelle sabia-se o seu temperamento
quanto tinha de lymphatico. O seu corpo avoluma
va-se cada anno á custa do excesso de nutrição que
era accumulado e convertido em tecido adiposo. O
abdomen era o armazem de taes reservas, e por isso
A FOME 129

D. Faustina parecia estar sempre no nono mez de


gravidez. O volume era para si mais um incommodo
moral do que physico. Gostava de se vestir bem, ti
nha a mania das modas, mas a barriga não se accom
modava ás exigencias da costureira. Casára-se muito
nova mais por um arranjo do que por affeição. Tinha
necessidade de um marido e Prisco estava em con
dições de satisfazel-a . A vida de esposa era de uma
monotonia estupida ; gozava os carinhos maritaes,
mas já arrefecidos pelas noites de volupia no leito
das concubinas : um resto de sensualidade capaz de
um só espasmo e esse incompleto, quasi forçado.
Rara era a noite em que Prisco não chegava ao
leito conjugal tresandando a senzala, trazendo a bar
ba e cabellos impregnados de um fedor de anum.
Faustina não levava muito em conta as poucas
vergonhas do marido, elle dava-lhe outros gozos que
não eram os da carne, com que se conformava seu
temperamento frio e sem volupia. Governava a casa
por um systema novo e adoptado por sua indolencia.
Repotreava-se em um divan estofado de marroquim
e d'ahi dirigia o serviço domestico. Punia as faltas
dos escravos com castigos corporaes, ás vezes barba
ros e em completo desaccordo com as praticas reli
giosas que diariamente exercia. Além da mania das
modas revelava grande paixão pela intriga, e não era
muito prejudicial por esse lado por causa da pre
guiça.
O intrigante deve ter facilidade de locomoção ;
encarnado em um macaco chegaria á perfectibili
130 A FOME

dade, e D. Faustina quando muito teria a agilidade


da tartaruga. Assim mesmo bisbilhotava, espionava
com a lingua e olhos das escravas, que lhe diziam o
que se comia e tudo mais que se passava em casa
do visinho. No circulo de suas relações, bastante lar
go pela posição e fortuna do marido, era considerada
como parte de um todo, que por convenção cha
ma-se élite da sociedade. Uma ironia caricata da
qual a mulher do traficante não comprehendia a
mordacidade. Tratavam-na com a distincção de que
eram crédores os contos de reis de Prisco. Nas ro
das mais intimas, quando accusavam-na de-leviana,
de intrigante, attenuavam-lhe os defeitos qualifican
do-os de desfastio.
Faustina gastava inutilmente o tempo. O filho,
que se chamava Jacob, contava dez annos e era
creado á lei da natureza. Amava-o, porém, com um
amor de mulher lymphatica, estupida e ignorante.
Proporcionava-lhe todos os gozos, satisfazia-lhe todas
as exigencias da leviandade de menino, e nem um
dia lembrára-se de pôl-o na escóla, fallára-lhe na
carta de a b c.
Jacob era filho unico, e desde que nasceu que os
paes o appellidaram de Sinhosinho. Todas as suas
vontades eram satisfeitas com graves prejuizos de
sua educação physica e moral. N'essa manhã, quando
Prisco entrava na sala de jantar, elle, deitado no re
gaço de Faustina, teimava com ella , porque queria
para almoço uma compoteira de dôce de goiaba.
O commendador não perdia o tempo com a edu
A FOME 131

} cação do filho ; a mulher que o guiasse como qui


L zesse e entendesse.
Prisco sentou-se á mesa e Faustina veio-se col
locar ao lado d'elle. Ambos tinham um pelo outro
uma indifferença de estatua.
Tinham começado a almoçar havia quinze minu
tos, quando o postilhão gritou á porta de entrada :
- Correio.
Um creado foi receber a correspondencia, que
trouxe e collocou ao lado de Prisco.
O commendador descançou o talher e tirando
uma carta de entre as muitas que tinham vindo
do sul no paquete fundeado havia poucas horas,
abriu-a leu com interesse.
Faustina continuou a comer com invejavel appe
tite. Não podendo arrumar mais coisa alguma no es
tomago, cruzou o talher e disse para o marido :
O jornal de modas?
Eil-o.
E Prisco entregou um folheto a Faustina, que
abriu e folheava com uma pressa e interesse contra
rios á sua indole e temperamento.
O rosto do commendador deixava perceber todos
os transportes da alegria. As palavras da carta da
vam-lhe um contentamento, que se expandia em to
das as linhas da physionomia.
-Não veio o jornal francez ? perguntou Faus
tina.
-A mala da Europa não alcançou este pa
quete.
132 A FOME

-A moda aqui sempre está atrazada por causa


d'essa irregularidade de serviço .
――――――
Prestas mais attenção ao fôfo de um vestido
do que ao resultado de meus negocios. O correspon
dente escreve-me e nunca me perguntas se foram
boas as contas de venda !
-Não entendo d'isso, sabes.
-Sei, mas quero hoje que partilhes do meu
contentamento. A ultima partida de escravos que
embarquei, deu um resultado esplendido. Houve pe
ças vendidas a dois contos e trezentos mil reis ! Em
cem escravos tivemos um lucro liquido de sessenta
contos de reis !
-Procura o jornal francez que talvez tivesse
vindo.
―― Sempre a te preoccupares com as modas mais

do que com tudo no mundo ! A posse de mais ses


senta contos vale menos a ti do que a vinda de um
novo molde de vestido, de um panier mais mo
derno.
-Cada qual n'aquillo para que Deus o fez .
Soou a campainha de entrada. Era Viriato que
chegava com os matutos.
Prisco levantou-se da mesa levando comsigo a
correspondencia, e foi mesmo abrir a porta aos ser
tanejos .
O corretor convidou-os a entrar. Os matutos um
pouco desconfiados apertaram com força a mão do
traficante dando-lhe o tratamento de capitão .
Prisco, com arte e uma amabilidade fingida e
A FOME 133

sa
bem estudada, supportou o aperto e sacalão das callo
sas e grosseiras mãos dos matutos, desfazendo-se em
10
attenções a suas pessoas, ás quaes mostrava toda a
1 estima e prestava a maior consideração.
1
Os sertanejos com os rostos afogueados pelos va
pores alcoolicos, meio aturdidos sentaram-se e espe
raram a negociação.
Prisco mandou Viriato chamar o medico e em
quanto este chegava, para adiantar serviço, pediu os
papeis dos escravos aos procuradores e examinava-os
com muita attenção .
O medico acudiu immediatamente ao chamado
de seu rico cliente. Cada exame rendia-lhe cinco mil
reis, e pelo que lhe dissera o corretor a leva não era
pequena. O doutor era com effeito medico de carta,
estava authorisado por uma das academias do impe
rio a exercer a arte de curar no Brazil, mas por isso
não segue-se que elle soubesse medicina. Á entrada
do gabinete foi recebido pelo commendador que, todo
civilidade, tomou-lhe o chapéo e bengala, apertou-lhe R
depois a mão com effusão e fêl-o sentar em uma ca
deira de descanço .
Que noticias trouxe o paquete, commenda
dor?
-Nada politicamente fallando. Commercialmente
uma conta de venda que me desgostou. Na ultima
partida, que embarquei, foi julgada uma peça inuti
lisada.
Como assim ?
-De uma lesão cardiaca.
134 A FOME

De que natureza ?
- -Uma insufficiencia mitral.

-Isto me surprehende ! Admittida a sinceridade


do correspondente e a veracidade do diagnostico, só
posso attribuir o desenvolvimento de tal molestia ao
enjôo do mar.
――― - Talvez, pois v. s.ª não
se costuma enganar, e
o negro de que se trata parecia vender saude.
Foi o enjôo, não ha duvida.
E o meu prejuizo ?
Havemos de resarcil-o .
―――― É de justiça.

- Quando poderemos começar o exame ?


Quando quizer.
E Prisco fazendo a campainha electrica soar tres
vezes, assim chamou o corretor.
Viriato muito pratico n'aquelle serviço já espera
va na calçada acompanhado dos escravos a ordem
de entrar. As escravas elle tinha deixado na senzala ;
seriam examinadas em ultimo logar.
O corretor entrou no gabinete seguido de doze
captivos. Todos mais ou menos abatidos e cançados
da viagem tinham uma physionomia triste e desgos
tosa . O ar de submissão communicado ás feições
pelo amortecimento do olhar, pelo esgotamento da
energia, dava uma idéa perfeita do aviltamento d'el
les. Entraram um após outro para o quarto das
observações. O corretor ordenou-lhes que se pozessem
em linha e se despissem. Obedeceram . Alguns auto
maticamente se punham nús, mas outros tiravam a
A FOME 135

1 roupa com muita vergonha. O espectaculo era indi


gno da civilisação do seculo. Aquelles homens sadios
e fortes se submettiam de corpo e alma á vontade
de outros homens que se intitulavam senhores e a
quem elles obedeciam com uma passividade de cor
po inanimado, porque as leis garantiam a elles o di
reito de tal propriedade.
O medico entrou no quarto acompanhado do tra
ficante. Aquellas figuras, umas côr de bronze e ou
tras negras, perfiladas em nudez obscena, davam ao
recinto a hediondeza de uma ulcera cancerosa.

O doutor começou o exame. Percutiu o largo tho


rax do primeiro escravo e depois o auscultou com o
ouvido armado de estethoscopio, como se este instru
mento substituisse com as qualidades acusticas a fal
ta de conhecimentos medicos. A escuta trazia-lhe ao
ouvido os murmurios respiratorios, os ruidos do co
ração, mas elle não podia avaliar pelo que ouvia do
estado physiologico d'aquelles orgãos. Escutado o
thorax pelos lados anterior e posterior, o doutor leva
o examinando ao sofá, deita-o a fio comprido, lhe
encolhe as pernas afim de se relaxarem os musculos
da barriga e passa a examinar as visceras, mas com
tal força que teria feito romper, se houvesse, algum
aneurisma da aorta abdominal. O figado, o baço, os
intestinos foram amassados em vez de apalpados, e
como o escravo não gemesse accusando dôr alguma,
tinha sãs aquellas entranhas. Os orgãos da reproduc
ção foram bem vistoriados. As virilhas foram exami
nadas e o escravo, para ser julgado bom, obrigado a
136 A FOME

soprar com toda a força uma garrafa vazia, afim de


espirrar alguma hernia encoberta.
Findo o exame medico, começou o do traficante. 1
O organismo estava são, affirmava o doutor, mas
Prisco queria saber a qualidade, a força da muscula
tura, para calcular o valor da peça . Apalpava os
musculos do escravo, abria-lhe depois a bôca, escan
carando-a com as mãos, que applicava uma sobre a
barba e a outra achatando o nariz, afim de vêr e
avaliar o estado de todos os dentes. Examinada com
o maximo escrupulo a peça, o commendador toma
va-lhe o nome e punha em seguida o valor que dava
a ella.
O medico continuou o exame sempre do mesmo
modo ; quando chegou ao penultimo escravo, depois
de prolongar a escuta na região do coração, disse a
Prisco :
-Uma lesão do orificio aortico ! ...
-Uma lesão ? !!
―――― Sim, muito adiantada. Este escravo está per
dido, pouco poderá viver.
O pobre homem ouviu aterrado a sua sentença
de morte. A emoção foi tamanha que quasi o derriba.
O traficante, acreditando que o escravo podesse
ficar doente em consequencia da franqueza do medi
co, e vendo-o empallidecer, se aproximou d'elle para
animal-o : 1
- - Que é isso, filho ? os medicos tambem se en 1
L
ganam, e voltando-se para Viriato, pediu um calice
de vinho para o doente.
A FOME 137

O escravo bebeu o vinho e se reanimou mais.

Prisco aproveitou a occasião para examinal-o e


calcular o valor que daria o fazendeiro paulista
áquella peça ; depois tomou-lhe o nome, ao qual
accrescentou a palavra — inutilisado —.
Findos os exames, Viriato acompanhou os escra
vos á senzala. Minutos depois voltava elle ao gabinete
de Prisco com as escravas. Eram quatro e todas en
traram chorando.
Filippa trazia a filha Bernardina pela mão, e era
acompanhada por duas raparigas novas, mulatas e
irmãs.
Viriato levou-as ao quarto dos exames e olhando
com desdem para as suas lagrimas disse-lhes :
-
Pannos abaixo para a vistoria.
Nenhuma d'ellas moveu-se. Vestidas de saia e
camisa, e com o tronco envolvido em um lençol gros
so de algodão, ficaram dispostas a conservar occultas
as fórmas ameaçadas de uma indecente exposição.
O medico entrou com o traficante.
As escravas choravam de pé, immoveis.
-Porque tanto choram, demonios ? Deixam uma
terra onde só comiam mucunã, e ainda se lastimam !
Vamos, botem abaixo estes molambos.
E o corretor aproximando-se da primeira, que era
Filippa, arrancou-lhe brutalmente o lençol dos hom
bros.
As duas raparigas, horrorisadas com aquella sce
na temendo serem tambem victimas, ligaram-se em
um apertado amplexo, collo a collo, regaço a regaço, e
138 A FOME

assim unidas julgaram-se salvas da vistoria. Desher


dadas da fortuna tiveram a desgraça de nascer de
um homem livre e de uma mulher escrava, e em um
paiz onde o captiveiro é uma instituição e garantida
pela lei ! Donzellas, ainda conservavam a pureza de
costumes da vida campezina, o amor ao trabalho, o
respeito ao dever, o culto á honestidade, incutidos no
espirito pelos seus avós e senhores, pelos mesmos
que á hora angustiada das provações da miseria, suf
focando n'alma os sentimentos intimos, abafando no
peito o grito da consciencia, mandaram-nas vender.
Foram sacrificadas á hora do perigo como bastardas
que eram para salvar os legitimos rebentos dos ve
lhos troncos. Nada tinham a oppôr. Seu pae era li
vre, e casado que fosse com sua mãe, que era esera
va, a lei não lhes garantia a liberdade. Desprotegidas
e atiradas em um instante á mercê sómente do in
fortunio, na mais cruciante tribulação, abraçavam-se
e n'um amplexo solemne, que só as dôres fundas são
capazes de estreitar, maldiziam os seus progenito
res .
O medico, tendo concluido os exames de Filippa
e de Bernardina, estacou em frente das raparigas,
quasi commovido com o pranto d'ellas.
Viriato maltratou-as com palavras e pretendia
desligal-as a empuxões, quando Prisco ordenou-lhe
que se contivesse.
O traficante ia pôr em pratica o que usava em
casos identicos : dominar a dôr com palavras consola
doras, fazer reviver a esperança n'aquelles corações
A FOME 139

r angustiados pelo desespero. Fallou-lhes fingindo tan


le ta sinceridade e convicção, que as raparigas ouvin
n do-o sentiram que a dôr ia serenando. A situação
a d'ellas não era desesperadora, disse-lhes, as tomaria
} para creadas de sua mulher e depois que ellas lhe
prestassem cinco annos de serviços as libertaria. A
promessa do traficante foi por ellas percebida, como
a luz de um pharol pela retina de um naufrago em
noite escura e tormentosa. O abraço que as unia foi
perdendo a estreiteza e ellas desejando conhecer o
homem generoso que estendia-lhes a mão para sal
val-as no momento mais critico da vida, desabraça
ram-se e com os olhos pisados, rasos de lagrimas,
mas n'um olhar, cuja serenidade reflectia o reconhe
cimento d'alma, fitaram o traficante.
Prisco nada viu d'aquella prova de gratidão. Pas
mo pela belleza da mais nova das raparigas, sentiu
se devorar de desejos sensuaes.
As escravas tinham uma vinte e a outra dezeseis
annos. A mais moça era bonita. A côr de jambo da
va-lhe ás fórmas a suavidade das morbidezas feminis.
Os olhos negros, velados por palpebras franjadas de
longos cilios pretos, eram de uma mornidão enervan
te, e sempre em languido movimento, em requebros
de volupia innata e inconsciente, volviam-se em uma
indolencia toda sensual.
Prisco sentia que se crispavam todos os nervos
em um arripio concupiscente. O olhar da mestiça ti
nha scintillações, cujo esplendor deslumbrava o espi
rito do traficante. Compral-a-ia, e cevaria o genio
11
140 A FOME

libidinoso até a saciedade n'aquella carnação sadia e


lasciva como a de sua raça, e, depois de esgotados
todos os prazeres da carne, vendel-a-ia para o sul
como a mais infima das captivas.
O medico fez um exame ligeiro e o traficante por
sua vez contentou-se em apreciar a frescura da pelle
das mulatas, em apertar-lhes as carnes dos braços
para saber se eram duras, emquanto os olhos procu
ravam devassar-lhes o regaço e vêr os seios virgens.
Inteirado do valor das peças e saboreando desde logo
o deleite carnal que ellas lhe proporcionariam, fêl-as
voltar á senzala.
O medico nada mais tendo que fazer alli reti
rou-se.
Prisco entrou com os matutos no ajuste do preço
da mercadoria.
ཟླ་ A lei considerava o escravo uma propriedade, cuja
}}
#1 transmissão deve ser feita por escriptura publica e
sujeita a direitos e impostos pagos aos cofres do es
tado. O commendador, porém, como todos os trafi
cantes, tinha derogado aquella disposição legal e le
sava a fazenda.

O escravo inutilisado pertencia a Ignacio da


Paixão.
Miguel das Andorinhas em poucas palavras liqui
dou o negocio, quanto ao preço ; depois Prisco o in
terrogou :
-Não tem alguma patente da Guarda Nacio
nal?
- Não, senhor.
A FOME 141

O official sou eu, capitão da quarta companhia


de meu batalhão, disse Ignacio.
Prisco aproximou-se de Viriato e lhe disse em
Voz baixa :
-Substabeleça a procuração a Taveira, Cunha
& C.a, do Rio de Janeiro.
-Não será preciso o substabelecimento do pri
meiro ser feito pelo tabellião, visto como não tem elle
poderes de passar procuração com o proprio punho ?
perguntou o corretor.
―――
-Quaes poderes, dê-lhe a patente de capitão de
um d'esses batalhões do interior e está tudo direito.
O essencial é a procuração do dono dos escravos e o
recibo do procurador.
― - E não será isso causa de duvidas futuras,

peço licença a v. exc.ª para perguntar ?


-Não. Assim nos isentamos de pagar o imposto
de transmissão ; não houve venda.
Viriato concluiu o substabelecimento da procura
ção de Miguel das Andorinhas, a quem fez capitão
da Guarda Nacional. Convidado pelo commendador
a assignar o documento, Andorinhas declarou entre
dentes que não usava de lêr e menos de escrever.
Prisco não se embaraçou com isso e mandou que
Viriato assignasse o substabelecimento como se elle
fosse o proprio Miguel. Esses documentos iriam para
a côrte e de lá para S. Paulo ou Minas Geraes, e
quem descobriria a sua falsidade ?
O escravo doente estava embaraçando Ignacio da
Paixão.
*
142 A FOME

Prisco com voz clara e pausada fazia o historico


da molestia, a descripção pathologica ; mas o matuto
não comprehendia de maneira alguma o que queria
dizer lesão do orificio aortico . Todas as considera
ções e explicações do traficante respondeu elle as
sim :

Será, senhor ; porém no meu sertão nunca


ouvi dizer que houvesse tal enfermidade. Os cirur
giões de lá nunca disseram que morresse algum
d'esse mal !
O commendador concluiu a negociação dizendo
formalmente ao matuto que a peça doente só valia
cem mil reis, quantia esta que arriscaria, pois estava
convencido de que o escravo, depois de um trata
mento longo e sério mal serviria para criar galli
nhas.
Ignacio da Paixão fechou o negocio, recebeu a
importancia dos escravos, e procurou, acompanhado
de seu creado , o hotel onde almoçára pela manhã.
ļ
III

A senzala era um grande telheiro no quintal da


casa de Prisco . Media vinte e cinco metros de com
primento sobre dez de largura : um vão só, sem com
partimentos, sem ladrilho, e aberto dos lados ao sol
e aos ventos. O tecto era sustentado por muitos es
- teios fincados no sólo, os quaes tambem serviam para
armadores de rêdes.
Escravos e 1escravas comiam e dormiam juntos .
Nem um tabique separava os dormitorios. Viviam alli
recolhidos tendo por menagem apenas o quintal da
casa. Na consciencia de sua degradação moral, de
seu aviltamento, com o caracter rebaixado na convi
vencia das cozinhas, o pudor embotado pelos casti
gos corporaes, entregavam-se aos gozos da materia,
144 A FOME

aos prazeres da carne com uma animalidade de ju


mento. 1
Filippa, a antiga escrava de Freitas, e as com
panheiras foram recebidas na senzala com especial
contentamento. Eram mais tres mulheres para a cra
pula, para a estupida saturnal.
Filippa, que era de uma honestidade admiravel,
cuja vida• de donzella, de casada e de viuva não ti
nha sido maculada sequer por um pensamento des
honesto, horrorisou-se com aquelle meio, com a con
vivencia que ia ter. Alguns ditos obscenos do rude vo 1
cabulario da canalha atirados pelos devassos da sen
zala ás raparigas recemchegadas deram-lhe uma idéa
perfeita da immundicie moral que reinava alli. Não
havia meio de separarem-se d'aquella onda pôdre, de
sahirem d'aquella esterqueira. Procuraram, entretan
to, se afastar d'ella, evitar, quanto possivel, o seu
contacto ; tristes e envergonhadas foram -se esconder
a um canto.
O seu retrahimento desagradou os veteranos da
senzala ; elles comprehenderam que ellas queriam evi
tal-os e puniram o attentado de um modo cruel. Cer
caram-nas e romperam em uma vaia estupida e in
decente. Ditos e gestos obscenos, acenados com um
desbriamento de prostituta devassa e bebeda, offen
diam o pudor das castas filhas do sertão. Certos da
immunidade patearam-nas até cançar. Ellas respon
deram os insultos com gemidos e lagrimas. Deixa
ram-nas quando no monturo não havia mais lixo a
revolver.
A FOME 145

Filippa lembrou-se de ir com a filha e compa


nheiras valer-se da mulher de Prisco e pedir-lhe aga
salho longe d'aquelle fóco de depravação. Alimenta
va esta idéa quando alguem lhe informou que o com
mendador não admittia tal distincção. Resignaram -se
a ficar alli. Logo que anoiteceu, agasalharam-se.
Os habitantes da senzala, quando escureceu de
todo, entregaram-se ao mais immoral deboche. Devo
rados da bestial sensualidade e n'uma gula insacia
vel de deleites carnaes, obedeciam, como se brutos
fossem, sómente ás imposições da carne.
A noite ia em meio. No quintal deserto e escuro
atravessava um homem envolvido em um comprido
capote preto. Era Prisco que áquella hora, tão lasci
vo como os escravos que debochavam na senzala, ia
a uma entrevista procurar os amores da mulata, que
comprára havia poucas horas. Caminhou até o ex
tremo do quintal, onde se occultou em uma estreba
ria abandonada ; escondido ahi fez ouvir um longo e
fino assobio. Era o signal. Algum tempo depois apre
sentou-se-lhe uma preta idosa a receber as suas or
dens. Era a alcoviteira : fazia a cozinha da senzala
de dia, e de noite levava-lhe amantes.
Prisco ordenou-lhe de trazer á sua presença a
mulata mais nova das duas que tinha comprado pela
manhã.
A escrava desappareceu nas sombras em rumo
do telheiro. Chegando á senzala foi com facilidade
ter á rêde da rapariga. Acordou-a e com astucia e
manha deu-lhe o recado do senhor, accrescentando
146 A FOME

por sua conta promessas de liberdade e futuro, sem


dizer a preço de que .
A rapariga ouviu-a e recusou-se a acompanhal-a.
A preta tinha longa pratica d'aquelle serviço e
não desacoroçoou com a recusa. Voltou ao assumpto,
e com muita finura aconselhou-lhe a conveniencia de
obedecer ás ordens de tão bom senhor, e com arte
deu ás suas palavras uns tons muito longe de ameaça.
A mulata foi pouco a pouco acreditando nas pro
messas da alcoviteira e acabou por acompanhal-a, por
obedecel-a, como se estivesse sob a influencia d'uma
força magnetica.
Chegando á estrebaria a preta deixou a mulata
só com Prisco. O traficante tomou-a pela mão ; esta
va fria e tremula. A escuridão não permittia lêr nos
olhos os sentimentos d'alma.
O commendador tinha a victima segura. Come
çou a seducção do espirito pela promessa da liberda
de, a realisação do ideal querido , a unica e legitima
aspiração da mulata. Emquanto a alma se embebecia
contemplando o quadro esboçado pelo seductor, a
carne se excitava ao contacto da carne de creatura
de outro sexo.
Prisco comprehendia que as resistencias cediam.
Seu braço passou da mão ao pescoço da rapariga e
os labios segredaram-lhe ao ouvido todas as promes
sas, todas as seducções imaginaveis, sem que ella pro
curasse evital-o .
O espirito da moça cahia em languido deliquio e
ella sentia o fluido nervoso em crispações electricas
A FOME 147

Sem todas as vezes que as asperas barbas do seductor ro


çavam-lhe de leve as faces, que eram de uma macie
1-a. za de arminho.
De O olfato tambem era uma fonte de excitação.
to, A mulata tinha as extremidades geladas e as fa
de ces, ora lividas, ora incendiadas e rubras, tornavam
te manifesta a crise de que o cerebro era o centro. Os
ca. olhos, quasi sem luz, fechavam-se n'um requebro vo
-0 luptuoso, n'um cerramento apathico de desmaio. Es
or tava de todo rendida á vontade do seductor.
a Prisco abraçou-a ; uniram-se em um contacto
mais intimo, e os seios d'ella, comprimidos pelo largo
a thorax do traficante, vibraram, como fios de aço, a ul
tima estrophe de sua virgindade agonisante.
S Prisco ouvia aquelles accordes sem alma e sem
coração. Sentia que a emoção inanimava a mulher
que tinha nos braços e nem um instante teve pie
dade d'ella ! Cevaria n'ella os desejos brutaes até a
saciedade e a venderia depois para fóra da provincia
e ainda com lucro, embora conscio de que a fizera
procrear.
A mulata sentia desfallecer ; mas antes de entre
gar-se completamente ao seductor quiz reagir, er
guer-se ; mas embalde, a vontade a havia abandona
do e fallecido todos os meios de acção.
Algumas horas depois recolhia-se o traficante ao
leito conjugal e a mulata voltava prostituida á sen
zala em companhia da alcoviteira.
1
I
#
1
I
1
1
IV

D. Faustina levava a abelhudice a ponto de con


versar com todos os escravos que o marido compra
va, afim de saber da vida d'elles e da dos seus anti
gos senhores.
Havia na senzala uma partida de dezeseis capti
vos, comprada ultimamente, e a mulher de Prisco
teria assumpto para alguns dias.
Logo na primeira manhã, Faustina se levantou
um pouco antes das oito horas do dia e começou a
tarefa. Filippa foi chamada para depôr em primeiro
logar. A physionomia da preta tinha uma expressão
serena de bondade e era illuminada por um olhar
de uma suavidade angelica. Chegando á presença da
nova senhora saudou-a pedindo-lhe a benção, com
verdadeira humildade christă.
150 A FOME

Faustina olhou-a e continuou, sentada no divan,


a escolher rendas, que uma escrava ajoelhada ao pé
de si mostrava-lhe dentro de uma grande cesta. 1
1
Filippa já estava cançada de estar de pé , quan
do a senhora se lembrou d'ella e começou a interro
gal-a. Havia uma hora que durava o interrogatorio,
quando foi interrompido pelos gritos de Jacob.
Senhosinho passeiava no quintal quando encon
trou Bernardina, a pequena filha de Filippa, brin
cando com uma concha . O menino cubiçou o brin Į
quedo da escravinha e lh'o
' pediu : I
- Dá-me esta concha, diabo.
Ella recusou. Jacob ameaçou-a de esmurral-a e,
como ella tivesse resistido, deu-lhe uma bofetada, de
pois segurou-a pelos cabellos e atirou-lhe com a ca
beça de encontro ao muro. 1
A escravinha, exasperada de dôr, e para livrar-se
do aggressor, mordeu-o na mão.
O menino soltou-a immediatamente e correu gri
tando a queixar-se a sua mãe :
- Mamãe ! mamãe ! o diabo da negrinha nova
mordeu-me ! Eu não lhe fiz nada ! Olhe o san
gue !
Faustina olhou mui tranquillamente para a pe
quena ferida do filho e disse para a senzala :
-Elias ! traze o chicote e a negrinha que se
comprou hontem .
Filippa ouviu sobresaltada aquella ordem. Vol
tou-se para o lado da senzala, e na mais angustiosa
espectativa estava, quando viu subir a escada da va
A FOME 151

randa o escravo trazendo Bernardina arrastada e um


grande chicote.
A figura do negro tinha um que de sinistra. A
musculatura athletica, a feia catadura illuminada por
um olhar feroz irradiado de uns olhos pequenos e
injectados, como de cão hydrophobo, aterraram a es
crava e levaram-na a cahir supplicante nos pés de
Faustina :
-Pelas chagas de Christo, minha senhora, per
doe minha filha que é tambem uma creança.
A mulher de Prisco, sem attender á supplica de
Filippa, disse a Elias com todo sangue frio :
- Castiga.
O chicote movido por aquelle braço de ferro ba
teu sobre o corpo da escravinha.
Filippa occultou o rosto entre as mãos, e sen
tindo que o coração estalava de dôr chorava sem
consolo.
Faustina, indifferente á scena que se passava
perto de si, continuava a escolher rendas e borda
dos.
Jacob acompanhava de uma gargalhada gostosa
os gritos de dôr que o chicote arrancava á escravi
nha. O castigo durava havia cinco minutos. A pelle
das costas da creança havia sido rasgada em alguns
pontos pelo açoite ou contundida em negras ecchymo
ses. No chão excrementos liquidos e solidos, produ
ctos do medo e dôr, tornavam ainda mais repugnan
te aquella scena.
A surra continuava quando soou a campainha
152 A FOME

electrica da sala de jantar ; era Prisco que entrava


no gabinete.
O escravo parou o chicote immediatamente.
- Todos para a senzala, disse Faustina.
A escrava que segurava a cesta de rendas, levan
tou-se e foi limpar o assoalho emporcalhado em uma
grande extensão.


I

#
V

Filippa em oito dias de senzala, com o espirito


attribulado, o coração desalentado, sem o conforto de
uma esperança, tinha envelhecido mais do que nos
quarenta annos de captiveiro no sertão. O castigo da
filha havia sido para ella de uma agonia cruciante.
Foi-lhe um dia fatal. Á tarde, quando o espirito con
servava ainda vivas as impressões das scenas da ma
nhã, é chamada com a filha á presença de Faustina.
Custou-lhe um sacrificio enorme obedecer.
A mulher do commendador precisava de alguns
metros de renda, que lhe faltavam para concluir o
enfeite de um vestido. A renda era sertaneja, e por
isso a filha de Filippa foi escolhida para executal-a.
A escrava apresentou-se a Faustina trazendo Ber
nardina pela mão. Em seu rosto não havia um traço,
154 A FOME

uma linha que não denotasse o desgosto, o pezar


que ia-lhe pela alma. Perfilada, muda, com os olhos
cravados no chão, evitando a physionomia da senhora
como um objecto asqueroso, esperava que Faustina
lhe dissesse o que queria de si.
A mulher de Prisco sem dar apreço ás manifes
tações de seu odio e muito menos ás de seu pezar,
indagou das prendas de Bernardina. Filippa respon
deu-lhe enfadada affirmando que a filha mal trocava
bilros.
Faustina não esteve por isso e entregou-lhe uma
almofada com os pertences e a linha necessaria á
renda que Bernardina deveria fazer no praso de oito
dias, praso improrogavel, e sujeita á pena de uma
surra no caso de falta.
Filippa indignada, revoltada mesmo com o pro
cedimento da senhora, recebeu a almofada e voltou á
senzala.
A tarefa era grande e custosa. Impossivel era á
escravinha executal-a. Uma rendeira perita, traba
lhando noite e dia, talvez não a concluisse.
Filippa olhou para a almofada como para uma
nova desgraça. N'aquella mesma tarde deu começo
á renda. Trabalhava com afinco, empregava no ser
viço até as horas do somno e os minutos das refei
ções, e ainda assim os dias se passavam e não tra
ziam-lhe sequer uma esperança de termo á tarefa.
Faltavam dois dias para se acabar o praso e só ha
via menos de metade da renda. Filippa não dormia
e quasi não se alimentava. As mãos tremulas e des
A FOME 155

carnadas retardavam a marcha do serviço ; o troca


mento dos bilros, além de moroso, era imperfeito. O
tremor dos dedos embaraçava o adiantamento do tra
balho ; com muita difficuldade ella conseguia intro
duzir o alfinete no estreito orificio do papelão e as
sim prender a laçada. O praso era de oito dias, e
oito dias durou a sua angustia .
Chegou o dia fatal.
Filippa sentia um desalento percebivel em todas
as linhas do rosto. Sentada a um canto da senzala,
com os olhos fitos na almofada em uma immobili
dade de estatua, via o dia crescer e com elle a apro
ximação de um transe mortal.
Bernardina brincava na feliz inconsciencia de sua
idade.
Faustina já se tinha lembrado da renda, e, como
o marido estivesse em casa, esperava que elle sahisse
afim de chamar a escravinha a contas.
Prisco não queria absolutamente que a mulher
castigasse as peças que tinha para negocio. Que ella
infligisse os maiores castigos aos escravos emprega
dos no serviço domestico pouco ou nada lhe impor
tava.
O commendador á tarde sahiu á rua, e Faustina
aproveitando-lhe a ausencia mandou vir Bernardina
á sala de jantar, onde ella em uma cadeira pregui
çosa lia os jornaes de modas.
Filippa ouviu a ordem, e decidida a soffrer tudo
pela filha, levou a almofada e foi só á presença da
senhora.
12
156 A FOME

O definhamento da escrava, o olhar desvairado


nada influiram no animo de Faustina.
Filippa contou-lhe a triste historia de seus sof
frimentos, as torturas de seu espirito em oito dias
de uma agonia só e mortificante ; mas nada commo
veu a senhora. Quando a escrava suppunha ter jus
tificado a falta da filha, Faustina disse-lhe com uma
frieza sem nome :
- - Mas a tarefa está no meio...
Filippa que até então chorava e supplicava,
n'um impeto de indignação, fitou a senhora com
um olhar feroz e disse-lhe :
Castigue, senhora, mas castigue a mim...
Faustina olhou a escrava com desdem e man
dou dizer a Elias na senzala que trouxesse Bernar
dina e o chicote.
Filippa ouviu a ordem sem proferir palavra e
esperou .
Minutos depois ouviu-se um berreiro infernal na
senzala era Bernardina, que, arrastada pelo negro,
vinha á presença de Faustina.
Elias entrou na sala de jantar com a escravinha,
que passando ao lado da mãe com ella se agarrou, e
com toda a força que tinha. O negro puxava a crean
ça para desligal-a da escrava, mas ella tão segura
estava que só se desligaria quando se lhe desarticu
lassem os membros.
Filippa, n'um impeto de cólera, dá uma forte bo
fetada no negro .
Faustina mordida pelo desrespeito a sua pessoa diz :
A FOME 157

- Castiga todas duas.


O chicote movido pelo braço impiedoso e selva
gem do negro batia n'aquelles dois corpos intima
mente ligados no mais sagrado abraço.
Bernardina atordoava a casa n'um horrivel ber
reiro.

Filippa soffria immovel, como se estivesse pe


trificada. O latego cortava-lhe a pelle, retalhava-lhe
a carne, mas não se ouvia ella soltar um gemido,
sequer um ai ! Vinte vezes talvez não tivesse o chi
cote lhe contundido as costas quando Filippa cae
redondamente no chão, como uma massa inerte, e
segundos depois solta um grito agudo e desconcer
tado, semelhante a um gemido fundo, a um estertor
longo determinado pelo espasmo dos musculos da
larynge.
Bernardina continúa agarrada ao corpo immovel
de sua mãe.
Elias, surprehendido com o acontecimento, recúa
um passo e espera com o chicote erguido orien
tar-se.
―――- É manha, disse Faustina mui tranquillamente.

É um ataque, disse o negro convencido.


-Continúa, Elias.
O negro ia descarregar o chicote quando notou
que o rosto da escrava tornava-se cada vez mais
fulo, cada vez se accentuava mais a côr de figado
assado. Baixou o braço e repetiu para a senhora :
É um ataque .
Faustina desviou os olhos do figurino que exa
*
158 A FOME

minava, e muito tranquillamente fitou o rosto de Fi


lippa.
A epilepsia acabava de invadir aquelle organismo
de um modo subito e terrivel. A lividez do semblan
te, a immobilidade e rigidez do corpo estendido a fio
comprido em um espasmo tonico do systema muscu
lar, davam certeza da abolição de todas as faculdades ;
nem vontade, nem sensibilidade, a menor noção do
mundo exterior ficou-lhe : apenas vivia o systema ner
voso, mas uma vida toda automatica . A respiração
tambem está suspensa, e de sua suspensão resulta a
estase venosa, que vem colorir de violeta a pallidez
fula do rosto.
Pouco mais de um minuto fazia que Filippa ti
nha cahido e ficado immovel, quando os grupos de
musculos das faces são agitados em convulsões cloni
cas. As contracções musculares e o seu relaxamento
dão á physionomia da epileptica uma expressão he
dionda, que se transforma ás vezes em um gesto de
ironia. Os traços do rosto assim modificados por
aquella dança de movimentos desconcertados fazem
um contraste perfeito com o resto do corpo na im
mobilidade de cadaver.
As convulsões que se limitavam aos musculos do
rosto invadem pouco a pouco a musculatura do tron
co e membros . Parece ter-se operado uma resurrei
ção.
Faustina tinha visto os primeiros tremores con
vulsivos e desviado o olhar, que fitou no jornal de
modas.
A FOME 159

O accesso, que seguia a marcha normal, havia


attingido á phase aterradora. As feições de Filippa,
de uma serenidade angelica, estavam completamente
decompostas. Tinha a fronte coberta de rugas e os
supercilios unidos formavam uma só linha, que se
arqueava sobre os olhos sem luz e de grandes pupil
las, e cujas palpebras abertas os deixavam vêr n'uma
agitação constante dentro das orbitas. As faces dis
tendidas em todos os sentidos contrahiam-se em hor
rida careta. Das commissuras dos labios, que em
precipite agitação pareciam segredar, cahiam flocos
de sanguinolenta espuma. A saliva affluia á bôca pelo
movimento dos queixos em automatica mastigação
misturada ao sangue, que vertiam os bordos da lin
gua retalhados pelos dentes, e sahindo descia ao lon
go do pescoço colorindo de vermelho as veias, que a
turgidez tornava mais salientes. A cabeça obedecia
aos musculos cervicaes e movia-se em repetidas ve
nias, ou gesticulava negando ou affirmando, emquan
to o tronco em bruscos movimentos levantava-se e
cahia batendo no assoalho em monotono compasso.
Os membros thoracicos estendidos ao longo do corpo
em uma rigidez tetanica, contrahiam os musculos
flexores dos dedos obrigando os pollegares a se fe
charem sobre as palmas das mãos e os outros dedos
a se dobrarem sobre elles. Tesos os braços eram agi
tados por tremores mais ou menos intensos. Os mem
bros abdominaes, obedecendo ás imposições do mes
mo centro, arremedavam os thoracicos, tinham con
vulsões e fechavam os dedos dos pés.
160 A FOME

A livida turgidez da face cada vez mais se accen


tuava mantida pelo tetanismo dos musculos do tho
rax. A ultima phase do accesso se annunciava pela
respiração, que pouco a pouco se restabelecia. Ast
primeiras porções de ar penetram na trachea e con
seguem chegar ao pulmão, mas fazem ouvir atraves
sando a arvore bronchica um ruido estridente, um
estertor de moribundo. Relaxava-se mais e mais a
musculatura do peito tanto quanto era preciso á di
- latação do thorax . O pulmão enche-se de ar e a onda
sanguinea, que estava em estase, caminha a seu des
tino, e, assim restabelecidas a circulação e respiração,
foi desapparecendo a cyanose do rosto e a pelle re
adquirindo o colorido normal. Uma onda de suor ex
travasando-se dos póros banhou o corpo todo, ao mes
mo tempo que a bexiga em um instante de inconti
nencia deixou vazar toda a urina que continha .
A ultima phase do accesso ia terminar. As con
vulsões clonicas vão diminuindo de intensidade, e dos
violentos espasmos restam ligeiros tremores. As func
ções respiratoria e circulatoria se exercem no ry
thmo normal, mas ouve-se ainda um gargarejo, um
estertor de coma profunda. Restabelecida a ordem na
vida organica, a escrava ainda se conserva algum
tempo sem ter noções do mundo exterior. Um colla
pso geral, entretanto, annuncia que a sensibilidade e
a consciencia vão voltar. As palpebras cerraram-se e
ella parecia adormecida. Alguns minutos esteve n'es
se marasmo, n'esse somno morbido. Voltando a si
abriu os olhos, levantou-se e como se acordasse de
A FOME 161

um pesadelo, olhou para tudo que a cercava, e ficou


de pé em um estado de completa apathia.
Faustina vendo-a assim, e temendo que o marido
surprehendesse aquella scena, ordenou a Elias que
levasse a epileptica e a filha para a senzala.
O negro tomou Filippa pela mão, e ella seguida
de Bernardina o acompanhou com uma passividade
de automato. O escravo levou-a até á rêde e dei
tou-a.
Filippa sentia uma fadiga penivel e uma dôr de
cabeça que lhe estalava os miolos. Uma vez deitada
adormeceu. Aquelle somno profundo e fóra de tempo
não era physiologico, era um phenomeno morbido.
Dormiu até pouco depois de meia noite. Acordou
mais restaurada, boa da cephalalgia e com a intelli
gencia em estado de perfeita lucidez. O que se pas
sou comsigo até o momento de se desenvolver n'el
la a nevrose, veio ter á imaginação. Ella ainda quiz
acreditar um sonho tudo aquillo, mas em breve se
convenceu da tremenda verdade, palpou as ecchymo
ses que o chicote lhe havia produzido no corpo, e
n'um desespero que tocava ao delirio, á allucinação,
teve a idéa de matar-se. Esse pensamento mau en
cheu-lhe totalmente cerebro ; não era mais um de
sejo, era uma aspiração e que minutos depois torna
va-se para o seu espirito a maior e a mais urgente
necessidade.
Resolvida a acabar a vida, levantou-se e ti
rando uma das cordas da rêde amarrou no beiral da
casa e fez o laço que devia estrangulal-a. Preparado
162 A FOME

tudo para o crime, lembrou-se da filha e foi dizer


lhe o ultimo adeus .
A creança dormia profundamente .
Filippa ajoelhou-se junto á rêde da menina e
fitando-a fallou em voz baixa, como para justificar o
seu procedimento :
Trabalhei toda a minha mocidade para os
meus antigos senhores, fui amiga sincera e dedicada.
de minha senhora, amamentei todos os seus filhos,
poupando-lhe assim trabalhos e desgostos ; e que
tive eu em paga de tudo isso ? A ingratidão como re
compensa. Ella dizia muitas vezes que amava-me,
mas se assim era, o seu amor deixou- se dominar pelo
interesse. Ensinou-me o caminho do bem dando-me
bons livros para lêr e edificar-me nos exemplos da
virtude ; e de que me serviu tudo isso ? Sei hoje para
avaliar melhor a perversidade d'ella e me fazer mais
desgraçada. Quantas vezes ella me prometteu a li
berdade ! quantas vezes mostrou-me a importancia do
premio que ia dar-me em recompensa de meus ser
viços, tudo para eu conhecer depois quão pesados são
os ferros do captiveiro ! Ella que foi minha compa
nheira de infancia, que recebeu de mim as provas
mais reaes de dedicação , vendeu-me como se eu fosse
simplesmente uma besta de carga ! O que poderei es
perar d'essa nova senhora, a quem nunca prestei o
menor serviço ? Devo morrer, devo acabar de uma
vez com este martyrio lento. Ella ensinou-me a crêr
na religião do Christo, e esta religião condemna a
quem se mata. Ella enganou-me, porque me promet
A FOME 163

teu libertar ; a religião manda amar o proximo e ella


vendeu-me ; é portanto falsa a doutrina que ella me
ensinou. Pedi que me vendessem só, que ficassem
comtigo, minha filha, e os ingratos foram surdos aos
meus rogos. Nada os commoveu ! Não tive direito á
menor recompensa e me fizeram seguir para o açou
gue. Filha de minha alma, vou deixar-te ; de que te
poderei servir no mundo ? Morrendo poupar-te-hei a
afflicção de vêr o chicote rasgar-me as carnes ! Ai !
custa-me tanto deixar-te.
E Filippa, inclinando-se sobre a filha para bei
jal-a, sentiu o contacto do crucifixo, que lhe pendia
do pescoço. Estremeceu. Uma centelha de fé escapou
do gelo do scepticismo e ficára-lhe n'alma. Na tribu
lação havia esquecido tudo, as horas asceticas de ou
tr'ora, e quasi a crença na outra vida. O contacto do
crucifixo de ouro, a frialdade do metal transindo-lhe
as carnes, transportaram o seu espirito em um ins
tante para o passado. Aquella cruz era uma lem
brança de Josepha, um mimo que esta lhe havia
feito no dia do baptisamento de Carolina.
Filippa tirou a imagem do pescoço e sem a cos
tumada reverencia fitou-a e continuou a despedida :
--
Disseram-me que rogasse a Deus em minhas
tribulações ; vou tentar esse recurso ; talvez seja
tambem falso como as promessas de minha senhora.
Tentarei a oração, quero saber se existe alguem que
escute os rogos do escravo, algum sobrenatural, mas
justo, omnipotente e misericordioso. Rezarei, implo
rarei, e se da oração, da supplica, não vier conforto,
164 A FOME

esperança, resignação, não voltarei, minha filha, pois


estou convencida que minha vida será para ti uma
tortura.
Filippa deita o crucifixo ao pescoço, beija a
filha muitas vezes, e quando se ergue, sente que um
frio, como uma aragem de gelo, transe-lhe as carnes
dos pés á cabeça ; era uma oura epileptica, que pre
cedia a um segundo accesso e ainda mais intenso .
VI

Ignacio da Paixão, logo que concluiu a venda dos


escravos, foi para o hotel em que tinha almoçado
com Viriato, jantou e tomou um quarto.
O corretor dera-lhe as melhores informações do
hoteleiro. Á custa do matuto tinha ganho n'aquelle
dia duas commissões e ainda esperava uma terceira.
Certo de que Ignacio pernoitaria no hotel, foi tratar
de ganhar a ultima gorgeta. Seguiu pela rua de ....
e entrou em uma casa de modesta apparencia. Bateu
e veio recebel-o um homem de meia idade, que, de
pois de apertar amigavelmente a mão do corretor,
disse-lhe :
- Ha muito tempo que não me dá o prazer de
vêl-o !
----- Sabe que os meus afazeres não
me permit
166 A FOME

tem visitar os amigos senão quando ha algum ne


gocio a tratar.
Então ! temos novidade ?
-Uma mina ! melhor menos difficil do que a
ultima.
- -Está certo ?
-- Perfeitamente. Examinei o terreno, e havendo

tactica o pato cahirá no laço .


-Talvez não seja tão facil como suppõe !
Facilimo ! O marreco além de gostar, como
me disse, do divertimento , atira com polvora alheia
tem mais outra coisa : toma bem o seu codorio ;
havendo por lá alguma cerveja preparada elle cahirá
como um cassaco .
― Onde está elle ?
-No hotel de ....
- Vem só ?
Graças a Deus.
Quanto poderá lascar ? O seu nome ?
-Ficando depennado , quatro contos . Baptisou-se
por Ignacio da Paixão.
-Encontral- o -ei á noite ?
- É provavel, supponho que elle não terá que

fazer na rua. Creio tel-o satisfeito agora o promet


tido .
Viriato despediu-se recebendo dez mil reis de
gorgeta.
No salão dos bilhares do hotel, Ignacio da Pai
xão, sentado á noite ao lado de uma mesa de mar
more, aperuava uma partida e em que tres amado
A FOME 167

res disputavam a victoria em uma negra, e tão en


tretido estava que não viu os olhares curiosos que
demoravam sobre elle dois homens decentemente
vestidos e que acabavam de entrar no salão. Um
d'elles era um commissario do governo encarregado
de distribuir soccorros publicos, um typo commum,
mas figura obrigada em tempo de miseria. O outro
era um jogador de profissão, aquelle que, havia
pouco tempo, tinha recebido em sua casa o cor
retor e pago a noticia. Era elle um homemzinho
feio, rachitico, nariz vermelho como um pimentão,
olhos doentes encaixilhados em oculos escuros de
quatro vidros. Fallava com difficuldade e gaguejando,
mas jogava admiravelmente o trombone.
O commissario pediu duas chicaras de café e
sentou-se perto do matuto. O jogador já tinha con
tado ao companheiro a noticia que recebera de Vi
riato. Era necessario saber quem era o Ignacio da
Paixão.
Pelo trajo e a attenção ao bilhar, era possivel
que fosse aquelle o individuo que procuravam. O
commissario levantou-se e dirigiu a palavra ao ma
tuto.
É v. s.ª o capitão Feitosa ?
-Não senhor, sou o capitão Ignacio da Paixão.
Desculpe o incommodo, disse o commissario
sentando-se em seu logar.
-É o sujeito, disse em voz baixa para o joga
dor.
- Então podemos dar o recado.
168 A FOME

- Sabes que volto hoje á rua de .... n.° 50 a

vêr se a fortuna me protege como a noite passada.


Ignacio fitava com interesse o commissario e o
companheiro, e era todo ouvidos para o dialogo que
começava.
-O jogo prolongou-se até duas horas da ma
drugada e o banqueiro sahiu com um prejuizo de
dez contos de reis.
-Estava então caipora !
- É o que lhe parece. O sujeito só sendo doudo ;
--

quer teimar com a sorte. Dizem que é um grande


ricaço do sul e que joga para se distrahir.
-Diabo leve tal gosto.
-
Seja como fôr, vou aproveital- o emquanto se
demora por aqui . Elle segue n'estes quatro dias para
o norte ; é preciso que os pobres, como nós, fiquem
com alguma parte do thesouro provavelmente rou
bado.
-
- Á vista de suas informações irei tambem hoje
á rua de .... n.º 50 a vêr se ganho com que pas
sar um anno.
――――――
Não se arrependerá. E vamos-nos aproximan
do, que o divertimento começa ás dez horas em
ponto.
E o commissario sahiu com o jogador sem olha
rem para o matuto.
Ignacio da Paixão ouviu com grande interesse a
conversação. O jogo era a sua paixão desde menino.
Jogava no sertão o trinta e um de boca, e tinha-se
em conta de felizardo. A occasião era opportuna e
A FOME 169

pensou que não estaria longe o momento de ser rico.


Elle deveria regressar para o interior no dia seguinte
com viveres para seu parente. Dominava-o o desejo
de ir á casa do jogo e tentar a sorte. Sua consciencia
repellia esta idéa ; arriscar o dinheiro alheio, fossem
quaes fossem as probabilidades de lucro, não era ho
nesto. O matuto cedeu aos caprichos da paixão e le
vando todo o dinheiro de Freitas foi jogar. Com
difficuldade encontrou a rua e a casa indicadas. Pa
rou á porta, que estava aberta, e olhou para o inte
rior. Apenas viu um corredor estreito illuminado por
um candieiro de kerosene. Escutou algum tempo e
ouviu que fallavam lá por dentro. Teve receios de
entrar ; examinou algumas vezes o numero da casa,
era o mesmo que ouvira no hotel. Depois de mais
alguns segundos de indecisão, decidiu-se e entrou.
Vencido o corredor chegou á sala de jogo, que suffi
cientemente illuminada por quatro lampadas a pe
troleo, de luz dupla, mobilada com grande numero
de cadeiras americanas, estava já áquella hora re
pleta de jogadores.
O matuto saudou os circumstantes com uma boa
noite, dita por entre dentes e em tom de desaponta
mento.
No meio da sala estava uma mesa de tamanho
regular coberta com um panno verde escuro, de lã, e
no qual via-se traçado a giz um quadrado e dividido
ainda por um traço no centro. Sobre a mesa estava
o simples instrumento chamado trombone : é elle
apenas um tubo curto, de pouco diametro, e adapta
170 A FOME

do por suas extremidades a bôcas semelhantes á do


trombone. Na parte média do tubo cruzam-se dois
fios de linho bem tesos atravessando o espaço forma
do pelo canudo. Depois que Ignacio entrou , fechou-se
a porta da rua ; não se esperava mais ninguem.
O jogo reunia alli uma admiravel variedade de
typos. Quasi todas as classes da sociedade estavam
representadas, sendo a dos commissarios da sêcca a
que mais se distinguia pelo numero. O banqueiro do
trombone chamava-se Carrilho da Paz e conversava
com o commissario que o acompanhou ao hotel, sobre
a necessidade de ser n'aquella noite feita a banca por
seu ajudante, afim de Ignacio nada desconfiar.
Ficou assentado isso. O ajudante era ainda moço,
porém tão viciado estava como o velho mais peralta.
Tendo recebido as ordens do patrão sentou- se ao
lado da mesa e abriu a caixa das fixas, que separou
conforme os valores ; depois, tirou de uma caixinha
de pau tres grandes dados, que atirou sobre a mesa.
Quando os dados cahiam sobre o panno muitos dos
jogadores se aproximavam e tomaram assento ; era
o primeiro signal. Outros ficaram de pé a aperuar.
Houve alguns ditos sobre os dados.
――
- Ha muito que não appareciam !
— Tenho minhas queixas de vossês !

- Honre-me com sua protecção, como da ultima


vez.
O banqueiro dirigiu-se aos parceiros ; o silencio
foi geral, todos queriam escutal-o .
-Meus senhores, vamos começar o divertimento ;
A FOME 171

a banca é de cinco contos de reis ; a gata é a sorte


do banqueiro, é ella tres quadras ; dando, levarei me
tade do que houver na mesa.
E tomando o trombone pela garganta virou-lhe
uma das bôcas para os jogadores, afim de verem que
os fios estavam perfeitos.
Ignacio da Paixão nada entendia d'aquelle jogo.
O commissario comprehendeu sua ignorancia e se
aproximou d'elle. Para inspirar-lhe confiança tirou da
carteira algumas notas de duzentos mil reis e ao
mesmo tempo perguntou-lhe em voz baixa :
Não joga ?
-Tenho vontade, mas é a primeira vez que vejo
este jogo .
-Não é preciso saber, elle não depende do cal
culo e sim da fortuna. Vê aquella divisão feita por
um risco branco no panno?
―――― Sim, senhor.

-Pois bem, deve fazer a sua parada dentro de


um dos dois quadros conforme sua vontade ou palpite.
Se os dados derem um dos numeros do lado em que
parou, ganhará ; ao contrario, perderá.
Ignacio ficou satisfeito com as explicações e foi
sentar-se junto á mesa com o commissario, que lhe
ficou á esquerda.
O banqueiro agitou os dados dentro do copo de
sola e despejou-os na bôca escancarada do trombone.
Já as paradas estavam feitas. O silencio era comple
to, as respirações estavam suspensas e os olhos se fi
taram todos no trombone. Os dados atravessaram a
13
172 A FOME

garganta do instrumento e cahiram vagarosa e silen


ciosamente sobre o panno. O banqueiro suspendeu o
trombone ; os olhos dos jogadores parecia quererem
sahir das orbitas, nem um movimento de palpebras !
Fez-se a luz, foi recolhido o lucro e pago o prejuizo.
Quantos gestos differentes ! A physionomia dos favo
recidos da fortuna enfeitavam os sorrisos , as expres
sões do contentamento ; quanta alegria nos olhares !
O contrario de tudo isso nos engeitados da sorte.
Sobrolhos carregados, rostos rugados de raiva, decom
postos pelo desapontamento !
Quanto despeito nas feições !
Quatro vezes os dados tinham cahido sobre o
panno , quando Ignacio se resolveu a fazer uma para
da. Quiz deixal-a no grande, depois no pequeno, dez
vezes esteve indeciso, até que deixou-a ficar no grande
com a do commissario.
A entrada de Ignacio e a sua indecisão chamavam
a attenção dos parceiros. Alguns mais supersticiosos
retiraram as paradas, outros murmuraram entre den
tes palavras que não se ouviram . O banqueiro ia le
vantar o trombone, o interesse de vêr o numero, que
marcavam os dados , era d'esta vez maior. O instru
mento foi suspenso e nada haviam dito os dados,
mais outra vez e ainda nada ! Os palpites appareceram
e as superstições tambem.
Retiraram-se paradas, augmentaram-se outras,
muitas se fizeram de novo e o banqueiro em nove
vezes consecutivas não conseguiu uma sorte ! Houve
uma pausa, o banqueiro tomou respiração inteira e
A FOME 173

agitou fortemente os dados, e fel-os engulir rapida


mente pelo trombone. Este incidente fez apparecer
novos palpites e alguns duplicaram as paradas. Os
jogadores, mudos, immoveis, abriam apenas mais as
palpebras, como se assim augmentasse-lhes a visão. Os
dados foram descobertos. Um ruido surdo, como um
gemido abafado se ouviu, as physionomias se carre
garam de colera, alguns concentraram a furia nos
olhares, e assim feriam Ignacio a quem maldiziam em
voz baixa:
The Maus raios te partam, caipora do inferno.
Entre aquelles semblantes feios de colera via-se
o rosto alegre do banqueiro, que solicito dividia ao
meio as paradas, graças a uma gata que os dados
tinham formado.
Recolhido o lucro á gaveta, o jogo continuou. Os
dados cahiam sobre o panno e os mais queimados
com a gata triplicaram as paradas.
O trombone levantou-se e maior foi o desconten
tamento. Cabellos foram arrancados, ouviu-se o ran
ger de dentes, fizeram-se mil gestos de desesperação
e o banqueiro mais alegre ainda recolhia á gaveta
metade das paradas, o lucro da regata.
Alguns dos parceiros se levantaram despeitados
e foram para a fileira dos perús ; outros, que estavam
medrosos, tiveram palpites e entraram no jogo. Ia,
pensavam estes, virar a sorte.
Ignacio da Paixão era um dos enfermos d'aquel
la molestia contagiosa. Com os nervos excitados por
todas aquellas emoções, não se lembrava que estava
*
174 A FOME

arriscando á sorte o dinheiro alheio . Um copo de cer


veja préviamente misturado com cognac o excitaram
mais, e então elle, com uma coragem de allucinado,
atirou-se ao jogo como um desesperado. As primeiras
paradas ganhou o lucro já subia a mais de um con
to de reis, mas elle na ambição de todas as notas do
banqueiro continuou até de madrugada , quando se
acabou o jogo, retirando-se para o hotel com um des
falque no dinheiro de Freitas de mais de dois contos
de reis.
Chegando ao hotel foi para o quarto e ahi ainda
meio aturdido contou as sedulas, que tinha no bolso,
e certo do seu crime deitou-se e adormeceu.
Dormiu e dormiu até cinco horas da tarde, quan
do despertou. Os acontecimentos da ultima noite se
The pintaram na imaginação.
Contou outra vez o dinheiro na esperança de que
a mente o estivesse illudindo e se convenceu de que
era real o desfalque.
Era possivel resarcir o prejuizo e o avezado joga
dor pediu jantar, e depois de satisfeitas as necessida
des do estomago foi para o salão do bilhar a espe
rar a hora do jogo. Sentado a um canto, ouvindo o
tic- tac do relogio, o matuto fazia os mais altos castel
los . Ganhava n'aquella noite uma dezena de contos e
acabava por ser banqueiro em logar do supposto ri
caço.
Levou assim até nove horas da noite, quando se
guiu para a casa de jogo. Já lá o esperavam.
Carrilho da Paz estava com o ouvido álerta, es
A FOME 175

perando ouvir os passos do matuto. A cerveja estava


I preparada.
Ignacio entrou, deu boa noite e sentou-se isolado.
O sujeito vem zangado, disse o commissario
ao ouvido de Carrilho.
— Tanto melhor, quanto mais queimado mais
perderá.
Precedido das mesmas ceremonias da ultima noi
te começou o jogo.
Ignacio atirou-se ao primeiro rolar dos dados. Au
daz, temerario se mostrava porque estava convencido
de que ia recuperar o perdido, ia ganhar muito di
nheiro. Os dados pareciam obedecel-o. A sorte procu
rava-o onde quer que estivesse a sua parada. Em
pouco tempo tinha resarcido o prejuizo e ganho al
guns centos de mil reis. Não pensou em se retirar, e
certo de que a fortuna continuaria a protegel-o, fez uma
grande parada. A sorte virou e o azar que tanto o
havia atormentado na vespera, voltou a perseguil-o.
A parada desapparece e depois d'esta mais outra e
mais outra. Ignacio em crescente excitação deixou-se
dominar por aquella indomita paixão e perdeu até o
ultimo vintem. Recolhida a derradeira sedula á gave
ta do banqueiro, o matuto levantou-se e lançou um
olhar feroz e desvairado para todos que o cercavam
e sahiu para o hotel.
VII

Eram nove horas da noite. Prisco da Trindade e


sua mulher deixavam o palacete e iam a carro a um
baile dado a uma entidade politica da terra.
O commendador ao lado de Faustina em uma
postura toda estudada, com o tronco em uma rigoro
sa vertical, deixava bem á vista a venera, com que o
governo o havia distinguido por serviços á humani
dade, dizia o decreto. Faustina, não menos futil, ia
cheia de si porque trajava um vestido de sêda gris
perle, com um panier da ultima moda, e adornada
com brilhantes no valor de alguns contos de reis.
Chegaram á casa do baile e foram recebidos no tope
da escadaria pela commissão receptora com toda a
distincção de que era crédora a sua fortuna. As lu
178 A FOME

zes a se reflectirem nos crystaes, que ornavam os sa


lões, tinham um effeito deslumbrante. As salas esta
vam repletas de convivas. Os trajes luxuosos e as
mesas lautas e opiparas faziam um contraste profun
do e terrivel com a miseria de milhares de famintos,
que, maltrapilhos e a morrer de fome, desabrigados
a poucos passos de distancia nas ruas e praças pu
blicas, eram victimas da mais atroz das calamidades.
Não era um escarneo á miseria, mas uma indif
ferença revoltante ! O baile corria animado. O bote
quim sempre repleto de visitas e o champagne e a
cerveja a espumar nas taças. Tudo alli era de uma
puerilidade comica. Tudo frivolo desde o dialogo
banal dos pares dançantes até ás partidas de volta
rete jogadas em uma sala por alguns velhos viciosos.
As conversações eram uma photographia viva
do meio e das personagens . Criticas grosseiras dos
convivas ás toilettes, indagações sobre o cambio do
dia, apreciações sobre o preço dos generos do paiz,
sobre os depositos de farinha e carne do sul, consi
derações sobre a alta dos escravos, opiniões sobre
soccorros publicos, e compra de viveres na capital,
emfim uma palestra indigesta sobre a politica da
provincia e que absorvia grande numero de indivi
duos formando grupos aos vãos das portas.
Prisco não escapou ao contagio da tagarellice. O
seu grupo era da elite da terra, e nem por isso dei
xava de ser o mesmo o assumpto da palestra. A elei
ção para deputados á assembléa geral estava proxi
ma e marcado o dia e hora, muito embora dois ter
A FOME 179

ços do eleitorado da provincia estivessem desloca


dos, tivessem emigrado e carregassem pedras da pe
dreira do Mucuripe .
O commendador pertencia á politica da situação
e por sua fortuna tinha voto na escolha dos candida
tos á deputação. Um dos deputados em perspectiva
cercava Prisco de todas as attenções. O aspirante in
sinuava-se no animo do commendador e pelo ponto
mais vulneravel. Sabia elle que o negreiro sonhava
noite e dia com uma honraria, o titulo de barão, e
que uma promessa feita a elle com firmeza particu
larmente, serviria de muito á sua candidatura. O
agiota politico tocou no ponto e o commendador tor
nou-se todo attenção. Contou-lhe que já no fim da
sessão soube pelo ministerio do imperio de um dese
jo seu muito justo e contava, pelo modo com que se
exprimia o alto funccionario, ser negocio decidido ;
mas, como até áquella data não tivesse sido concedi
da a graça, elle se compromettia desde já, caso con
tinuasse a merecer a confiança de seus correligiona
rios, voltando á camara, ser o seu primeiro serviço
apresentar o nome do commendador á munificencia
do governo imperial.
Prisco acreditou-se barão e n'um contentamento
infantil prometteu todo o auxilio á candidatura do
correligionario e ainda mais algum dinheiro, caso no
circulo houvesse alguns eleitores a comprar. Os pro
testos de gratidão do commendador e as explicações
do candidato iriam muito longe se não avisassem
"
que estava servido o chá.
180 A FOME

Sentaram-se á mesa e foi servido um optimo chá


de garfo, um jantar opiparo. A mesa estava esplen
dida ; algumas especies de gallinaceos e ruminantes
ornavam-na como primores da arte culinaria. De es
paço a espaço viam-se estendidas na alva toalha lis
tas em caracteres gothicos e na lingua de Hugo, in
novação devida a João das Regras, um typo que se
dizia mestre de ceremonias e muito entendido em
etiqueta. Um jantar que não tinha uma lista em
francez, começando no alto por letras gordas - Me
nu du dîner - dizia o Regras, não é de gente edu
cada. Á vista d'isso foi elle convidado para dirigir o
serviço da mesa. Pedanteou tudo . Não houve galli
nha, nem pato, nem perú que não fosse chrismado.
Dos convivas uma trigesima parte mal traduzia o
francez, e no entanto o Regras annunciava assim :
dindon á commendador Prisco, poule á Semião de
Arruda, mouton a Henophonte da Silveira, etc., etc.
O champagne espumava nas taças desafiando o
appetite, que era invejavel.
Satisfeitas as necessidades do estomago e em
muitos os caprichos da gula, começaram os brindes.
Reinou uma epidemia de discursos bajulatorios. Em
primeiro logar foi saudado o typo a quem era offe
recido o baile. Era elle um individuo muito com
mum ; entretanto, emprestaram-lhe todas as virtudes
civicas e christãs .
O commendador Prisco foi brindado em segundo
logar ; elle era a primeira figura metallica da festa,
representava algumas dezenas de apolices da divida
A FOME 181

publica. Deram-lhe talento, illustração, virtude, em


fim thurificaram-no com todo o incenso da bajulação.
O conviva que fazia o elogio biographico do commen
dador, esgotando o vocabulario bajulatorio, passou a
saudar D. Faustina, a quem emprestou todas as vir
tudes de um coração de anjo.
Um grupo de creanças, que tinha acompanha
do os paes ao baile, depois de um assalto á mesa
dos dôces fazia uma bulha infernal na saleta da
orchestra. Apoderou-se dos instrumentos de musica
e n'um concerto de notas desafinadas atordoava
tudo.
Ás tres horas da madrugada fez-se o brinde de
honra a S. M. o Imperador, e depois de se dançar
mais uma contradança, dissolveu- se a reunião.
Prisco e Faustina chegaram ao palacete ás qua
tro horas da manhã. Tudo era silencio alli.
Na senzala dormiam extenuados os escravos, mas
extenuados no deboche. Só Filippa velava ; só ella
em amargurada vigilia vira anoitecer e veria ama
nhecer! Tinha a alma enferma. A nevrose havia-lhe
produzido no cerebro grandes desordens. Os centros
nervosos mais ou menos affectados determinavam
uma verdadeira monomania religiosa. Quando tornou
a si do segundo accesso, afastou aterrada da mente
a idéa do suicidio e cahiu no mais rigoroso ascetis
mo. Havia dito no auge da dôr : haverá um Deus
dos escravos ?... Existirá alguem sobrenatural, forte
e poderoso, mas tambem justo e que ouça os rogos
d'esses infelizes ? Os brancos têm o seu Deus, que
182 A FOME

dizem ser de misericordia, deve ser differente do nosso,


se é que existe, porque elles são felizes e nós somos
desgraçados.
Filippa procurava esquecer aquellas palavras
como uma horrida blasphemia. Ascetica, parecia ou
vir-lhe segredarem ao ouvido : - Bemaventurados os
que soffrem com paciencia, porque d'elles será o rei
no do céo.
A oura epileptica acreditou um aviso do céo. Pen
sava na outra vida como se a estivesse vendo, tocan
do-a. Daria tudo para a salvação de sua alma, soffre
ria os maiores martyrios com a esperança dos gozos
ineffaveis da bemaventurança. Rezava noite e dia, e
com tanta reverencia prostrada diante do seu cruci
fixo, como se estivesse perante o proprio Deus . De
mãos postas, palpebras cerradas e de joelhos, ficava
horas inteiras em extasis, em muda contemplação
das maravilhas que via em espirito na côrte celeste.
Desejava a morte, não para descançar dos trabalhos
da vida, mas para gozar as delicias eternas, para
unir-se com seu pae celestial. Em suas orações pedia
a Deus a morte da filha, que acreditava um anjo e
que iria cantar - gloria - junto ao throno do Omni
potente. Assim era a vida de Filippa depois que
foi atacada de epilepsia .
Prisco ainda teve tempo de ir á senzala antes de
amanhecer dia. Esteve na estrebaria com a mulata
e voltou depois ao leito da esposa.
Dormiram até oito horas da manhã, mas um
somno agitado por sonhos maus.
A FOME 183

Faustina foi a primeira que acordou, e, desper


tando Prisco, disse-lhe :
-Que noite horrivel passei ! que pesadelos me
donhos tive ! ...
―― - Então estavamos apostados.
O champagne e o
perú fizeram-me sonhar asneiras de fazer rir.
-Então tiveste pesadelos ? 1

Quatro pelo menos.


Conta-me algum.
- Vá o mais engraçado e o que mais amedron
tou-me. Sonhava que fazia uma viagem pelo interior
da provincia quando fui atacado pelos Calangros,
preso e depois vendido como escravo para o Rio de
Janeiro. Era então eu bem preto e muito moço. Che
gando ao mercado fui vendido a um fazendeiro de S.
Paulo, com quem tive de seguir acompanhado de ou
tros companheiros, e, coisa singular, eram elles os
mesmos de minha ultima remessa. A fazenda era
importante e tinha mais de seiscentos captivos. Um
dia depois de minha chegada fui mandado para o ser
viço ; o sol queimava-me a pelle, a enxada me feria
as mãos e o feitor vigiava-me de chicote em punho.
Parei de cançado, offegante era a minha respiração
e o feitor advertiu-me com uma duzia de chicotadas
de que o escravo não tinha o direito de descançar
um instante no serviço do senhor. Acordei aterrado,
sentia retalhada a carne das costas pelo açoite !
Que coincidencia ! Escravos tambem me ator
mentaram em sonhos. A escrava Filippa amarrou
me e afiava um punhal para matar-me. Eu gritava
184 A FOME

pedindo soccorro e a meus gritos acudiam escravos


bem pretos, desconhecidos, de alvissimos dentes, que
vendo-me soffrer riam, gargalhavam e diziam em al
tas vozes : quem com ferro fere com ferro será fe
rido. Depois cahiam de chofre no chão , soltavam um
grito agudo, desconcertado, e se estorciam em horri
das convulsões. Gelada de medo acordei, e felizmen
te já era dia claro.
- E sériamente tiveste medo ?
-E horrivel ! Quando embarcas os escravos ?
Estarás persuadida de que a escrava te quer
matar?
-Não , porém ...
――― - Muitos ainda vão ser vaccinados e entre elles
a escravinha filha d'ella.
--
E não podes vendel-a aqui mesmo ?
- Devéras ! ainda estás com medo ? Se receias

alguma coisa, hoje mesmo mando botar a escrava no


tronco.
-
E as palavras quem com ferro fere... ?
E feriste alguem ?
Não, mas...
- Breve te verás livre da negra .
Faustina retirou-se para a sala de jantar um pou
co impressionada com o sonho, e isso contra o seu
temperamento.
VIII

Ignacio da Paixão chegou ao hotel sem um vintem.


Era immensa a vergonha que o esperava.
Como salvar-se das tribulações ? Pensou em ma
tar-se, esteve ainda com a faca fóra da bainha, não
teve coragem de pôr a idéa em pratica. Deitou-se e
adormeceu quasi de manhã. Dormiu bem. Quando
acordou, estava mais acostumado com o crime. Os acon
tecimentos da ultima noite vieram-se postar á sua
frente, mas elle repelliu-os. Uma idéa o absorvia todo.
A paixão pelo jogo era n'elle uma molestia congenita.
Não parecia o mesmo homem. A expressão de
funda tristeza, que ennoitava-lhe o semblante, havia
desapparecido. Apenas uns tons de preoccupação per
cebiam-se em traços rasos no rosto. Meditava. Esteve
algum tempo com o olhar fito no chão, depois ergueu
186 A FOME

se do leito, vestiu-se e sahiu para o quintal do hotel,


como para pôr em pratica uma idéa amadurecida. Foi
ter com o famulo, que o havia acompanhado á For
taleza. É elle um homem bom e chama-se Manoel da
Paciencia. Tem estatura regular, côr parda, organisa
ção forte e sadia, e menos de trinta annos de idade.
É só no mundo e nunca pensou em casar- se. Não
conheceu os paes e julga não ter parentes no mundo.
O dia de hoje é-lhe indifferente como o de ámanhã.
Nunca tivera a mais humilde aspiração em toda a vida
e n'isso consiste toda a sua felicidade. Sempre alegre,
sempre satisfeito, pouco lhe importa a pequenez do
pão e a pobreza do vestuario. Havia muitos annos
que era famulo de Ignacio da Paixão, o qual dava-lhe
alimentação e roupa, e recebia d'elle o serviço d'um
bom escravo. Paciencia teria sido um grande philo
sopho se fosse outra a sua educação moral. Affeiçoára
se a Ignacio e lhe era tão fiel como o mais fiel dos
cães. 1
O matuto procurou o famulo e disse-lhe :
―――- Então, Manoel, a sêcca continúa e tem de aca
bar tudo isso ?
-Senhor , sim .
- Estou vendo que lá em cima acaba-se tudo de
fome.
Meu amo é quem sabe.
―――- Dize a tua opinião.
- - É a de vossemecê.
Não achas que devemos nos mudar d'esta ter
ra ?
A FOME 187


Vossemecê é que manda.
- Estou com vontade de embarcar para um lo
gar onde ha fartura ; não achas bom?
-Meu amo indo...
――――
E queres ir commigo ?
-Senhor, sim.
-Temos de passar boa vida ; depois de arruma
dos lá, voltaremos para levar tua ama.
Está bom assim.
- Pois bem, eu hoje vou deixar-te em casa de
um amigo meu, o senhor de Filippa e dos outros.
Ficarás lá até o dia de embarcarmos. É preciso lá
agradares os brancos. A gente da cidade é arisca.
-Senhor, sim.
- -Logo que chegares ha de vir um doutor te re
vistar, porque o velho dono da casa é muito birrento
e poderá pensar que estás doente de algum mal ruim,
e elle tem muita escravatura. E ficas triste indo ficar
lá até o dia do embarque ?
-Senhor, não ; meu amo querendo estou prom
pto.
-Então vaes satisfeito ?
-Senhor, sim.
- Pois bem, arruma a tua maca, que virei te
chamar quando fôr tempo.
-Senhor, sim.
Ignacio da Paixão voltou ao quarto completamente
satisfeito. A mais um crime ia arrastal-o o jogo. Ia
vender o seu leal servo para ter mais alguns mil reis
para jogar. Sem reflectir na enormidade do attentado
14
188 A FOME

contra a liberdade de Paciencia, dirigiu-se acompa


nhado do famulo a casa de Prisco .
O commendador estava no gabinete.
Ignacio da Paixão entrou só .
-Então ainda por aqui, perguntou o traficante
dando ao matuto as pontas dos dedos.
-
Sim, senhor. Não tive tempo de me arrumar
e nem achei freteiros para o sertão. Trago um es
cravo para vender a v. s. É um negro bonito e
bom. Só o vendo porque as circumstancias o exi
gem . É meu fiel desde rapaz. Achei uma partida de
farinha em conta e não ha geito senão leval-a para
me arremediar.
-E onde está a peça?
- Ahi na porta.
-E os papeis ?
- Ah, senhor, eu quando sahi de minha terra

não pensava em vender o meu negro e deixei a ma


tricula.
- Já vê que é difficil fazer a transacção.
- Mas v. s.ª podia dar um geito a isso .
― -Não sei como. Afinal mande entrar o es
cravo.
a
-Antes de tudo quero pedir a v. s. um grande
favor. O negro é, como disse , o meu fiel, tenho-lhe
muita amizade e não queria que soubesse que o ti
nha vendido . Trouxe-o para aqui dizendo que elle
vinha ficar em casa de v. s.ª emquanto eu fazia uma
viagem aqui perto. Eu o farei entrar e voltarei mais
tarde.
A FOME 189

- Póde ir descançado, eu saberei illudil-o.


Ignacio da Paixão sahiu e mandou Paciencia en
trar para o gabinete de Prisco.
O commendador ficou perdido pela peça. A
musculatura de acrobata e os dentes perfeitos e
sem faltar um só desafiaram a cubiça do ne
greiro.
Se fosse bem preto ! dizia Prisco em voz
baixa.

Paciencia foi examinado pelo traficante. Com al

x gum constrangimento teve de botar as calças abaixo


e sujeitar-se a uma completa vistoria ; o amo havia
recommendado e não se oppoz.
Prisco, contando com lucro certo, decidiu-se com
prar o Paciencia embora faltasse a matricula, falta
esta que sanaria com um documento falso. Prescin
diu do exame medico ; a saude do matuto era mani
festa.

O commendador, depois de ter tomado o nome


do supposto escravo, fel-o seguir para a senzala acom
panhado de um creado.
Emquanto esperava a volta de Ignacio, Prisco
examinava as matriculas dos escravos que foram de
Freitas, e procurava arranjar uma matricula para
Manoel da Paciencia. Fez um documento que illu
diria á primeira vista, e assignado pelo collector das
rendas geraes do municipio onde residia Ignacio da
Paixão.
Muito depois de meio dia voltou Ignacio ; vinha
sobresaltado.
*
190 A FOME

Prisco percebeu a commoção e tomou-a por um


sentimento bom. Era preciso fechar o negocio antes
de algum arrependimento.
- O seu negro é sadio , mas falta o indispensa
vel.
-Ah, senhor, eu assigno a escriptura e lhe pro
metto mandar a matricula dentro de um mez.
Não duvido, mas demora o embarque.
Eu darei um abatimento pelo empate.
-E quanto quer pelo escravo ?
Um conto de reis.
-―― É muito caro ! A mercadoria está depreciada

no sul e tenho aqui um grande deposito.


-E quanto v. s.ª dá ?
- Para lhe fallar com franqueza eu preferia não
comprar o escravo .
— Será como v. s.ª quizer.
Para servil-o darei seiscentos mil reis e o se
nhor assignará um documento se responsabilisando
pela matricula, a qual me entregará no prazo de
trinta dias.
- É muito pouco dinheiro ! Lembre- se v. s.ª
que este é o ultimo bem que me resta, é o pão
que tenho para a familia n'este tempo de calami
dade.
O meu offerecimento não priva o capitão de
procurar melhor negocio ; o escravo está ahi, que
rendo póde leval-o a outro comprador.
-Já está aqui, não quero retiral-o. Póde v. s.a
apromptar os papeis para eu assignar.
A FOME 191

um Prisco preparou todos os documentos, que Ignacio


ntes assignou com mão firme.
O commendador contou seiscentos mil reis, que

nsa o matuto recebeu, guardou sem escrupulo e com res


peitosa venia se despediu de Prisco.

pro

10

0
e

1
1
IX

Ignacio da Paixão passou o resto da tarde ancio


so que chegasse a noite para ir jogar. Nem se lem
brava do crime contra a liberdade de Paciencia ! Á
noite foi elle quem primeiro se sentou em frente do
trombone.
O jogo começou e Ignacio atirou-se ao primeiro
correr dos dados audaz como um desesperado. A sor
te, entretanto, sem olhos que lhe vissem a catadura,
pregava-lhe grandes logros. Parecia divertir-se á sua
custa. Ignacio parava no pequeno vinha o grande,
mudava para este vinha áquelle, e assim, n'uma cons
tante embaçadella, antes de meia noite tinha perdido
os seiscentos mil reis que recebera do commendador.
Com uma grandeza de animo que surprehendia, pe
194 A FOME

diu ao commissario , seu mais proximo parceiro, um


emprestimo de vinte mil reis. O agente do governo
serviu-o immediatamente.
Ignacio recebeu o dinheiro e parou todo de uma
vez. Immovel com os olhos cravados na nota do the
souro, com a respiração quasi suspensa, parecia su
bordinar a sorte á sua vontade. O olhar terrivel sem
pre fito no dinheiro que havia parado, collava as se
dulas ao panno.
Correu o jogo e dez vezes ganhou Ignacio dei
xando as paradas a dobrar sempre ! Na undecima
vez, antes do banqueiro levantar o trombone, Ignacio
teve um palpite e retirou todo o dinheiro. Havia
adivinhado, descobertos os dados viu-se um numero
pequeno e o matuto jogava no grande. Livre do azar,
mesmo assim Ignacio não pôde deixar de sentir um
calefrio. Era grande o lucro ; deduzida a quantia de
Freitas ficavam-lhe alguns contos de reis, uma fortu
na sob todos os pontos de vista.
Dez vezes quiz levantar- se e sentava-se. Quiz-se re
tirar e não pôde. Não queria jogar e parava. N'essa
allucinação horrivel, completamente dominado pela
paixão do jogo, deixou-se arrastar, até que, como ser
vo obediente d'aquelle tyranno, entregou-se a elle com
uma passividade de machina. A sorte virou, os da
dos divertiam-se com o matuto, e tão manifesta era a
teimosia da fortuna que os parceiros haviam-na com
prehendido e augmentavam os lucros jogando sem
pre contra Ignacio. Em pouco tempo o matuto viu
desapparecer o que havia ganho ; restava-lhe o di
A FOME 195

nheiro de Freitas. Fez um esforço para sahir do


jogo, mas não teve animo de levantar-se. Abando
nar todas as probabilidades de fazer fortuna, deixar a
banca com tanto dinheiro, que com certeza mais
tarde seria seu arriscando alguns mil reis, não era
para aquelle espirito dominado por uma paixão, e
uma paixão como o jogo. Arriscou dez mil reis e
perdeu-os ; foi salval-os e perdeu mais ! Exasperado
com os caprichos da sorte se atirou ao jogo, e an
tes de uma hora, de decepção em decepção, perdia o
ultimo real ! Não parecia muito contrariado ; aperuou
a banca até o fim, foi o ultimo a se retirar. A sua
tranquillidade de espirito não durou muito tempo.
Elle ainda não tinha pensado na situação em que
se achava, nos crimes que havia commettido. Chegan
do ao hotel se recolheu ao quarto. Pensou no que
havia feito e sentiu-se humilhado perante si mesmo.
Nem uma esperança de conforto, só o remorso a tor
tural-o, e a tortural -o noite e dia. A veneranda figu
ra de Freitas e a humilde pessoa de Paciencia,
cada qual mais nobre e mais infeliz, estacionariam
sempre diante de seus olhos como uma maldição á
sua loucura. Ignacio chorou como uma creança. Pen
sou em sua desgraça e só encontrou dois caminhos a
seguir a emigração ou o suicidio. Matar-se era im
possivel n'aquella occasião, tinha as faculdades perfei
tas e estas repelliam tal idéa. Convinha-lhe a emi
gração, embora deixasse o torrão natal, a esposa, os
filhos. O espirito ao mesmo tempo que se abatia com
uma separação forçada, se alentava com a esperança
196 A FOME

de um futuro risonho ; um mundo novo que se abria


e onde talvez existisse a felicidade. Decidido a emi
grar escreveu a Manoel de Freitas :
― O vicio me fez desgraçado.
<< Meu bom amigo.
Abusei covardemente de vossa confiança arriscando e
perdendo no jogo o resto de vossa fortuna. A minha
desgraça é enorme. Se tivesse direito de pedir-vos
alguma coisa, em nome de Deus vos rogava, vos
implorava caridade para minha mulher e filhos , que
ficam desamparados e á mercê da fome, da miseria.
Emigro para o Amazonas, de onde só voltarei quan
do podér saldar as minhas dividas. - Seu parente e
amigo grato, Ignacio da Paixão ».
Fechada a carta o matuto guardou-a no bolso do
paletot. Quiz descançar, dormir mesmo , mas qual !
as palpebras tesas, como n'um espasmo, deixavam
vêr os olhos sêccos, n'um olhar amortecido e des
alentado. Pensava na viagem quando se lhe pinta na
imaginação a figura de Paciencia.
Ignacio sentiu despedaçar-se-lhe o coração. O que
faria para salvar aquelle innocente e bom homem ?
N'uma prostração, n'um abatimento doloroso, o ma
tuto cada vez cahia mais, quando se lembrou que
muito provavel era que fosse descoberto o seu crime,
e então em vez de ter por menagem as florestas vir
gens do Amazonas teria a cadeia da Fortaleza.
Reanimou-se e tratou de procurar um meio de
denunciar a traição de que fôra victima seu famulo,
mas isso sem comprometter-se. Lembrou-se do jornal
do seu partido, do qual era assignante e sabia a ty
A FOME 197

pographia. Havia publicado ha muito tempo um annun


cio de escravo fugido e com bons resultados. Acei
ta a idéa, pôl-a em pratica :
« Um amigo da liberdade previne a policia que
em casa do commendador Prisco da Trindade existe
um homem livre reduzido á escravidão. Chama-se
elle Manoel da Paciencia, e foi vendido por um ma
tuto».
Ignacio da Paixão fechou o aviso e sobrescriptou
ao redactor do referido jornal. Era preciso agora sa
hir do hotel ás escondidas e com a maca. Sahiu sem
i
ser visto, e, ao dobrar a primeira esquina, encontrou
se com o commissario, seu parceiro de jogo, que des
cia para o porto acompanhando mais de quatrocentos
retirantes, que iam embarcar para o Pará em uma
barca velha e arruinada, que sahia em lastro para
aquelle porto.
Vão embarcar ? perguntou o matuto ao com
missario.
Para o Pará.
-Dá-me uma passagem?
Com muito gosto.
-
-Até já, vou preparar-me e o procuro na praia
com pouco mais.
E sahiu para a typographia com precipitação.
-Não demore muito, gritou o commissario para
o matuto.
7 -Depressa me avio.

Ignacio deixou na typographia o aviso para ser


entregue ao redactor e seguiu para o porto.
198 A FOME

O commissario fazia transportar os retirantes


para bordo da barca Laura. O transporte era mal
feito e vexatorio.
A emigração não era voluntaria, mas forçada
pelo governo, que trancava os celleiros aos famintos e
abria os portos da provincia.
O matuto aproximando-se do commissario disse
lhe :
- Já que me fez o favor de dar passagem , por

bondade encarregue-se de fazer esta carta chegar ao


seu destino.
E entregou uma carta dirigida a Manoel de Frei
tas.
――-Pois não, disse o commissario guardando a
carta.
Obrigado, tem um creado onde me levar a
sorte.
Seja feliz .
Ignacio da Paixão, embarcando na jangada que
transportava os retirantes, olhou com saudades para
as 1 brancas praias de sua terra, para o puro azul do
firmamento .
X

No palacete de Prisco todos passavam regular


mente.
Havia na senzala mais alguns escravos compra
dos por preços inferiores aos do mercado do sul.
Filippa, completamente ascetica, vivia rezando pe
los cantos e cada vez definhava mais. No dia em
que o medico vaccinava os seus companheiros de ca
ptiveiro, ella, que tambem se achava presente, teve
um accesso forte de epilepsia. Era o quarto ataque
que tinha depois da invasão do mal. O doutor reco
nheceu a nevrose e considerou a doente perdida.
Prisco tendo conhecimento do facto interrogou a
escrava ácerca da molestia, e soube a data e causa
do desenvolvimento. O commendador inteirado de
200 A FOME

tudo nada disse. Os sonhos de Faustina confirmavam


a historia de Filippa .
Alguns dias depois da vaccinação dos escravos
tinha logar na casa negreira uma festa de familia :
os annos de Sinhosinho.
O commendador tinha a mania de vêr o seu
nome em letra redonda e coberto de elogios . A occa
sião era opportuna, podia figurar entre os benemeri
tos libertadores, entre os que libertam escravos, mas
escravos validos e sem onus algum, sem gastar vin
tem.

Filippa estava perdida e por isso a libertaria. A


mãe liberta, podia vender e embarcar a filha, que era
menor de dez annos.
O dia escolhido foi o anniversario natalicio de
Jacob. Haveria um banquete commemorativo d'aquel
la data, o qual se terminaria pela liberdade de Fi
lippa.
Assim foi ; quando o jantar, á sobremesa, depois
de centenas de brindes onde apregoaram-se honras,
talento, illustrações, virtudes, etc. etc. , e o champagne
saboroso e traiçoeiro ia do estomago ao cerebro , le
vantou-se o commendador e em phrase estropea
da declarou livre sem onus algum a sua escrava Fi
lippa.
A carta foi entregue á liberta por Jacob ao som
de muitas palmas .
Depois da explosão de contentamento houve o si
lencio successor dos grandes acontecimentos . Assim
seria tornar o acto mais grandioso .
A FOME 201

Os redactores de todos os jornaes da capital


achavam-se presentes ; tinham sido convidados de
proposito e aproveitavam o silencio para tomar no
tas.
Um dos convivas levantou-se, pediu attenção e,
em uma postura toda estudada, fez um discurso em
que historiava a vida do commendador, o nascimen
to de Jacob e a liberdade de Filippa. Fallou e fallou
mais de meia hora.
Um outro convidado, ainda não satisfeito com a
exhibição do companheiro, occupou-se largamente com
as virtudes de D. Faustina, e não foi menos prodigo
em elogios e bernardices.
O jantar terminou muito depois de oito horas da
noite, retirando-se os convivas muito gratos á genti
leza de Prisco e de Faustina.
O día seguinte era domingo, e o commendador
madrugou ancioso para lêr nos jornaes a noticia de
sua festa. Chegaram os periodicos e era esta a local
pouco mais ou menos :
« Acção meritoria. - Hontem teve logar no pa
lacete do nosso distincto e respeitavel amigo, o exc.mo
snr. commendador Prisco da Trindade, um lauto
banquete, ao qual assistiu a elite de nossa socieda
de, onde tambem nos achamos, graças á gentileza
d'aquelle cavalheiro. O festim foi em homenagem ao
natalicio de seu digno e innocente filhinho Jacob.
S. exc.a com a bondade de coração que o caracte
risa e a generosidade que o distingue, para mais so
lemnisar aquella data, concedeu, animado pelos mais
202 A FOME

puros e elevados sentimentos de humanidade, fosse


livre sem onus algum sua escrava Filippa. Este acto
é tanto mais para louvar, quanto a liberta tem ape
nas dezoito annos de idade ! Com o maior prazer re
gistramos esta obra de benemerencia do nosso illus
tre amigo »>.
Prisco leu dez vezes cada periodico. Como lhe
era agradavel vêr o nome precedido de uma excel
lencia ! Passou o dia contentissimo. Á tarde no jan
tar disse á mulher que Filippa estava liberta e que
a despedisse.
Faustina logo no outro dia pela manhã mandou
vir á sua presença a antiga escrava de Freitas, e dis
se-lhe :
-Está fôrra, minha negra, cuide em procurar a
vida .
A liberta ouviu surprehendida as palavras da
mulher de Prisco : não suppoz que a enxotassem tão
cedo ! N'aquella casa havia um élo forte que a pren
dia ; era a filha. Obrigada a separar-se de Bernar
dina e tão cedo ! A idéa d'aquella separação forçada
e a certeza de ser preciso mendigar para viver, ater
rou-a. Filippa fita Faustina e ia supplicar-lhè quando
cae redondamente no chão.
Jacob, que perto de sua mãe prestava attenção á
liberta, assusta-se, e medroso senta-se no collo de
Faustina.
A epileptica depois do baque solta um grito me
donho e que assombra a creança .
Faustina procura acalentar o filho, animal-o, mas
A FOME 203

Jacob cada vez mais apavorado com o ataque da li


berta, que em convulsões horriveis rolava por toda a
sala, empallidece e desmaia.
A mulher de Prisco pede soccorro, acodem todos,
vem o medico e declara que a creança havia soffrido
um ataque incompleto de epilepsia ; herdára do tris
avô a nevrose, que não tinha-se desenvolvido nas ou
tras gerações que o precederam.
Filippa recolheu-se á senzala depois do accesso,
onde ficou esquecida dos senhores, que viviam entre
gues á idéa de procurar restabelecer a saude do fi
lho.
Faustina vivia triste, parecia que lhe repetiam
ao ouvido aquellas palavras fataes :
Quem com ferro fere com ferro será fe
rido.
Manoel da Paciencia foi interrogado por Faustina
dias antes do anniversario de Jacob, e tratando- a de
ama disse ser livre. Surprehendida com tal declara
ção communicou-a ao marido.
O aviso de Ignacio da Paixão não tinha sido pu
blicado, mas corria na cidade.
Só a policia o ignorava.
O redactor do jornal a quem elle fôra dirigido,
no dia do banquete do commendador, chamou Prisco
á parte e mostrou-lhe o autographo. O traficante em
pallideceu e prometteu que chamaria a policia para
tirar isso a limpo.
Logo no dia seguinte foi Paciencia interrogado e
recolhido á cadeia. Dez vezes fizeram-lhe auto de
15
204 A FOME

perguntas e foram sempre as mesmas as suas res


postas .
O delegado de policia, certo de que nada colhe
ria que provasse a cumplicidade de Paciencia, man
dou espaldeiral-o, mas Manoel, embora barbaramente
castigado, disse sempre que estava innocente. Abri
ram-lhe as portas do carcere, e sem procurar mais
pelo amo voltou ao sertão .
MISERIAS

Simeão de Arruda, commissario distribuidor


de soccorros publicos, uma das personagens mais
importantes d'esta historia. Tem trinta annos e es
tatura regular. O rosto é alvo e descarnado, os olhos
azues e vivos, enfeitado por uma barba á ingleza,
ruiva como a espessa cabelleira. É diligente, fallador,
e tem em grande conta os serviços que prestou e
vai prestando na sêcca. Deve o logar de commissa
rio á politica. É partidario exaltado, bom cabo de
eleições, reune capangas e não ha quem grite mais
nos conflictos eleitoraes. A sua nomeação não foi
muito facil. O logar era ambicionado como se fosse
um rendoso emprego. As vagas eram preenchidas mais
de accordo com os interesses da politica, do que com
a conveniencia publica. O presidente da provincia ti
*
206 A FOME

nha sempre uma lista de pretendentes a escolher.


Falsos patriotas que, apparentando serviços á patria,
só visavam o interesse pessoal. Entretanto, o patrio
tismo e a dedicação á causa publica não se tinham
embotado completamente no espirito cearense.
Havia ainda muito coração leal e dedicado á pa
tria. A par d'essa degradação moral, no meio do en
xame de zangões do erario, dedicados até o sacrifi
cio, encontravam-se alguns cidadãos que, sem a me
nor retribuição, devotavam-se com toda a abnegação
á causa da humanidade.
O governo da provincia era cumplice nos estellio
natos de alguns de seus agentes, cumplice porque
aceitava e não retribuia os serviços de homens one
rados de familia e completamente desherdados da
fortuna.
Simeão de Arruda era casado, tinha mulher e
filhos, e a subsistencia da familia, difficil já em ou
tros tempos, tornava-se agora impossivel. Os amigos
politicos obtiveram sua nomeação para commissario
de um dos abarracamentos de retirantes na capital,
emprego este cuja remuneração constava apenas de
sessenta mil reis mensaes para o aluguel de uma
cavalgadura.
Arruda aceitou o emprego disposto a fazer d'el
le um meio de vida honesto como qualquer outro ;
elle pensava como muita gente pensa, que furtar do
governo não é furtar.
Havia muita miseria na população adventicia da
capital . As mesmas scenas da fome nos ermos cami
A FOME 207

nhos do interior tinham logar nas ruas e praças da


Fortaleza. Quasi cem mil infelizes e de todas as ida
des viviam miseravelmente nos abarracamentos do
governo, nas praças publicas e nos passeios das casas !
O presidente da provincia havia concorrido proposi
talmente para essa agglomeração de famintos na ca
pital. Homem de idade avançada, enfezado por pade
cimentos chronicos e portanto incapaz de aturados
trabalhos de espirito, deixou-se levar por informações
falsas e, sem medir as consequencias de seus actos
em crise tão melindrosa, tomou as desastradas me
didas de fechar os celleiros do governo aos famintos
do interior e de suspender a construcção de abarra
camentos na Fortaleza. Esses dois actos praticados
na mesma data revelavam uma enfermidade moral
do administrador, tal era o seu antagonismo.
Manoel de Freitas chegava na peior quadra. No
dia que succedeu ao seu alojamento, logo pela ma
nhã sahiu a conhecer a capital da provincia. Tinha
um desejo vehemente de vêl-a, de admiral-a ! A For
taleza é uma cidade nova, reedificada sobre as rui
nas de uma casaria de palhas e de taipas depois da
sêcca de 1845.
Situada na costa, muito perto do mar, em um
terreno plano, teria todas as vantagens das povoações
maritimas se fosse servida por um bom porto . Entre
tanto, o seu commercio se alarga todos os annos e a
área edificada augmenta sempre.
Era a primeira vez que Freitas a via. Deixou os
taboleiros da Jacarecanga, aquelle areial branco e
208 A FOME

esteril, cuja mobilidade tanto difficulta a locomoção,


coberto apenas em alguns pontos de uma vegetação
rachitica, mas enfolhada, e entrou pela rua do Sena
dor Pompeu, chamada outr'ora rua Amelia. O fazen
deiro ficou admirado da regularidade da edificação .
Duas filas de casas com a maioria das frentes pinta
das de amarello, com saliente cornija branca, para
peito tambem emmoldurado de alvos relevos, e do
qual sahiam cabeças de serpentes , de jacarés, de dra
gões, feitas de zinco e destinadas a esgotar os telha
dos durante as chuvas, perfilavam-se na extensão de
quasi um kilometro guardando de uma para outra
a distancia de vinte metros. As fachadas das casas
todas obedeciam ao mesmo plano e á mesma syme
tria monotona.
D'ellas se destacavam portas e janellas, aquellas
tendo rotulas e estas vidraças na metade superior do
vão e rotulas na metade inferior, mas todas pintadas
de verde. De muitas portadas os postigos se abriam
para fóra, embaraçando estupidamente o transito pu
blico, ou sahindo de encontro inesperadamente á
cara do transeunte, impellido pelo morador que abria
de subito a portinhola da rotula.
A rua calçada de seixos, com o dorso convexo,
descia até ás coxias, onde formava uma depressão,
subindo depois até encontrar o cordão da calçada. Os
passeios das casas, todos da mesma largura, tinham
os bordos externos orlados pelos combustores de gaz
de illuminação , columnas de ferro pintadas de alca
trão, de vinte em vinte metros de distancia, termi
A FOME 209

nadas por uma manga quasi oval, inteiriça, de bom


vidro e coberta por um capacete de metal pintado de
verde. Essas filas de postes pretos lembravam á noi
te o desfilar de um prestito funebre.
As dez ruas todas do mesmo comprimento e lar
gura, calçadas e cortadas em rectangulos formando
quarteirões de cem metros quadrados, eram pelo pla
no de disposição convenientemente ventiladas e quan
to possivel alumiadas pelo sol. Mais de dez praças,
grandes, arborisadas de castanheiros e mungubeiras,
embellezavam a cidade, concorrendo assim para a
salubridade do clima, um dos melhores do impe
rio.
Da linha superior da fachada das casas elevavam
se alguns sobrados, quasi todos de um só andar e de
recente edificação, pois os antigos proprietarios acre
ditavam que o terreno da Fortaleza, por sua natureza
arenosa, não se prestava a este genero de construc
ção.
Poucos templos e todos construidos ainda no es
tylo da antiga architectura portugueza, viam-se com
seus pares de campanarios terminados em cataventos
de ferro, mas immoveis em pleno espaço. Alguns edi
ficios publicos isolados, como a assembléa provincial,
o palacio do governo, o seminario episcopal, o thesou
ro provincial, a bibliotheca publica, a escóla normal,
mas todos resentindo - se mais ou menos da falta de
esthetica. Entre os edificios, é o da estação central da
estrada de ferro de Baturité o que estava mais no
caso de satisfazer a todas as exigencias dos preceitos
210 A FOME

architectonicos, pois foi construido por profissionaes ;


este mesmo tem graves defeitos percebiveis logo á
primeira vista.
Manoel de Freitas percorria a cidade da Fortale
za com a alma vazia de esperanças ! Palpava a gran
de chaga aberta no coração d'aquelle povo com uma
consternação que o desalentava.. Todos felizes em
uma vida pacifica cuidavam em crear novos elemen
tos de prosperidade, quando um grito de alarma
-Secca - echoou das praias da Fortaleza ás covoa
das do Araripe ! O periodo da felicidade havia-se es
gotado, era chegada a época das angustias, das pro
vações.
Já bem alto no horisonte ia o sol, que devia tor
rar os campos, seccar as fontes, esterilisar a terra e
trazer a miseria á tenda do homem. Era a sêcca que
chegava. O flagello propagava-se a toda a provincia
com a velocidade da luz.
Freitas, apavorado com o cortejo da miseria que
desfilava pelas ruas da Fortaleza, quasi esmoreceu.
Uma multidão de creaturas de todas as idades, de
todos os sexos, tropegas, escaveiradas, semi-núas, en
chia a cidade a pedir esmolas.
O fazendeiro, aterrado e desilludido , voltou ao ran
cho, e assim descrevia a sua mulher o estado da ca
pital :
Venho horrorisado, Josepha. Vi tanta miseria,
que me espantei. Imagina o que de horrivel vi, que
pôde me eriçar os cabellos a mim, testemunha ocu
lar das mais pungentes e medonhas scenas ! Cedo
A FOME 211

desilludi-me. A Fortaleza, que acreditava um paraizo,


onde suppuz o conforto das populações famintas, tem
o lugubre aspecto das povoações do interior, regorgi
ta de infelizes, que mendigam cambaleando de fome.
Nos passeios das casas, nos adros das igrejas, nas
praças publicas dormem ao relento e raro é o dia
que d'estes dormitorios não conduzem, ao amanhe
cer, cadaveres para o cemiterio. Vi mortos no meio
da rua um velho e uma mulher, expostos no calça
mento como cães ou gatos, apodrecendo no monturo.
Tive dó d'elles ! Como estavam magros ! Em suas
physionomias, póde - se dizer, se percebiam ainda os
fundos traços de uma prolongada angustia. A peste
e a fome matam mais de quatrocentos por dia ! O
que te affirmo é que durante o tempo em que estive
parado em uma esquina, vi passar vinte cadaveres ;
e como seguem para a valla ! Faz horror ! Os que têm
rêde, vão n'ella, suja, rôta, como se acha ; os que
não tem, são amarrados de pés e mãos em um
comprido pau e assim são levados para a sepul
tura. Os enterramentos desfilam pelas ruas mais pu
blicas da cidade. E as creanças que morrem nos
abarracamentos, como são conduzidas ! Pela manhã
os encarregados de sepultal-as vão recolhendo-as em
um grande sacco ; e ensaccados os cadaveres, é atado
aquelle sudario de grossa estopa a um pau e condu
zido para a sepultura ! Informei-me de tudo, e nada
do que vi e ouvi alentou-me ! Disseram-me que a
prostituição lavra desenfreada . São muitos os sedu
ctores. Até meninas de dez annos estão perdidas por
212 A FOME

esta raça maldita de perversos ! O espirito se abate,


agonisa mesmo perante um tão vivo quadro de mi
serias humanas, ao mesmo tempo o corpo definha
mal alimentado á falta de ordem na distribuição dos
viveres do governo. Os soccorros são mal distribuidos.
Trocam a ração pelo trabalho, mas por um trabalho
penoso, superior ás forças dos famintos. Um pobre
homem cançado de uma longa viagem, enfraquecido
de fome, póde caminhar todos os dias doze kilome
tros com uma pedra ás costas para receber uma ração
de um litro de farinha e quinhentas grammas de
carne do sul ?! Se é só, poderá escapar á morte,
mas se tem, como na maioria d'elles, oito e mais
pessoas de familia, qual o seu fim? a morte, Jo
sepha, e a morte mais horrivel, a causada pela
fome.
―――- Valha-nos Deus , Manoel, disse Josepha cho
rando desconsoladamente.
-Só temo a peste, Josepha. A febre mata nos
abarracamentos de um modo espantoso ! Se eu mor
rer, o que será de ti e de Carolina ? Aterra-te a mi
nha franqueza ! Era necessario que não ignorasses a
nossa situação para ficares tambem de guarda. Sin
to-me disposto para a lucta e juro continuar a velar
pela tua sorte e de nossos filhos. Por tua parte basta
uma promessa, honrar com Carolina os nomes dos
Freitas e dos Macieis, sejam quaes forem as condi
ções em que nos atirar o destino .
―――― Deus sobretudo, Manoel.
Freitas ouviu a mulher e fitou-a. Ella tinha os
A FOME 213

olhos rasos de lagrimas e appellando para a miseri


cordia da Providencia olhava a filha, que, perto de si,
cercada dos irmãos, entretinha-lhes a fome contando
lhes historias.
O fazendeiro ia continuar a conversação, quan
do notou que um cavalheiro se aproximava do ran
cho.
Era Simeão de Arruda que vinha a galope no
seu cavallo negro. Olhou de relance para os habitan
tes da palhoça, e, impressionado pela formosura de
Carolina, parou o cavallo e dirigiu-se a Freitas :
―――――― Quando chegou, meu velho?

-Ha pouco tempo.


-Quantas pessoas tem de familia ?
-Mulher e cinco filhos.
Seu nome?
-Manoel de Freitas.
De onde é natural?
――― Da cidade de ....

- Qual sua profissão ?


Criador.
-Não se empregava em outra coisa ?
- Não, senhor.
Nem ao menos era subdelegado em sua ter
ra ?
-Sou coronel da guarda nacional e presidente
da camara no municipio em que residia.
- Bem, coronel, vejo que merece os soccorros do
estado. Tomarei em toda a consideração a sua po
breza.
214 A FOME

- Agradecido. Desejava saber com quem tenho


a honra de fallar ?
-Com Simeão de Arruda, commissario distri
buidor de soccorros publicos.
Muito estimei conhecel-o .
Obrigado, voltarei ámanhã, adeus.
- O commissario, dando de redeas , continuou a

excursão. Ia perdido pela belleza de Carolina. O no


me de Freitas não lhe era estranho, lembrou- se final
mente da carta de Ignacio da Paixão , que elle havia
aberto e lido.
O coronel, a mulher e filhos teriam passado dias
de completo jejum, se uma familia abastada, que re
sidia na visinhança, não se condoesse das creanças e
não lhes mandasse algum soccorro.
Na manhã seguinte a primeira pessoa que viu
Manoel de Freitas foi Simeão de Arruda . O commis
sario estava apaixonado pela moça, que seduziria,
custasse o que custasse. Comtudo não achava muito
― o seu primeiro
facil a realisação de seus desejos
passo seria no sentido de conquistar o coração de Ca
rolina depois de grangear a sympathia e gratidão dos
paes com repetidos favores. Assim procedendo pensa
va elle ser facto consummado a seducção da moça.
Se esses meios falhassem lançaria mão de uma ar
ma poderosa e terrivela miseria. Havia rendel-os
pelo ouro ou pela fome. Todos estes pensamentos oc
correram-lhe durante a noite no leito, ao lado da es
posa.
Simeão chegando á palhoça comprimentou a todos
A FOME 215

de um modo affavel e delicado. Se dirigindo a Frei


tas disse-lhe :
-Como lhe prometti, coronel, trato de prestar
lhe os meus serviços. De hoje em diante receberá vi
veres para subsistir com sua familia, até que possa
lhe obter um emprego digno de sua posição.
Eternamente obrigado, snr. commissario. Se
fosse possivel trabalhar logo para ganhar o pão, ser
me-ia mais agradavel.
-Veremos isso com mais demora. Em primeiro
logar vou procurar abrigal-os melhor.
Josepha ouvia cheia de contentamento as pro
messas de Simeão. Para ella não havia que aquelle
homem era um enviado do céo, o anjo da guarda
que vinha defendel-os de todos os perigos. Agradeci
da disse-lhe :
―――― Permitta-me v. s.a que em nome de meus fi

lhos eu agradeça os seus favores e attenções.


O commissario, em comica postura e revestindo-se
de uma gravidade que não lhe era propria, respon
deu :
―――
Grato ás expressões delicadas com que v. exc.a
acaba de me honrar, é de minha obrigação dizer-lhe
que nada tem a agradecer-me. Cumpro o meu dever
prestando serviços á humanidade sem outra remune
ração a não ser a consciencia de um acto bom.
A mulher de Freitas estava admirada de tanta
virtude. Cada vez mais se convencia de que o com
missario era um enviado de Deus.
Arruda não querendo prolongar mais aquella
216 A FOME

scena, temendo comprometter-se, se retirou depois de


apertar com effusão a mão de Freitas e dizer-lhe :
-Permitta-me que me retire, coronel ; é preciso
não perder tempo, a peste e a fome não tem coração
e não se conta o numero de suas victimas . É preci
so procurar os que soffrem e enxugar-lhes as lagri
mas. Hoje mesmo lhe serão entregues viveres para
oito dias.
Pouco tempo depois da retirada do commissario
chegava á palhoça um empregado de Arruda acom
panhado de dois retirantes carregados de generos ali
menticios. Traziam tudo que era necessario á vida.
Josepha recebeu o presente e de joelhos bemdi
zia a mão protectora que Deus havia enviado para
levantal-os.
Freitas, disposto a dar segundo passeio á Fortale
za, disse a sua mulher :
- Vou á cidade fallar com o commendador para
elle me obter um emprego.
- E o conheces ?
- Pessoalmente, não. É chefe de minha politica,
deve attender-me e conhecer-me.
- Não é melhor esperar pelo emprego de nosso
protector ?
- Gosto de andar a duas amarras.
E sahiu.
!

II

Manoel de Freitas bateu á porta de um dos bons


predios da Fortaleza, a casa do commendador * * *.
Appareceu-lhe um creado, que depois de olhal- o com
indifferença, voltou-lhe as costas sem dar palavra.
Freitas comprehendeu o silencio do servo ; não
merecia ser annunciado. Sentia o terribilissimo jugo
da dependencia, era humilhado pela primeira vez na
vida. Quiz voltar e esconder-se em sua palhoça a tra
gar as amarguras do infortunio, mas isso era uma
covardia, era entregar-se á indolencia, ao aviltamento
da esmola.
O coronel se annunciou outra vez, e apparecendo
lhe o mesmo creado disse-lhe com insolencia :
Não me incommode com suas palmas. O snr.
commendador não falla a retirantes.
218 A FOME

Freitas sentiu-se cada vez mais ferido em seu


amor proprio. Ia retirar-se quando abriu-se a porta
da escadaria e appareceu-lhe o commendador.
-Tenho a honra de conhecer pessoalmente v.
exc.", disse Freitas.
O commendador deu-lhe friamente as pontas dos
dedos e perguntou -lhe :
- O senhor quem é?
_____
- Manoel de Freitas, da cidade de .....
-Sim, senhor, estimo conhecel-o e sinto não po
der prestar-lhe attenção por causa de muitos afaze
res que tenho hoje.
E continuou a descer a escada.
Obrigado . Não perdi de todo o meu tempo, fi
quei-o conhecendo.
O commendador parou immediatamente . As pala
vras do coronel o abalaram. Elle era atrevido , mas
covarde ; tinha o defeito dos cães que ladram muito,
mas só mordem a furto .
-O coronel queira desculpar-me, só agora é que
pude recordar-me de v. s.ª Talvez pretenda um em
prego, não é assim ?
Queria conhecel- o , estou satisfeito .
-Não, senhor, é preciso v. s. não se zangar
com os seus amigos. Estou afastado de palacio e da
politica. Se fosse em outros tempos o coronel podia
contar com um dos melhores empregos d'aqui, mas
estamos debaixo, não se póde fazer nada .
――――
Supponho que não pedi a v. exc.ª emprego
e nem favor algum .
A FOME 219

Į
-Não ha duvida, mas se houver mudança de
presidente, póde ser que tudo se arranje. Ninguem
a
merece mais que v. s. O nosso partido muito lhe
deve. Ninguem foi mais leal e obteve mais triumphos.
Deixe estar que algum dia os seus serviços serão re
compensados.
――
Quando dediquei-me á causa d'um partido
não foi visando interesses e recompensas. Passe bem,
snr. commendador,
E Freitas desceu a escada. Chegando á rua vol
tou ao rancho.
Simeão de Arruda vira o coronel entrar em casa
do commendador e foi á palhoça para conversar mais
á vontade.
- Venho saber, minha senhora, se meu creado
entregou hontem os generos que prometti, perguntou
o commissario a D. Josepha.
-Entregou e estamos muito agradecidos á bon
dade de v. s.a
Onde está o coronel?
-Foi á cidade.
Parece-me que v. exc.a tem a ventura de pos
suir um bom marido.
-Graças a Deus.
Sua filha não tem gostado d'aqui ?... Está
sempre triste...
--- É genio d'ella. Carolina nunca está alegre.

-Talvez alguma saudade a faça scismar ! Não


é assim, D. Carolina ?
―――-Póde ser.
16
220 A FOME

A moça antipathisou com o commissario desde a


primeira vez que o viu, e agora sua conversação, toda
futil, toda banal, concorreu para que aquelle senti
mento mais se accentuasse.
Arruda estava em uma situação difficil. Aconte
cia a elle o que se dá todos os dias nos grandes sa
lões, ensossos dialogos de creaturas de sexos differen
tes e que se encontram pela primeira vez .
――――― Saudades do logar em que nasceu e passou a
infancia ? perguntou Simeão.
É bem provavel, respondeu Carolina .
-
Das amigas que deixou, snr. commissario, dis
se Josepha.
――- Aqui muito breve terá outras. Ainda vou dis

tribuir soccorros a mais de quinhentas familias. Áma


nhã trarei um livro para distrahil-a, D. Carolina.
-Queira não se incommodar.
-Não me incommoda, dá-me prazer.
E Arruda despedindo-se, sahiu para o abarraca
mento. Ia desapontado ; parecia-lhe haver estreado
mal. As reservas de Carolina, suas palavras ditas em
um tom todo especial e de quem está aborrecida, ha
viam-lhe incitado o despeito e agora mais do que
nunca jurava de prostituil- a.
Mal o commissario perdia de vista a palhoça, a
ella chegava Freitas triste e desalentado. Voltára
sem uma esperança !
Josepha contou-lhe a visita de Simeão e mais
promessas. O coronel ouviu tudo de sobrolho carre
gado e disse :
A FOME 221

-É generosidade de mais ! No tempo que eu era


credulo, podia deixar de vêr, n'esses repetidos favo
res, a manha, a astucia, mas hoje, não.
Quererás desconfiar da bondade do nosso pro
tector, Manoel ?!
Não tenho ainda razões para isso. Estarei de
guarda, sempre alerta, pois é enorme a raça de hy
pocritas. Galvanisa-se a physionomia com a mesma
facilidade com que os ourives galvanisam os metaes.
Não existe hoje amizade que mereça um sacrificio !
Fui pedir a protecção do commendador, o mesmo que
hontem abria-me as portas de seu palacio e punha
os seus serviços á minha disposição.
E como te recebeu elle ? perguntou Josepha.
Como se recebe um mendigo. Até os seus crea
dos zombaram de mim ! ...
-Devemos fugir dos maus e confiar nos bons,
Manoel.
-E como distinguil-os ? As apparencias illudem
muito.
- A virtude é conhecida.
Não julgues o bom por bom e nem o mau
por mau; é esta uma das sentenças mais sabias que
conheço.
-É preciso mais calma, mais prudencia, Manoel.
Cancei, Josepha. Não avalias o que tenho
soffrido ! Não sabes mesmo as scenas horrorosas
de que fui testemunha nos caminhos do sertão ! Tudo
eu calava, concentrava tudo por amor de teu socego,
do feliz exito de nossa peregrinação ! Chegamos com
*
222 A FOME

vida ao porto, não do destino, porque na lucta em


que estamos envolvidos não ha previsão de sorte, mas
ao centro das operações, onde o soldado ou segue
para a valla ou deserta de mar fóra procurando me
lhor patria.
As tuas palavras me mortificam, Manoel !
--
-De hoje em diante te communicarei a nossa
posição , nada quero que ignores.
-Deus seja em nosso favor.
-Custa-me essa franqueza rude, mas ella é ne
cessaria. Suppõe que eu falte ámanhã e te deixe
ignorante do meio em que estás vivendo : com certe
za serás uma victima, que fez o destino e a minha
imbecilidade. Quero, se cahires no abysmo, tenhas
consciencia d'elle e das consequencias da queda.
-Deus sobretudo, Manoel.
III

Era conservador o ministerio que dirigia os des


tinos do paiz e tinha como seu delegado no Ceará o
conselheiro Aguiar.
Quando se declarou a sêcca, administrava a pro
vincia o desembargador Estellita, homem de inexce
divel bondade e dotado de um grande coração. Para
gerir os negocios publicos em tempos normaes tinha
elle as necessarias aptidões, e seu governo seria como
o dos seus antecessores, se calamidade imprevista
não viesse alterar profundamente a ordem publica.
Viu-se cercado das maiores difficuldades, e fallecen
do-lhe os meios de acção e a energia de um espirito
forte e alevantado, deixou-se levar pelo coração e só
mente cuidou de matar a fome dos desvalidos que
inanidos cahiam aos milheiros na capital e nos ser
224 A FOME

tões da provincia. Observando a Constituição do Im


perio abriu creditos sob a verba - Soccorros publicos
-e, sem tempo para estudar um plano de distribui
ção de soccorro, mandou dar esmolas em viveres
em dinheiro . Esta medida, cujos inconvenientes a pra
tica mostrou depois, não foi combatida, a geração
actual desconhecia o flagello e os meios de attenuar
lhe os effeitos.
O mal crescia de dia em dia, despovoavam -se os
sertões, muito embora a emigração para a capital e
povoações maritimas fosse de algum modo retardada
pelos soccorros publicos enviados para todos os pon
tos do interior da provincia.
O governo geral recebeu mal as providencias to
madas pelo seu delegado. Trabalhava o parlamento ,
e os representantes do Ceará, alguns se conservavam
no silencio da espectativa, mas outros accusavam de
precipitadas as medidas do desembargador Estellita,
pois acreditavam que era cedo para temer-se uma
sêcca e muito mais ainda para se morrer de fome !
Estas e outras asserções de alguns deputados cearen
ses preveniram o ministerio, que de algum modo ne
gando apoio a seu delegado, levaram-no a dar a sua
demissão .
A população adventicia da Fortaleza era de qua
renta e tres mil almas quando tomou conta da
administração da provincia o conselheiro Aguiar. A
idade avançada do novo presidente e seus padeci
mentos physicos traziam-lhe serios embaraços á ges
tão dos negocios publicos.
A FOME 225

Não foram, entretanto, estes os mais serios trope


ços a uma administração benefica. O conselheiro
Aguiar vinha com o espirito muito prevenido contra
os abusos que, diziam fóra da provincia, commettiam
se na distribuição dos soccorros publicos. Em sua es
treia falleceu-lhe o tino administrativo e não cuidou
de palpar com suas proprias mãos a chaga aberta na
grande população faminta, e cauterisal-a com resolu
ção e energia. Isolou-se em seu palacio e assim pre
tendeu vêr pelos olhos de seus informantes, muitos
d'elles apaixonados e embusteiros, a miseria que de
vastava infrene as populações emigradas dos sertões.
O serviço da distribuição de soccorros era mal
feito, a esmola dava-se em viveres e em dinheiro por
meio de ordens assignadas pelo commissario. Era
este o systema cartão e que tão grandes prejuizos
deu ao estado e ao faminto. As ordens eram impres
sas em cartões da côr que mais agradava ao agente
do governo e por elles assignadas. Alguns commis
sarios, entretanto, não se davam ao trabalho de es
crever o seu nome n'aquelles documentos e timbra
vam-os a sinete . Os retirantes eram soccorridos a
cartão e os que estavam nús foram vestidos pelo
mesmo systema. As ordens, tanto de dinheiro, como
de fazendas e roupa feita, eram pagas pelos thesou
reiros pagadores, negociantes da capital, titulados e
nomeados pelo presidente da provincia, aos quaes
mandava este entregar semanalmente pela thesoura
ria de fazenda a quantia necessaria á distribuição. Os
viveres entregavam- se em outra repartição ; o gover
226 A FOME

no tinha armazens a cargo de agentes dos soccorros


publicos.
O conselheiro Aguiar tinha muita coisa que cor
rigir, que alterar no plano traçado pelo desembarga
dor Estellita. Adoptaria um novo systema de distri
buição, fazendo os negocios publicos seguirem outro
caminho. O soccorro em dinheiro seria condemnado,
pois além do agio dos especuladores, que compravam
ao retirante o saque com 50 % e mais de abatimen
to, abria ao commissario um vasto campo ao abuso .
Era de esperar da administração uma reforma
salutar, quando cinco dias depois de sua posse o pre
sidente da provincia baixava uma portaria suspen
dendo a remessa de soccorros publicos para o inte
rior e a construcção de abarracamentos na Fortale
za. Esta medida desesperada aterrou a população da
capital ; estavam previstas as consequencias. Além
d'estas providencias outras mais foram tomadas e to
das com um unico fim : acabar com o soccorro para
prevenir o furto. A esmola só era permittida em
certos e determinados casos, e os retirantes, para te
rem direito á assistencia publica, deviam ir á pe
dreira do Mucuripe duas vezes por semana, receben
do de cada viagem quinhentas grammas de carne do
sul e um litro de farinha, e entregando uma pedra
para os calçamentos em construcção.
Essas restricções de soccorros publicos serviram
unicamente para deslocar a população ainda domi
ciliada no interior da provincia, chamal-a á Forta
leza e ser ahi dizimada desapiedadamente pela peste
A FOME 227

e pela fome. O conselheiro Aguiar pretendeu acabar


com os estellionatos restringindo os soccorros, mas
só conseguiu chamar á capital uma população adven
ticia de mais de cem mil almas e augmentar consi
deravelmente o obituario.
Os erros de seu antecessor não procurou corrigir
e deixou continuasse a época dos cartões.
Simeão de Arruda mandou imprimir as ordens
que tinha de distribuir, em papel furta-côr e não se
dava ao trabalho de assignal-as, timbrava com o seu
sinete.
Na manhã que succedeu ao dia da ultima visita
á palhoça de Freitas, o commissario, montado em seu
cavallo negro, seguiu em direcção ao rancho do coro
nel. Ia levar um romance a Carolina, e soccorros em
dinheiro e fazendas a Freitas. A familia tinha-se le
vantado havia pouco tempo, e sentados e ainda som
nolentos estavam em silencio.
Arruda apeiou-se no terreiro da palhoça e entrou
pedindo licença :
-Bom dia, coronel, D. Josepha, D. Carolina.
Todos se levantaram e saudaram com respeito o
commissario.
-Como vai o coronel ? perguntou Simeão.
-Assim, assim...
―――― Vim trazer-lhe dois cartões, um para receber
fazendas para se vestir com a familia, e outro para
tirar semanalmente tres mil reis.
-É muita bondade, snr. Arruda, disse Frei
tas.
228 A FOME

Nada tem que agradecer-me, tudo deve ao


seu merecimento e ao patriotismo do nosso governo.
·E não é preciso trabalhar para ter direito aos
soccorros publicos ?
-É, porém o coronel não se ha de sujeitar á
degradante condição de carregador de pedras. O uni
co interesse que temos n'estas commissões é prote
ger nossos amigos.
――
Não desejo que v. s.a por minha causa deixe
de cumprir os seus deveres. Se o governo ordena
que o retirante carregue pedras para ter direito á
ração, eu irei á pedreira.
-A responsabilidade é minha, e d'isso não póde
vir ao coronel mal algum.
-Sou muito amigo da ordem e respeitador do
principio de authoridade.
- O coronel não conhece a capital
e os seus ho
mens.
-Mais talvez do que v. s. suppõe.
- Vou ao abarracamento .

O commissario despediu-se e caminhou até junto


de seu cavallo, de onde voltou ao rancho :
—Ia esquecendo o romance que prometti a D.
Carolina.
- Certamente traz a Mulher Forte para minha
filha lêr, disse Freitas.
O commissario perturbou-se um pouco e apro
ximando-se da moça disse entregando-lhe o li
VIO :
- Ha de gostar d'esse romance, D. Carolina.
}

A FOME 229

―――
Permitta que peça o favor de dal-o a meu
pae ; nada leio sem que elle authorise.
O commissario perturbou-se mais ainda com a
recusa.
Quasi automaticamente depositou o livro nas mãos
de Freitas e sahiu com pressa.
« Ao portador dê-se : quarenta metros de chita,
duas peças de madapolão, duas calças de brim, qua
tro camisas para homem e uma peça de cambraia »,
lia Freitas em um dos cartões furta-côr que recebe
ra de Arruda.
-Uma peça de cambraia !! Será possivel que o
governo consinta em semelhante abuso ?! Esta or
dem deve-se inutilisar, exclamou Freitas indignado.
――― Não, Manoel, recebe as outras fazendas e dei

xa a cambraia ; ou então pede ao snr. Arruda para


reformar o cartão.
--- Aceito teu parecer. Pedirei ao commissario
para passar outro cartão, será uma advertencia.
I

IV

Simeão de Arruda pensava que o coronel ficaria


muito satisfeito com a cambraia offerecida a Carolina.
Elle contava triumphar, vencer todos os obstaculos
que difficultassem a prostituição da filha de Freitas.
Entretanto precisava de um auxiliar e lembrou-se de
uma feiticeira sua conhecida. Era a Quiteria do Cabo,
e chamavam-na assim por ter sido muitos annos vi
vandeira em companhia de um cabo do exercito . O
povo a appellidava de feiticeira, porque ella se mettia
a adivinha, a tirar feitiço, benzer erisipelas, curar osso
rendido, coser carnes quebradas, sarar feridas de gar
ganta, levantar espinhelas cahidas e outras bruxarias.
Era grande sua clinica ; os seus freguezes conside
ravam-na optima curandeira e temiam seus malefi
cios. Os visinhos respeitavam-na, temendo cahir em
232 A FOME

seu desagrado. Em segredo diziam que Quiteria tinha


pacto com o diabo, com quem conversava todos os an
nos na vespera de S. João em uma encruzilhada á
hora da meia noite.
A physionomia da feiticeira e seus habitos leva
vam a crêr que em sua vida havia mysterio . Vivia
só. Dizia-se viuva e por isso trajava sempre um ves
tido preto. Era branca, rosto pallido e bastante sul
cado pelas rugas da velhice, rugas mais fundas e
em maior numero do que exigiam os seus cincoenta
annos. Um nariz enorme e curvo como o bico das
aves de rapina, levantava-se como uma parede em
meio de dois olhos pequenos, vivos e verdes, com ra
rissimas pestanas, e arqueadas sobre elles grossas so
brancelhas grisalhas. A testa enorme e arrampada
para a nuca fazia um contraste com o queixo ponte
agudo, que a falta absoluta de dentes deixava unir os
maxillares e beijava a ponta do nariz. As orelhas
enormes parece que cresciam havia meio seculo ;
eram tão finas, que quasi a luz as atravessava, e es
tavam presas ao rosto como as aldrabas a um bahú.
Balançavam ao menor movimento do corpo e quasi
tocavam as claviculas.
Quiteria era assim physicamente e no moral um
aleijão tambem.
De uma avareza extrema, commetteria todos os
crimes, assim lhe dessem dinheiro. Era devota e di
zia-se temente a Deus . Ouvia missa diariamente, mas
quando voltava da igreja escondia-se atraz da venezia
na da rotula a observar o dia inteiro o que se passa
A FOME 233

va na visinhança. Confessava-se todas as semanas,


jejuava nas quartas e sextas-feiras, e á noite não se
deitava sem rezar um rosario de quinze mysterios.
Cingia-lhe a cinta um grosso cordão de S. Francisco
e pendiam-lhe do pescoço bentos, medalhas, terços,
orações milagrosas e alguns patuás cosidos em panno
preto. Temia o inferno e nunca chamou pelo diabo
em presença de pessoa alguma. A sala de visita
como a alcova eram decoradas com ratratos de san
tos e santas em caixilho de madeira envernizada.
Simeão de Arruda lembrou-se de uma excellente
auxiliar. Os serviços de Quiteria seriam pagos pela
verba Soccorros publicos. Era necessario cuidar logo
na construcção de uma casa para Freitas, e seria
construida nas immediações da habitação da feiticei
ra. O commissario acreditava que o bom exito de sua
empreza dependia de Carolina visinhar com Quiteria.
Assim obteve um terreno perto da casa da feiticeira
e deu começo á edificação. Todos os materiaes seriam
das olarias do governo e de seus depositos ; os opera
rios seriam pagos com viveres do estado .
Havia sido suspensa a construcção dos abarraca
mentos e Simeão levantava com soccorros publicos
uma casa, que figuraria entre os seus immoveis.
O serviço marchava accelerado, graças ao salario
dobrado que os operarios recebiam .
A feiticeira curiosa observava aquella construcção
e estava vexada por saber alguma coisa a respeito.
Pensou que seria algum abarracamento por ser o
serviço feito pelos retirantes. Sob seu postigo parafu
234 A FOME

sava sobre a nova casa, quando viu que se aproximava


o commissario. Simeão percebeu por detraz da venezia
na os olhos verdes de Quiteria. Não perdeu occasião
de entabolar o seu negocio, e dirigiu-se a ella :
―― Muito boa tarde, minha senhora.
- Nosso Senhor lhe dê as mesmas, meu capitão ;
v. s.a por aqui ?!
- E de agora em diante terá de me vêr muitas
vezes em sua rua. Estou construindo alli uma casinha
para uma familia retirante . Pobre gente, está arran
chada n'uma ruim palhoça.
-Crédo ! que vêm fazer esses cafútes no meio
da gente limpa ?
-Não, senhora, é uma familia importante que
tem educação e foi rica.
- Logo vi, e se assim não fosse, que ficassem á
sombra dos cajueiros .
-Se a senhora visse o seu estado, faria o mesmo
que estou fazendo. Desde já os recommendo á sua
amizade e protecção.
Quiteria comprehendeu o pensamento do commis
sario e tratou de exploral-o .
―――――― Quem sou eu, meu capitão, pobre velha que
passa, sabe Deus como ! Antigamente ainda ganhava
algum vintem com as minhas mezinhas, acabou-se
isso com a miseria do povo .
-E não recebe soccorro de alguma commissão ?
--Isso não chega para mim, velha e feia...
-Estou surprehendido ! É uma injustiça, uma
crueldade se deixar passar privações uma viuva ho
A FOME 235

nesta e que honrou sempre o nome de um soldado


distincto do exercito brazileiro.
Duas grossas lagrimas cahiram nas faces de Qui
teria.
――― Diz a verdade. Só sabe de meu merecimento
quem me conhece.
-Descance, D. Quiteria, não se mortifique por
isso, eu tomarei em toda a consideração as suas ne
cessidades. Ámanhã lhe mandarei algum soccorro e
continuarei a remir as suas precisões emquanto o go
verno distinguir-me com sua confiança.
-É Deus, que ainda existem almas caridosas!
Hei de recommendal-o, meu capitão, em minhas ora
ções. Todas as noites não o deixarei sem uma Salvè
Rainha a Santa Rita dos Impossiveis.
-Rogue a Deus para pôr termo a esse horrivel
flagello. É o favor maior que me poderá fazer. A ta
refa está sendo superior ás minhas forças. Custa-me
muito sacrificio a contemplação das scenas da miseria !
- Deus lhe dará forças, meu capitão. Ah ! se

meus rogos servissem ! ... Quem póde com a colera


do céo quando quer castigar os nossos peccados ? !
Frei Vidal dizia em suas santas missões que viria
tempo que ninguem saberia o logar onde existiu a
cidade do Forte. Eu ouvi isso de sua sacratissima boca.
-Ámanhã lhe mandarei alguma coisa. Adeus.
-Acompanhado seja dos anjos, meu capitão.
O commissario sahiu satisfeito e Quiteria o acom
panhava com um olhar de triumpho e um riso de
ironia. Perspicaz, comprehendeu que Simeão precisa
17
236 A FOME

va de seu auxilio para algumas de suas conquistas


amorosas. Ajudal-o-ia conforme o preço de seus ser
viços.
No dia seguinte o primeiro trabalho de Arruda
foi mandar encher a despensa de Quiteria de generos
alimenticios .
A feiticeira recebeu contentissima o presente ;
nunca viu tanta abundancia.
Arruda não poupava esforços para a conclusão da
obra. Sabia que Carolina só podia ser sua, visinhando
com Quiteria. Elle promettia gratificações aos ope
rarios, visitava a casa em construcção tres vezes dia
riamente, emfim dia e noite não pensava em outra
coisa.
V

Simeão de Arruda dirigiu-se á palhoça onde ha


via dois dias não apparecia, e lá encontrou Edmundo
da Silveira, que, chegando do interior da provincia,
visitava a familia Freitas.
O commissario não gostou da visita. --
Edmundo tinha vinte e cinco annos, era intelli
gente e dotado de bom caracter. Não foram estes
dotes que desagradaram a Arruda, mas a regulari
dade de suas feições. Seus olhos, barba e cabellos,
de um negro côr de jucá, assentavam admiravel
mente sobre seu rosto de um moreno de jambo. Sua
fronte espaçosa e varonil limitava-se por uma cabeça
achatada, perfeitamente cearense.
Edmundo ficára orphão muito creança e muito
pobre. Um seu tio padre encarregou-se de sua edu
cação e mandou-o para o seminario da Fortaleza.
€3
238 A FOME

Silveira aproveitou bem o tempo e a intelligencia .


Em tres annos havia concluido os preparatorios exi
gidos para matricula nas faculdades do imperio.
Estava preparado para entrar em qualquer curso su
perior. Queria ser bacharel em sciencias juridicas e
sociaes ; padre nunca. Resolvido a cursar a faculdade
de direito do Recife dirigiu-se ao tio communican
do-lhe sua resolução e pedindo-lhe authorisação e
meios para leval-a a effeito .
O velho padre pensava de modo diverso, não
admittia vocações. Para elle tanto fazia ser clerigo
como soldado, alfaiate como medico, a questão capi
tal era ganhar dinheiro. Procurava o caminho mais
curto e a inclinação para elle era letra morta no
curso da vida. Quando mandou o sobrinho para o
seminario foi para fazel-o padre ; nada havia demais
n'isso . Se odiasse o celibato, podia formar sua fami
lia, como elle havia feito depois de vigario.
A carta de Edmundo contrariou o tio, que res
¦ pondeu-lhe reprovando formalmente sua resolução e
i
declarando-lhe não concorreria com um real para es
tudos feitos fóra dos seminarios.
Edmundo recebeu o desengano, voltou para o
4
sertão e fez-se rabula. Vegetou no interior alguns
annos até que a sêcca fel-o emigrar para a capital.
Chegando á Fortaleza, casualmente se encontrou
com Freitas e com elle foi á palhoça.
Conversavam sobre o estado do sertão quando
chegou o commissario, que comprimentou a todos
com muita amabilidade e se dirigiu Freitas.
A FOME 239

Os meus afazeres não me têm deixado appa


recer. Augmentam todos os dias os meus trabalhos !
-
Conhecemos suas occupações, snr. Arruda.
-Este moço é certamente algum parente do
coronel?
- - Não, senhor, é meu amigo e moravamos na
mesma cidade.
--
E hoje estou aqui como retirante, disse Sil
veira.
Mas não carrega pedras ?...
- - Ainda não estou resolvido a isso.

Não tem emprego ainda ?


-Nem promessas .
É solteiro ?
-Até hoje.
-Será mais facil qualquer arranjo.
Simeão olhava para Edmundo com maus olhos :
via n'elle um rival.
-
O snr. Arruda póde ter a bondade de reformar
o cartão que offereceu-me ? perguntou Freitas.
Algum erro, coronel ?
--- Um engano .
E entregou o furta-côr ao commissario.
-Não encontro engano algum !
―――
É sobre a peça de cambraia minha duvida,
snr. Arruda.
-Oh! coronel, o senhor é muito susceptivel !
quiz provar-lhes minha amizade offerecendo uma fa
zenda melhor a sua digna filha.
-Muito nos penhoram suas finezas, mas póde
240 A FOME

vir d'isso alguma censura e não quero que v. s.ª


soffra por nós o menor dissabor.
-Não, senhor. Tomo a responsabilidade de meus
actos e não admitto que um thesoureiro pagador
faça a menor objecção ao cumprimento de uma
ordem minha. Tenho dado cambraia a centenas de
emigrantes sem que fosse por isso censurado.
Estou certo d'isso , mas ha de me fazer o fa
vor de excluir a cambraia. Não consinto que minha
filha, que já vestiu sêda, traje um vestido fino quan
1
do seu pae para comer recebe esmolas.
-
O coronel quer, o que se ha de fazer ?...
E o commissario tirando o lapis da carteira in
utilisou a ordem da cambraia.
-Então tem gostado do livro, D. Carolina ? per
guntou Arruda.
― Ainda não o li.

-A proposito do livro, snr. commissario, sup


ponho que enganou-se, porque o romance que dei
xou é tão livre, que nem eu quiz lêl-o, disse Frei
tas.
-- Será possivel, coronel ?! Dar-se-ia o caso de

ter-me enganado ? !
-Eil-o, basta o titulo e o auctor, disse Freitas
entregando o livro a Arruda.
-Perdão, coronel, este livro nem me pertence.
É de um amigo que, sem duvida , deixou-o sobre
minha secretária. A encadernação do que pretendia
trazer é semelhante, e d'ahi o engano.
-Está desculpado.
A FOME 241

Agora me permitta que louve o seu modo de


educar.
E visivelmente perturbado, o commissario se des
pediu e sahiu da palhoça.
Edmundo estava curioso por saber o titulo do li
vro e, logo que Arruda retirou-se, perguntou a Freitas :
Qual era o livro ?
-- Um romance da época.

-Um realista por certo, uma photographia de


costumes e actos reprovados. A historia de um ho
mem vicioso ou de uma mulher depravada. Estudos
physiologicos que devem ser lidos por espiritos cul
tos e amadurecidos. Esses commissarios são auda
zes ! ...
____ Não julgue assim, snr. Edmundo, póde ter-se

dado engano, ponderou Josepha.


-Quanto mais velha ficas, mais crédula, disse
Freitas.
Está ficando tarde e é preciso que tome a casa.
Edmundo affectuosamente se despediu de seus
conterraneos, acariciou os meninos e sahiu.
Ia pensando em Carolina, a quem amava desde
muito tempo. O seu amor, que não tinha sido até
então comprehendido pela moça, era mal visto de
Josepha, que o havia adivinhado. A pobreza de Sil
veira era o unico tropeço, o unico obstaculo áquella
união. Agora a scena mudava-se. A sêcca com um
tremendo golpe destruiu as fortunas e aniquilou os
preconceitos, e, desapparecidas que foram as posições,
se nivelaram todos.
242 A FOME

Carolina até o momento da visita de Edmundo


não o tinha amado um instante. Vivia enamorada de
seus folguedos de creança. Nada entendia dos olha
res apaixonados de Silveira e não comprehendia suas
palavras amorosas. As saudades do sertão, as contra
riedades do infortunio fizeram-na acordar do somno
de adolescente, para se impressionar com as realida
des da vida.
Edmundo encontrou-a saudosa ainda dos brincos
infantis, deixando a imaginação entregar-se ao gozo
das recordações do passado, mas pensando tambem
no futuro, do qual nunca se havia lembrado.
A visita de Silveira impressionou-a e, por um
d'esses caprichos tão communs ao coração humano,
antes de Edmundo retirar-se, Carolina já o amava
ardentemente .
Ella não sabia o que se passava em si. Acordára
em um mundo novo, os sonhos eram differentes, se
guia outra miragem. Era-lhe impossivel brincar como
outr'ora .
Depois que Edmundo sahiu, Carolina afastou-se
dos paes para chorar á vontade. As lagrimas cahiam
lhe nas faces e ella não sabia por que chorava ! O
amor que nascia, recebia o baptismo do pranto.
Silveira voltava á casa com a alma repleta de
aspirações .
As retinas haviam decomposto os raios dos olha
res de Carolina, como o prisma o raio de luz solar,
e encontrado a côr da esperança. Os espiritos se fal
laram, embora os labios se conservassem mudos !
A FOME 243

Emquanto Edmundo e Carolina idealisavam um


mundo de gozos, uma vida de flôres, um ninho feito
de felicidades para n'elles desfructarem o amor, Si
meão de Arruda, contrariado, ralado de ciumes, ju
rava vingar-se de Silveira. O seu exaggerado amor
proprio não admittia que Carolina preferisse uma
affeição que a levaria ao altar nupcial aos galanteios
do seductor, a um amor reprovado, cujo fim seria o
lupanar.
O commissario, disfarçando todo o odio em uma
protecção franca e leal a Silveira, armava-lhe uma
grande cilada, premeditava uma tremenda vingança.
Um emprego no armazem de viveres do governo a
seu cargo offerecido a Edmundo seria o laço que o
deveria prender e inutilisar por muito tempo.
O logar de fiel de armazem era uma boa arru
mação para quem estava desempregado.
O commissario não tratou de consultar a Silveira
e, antes de ouvil-o, dispensou o empregado que occu
pava aquelle logar. Era elle um homem probo e tra
balhador. Implorou a Arruda, pediu que não tirasse
o pão da familia, mas o commissario com a maior
crueza deu-lhe as costas para não lhe ouvir as suppli
cas.
Vago o logar, Simeão se dirigiu á palhoça, afim
de communicar a Freitas a vaga que tinha havido.
Edmundo estava na palhoça. Arruda, vendo-o go
zar d'aquella intima convivencia, sentiu exasperar-se
lhe o ciume, mas pôde dominar-se. Comprimentou
a todos com a costumada amabilidade.
244 A FOME

Muito estimo encontrar aqui o seu amigo, co


ronel. Acabo de descobrir um grande furto no arma
zem de viveres a meu cargo. As suspeitas recahiram
no fiel, que abusava de minha confiança e demitti-o.
Vago o logar, peço ao snr. Edmundo de aceital-o ,
e confio que não recusará meu offerecimento.
-Sinto muito rejeital-o. Não estou disposto a
exercer empregos remunerados pela verba Soccorros
publicos. Agradeço, entretanto, a attenção.
- O senhor offende-me, disse o commissario.

Absolutamente não. O senhor presta serviços


sem remuneração, emquanto eu os prestaria por qua
tro ou cinco rações, rações que fariam falta aos fa
mintos.
- N'esse caso offereça-se gratuitamente, disse
Arruda.
― - Sae mais caro ao estado .

-Como assim ? perguntou o commissario visi


velmente perturbado ; a allusão o havia alcançado.
-Me pagando ás occultas e com generosidade.
Como viver sem recursos e trabalhando sem venci
mentos ?! O senhor naturalmente tem rendas que lhe
garantam a subsistencia.
É verdade.
――――――- Quando for tempo, ninguem mais do que eu
saberá ser patriota.
— Sua recusa me entristece, snr. Edmundo ;

entretanto não preencherei o logar sem tornar a ou


vil-o .
- Supponho que será inutil insistir.
A FOME 245

Arruda não contava com a recusa de Silveira.


Tinha como certo o seu desastre. Sem plano formado
e vendo desfeito o laço que tinha armado, se retirou
da palhoça, ainda uma vez jurando castigar a auda
cia de Edmundo.
Quando Josepha viu que o commissario ia longe,
disse a Silveira :
- -Devia ter aceitado o offerecimento do nosso pro

tector, snr. Edmundo. Não pensas assim, Manoel ?


Freitas, depois de um longo bocejo mais significa
tivo do que um cento de palavras, respondeu :
-Eu sei, Josepha ?...
- A senhora não comprehende
minha posição.
O emprego póde ser bom, creio mesmo que será ren
doso, mas não me ficava bem aceital-o.
- E o senhor não está desempregado ? Não é

melhor trabalhar, ajudar o moço que quer protegel-o


e se mostra tão seu amigo ? A pessoa deve saber viver,
não é assim que se passa n'este valle de lagrimas,
disse Josepha.
Freitas, temendo que a discussão se azedasse, poz
lhe termo assim :
Então para o retirante só ha o recurso das pe
dras do Mucuripe?
-E emquanto não entender o contrario a alta
sabedoria do snr. Aguiar.
-Supponho que muito breve estarei viajando
n'aquellas brancas areias.
-Crédo, Manoel, longe vá o teu agouro , disse
Josepha.
246 A FOME

- - Porque ? suppões que estou contente com esta


vida de vadio ?
-Estarás tomando as lições do snr. Edmun
do?
-Não, minha senhora, seu marido tem bastante
senso para dirigir-se ; não precisa de mentor.
Carolina córou. A conversação voltava ao antigo
terreno. Freitas a desviou.
― Não acha o transporte de pedras uma medida
improficua ?
- O maior dos absurdos. Justificam-no como um
meio de livrar o povo da ociosidade. A medida é
desastrada. Chega o retirante, é alistado, e no dia se
guinte o commissario ordena-lhe que siga para a pe
dreira do Mucuripe, a duas leguas da Fortaleza, a
carregar pedras para ter direito a uma ração. Inanido,
cançado da viagem, ás vezes velho e doente, segue o
infeliz. Alguns nem chegam com a carga que o go
verno lhes pôz ás costas ao porto do destino, cahem
no caminho e morrem de fome, de fadiga ! Os que
vencem a distancia, são mais desgraçados ainda, por
que continuam a viver uma vida de miserias, de hu
milhações. Duas vezes por semana dão-lhes um litro
41 de farinha e meio kilo de carne do sul, para se ali
mentarem com uma familia, termo médio, de seis
pessoas !
Pobre gente ! exclamou Freitas.
- - E o governo, isolado em seu palacio, occulta-se

de proposito para não vêr o desfilar do prestito da


miseria pelas ruas da capital !
A FOME 247

-E as mulheres, disseram-me, vão tambem á


pedreira ?
-Para nossa vergonha exigem-lhes o serviço. E
que espectaculo contristador o cortejo de infelizes,
semi-núas, carregadas de pedras pelas ruas da cidade !
Não tiveram pejo de affrontar o sexo fragil ! Esque
ceram-se que por humanidade deviam respeitar aquel
las desgraçadas, entre as quaes muitas ainda hontem
gozavam dos mimos da fortuna no dôce conchego do
lar.
-É uma crueldade !
-E qual a utilidade d'essas pedras ? Esses bra
ços enfraquecidos pela fome, porque se não os forta
lecem e depois não os empregam n'um trabalho util
e com um salario razoavel ? O porto da Fortaleza, com
o qual tem-se gasto tantos contos de reis só para
pintal-o, porque não se faz ?
- E que veio fazer a commissão de engenheiros ?
Estudar a causa das sêccas e procurar evi
tal-as. E sabe quanto vence cada um d'esses illustres
scientificos ? Um conto de reis por mez ! Afilhados
do ministro, validos dos medalhões do paiz.
E não ha uma esperança de melhorarmos de
sorte?
Qual, coronel. O Brazil acostumou-se a imitar
a Europa, isto é, na legislação. Quem lê nossas leis
admira a liberdade do povo e sua prosperidade. Co
meçamos pela grammatica e acabamos pelo a b c.
- Haja vista a reforma eleitoral.

-A mascarada do empenho de honra. Tudo


248 A FOME

se refórma ! A politica tudo absorve ! Os nossos es


tadistas amam demais as reformas. Os legisladores
dão ás leis a maleabilidade da cêra. São feitas para
serem interpretadas a contento do governo. E se é
em materia eleitoral, então é um verdadeiro escan
dalo.
-Se cuidassem no que é de utilidade, havia
tanto que fazer !
- A palestra hoje foi bastante longa ; são horas
de tornar a casa.
E Edmundo retirou-se.
VI

Simeão de Arruda estava desapontado com a in


differença de Carolina, que cada dia mais se accentua
va, e era devida ás visitas de Edmundo. Era neces
sario afastar Silveira da palhoça, o que faria embar
cando-o á falsa fé no meio dos retirantes para o norte
ou sul do imperio, e caso falhasse esse meio, man
dando assassinal-o.
A casa construida para Freitas estava acabada ;
o commissario no dia em que foi recebel-a passou
pela porta de Quiteria para avisal-a da proxima mu
dança da familia. A feiticeira fel-o entrar, queria re
ceber algum dinheiro adiantado pelos serviços futu
ros.
Queira entrar, meu capitão, e sentar-se.
O commissario obedeceu.
250 A FOME

-Acho-a muito triste, está doente ?


― - Foram as almas dos enforcados que o botaram

por aqui. Nunca pensei soffrer tanto ! Se não fosse o


temor do inferno já teria desesperado.
E Quiteria começou a chorar desesperadamente.
Diga-me o que lhe aconteceu ? Em mim tem
um amigo prompto a soccorrel-a.
A feiticeira fingiu alentar-se e soluçando ainda,
disse :
--- -Só Deus podia enviar, como enviou , um espi

rito christão e bemfazejo para livrar-me de tão gran


de tribulação.
X E Quiteria calou-se ; parecia suffocada pelos solu
ços.
-- Não se amofine, minha senhora. Confie em

mim, e se lhe posso valer diga-me a causa de seus


pezares.
A feiticeira descobriu o rosto e mais consolada
fallou :
-Fui insultada pelo dono d'este pobre rancho.
Devo-lhe cincoenta mil reis de aluguer atrazados, mas
a divida não authorisa o insulto. Ordenou-me que
sahisse senão mandaria destelhar a casa ! Como sahi
rei d'aqui ? Para onde irei ? Ah ! homem sem cora
ção ! Atirar uma pobre velha á rua !
Como se chama esse tyranno ?
- Não queira
saber o nome d'esse homem mau,
meu capitão. A religião manda perdoar as miserias
do proximo e esquecel-as pelo amor de Deus. É ca
ridade occultal-as .
A FOME 251

-A senhora tem alma grande ! Está a quantia


de que necessita.
E Simeão entregou á feiticeira uma nota do the
souro de cincoenta mil reis.
Os olhos verdes de Quiteria brilhavam de conten
tamento. Ajoelhou-se, pôz as mãos e, fitando uma
imagem de Christo, exclamou :
-Meu Deus e Senhor, prostrada vossa indigna
serya vos pede que aceiteis a esmola que me acaba
de fazer este bom christão.
A feiticeira iria longe com a sua supplica se
Arruda não a interrompesse :
-Basta, D. Quiteria, estou convencido de sua
gratidão. Vou mandar construir uma casa para a se
nhora ; ninguem mais a incommodará.
Com esta promessa a feiticeira, que já se havia
calado e se posto de pé, quiz-se ajoelhar e fazer no
vas exclamações, mas o commissario a conteve, se
despedindo d'ella e sahindo.
A casa para o coronel estava prompta, era ne
cessario mobilal-a. Para isso não foi preciso ao com
missario mais do que timbrar algumas duzias de fur
ta-cores e mandal-os ao thesoureiro. Estava ancioso
por vêr a familia de Freitas junto a Quiteria.
Simeão comprou em poucas horas os moveis, que
arrumou elle mesmo na casa, e foi entregar a chave
a Freitas .
Chegou á palhoça contentissimo :
-Dá-me as alviçaras, coronel ?
- Porque ?
18
252 A FOME

-Se não dá, pedirei-as a D. Josepha.



Já sei, está prompta a casa, disse a mulher
de Freitas.
- Adivinhou, não imaginam o prazer que sinto !

Esta palhoça me contrariava.


-Seus favores serão recompensados de Deus,
snr. commissario, disse Josepha.
O snr. Edmundo ! disse Carolina olhando para
o caminho .
Estimo que me encontre aqui. Desejo saber se
está resolvido a aceitar o meu offerecimento, disse
Simeão.
-Até hontem não estava resolvido, disse Frei
tas.
-Isso me contraría, porque estimo-o e desejava
tel-o como auxiliar.
―――――――――――――
Talvez pense hoje de outro modo . Não ha mo
tivo para rejeitar tão generosa offerta. Se Manoel o
aconselhasse, estou certa que elle aceitaria o em
prego.
-Costumo só dar conselhos quando m'os pedem .
E demais Edmundo tem bastante discernimento para
guiar- se.
Qual, Manoel, a mocidade tem loucuras e o teu
amigo não cahiu do céo por descuido.
— Para julgal-o te considero pouco habilitada.
Edmundo entrou na palhoça. Simeão foi o pri
meiro a saudal-o.
-Fallavamos a seu respeito. Discutiamos as
vantagens do emprego que lhe offereci. A nossa res
A FOME 253

peitavel amiga D. Josepha é de opinião que deve


aceitar o logar que puz á sua disposição.
-Sinto dizer-lhe que estou no mesmo proposito.
Simeão fez um gesto de desgosto.
-Dá um parecer franco, Manoel. Dize-lhe que
aceite o emprego, disse Josepha.
Não admitto reflexões d'essa ordem ! Estás-te
excedendo, Josepha ! ...
-Desculpe, coronel ; a sua virtuosa esposa ex
prime-se assim pelo muito que quer ao nosso amigo
Edmundo.
-Agradeço o interesse que D. Josepha toma
por mim, mas é ocioso instarem para que aceite tal
emprego.
-Não fallemos mais n'isso. Hei de provar-lhe
minha sympathia. Peço-lhe que frequente nossa casa,
que honre-me com suas relações.
Agradecido. Não serei indifferente ás finezas
que me tem dispensado, disse Edmundo.
O commissario se dirigiu a Freitas.
-Permitta-me, coronel, offerecer a chave de sua
nova habitação á sua digna filha.
Freitas fez um gesto affirmativo, e Arruda, se
aproximando de Carolina, entregou-lhe a chave.
A moça córou até á raiz dos cabellos e disse-lhe :
Obrigada.
Edmundo empallideceu sem querer.
A mudança póde ser hoje mesmo. Á tarde
mandarei os meus creados para mudal-o.
-Não é preciso tomar mais esse incommodo.
*
254 A FOME

Não temos trastes. Quem conduziu até aquí estes des


pojos da miseria, os levará mais adiante.
―――――- É bom vir uma pessoa para guial-o.
―――― O senhor insta, aceitarei mais esse obsequio.
――― Quando o verei agora, snr. Edmundo ? Está

o meu cartão, n'elle encontrará a rua e o numero de


meu gabinete. A casa é escolastica, por isso nada de
ceremonia. Appareça, disse Arruda.
― Obrigado, o irei visitar.

O commissario sahiu depois de ter ouvido de Jo


sepha mil agradecimentos. A pobre senhora não sabia
como agradecer a Simeão o favor de abrigal-as !
――-O que pensa da generosidade do snr. Si
meão ? perguntou Freitas a Edmundo.
----Eu sei, coronel... contam tanta coisa d'esses
commissarios...
-É um grande peccado pensar mal do proxi
mo , ponderou Josepha.
Os tolos são sempre credulos, disse Freitas.
-Mas não são maliciosos, disse Josepha.
Não sei porque o snr. Arruda não me merece
confiança, disse o coronel.
― Hei de restabelecer a verdade. Procurarei o
snr. Simeão e em breve direi o que elle é.
―― Supponho que o snr. Edmundo encontrará um
homem de bem e muito caridoso.
-Muito estimarei se assim for, D. Josepha. O
romance foi que me preveniu contra elle.
Querem culpar o moço por um engano.
És muito ingenua , Josepha.
A FOME 255

Suspendamos todos os nossos juizos, vou co


nhecel-o para julgal-o.
Mas sem paixão, disse a mulher de Freitas.
-Com toda a imparcialidade. Me comprometto,
sob minha palavra de cavalheiro, a voltar aqui muito
breve com minha opinião firmada sobre o caracter de
Simeão de Arruda.
E assim se terminou a discussão.
fire
VII

Os creados de Arruda se apresentaram na palho


ça e acompanharam Freitas e a familia á nova casa.
Todos estavam mais ou menos satisfeitos com a
habitação, excepto o coronel que, de semblante fecha
do, não dava palavra.
Carolina olhava com indifferença para tudo aquil
lo, mas Josepha não cessava de admirar os moveis,
pobres, porém decentes, de louvar a generosidade do
commissario e de rogar-lhe mil bens.
Ella estava innocente em todo aquelle drama.
Via em Simeão um homem cuja caridade não tinha
limites. Faltava, entretanto, a ella uma das qualidades
para bem se viver no mundo, a perspicacia. Confiava
demais na probidade alheia ; era de boa fé, como se
diz vulgarmente .
258 A FOME

Freitas havia levado o seu tóro de madeira e col


locado a um canto da sala. Seria sua cadeira em
quanto fosse retirante.
Depois que os creados de Arruda se retiraram,
elle disse a sua mulher :
- Está tudo muito bom, mas com franqueza
di
go-te, preferia o nosso rancho. É difficil viver tran
quillo aqui. Estes moveis fazem-me lembrar a nossa
casa e essa lembrança magôa-me o coração ! Ah ! Jo
sepha, se ha felicidade no mundo, ella consiste uni
camente na paz do espirito. De que serve a riqueza
com os seus gozos e delicias quando a alma é amar
gurada por um pezar ? Quizera antes a nossa palho
ça batida dos ventos. Qual será o preço d'essa pro
tecção ? Pensamentos maus tem-me assaltado o espi
rito e me desalentado.
――――――
Não te comprehendo, Manoel. Aceitamos os
favores de um homem, que espontaneamente se mos
trou nosso amigo. É um agente do governo authori
sado a soccorrer os desvalidos. Estamos n'esse caso,
e seria orgulho nosso rejeitar a esmola, quando ne
cessitamos d'ella. Até agora ainda não temos razão
de desconfiar do homem que nos protege, pelo menos
eu de nada sei ; comtudo se te contraría aceitar tal
favor, voltemos a nosso rancho. Estou pelo que qui
zeres.
- É tarde. Véla por tua filha e confiemos em Deus.

Freitas passou mal a primeira noite na nova casa.


Almejava o alvorecer do dia, a luz do sol para reani
mal-o. A insomnia havia sido mortificante e lhe aba
A FOME 259

tera ainda mais o espirito, já tão depauperado de con


forto.
Ao primeiro clarão do sol levantou-se e foi sen
tar-se em seu tóro de madeira á porta da entrada.
A aragem fresca da manhã pouco a pouco calmára
lhe o espirito, que a meditação havia excitado e en
fraquecido.
A feiticeira tambem passou mal a noite estudan
do a sua apresentação em casa do coronel. Levantou
se cedo e não teve tempo de rezar senão um Padre
Nosso. Quando abriu a porta já Freitas estava senta
do á entrada da casa.
Quiteria vendo-o riu-se, encolheu os hombros e
disse entre dentes :
-É um figurão ! parece-me um frade. Que bar
bas do Senhor S. Pedro, comparando mal ! Vamos
vêr quem sae mais. Estavam hontem com tanta cere
monia e hoje já tão cedo sahem da tóca.
Carolina levantou-se após seu pae e veio ter com
elle.
A feiticeira, admirada da belleza da moça, res
mungou :
-Tem bom gosto o commissario ! a menina é bo
nita como uma rosa ! que lindos cabellos louros que
tem ! parece ser tão novinha ! que olhar amoroso ! é
perfeita como uma imagem!
Cantarolou o verso de um bemdito e conti
nuou :
- Por menos de um conto de reis não ajudarei
o snr. Simeão, e se não m'o dér eu acho quem
A FOME
260

queira... o mundo está cheio de gente de bom gosto


e de dinheiro . São horas de apresentar-me.
Quiteria entrou para a alcova , tirou da mala de
pregaria um vestido de alpaca preta já esverdeado ,
ainda do luto do seu defunto cabo , vestiu -o, deitou -o
veterano lençol de cabeça deixando apenas os olhos e
o nariz de fóra , enrolou um grande rosario de côco
na mão direita , fechou a porta e sahiu para a casa .
de Freitas. Chegando á porta do coronel pediu-lhe li

cença e entrou .
-Seja louvado Nosso Senhor Jesus Christo , meu
bom senhor e senhora , disse Quiteria se inclinando

quasi até o chão .


-Bom dia, minha senhora , queira sentar-se, dis
se Freitas offerecendo -lhe uma cadeira.
-Venho cumprir o meu dever de visinha . Não
se admirem de minha visita não se ter demorado .
Costumo visitar todas as pessoas que vêm morar
perto de mim e offerecer-lhes meus serviços . Sympa
thisei muito com os visinhos e apressei-me em vir
pôr á sua disposição os poucos prestimos de uma po

bre velha .
-Agradeço muito sua attenção e aproveito a
occasião de offerecer -lhe os meus serviços .
Josepha , que já estava de pé, veio á sala .
Bom dia, disse entrando a mulher do coronel .
Nosso Senhor lhe dê as mesmas , minha dona ,
-
disse a feiticeira inclinando -se e estendendo a mão

que segurava o rosario .


-Já sei que é nossa visinha , disse Josepha .
A FOME 261

-Visinha e creada, accrescentou a feiticeira com


a maior humildade.
-Veio offerecer-nos os seus serviços e amizade,
disse Freitas.
-Muito estimo e agradeço-lhe, disse a mulher
do coronel.
Já cumpri meu dever, hão de permittir que
me retire ; ainda vou ouvir a santa missa, essa de
voção de todos os dias. Alli é o meu pobre rancho,
estarei sempre ás suas ordens.
Quiteria, depois de ter indicado com o dedo sua
casa, curvou-se respeitosamente diante de todos que
estavam na sala e sahiu para a igreja.
Edmundo havia muitos dias que não apparecia
em casa do coronel. Continuava suas indagações so
bre o commissario, só queria encontrar-se com Jose
pha depois de firmada sua opinião sobre Arruda. Já
sabia que o commissario era casado, tinha filhos,
era crapuloso e se embriagava de vez em quando.
Quiz conhecel-o de perto e procurou-o no seu gabi
nete.
Simeão recebeu-o com um apertado abraço :
-―――
-Seja bem vindo o mais novo, porém o mais
sympathico dos meus amigos.
-Sempre a penhorar-me com suas finezas.
――――――- Diga-me que
milagre foi esse ? Estava perden
do a esperança de vêl-o n'esta pobre casa.
E Arruda fez Edmundo sentar-se a seu lado.
――――― Pretendi sempre visital-o e já não o havia

feito com preguiça.


262 A FOME
1

Tem visto o nosso coronel ?


-A ultima vez que o vi foi n'aquella tarde.
-Tambem não tenho apparecido por lá depois
d'aquelle dia. Vivo sempre occupado e atropellado
com esse maldito serviço de soccorros. O tempo não
chega para os meus negocios particulares. Tenho pe
dido por vezes exoneração de tão pesado cargo e o
governo por fórma alguma me tem querido dispen
sar. Ainda hontem disse mui positivamente ao presi
dente da provincia que, se elle de todo não quizesse
exonerar-me, eu dava parte de doente.
3 Batem á porta. Simeão faz ponto em seu discurso,
M #
e vê que mão descarnada e tremula procura abrir o
postigo da rotula ; enfurecido grita :
―― Retire-se, retirante dos diabos ! não fallo hoje

com essa canalha, corja de ladrões, mentirosos, capa


zes de tudo quanto ha de ruim.
Um gemido foi a resposta que teve o insulto de
Arruda a mão retirou-se e o infeliz seguiu.
},
1 - Desculpe, meu amigo, essa gente só se tratan
4
T do assim ; abusam de minha paciencia e forçam- me
a tratal-os mal. Agora vamos tomar um pouco de li
cor.
E deitou chartreuse em dois calices, que bebeu
com Edmundo .
- - Bom licor ! disse Silveira depois de esvaziar
o
calice, que collocou sobre a mesa .
--É obra de frade.
-Tem bom gosto !
Que tal o meu gabinete, Edmundo ?
A FOME 263

Está bem decorado.


-Nada como a vida escolastica ! Viva o celiba
to ! havemos de saudal-o, não com chartreuse, mas
com curação.
--- Agradeço , sou fraco.
-Qual, licor não embriaga, alegra o espirito e
faz do fraco forte.
E encheu dois calices, que beberam.
Hurrah pelo celibato.
-E sempre teve essas idéas ? perguntou Ed
mundo.
-Para fallar-te a verdade, não. Já pensei uma
vez em casar-me, o que dou graças a Deus não ter
levado a effeito . Não és da minha opinião ?
Não.
Eu não me lembrava que és noivo...
-Está brincando.
――
- Não, e até me offereço para testemunha do
casamento. Aceitas ?
――― Se casar
algum dia.
- Eu te considero já na lista dos papeis quei
mados.
- Engana-se.
- - Veremos. A tua amavel presença deu-me gran

de contentamento ! Hoje o dia será nosso, havemos


de passeiar por essa cidade toda.
-E não vai ao abarracamento ?
Qual ! os retirantes que se arranjem como po
derem. Já te disse que o dia é nosso. Rejeitas meu
convite ?
264 A FOME

Aceito...
-Já embarcaste ?
Não.
- Nem foste a bordo ?
- Nunca.
▬▬▬▬▬▬▬▬▬ Hei de te mostrar hoje, meu matuto, o que é
uma casa sobre o mar.
- - E tem que fazer a bordo ?
-- Alguma coisa. Embarcaram hoje quatrocentos
retirantes do meu abarracamento.
-Pobre gente ! ...
- O que sae não nos faz falta.
1
Agora não fará, estou certo, porém quando
voltarem os tempos regulares, onde ir buscar braços
para a lavoura?
— Não fallemos em coisas tristes ; vamos ao em

barque, que a hora se aproxima.


E Simeão, depois de fechada a porta do seu ga
binete, sahiu com Edmundo para o porto.
VIII

Chegou a hora da separação. Quatrocentos reti


rantes de todas as idades marchavam em prestito
para o porto da cidade. Era triste aquella procissão
como o desfilar de um enterro. Todos magros, maci
lentos e esfarrapados, davam ao cortejo a côr sombria
da tristeza.
Forçados a abandonar a terra natal, caminhavam
desalentados . Pela cadencia do passo lento e grave
podia-se avaliar do desgosto que lhes ia n'alma ! Se
guiam em silencio, e muitos tinham os olhos pisados
de chorar !
Chegaram ao porto do embarque. Quatro gran
des lanchas, proximas da praia pela vasante da ma
ré, se balançavam nas ondas da arrebentação, esti
cando as correntes das amarras, que mordiam as
266 A FOME

areias do porto . Eram os bateis que deviam trans


portar a bordo do vapor Pernambuco os infelizes con
demnados a abandonar a patria. O navio ancorado
perto da costa movia-se, preso á amarra de prôa, de
bombordo a estibordo .
O prestito parou ao lado do velho trapiche.
Os encarregados do embarque dos emigrantes,
n'um açodamento cruel, faziam transportar para bor
do das lanchas os retirantes. O serviço era feito de
um modo deshumano e afflictivo ! Não havia um
caes, uma ponte para atracar as embarcações . Uma
duzia de homens fortes e musculosos, nús, tendo ape
nas uma tanga, trabalhadores da capatasia do porto,
faziam o embarque dos emigrantes a tostão por ca
beça com a mesma humanidade com que costuma
vam carregar os fardos de algodão , os saccos de as
sucar. Não havia alli respeito á velhice, decoro á ho
nestidade e protecção á infancia ! Queriam ganhar
depressa o seu tostão, e a moça, o velho, o menino
conduziam do mesmo modo aos hombros, e chegando
a bordo da lancha atiravam-nos sem piedade como
se fossem corpos inanimados !
As creanças gritavam assombradas quando se
viam carregadas de mar a dentro e muitos dos car
·regadores faziam-nas calar a empuxões ! Além do
modo barbaro de embarcal-os, por cumulo de perver
sidade, a zombaria dos trabalhadores , a galhofa que
faziam dos seios das mulheres expostos pela nudez á
sua brutal irrisão e que a fome havia reduzido a
esguias pelangas !
A FOME 267

Em completa ossidia olhavam pezarosos para a


alvura diamantina das praias de sua terra e muitos
d'elles choravam .
A bordo das lanchas era horrivel a confusão. Os
lancheiros, com uma crueza de brutos, acavallavam
os emigrantes como se fossem fardos de mercadorias !
Os raios adustos do sol tostavam-lhes a pelle, e cada
vez mais afogadiça tornavam a atmosphera das em
barcações.
Era quasi meio dia e os emigrantes estavam em
perfeito jejum.
Arruda havia chegado á praia com Edmundo e
assistiam áquellas scenas de cannibalismo.
De bordo de uma das lanchas, logo que o com
missario se apresentou na praia, os retirantes pra
guejaram :
-O castigo de Deus te persiga, miseravel ! És
a causa de nossa desgraça ! Maldição sobre ti, sedu
ctor das filhas alheias ! A cadeia seja teu fim, ladrão
do dinheiro do nosso rei !
Arruda ouviu as pragas e deixou com o compa
nheiro aquelle sitio.
O paquete largaria dentro de duas horas, e o
commissario, temendo vêr frustrado o seu plano, fre
tou umajangada. A bordo d'ella com Edmundo, man
dou que o mestre se fizesse de vela para o Pernam
buco.
Apesar da baixa-mar as ondas se encapellavam
levantadas pelo vento que soprava rijo. Passaram a
primeira onda, chegaram á segunda e grita o mestre :
19
268 A FOME

―――― Calça a bolina !

Uma vaga se ergueu, acachoou-se na prôa da


embarcação e um lençol d'agua levou tudo que en
controu.
- Estamos safos , patrão, disse o mestre.
-
Felizmente, porém molhados como pintos, dis
se Arruda.
A jangada corria sobre as ondas com velocida
de superior á de um vapor. A vela latina atufava-se
com o vento e a embarcação estendia sobre a super
ficie verde do mar uma esteira branca de espumas.
O mestre manobrava com arte e o batel passava
a todo panno entre os innumeros navios ancorados
no porto sem receio de um abalroamento . Aproavam
para o Pernambuco.
Em poucos minutos fizeram a viagem e tinham
á frente o bôjo negro do navio, que sahia do mar
como um comprido recife.
- Cuidado, Pedro, temos o vapor pela prôa e
perto ! Aguenta a jangada... Tira a bolina... Férra
a vela ! ... grita o mestre no leme governando.
Atracada a embarcação á escada de ré, subiram
os passageiros .
Simeão de Arruda da amurada do navio dirigiu
se ao mestre :
-A jangada fica por minha conta.
-Sciente, patrão, sua bolsa é minha guia.
Agora vamos vêr o que é um vapor, coisa
admiravel para quem o vê pela primeira vez, não é
assim, Edmundo ?
A FOME 269

Um dos bons productos do engenho humano,


respondeu Silveira olhando attentamente para os
mastros e para tudo que o cercava.
Estás admirado ?
É verdade ; mas sinto a cabeça tontear, não
sei se será effeito do licor ou algum começo de en
jôo.
-Isso passa. Aproxima-se uma lancha de reti
rantes que vai atracar na prôa, vamos assistir mais
perto á baldeação.
---
Não posso seguir, as pernas pesam-me como
se fossem de chumbo.
- Apoia-te no meu braço e vamos.
E Arruda, dando o braço a Silveira, o conduziu
por bombordo até perto do mastro grande onde fica
ram.
A lancha tinha atracado ; trazia mais de cem re
tirantes maltrapilhos e molhados. Muitos, atacados de
enjôo, vinham deitados e expostos á soalheira ; ou
tros choravam debruçados na borda da lancha com
o olhar fito em terra. As creanças, entorpecidas de
fome e afogueadas de calor, deixavam pender as
frontes sobre os regaços ossiculados das mães, que
nada podiam fazer por ellas senão procurar dar-lhes
a sombra esguia de seus corpos !
A briza do mar soprava e quente como se viesse
de atravessar um campo incendiado. O espaço era
azul e nem uma nuvem assomava no horisonte an
nunciando que o tempo iria se aborrascar !
Abriu-se o portaló de prôa para dar entrada ás
270 A FOME

victimas da sêcca. Os passageiros do navio debruça


dos nas amuradas assistiam á baldeação d'aquelles
esqueletos animados. Os empregados de bordo rece
biam-nos brutalmente . Não encontravam alli pieda
de ás suas dôres .
A lancha ia largar, quando o immediato do navio
se dirigiu ao patrão :
―― Ainda temos muito d'este genero em ter
ra ?
-Tres lanchadas.
- Com mil diabos ! Temos agora a peste
a bor
do ! Diga lá que mandem a mercadoria mais bem
acondicionada, que esta chegou muito avariada, e, se
continuar a vir assim, ficará durante a derrota toda
no mar cevando as tainhas. Puxem pelos remos que
largamos cedo.
E o immediato virando as costas á lancha disse
aos retirantes :
- D'este mastro de prôa para a ré nem um pas

so ! Arrumem-se ahi como poderem ; se ficarem como


sardinha em tigela e se fôr quente o sol queixem-se
da sorte ; se á noite chover e fizer frio queixem-se de
Deus, que não deu inverno á sua terra.
Muito poucos dos emigrantes com semelhante tra
tamento resistiriam á viagem. Das creanças não esca
paria uma só !
Era a emigração a ultima desgraça reservada ao
cearense ; e a emigração forçada, porque elles não
queriam sahir e o governo da provincia a isso os
obrigava diminuindo todos os dias os soccorros . Seis
A FOME 271

vezes por mez tocavam os paquetes do norte sul


na Fortaleza e todos elles levavam emigrantes !
O plano do commissario parecia caminhar a bom
exito.
Edmundo sentia se aggravarem os seus incom
modos.
Simeão não perdia o mais leve signal pathogno
monico da molestia que atacava o companheiro. Era
grande a sua intima satisfação. Aproximava-se a hora
da sahida do paquete, e era necessario que Edmundo
cahisse de todo.
Arruda levou-o á camara do navio quasi arrasta
do. Sentou-o em um banco e observava com o maior
sangue frio os effeitos do enjôo, que augmentava á
custa do calor que alli fazia e do cheiro especial de
taes logares .
Silveira enfraquecia a olhos vistos.
O olhar havia-se amortecido de todo e de palpe
bras cerradas esperava a morte como termo á agonia
que o prostrava. Suas feições descompostas, quasi ca
davericas, tinham uma côr livida ; uma manifesta
cyanose azulava-as, devida ao trabalho circulatorio,
que era imperfeito. Aquelle organismo forte e vigo
roso cahia n'uma profunda atonia. Elle achou-se pela
primeira vez na vida em um meio onde o equilibrio
dos corpos era instavel, sujeito a movimentos alter
nos de ascensão e descida, e d'ahi as perturbações
nas funcções organicas.
A vida animal tambem soffria. A circulação do cere
bro não era regular ; a sua perturbação causava desor
272 A FOME

dem que se observava nas visceras, cujos nervos es


tão em communicação mais directa com o ence
phalo.
Edmundo acreditava que ia morrer, taes eram
os soffrimentos. De todos os póros do corpo exsuda
va um suor gelado que esfriava-lhe a pelle ; as ex
tremidades estavam algidas ; a respiração era curta ;
o pulso pequeno e fraco, e de quando em vez vinha
uma vertigem , como um aviso de que a onda san
guinea que subia, era insufficiente para alimentar a
circulação do cerebro .
O estomago, que até então não tinha sido influen
ciado pelo encephalo, veio augmentar os padecimen
tos causados por aquelle estado morbido.
Edmundo sentiu uma afflicção horrivel ; pareceu
lhe a agonia da morte e estirou-se no banco a fio
comprido para melhor morrer. O mundo a andar-lhe
á roda, o coração a bater um rythmo, a preguiça
pulmonar, tudo isso era menos, era supportavel, á vista
da angustia que sentia no estomago, angustia que
se manifestava, não por vomitos, mas por um estado
nauseoso, afflictivo e desalentador.
Edmundo havia cahido de todo ; estava completa
mente á mercê do commissario .
Arruda olhava para a sua victima sem a menor
piedade, e ficaria contemplando o fructo de sua obra
se a sineta de bordo não avisasse os visitantes que o
paquete ia levantar ferro.
Simeão em um instante poz-se no portaló de ré
e fez signal ao jangadeiro para atracar .
A FOME 273

A jangada atracou, recebeu-o e aproou para terra.


Duas lanchas carregadas de retirantes bordeja
vam perto do vapor esperando ordens de bordo.
Os quatrocentos emigrantes, que tinham vindo de
terra para o Pernambuco, foram recebidos a bordo
do navio ; porém o immediato não tendo accommoda
ções para mais de duzentos, pôl-os em fórma, sem
attender a que alli iam familias e que seus membros
deviam ficar reunidos, e começou a contagem do co
meço da columna. Chegando a duzentos fez voltar o
excesso para as lanchas, que ficariam bordejando até
segunda ordem.
Os retirantes obedeceram e aguardavam o mo
mento de voltar ao vapor, quando o navio suspende
a ancora e aprôa para o sul.
A confusão foi horrivel.
Um só grito de desespero, um echo longo de um
só pranto partiu das lanchas e da prôa do Pernam
buco.
Áquella angustiosa scena assistia com uma im
passibilidade de bruto o commandante do vapor, fu
mando cachimbo no convés do navio. O immediato
não menos crú, de pé, junto ao homem do leme, pa
recia nada ouvir dos fundos suspiros que a dôr a
mais intensa arrancava da alma d'aquelles desgra
çados !
Quanto mais se afastava o navio, mais augmen
tava o alarido .
- - Meu pae que vai ! minha
mãe qui ficou meu
filho meu marido ! meu irmão !
274 A FOME

Quasi todos exclamavam, quasi todos lastimavam


uma affeição que ficava, um amor que seguia.
Arruda foi testemunha de toda a scena, mas não
se commoveu. Chegando em terra procurou sua casa ;
estava livre de Edmundo, e tinha portanto augmen
tado as probabilidades de seduzir Carolina.
IX

Manoel de Freitas ia vivendo com a familia, gra


ças ao soccorro que lhe dava semanalmente o com
missario Simeão de Arruda,
Quiteria do Cabo frequentava a casa do coronel
e conseguiu que Josepha e Carolina fossem tres ve
zes rezar com ella o terço das almas, sua predilecta
devoção.
A mulher de Freitas e a filha sympathisavam
com a feiticeira : uma creatura tão religiosa e que
cumpria com tanta constancia os preceitos da reli
gião ; que era piedosa, e fazia toda a sorte de morti
ficações pelo amor de Deus, não podia, pensavam
ellas, deixar de ser crédora de todo o respeito e de
se impôr á amizade dos que tinham a felicidade de
conhecel-a.
Carolina vivia triste. Edmundo promettera voltar
276 A FOME

e nunca mais apparecera ! Dois mezes se haviam


passado e nem uma nova sua. Freitas e Josepha se
interrogavam sobre a ausencia do moço e não po
diam descobrir a causa. Pediram noticias d'elle ao
commissario, e Arruda respondeu-lhes que nunca mais
o tinha visto .
Simeão sentia prazer com o viver aborrecido de
Carolina. O ar melancolico da moça, a languidez do
olhar sempre fito em uma imagem ideal estacionada
na mente, cada vez mais incitava os desejos sensuaes
do commissario .
As faces de Carolina, rosadas como as boninas do
campo, iam pouco a pouco desmaiando, tornando-se
côr de bogary.
Arruda comprehendia a causa d'aquelle abati
mento, que francamente se percebia pela pallidez
do rosto . Aquelle desalento d'alma offendia-lhe o
amor proprio, mas havia rendel-a pelo ouro ou pela
fome. Acreditava que a honra não podia morar com
a miseria na mesma tenda. Elles resistiriam aos pri
meiros dias de fome, depois vencidos entregariam a
filha á sua libidinagem.
Á saudade, entretanto, ia murchando a rosa, que
definhava todos os dias ; as contrariedades do amor
lançavam-na em uma adynamia profunda .
O estado de Carolina o inquietava, porque as fei
ções começavam a se alterar e a formosura já não
era a mesma. Era necessario apressar a execução do
plano e só Quiteria do Cabo podia fazer isso amiga
velmente .
A FOME 277

Arruda foi ter com a feiticeira.


Ella voltava da missa ás oito horas da manhã,
quando encontrou-se com o commissario, defronte
da casa.
As saudações foram as do costume, amaveis e
delicadas.
Sempre na sublime pratica da religião, D.
Quiteria; a senhora é muito rica de fé!
Sou uma grande peccadora, meu capitão !
Sabe o que me traz á sua honrada casa ?
-Saberei quando v. s.a m'o disser.
-Pedir-lhe um favor que é da religião. Es
tou resolvido a casar-me, não só para cumprir
os sacramentos da igreja, como tambem para for
mar uma familia, unico amparo que temos na ve
lhice.
- Pensa muito bem ; se eu tivesse-me casado
moça, teria tido filhos e não me veria hoje só e á
mercê de todos os caprichos da sorte.
E duas lagrimas rolaram pelas faces macilentas
de Quiteria.
-Já fiz minha escolha. Supponho que será ap
provada de Deus e do mundo, pois a moça é virtuosa
e pobre.
- Quanta generosidade ! Procurar uma noiva en
tre a pobreza hoje só faz quem já é do céo !
-Aproxima-se, porém, o tempo de realisar o ca
samento, e ainda não consultei a vontade de minha
escolhida. Por varias vezes tenho tentado declarar
lhe os meus sentimentos, mas medroso recúo, sen
278 A FOME

tindo aquella timidez do amor puro, dos sentimentos


sublimes do coração .

Quanto pudor ! Que exemplos edificantes de


honestidade !
A protecção que tenho dispensado á familia
em que pretendo entrar, ha concorrido muito para
meu silencio. Pobre e completamente desprotegida,
encontrei-a n'uma palhoça e abriguei-a. Entretive
depois relações com ella e conheci que prestava ser
viços a uma familia de sentimentos nobres, outr'ora
rica e que fôra atirada pelos caprichos da sorte ás
garras da miseria.
―――
Cada vez me convenço mais de suas virtudes .
O casamento é da religião e houve homens que fo
ram santos sómente por terem concorrido para a
realisação d'esse sacramento. Diga-me em que posso
servil-o ?
- Quasi depende de seu auxilio a minha felici
dade. Sabe a minha escolhida é a sua visinha.
――――- Feliz Carolina ! E nem podia deixar de ser

abençoada do céo ! Com que fervor rezavas aqui á


noite o terço das santas almas ! Que linda noiva que
serás ! Como brilharão teus cabellos doirados sob o
branco véo de linho ! Como estou satisfeita ! Que ca
samento feliz ! Duas almas virtuosas unidas pela
igreja !
-Suas palavras me confundem, D. Quiteria. Va
mos agora a saber o modo de effectuar essa união,
que a senhora agoura tão bem. O governo continúa
a internar os retirantes, muito embora as esperanças
1

A FOME 279

C
do inverno estejam desvanecidas. Não sei se essa fa
milia pretende retirar-se. Queria antes de tudo ouvir
a opinião de D. Carolina. Podia pedil-a logo, mas de
sejo primeiramente consultal-a.
- V. s.a é muito sensato.
Cumpre-me pedir-lhe sua authorisação. Porém,
onde ? em sua casa ? é impossivel ; vejo-a sempre de
relance, não póde ser. Se ella frequentasse a socie
dade, seria facilimo ; os bailes são optimos logares
para as declarações, os intervallos das contradanças
1 bons auxiliares, as walsas verdadeiros excitantes do
amor que desponta. Peço-lhe de aconselhar-me, sup
ponha que ouviu um filho e que tem de ensinar-lhe
o caminho que deve seguir. Quero franqueza. Se fôr
preciso dinheiro gastar-se-ha ouro como se fosse areia.
As ultimas palavras de Simeão produziram gran
de effeito no animo de Quiteria. Ella volveu rapida
mente os olhos verdes, abriu-os o mais que pôde,
como para ver o thesouro que promettiam confiar
á sua discrição e em que saciaria a cubiça. Fingiu
depois que meditava, que reunia idéas dispersas.
Quem a visse não duvidaria de que iria manifestar
os sentimentos d'alma, que ouvia a voz da conscien
cia, para poder dar opinião franca e sincera sobre o
que acabava de ser consultada. Seu olhar vivo e in
vestigador tornou-se amortecido e terno ; parecia es
tacionada diante de um quadro que a commovia. A
feiticeira lia no coração do commissario como n'um
livro aberto.
Devassava-lhe os mais occultos pensamentos. A
280 A FOME

sua resposta abriria o campo ás negociações. O preço


estaria na razão directa das difficuldades apresenta
das á execução do plano.
Quiteria olhou com ternura para Arruda e fallou
lhe :
-Pede-me v. s.a um conselho, quer ouvir-me ;
fallar-lhe-hei como se tivesse a felicidade de ser sua
mãe ; depois como uma creatura a quem os longos
annos de experiencia custaram muitas lagrimas : o
casamento é um passo arriscado, a ponto de S. Pau
lo dizer que será melhor não casar, mas a igreja
o quer, devemos obedecer-lhe.
Arruda deu um fundo suspiro ouvindo a opinião
do santo, o que não passou desapercebido á feiticeira.

Porém esse modo de pensar de S. Paulo não
nos deve contrariar ; não segue-se que devamos con
demnar o casamento. Santo Agostinho apresenta em
seus sermões o solteirão como a serpente que, na
solidão do covil, machína a perdição dos que d'ella
se aproximam. E eu, cuja unica felicidade n'esta vida
foi devida aos annos em que desfructei as delicias do
matrimonio, considero o setimo sacramento da igreja
como a unica ventura n'este mundo cheio de traba
lho . É v. s.ª um homem virtuoso, e a escolhida de
seu coração uma moça educada na santa religião de
Christo. Que motivos terá ella para recusar a mão
de tão distincto cavalheiro ? É verdade que o amor
tem caprichos e eu que o diga. Acho prudente con
sultal-a.
- -Aonde e de que modo ?
A FOME 281

-Tudo é facil quando temos perseverança aju


eço
ta dada das orações, dos pedidos aos santos da côrte do
to

céo. Não me offereço para consultar a vontade da


Qu moça, porque entendo que essa consulta deve ser
feita por v. s.
- Acho muito acertado o seu parecer.
e;
― - Comprometto-me a proporcionar-lhe occasião
ua
OS de entender-se com ella aqui mesmo n'este humilde
rancho.
0
1 Quando ?
――― Vou fazer uma trezena ao Senhor Padre Santo

Antonio, e concluida que seja, será no dia que qui


zer.
0
1. -Muito bem, parece que tudo se combina para
felicitar-me. Quando começa a devoção ?
0
―― Hoje mesmo, mas é preciso velas de cêra
branca.
1
-Não seja esta a duvida ; aqui estão cincoenta
mil reis para as despezas.
- - Agradeço-lhe pelo Senhor Padre Santo Anto

nio. Farei hoje mesmo o sonho de Santa Helena, pelo


qual pretendo vêr o futuro de tão virtuoso par. Já
sei que verei campos verdes, aguas correntes, aves
cantando.
- Feliz coincidencia ! Finda-se a trezena no dia
de meu anniversario natalicio. Bom agouro ! Reuni
rei á noite alguns amigos e será aqui se m'o per
mittir.
―――――――― A casa é de v. s.", temo sómente as más lin

guas.
282 A FOME

- Não haverá festa, apenas trarei minha familia,


irmãs e tia, alguns amigos para, reunidos, passarmos
parte da noite.
-
Eu não farei parte da reunião . Estarei reco
lhida a meu quarto rezando como costumo.
--- Posso ficar certo como na ultima noite da
trezena conversarei aqui com D. Carolina ?
Creia em minha boa vontade.
- Ainda uma vez agradecido .

Arruda retirou-se convencido do triumpho : Caro


lina seria sua amante.
Emquanto o commissario e a feiticeira urdiam
aquella trama, Freitas, cada dia mais desalentado,
pensava no futuro. As primeiras chuvas do falso in
verno de 1878, o fuzilar dos relampagos e os estam
pidos dos trovões em 5 de janeiro trouxeram-lhe vi
vas recordações do sertão. Elle vivia como a planta
exotica nos primeiros tempos da acclimação . A ener
gia vivificada pelo amor á familia e de sobejo pro
vada nos transes dolorosos da mais penosa peregri
nação ia-se-lhe amortecendo aos poucos. O meditar
de todos os dias, de todos os instantes, o cansaço da
velhice, as tribulações da alma e tudo sem uma es
wit
perança, diminuiam os meios de acção do seu espi
rito forte.
Freitas já não olhava sereno para o perigo, não
havia aquella firmeza de outr'ora nas linhas do rosto
quando a dôr despedaçava-lhe o coração . A calma
das feições , embora tivesse a alma ferida pelos agui
lhões do pezar, havia desapparecido !
A FOME 283

ilia, A lagrima, como legitima expansão do sentimen


mos to, cahia-lhe das faces por qualquer contrariedade .
Nunca o tinham visto chorar e agora o fazia diaria
eco mente. Via-se pobre e humilhado. Ás vezes olhava
para a estrada que o tinha conduzido áquelle porto
da e que fora testemunha de seu heroismo, e sentia-se
fraco para regressar. Perdera a coragem, a força,
talvez para sempre.
Teve um dia uma esperança ; um raio bemfazejo
aro dardejou-lhe n'alma ao mesmo tempo que salvava a
artilheria do espaço e a chuva regava a terra. Che
iam gou a reanimar-se, a ter um momento de energia e
ado, ergueu-se disposto a enfrentar os perigos com a co
in ragem de outr'ora. Luctaria se a esperança não o
m abandonasse. Desilludido, sem nada que o acalo
vi rasse, cahiu de novo em profunda adynamia. Cus
tou-lhe muito assistir á queda de mais uma espe
nta
her rança, e, abandonado sómente ao recurso aviltante
310 • da esmola, sentiu-se degradado para sempre.

gri O inverno tinha apenas sido uma illusão, um so


tar nho que a mente do infeliz povo acalentára alguns
dias. Os mais crédulos, animados com a idéa de uma

es boa colheita, com um esforço heroico e supremo, se


mearam a terra. Mal a germinação se completou,
pi
ainda bem os cotyledones do embryão não se desuni
าก ram para deixar sahir a hasticula, foram crestados
pelo sol ! Tudo não passou de uma illusão, mas de
ma uma illusão que custou muitos sacrificios e muitas
ui. lagrimas.
A familia cearense debandava-se de novo. Os que
20
284 A FOME

tinham ficado no torrão natal esperando a aurora de


uma nova época, abandonavam amedrontados a casa
da infancia e fugiam para a capital !
O anno de 1878 seria calamitoso.
A continuação do flagello, contra a previsão de
todos que ignoravam a periodicidade das sêccas, teria
consequencias ainda mais desastradas, se não cahisse
a situação conservadora e não fossem chamados os
liberaes ao poder.
O novo governo encontrou a provincia nas mais
desoladoras circumstancias. Na Fortaleza mais de
cento e quarenta mil almas de população adven
ticia abarracadas em roda da cidade e, por cumulo
de incuria do conselheiro Aguiar, nos edificios publi
cos e casas particulares do centro da capital.
Toda a provincia em deploravel estado de abati
mento pela certeza da continuação do flagello , sem
viveres e sem recursos, e a luctar com a peste que se
havia desenvolvido das praias ao sertão, se aniquila
ria, se o governo que subia, com o mais acrisolado
patriotismo, não procurasse por todos os meios atte
nuar os effeitos do mal que a causticava.
X

A feiticeira, fiel á promessa que fizera ao com


missario, foi no dia em que acabava a trezena a
casa de Freitas.
-Acabo hoje uma devoção que fiz ao Senhor
Padre Santo Antonio, para que tão bom e milagroso
santo interceda por nós a N. S. Jesus Christo. Foi
uma trezena. Desejava que no ultimo dia de oração
se reunissem os fieis da visinhança, afim de juntarem
suas supplicas em favor do infeliz povo torturado
pela sêcca. Á vista d'isso, venho pedir á minha res
peitavel amiga o favor de ir assistir com sua familia
a essa piedosa pratica da religião.
Josepha ouviu com attenção as palavras de Qui
teria e respondeu-lhe :
Talvez não me seja possivel ajudal-a em seus
*
286 A FOME

piedosos exercicios. Acho-me doente e por esse moti


vo impossibilitada de sahir de casa. Certa de que
attenderá as razões que apresento, aproveito a occa
sião para agradecer-lhe a attenção .
-Crendo piamente nos sentimentos religiosos de
minha boa amiga, não posso deixar de acreditar em
suas palavras ; o seu respeitavel rosto me affirma que
soffre. Quando chegamos a meia idade tudo nos per
segue. Quando somos moços a saude é inalteravel .
Veja D. Carolina, forte e robusta, sympathica e for
mosa como uma rosa Amelia !
- Qual, D. Quiteria, ella não é mais aquella me

nina viva quando moravamos no sertão.


―― Se minha amiga não podér ir, consinta que

a sua bella filha vá á trezena perfumar com sua


innocencia, com suas virtudes as nossas preces. Eu
virei buscal-a .
- Póde ser, entretanto, que eu melhore e possa
ir tambem .
―――― Deus o permitta. Vá, minha filha, pedir aos

céos para darem fim a este flagello da secca e rogar


pela saude de sua santa mãe, disse a feiticeira aca
riciando Carolina.
-Se eu não fôr, ella irá, D. Quiteria.
-Eu as espero. Até á noite, disse a feiticeira se
despedindo .
Quiteria encontrou-se com Simeão á porta de sua
casa e entraram .
- Sei que volta da missa , onde por certo não se
esqueceu de mim; tive sem duvida um Padre-Nosso ?
A FOME 287

Um terço como sempre e de quebra uma corôa


moti
a S. Rita dos Impossiveis, afim de auxilial-o hoje na
que
grande batalha de seu coração.
осса
-Então é hoje?
-Sem duvida, acabo a trezena como prometti.
osde
―――― E o convite ?
rem
-Está feito .
-Será possivel?
per - É certo.
arel
-Então vem D. Carolina com toda a fami
lia?
-Ella e talvez D. Josepha.
me
-Melhor... Quanta confiança depositam na se
nhora os seus visinhos ! Parece-me um sonho !
― – É a posse da felicidade.
SUR - -Como me sinto feliz ! A senhora assistirá ao
Ex
meu casamento.
- Como é um sacramento, irei, mas como a me
0532
nor de suas creadas.
Não, como uma das testemunhas.
a08
-Quem sou eu !
gar - A que horas finda
a trezena ?
aca. Ás oito horas da noite.
Estarei aqui com minha familia.
-Não repare encontrar a sala aberta e eu no
ase
meu quarto. As minhas obrigações para com as san
tas almas me prohibem de assistir qualquer reunião

por mais intima que seja.


Se

-Então faça-me um favor : depois da devoção


deixe sahirem todos os devotos. Se D. Carolina vier
288 A FOME

só, fique com ella na sala até que eu chegue para


consultal-a.
--E se vier com a mãe ?
N'esse caso a senhora levará D. Josepha para
um quarto, afim de lhe confiar um segredo qualquer
e deixará a moça só na sala. Devo encontral-a sósi
nha para pedir sua opinião sobre o casamento.
Será como diz.
Mandarei mais tarde deixar uma cesta ; guar
de-a.
- A casa é de v. S.a
Aqui tem esta quantia para dar de esmolas
hoje em minha intenção.
E Simeão entregou vinte mil reis á feiticeira.
- Quanta generosidade ! Agradeço-lhe em nome
dos pobres tão grande esmola ; irei pessoalmente dis
tribuir com os necessitados.
Simeão retirou-se contentissimo.
Quiteria, emquanto pôde ser ouvida do commis
sario, rogou-lhe mil bens, depois abriu a velha mala
de pregaria, guardou o dinheiro dizendo :
―― Pobre sou eu que não tenho papae governo, "

nem sou commissario. Fica ahi para os tempos ma


gros, meu dinheiro. Como está generoso dando logo
vinte mil reis para esmolas aos pobres ! Ora as de
votas devem pedir por elle, mas para Deus o castigar
das diabruras que tem feito e não para lhe dar o céo.
Não é mais do que passar a vida a seduzir as filhas
alheias e depois da morte um cantinho no reino da
gloria ! Vá-se apromptando, meu commissario, para se
A FOME 289

divertir em uma caldeira de chumbo derretido na


lepara
casa de Satanaz.
Arruda ancioso esperava a noite. Havia convida

apara do alguns de seus companheiros de libertinagem

alquer para uma orgia na casa de Quiteria. Ao pagode não


a sósi deviam faltar mulheres e alcool. Uma grande cesta
com diversos vinhos, dôces e charutos mandou elle
para a casa da feiticeira.
Na incerteza de ficar de posse de Carolina
guar
n'aquelle dia, mandou vir á sua presença dois de
seus afamados chefes de turmas e ordenou-lhes de
molas levar, ás nove horas da noite, a casa de Quiteria do
Cabo cinco mulheres das mais novas e mais formo
sas do abarracamento.
Dadas essas ordens, mandou aquelles emprega
Come
iris

dos que fizessem vir a seu gabinete o companheiro


João Azougue. Era elle um retirante que se havia
celebrisado pela força, agilidade, perversidade e co

nis ragem .
A sós com elle disse-lhe Arruda :
ala
―――――
Nunca precisei tanto de seus serviços. Estou
mettido em uma empreza arriscada e será hoje o
11,0
dia do triumpho, senão o da derrota.
12 ―
O patrão dirá o que é preciso fazer para se

3

ganhar. Se forem precisos cem mortos, a ponta de


minha faca ainda não se quebrou, e das ultimas que
ar
fiz, a folha ainda conserva manchas de sangue.
0.
Arruda empallideceu e disse :
― - Nada de mortes. Sabes da casa da feiticeira
3
Quiteria do Cabo ?
290 A FOME


Não é uma casa perto da que o patrão fez ha
pouco tempo?
― Exactamente. Em frente a ella ha um cajuei
ro . Ás oito horas da noite tu deves estar escondido
á sombra da arvore, mas de um ponto onde tenhas
debaixo de vista a sala da feiticeira. Me verás entrar
lá, sentar-me e conversar com uma moça loura e bo
nita . Não deves perder um só de meus movimentos.
Quando eu montar uma perna sobre outra é a oc
casião, é o signal . Tu partirás como uma flecha, en
trarás de sala dentro, tomarás a moça nos braços e
dispararás n'uma carreira vertiginosa para o Retiro.
Eu te seguirei a cavallo.
- E se ella gritar ?
Mostra-lhe tua faca, ameaça-a, mas nem de
leve a toques.
— E se não se calar?
――――
Que importa isso ? Tens que caminhar apenas
um quarto de legua até á casa do Retiro por uma
vereda deserta, ninguem te alcançará. A tua carreira
é veloz como a do veado . As ordens são estas, d'ellas
não te afastes uma linha.
-Serão cumpridas, patrão.
XI
Ko

Ás oito horas da noite estava Simeão de Arru


da em casa de Quiteria do Cabo.
A sala estava deserta e illuminada por duas ve
las de carnahuba.
Mobilavam-na algumas cadeiras de pau, sem en
costo, uma mesa, e quatro quadros de madeira com
retratos de santos ornavam as paredes.
O commissario entrou e sentou-se. Reinava alli
completo silencio. Não parecia morar alguem n'aquella
casa ! Passava-se o tempo e não se realisava o que
a feiticeira havia garantido.
João Azougue, como a féra, escondido á sombra
do cajueiro, aguardava o momento de se lançar sobre
a victima.
Nove horas marcou o relogio e Carolina não appa
292 A FOME

recia ! Arruda estava a estourar de colera. Quiteria o


havia illudido. Elle pensava em se vingar d'ella, quan
do chegaram á porta Xenophonte e mais alguns com
panheiros de pagode. Entraram e foi immediatamen
te aberta a cesta de bebidas.
Xenophonte foi o primeiro a examinar as provi
sões ; depois, olhou para os quadros que pendiam da
parede, e ia fazer o elogio de alguns dos canonisados,
quando Simeão segredou-lhe ao ouvido algumas pa
lavras.
Um dos quadros representava S. Pedro abrindo
as portas do céo ; foi o que Xenophonte viu primeiro
e Arruda não teve tempo de impedir que o seu con
viva dissesse :
- Aqui está o carcereiro-mór do céo ! ...

Quiteria provavelmente ouviu o que disseram do


santo, porque sahiu lá de dentro o som de algumas
palavras .
Carolina não apparecia.
O commissario estava exasperado com o logro,
pensava que a feiticeira o illudira .
Quiteria do Cabo, pelo contrario, havia empregado
todos os esforços para que Josepha consentisse em ir
a filha á trezena. Á hora marcada apresentou-se para
acompanhar a moça. A promessa de Josepha fôra
feita sem ouvir a opinião do marido e d'ahi resultou
á feiticeira o desgosto de voltar só.
Carolina recusou com obstinação acompanhar a
Quiteria ; parecia adivinhar. Á hora em que deveria
ser roubada e prostituida, ella entoava a oração da
A FOME 293

iteria o noite, humildemente prostrada diante d'uma ima


quar 1 gem da Virgem, que lhe havia dado o padrinho vi
iscom gario no dia da primeira communhão.
tamen Carolina recolhia-se immaculada ao leito de don
zella.
proci O commissario estava desapontado . O seu primei
amda ro pensamento, quando se convenceu do logro da fei
isadis ticeira, foi entrar no quarto de Quiteria e quebrar-lhe

asp a pancadas todos os ossos, e depois penetrar á força


em casa de Freitas, tirar-lhe a filha e conduzil-a
brindo aonde os seus gritos, os seus prantos não podessem
mero ser ouvidos. Faria isso se aquella familia ainda dor
con misse no descampado. O arrombamento d'uma casa,
entretanto, não era coisa tão facil, e exasperado ex
clamou :
ndo to Armei-os contra mim ! Se ainda estivessem

mas na palhoça, eu satisfaria os meus desejos embora


para isso fosse preciso a faca e a perversidade de João
Azougue.

gro Seus companheiros ouviram-no, mas não compre


henderam-no.

ado João Azougue foi retirado da sentinella e veio

it para a sala de Quiteria.

ara Arruda estava desesperado, só havia um recurso


par esquecer a contrariedade : era o alcool.
ora
you Algumas garrafas de champagne foram abertas e
5

o commissario foi o primeiro a encher o estomago

8 do delicioso liquido. Todos beberam.


Pouco tempo gastou o alcool para entrar na cir
culação, chegar ao cerebro e congestional-o.
8
294 A FOME

Estavam pouco mais ou menos dominados pelo


alcoolismo no periodo de excitação nervosa, quando
entraram os chefes de turma acompanhando cinco
mulheres . Xenophonte foi o primeiro a saudal- as de
copo em punho :
-A vós, mimosas flores do sertão ! O mundo é
o amor e o alcool ! Bebamos, companheiros, em re
gosijo do comparecimento de tão formosas creatu
ras.
O vinho passou das garrafas ás taças e d'estas
ao estomago.
Beberam homens e mulheres, excepto uma moça

que se escondia atraz das companheiras . Ella era


muito nova, parecia ter quatorze annos, morena e de
olhos negros. Tinha a physionomia triste e as palpe
bras roseas de chorar. Xenophonte notou que ella
não tomava parte no brinde, aproximou-se d'ella e
entregou-lhe uma taça cheia de vinho. Ella recusou.
Um dos chefes de turma, Roque da Piedade, segre
dou-lhe ao ouvido uma ameaça e a infeliz tremula
de susto recebeu o copo.
Xenophonte pediu attenção e fallou :
Que vem fazer o pranto n'esta festa ? Para
que a tristeza vem escurecer com suas côres o qua
dro de nossas alegrias ? N'esta idade, mulher, quan
do se abre á tua frente um mundo de illusões e de
esperanças, quando as horas dôces do amor se apro
ximam , para que consentes a lagrima do pezar quei
mar-te a face ?! Não chores, bebe e goza. Afasta de
tua imaginação a idéa triste que te persegue. Entre
A FOME 295

pelo ga-te ao vinho e ao amor. Eu brindo as sensações


ando que te esperam. Up ! up ! up!
inco Os copos esvaziaram-se. Victorina, assim se cha
de mava a mulher que chorava, não quiz beber. Roque
impoz-lhe com um gesto, e o vinho foi ingerido entre
do é soluços e lagrimas.
re Arruda indagou quem era Victorina e porque
ata chorava.
Disseram-lhe os empregados que aquella moça
stas tinha perdido os paes havia quatro dias, que ainda
era virgem, que não tinha parentes na Fortaleza, e
como tinha ficado só no mundo, devia pertencer ao
era mundo e por isso haviam-na trazido para o commis
de sario servir-se d'ella.

pe Simeão ouviu as informações sem commover- se.


ella Não bebeu mais, era preciso conservar a inteireza
зе physica. Não seria Carolina a victima, seria Victo
11

Oll. rina.

Te Um dos amigos de Arruda, conhecido pelo pseu


donymo de D. Ribas, um dos mais libertinos e vicia
dos, tendo ouvido a historia da orphã, levantou-se
cambaleando e pediu a palavra :

ra -Eu brindo a orphã de quatro dias, a filha


do povo. Compete-nos a gloria de fazel-a feliz.
a
As sensações que gozamos no lupanar são as mes

de mas que sentimos no leito conjugal. O matrimo


nio e o adulterio produzem os mesmos gozos.
Aquelle foi auctorisado por um homem vestido
de sotaina, este sanccionado pelo amor de duas
creaturas que se queriam unir. Companheiros, sau
296 A FOME

demos com enthusiasmo a joven sertaneja. Viva!


viva ! viva !
Victorina ouviu o som d'aquellas palavras, já
meio embriagada. Ajudaram-na a levantar e fizeram
na beber mais. Estava quasi ébria, não tinha cons
ciencia de seus actos.
As outras mulheres, veteranas na embriaguez, ain
da não se tinham rendido completamente ao effeito
do alcool. Tinham as faces incendiadas, os olhos in
jectados, sentiam os moveis andar á roda e algumas
cambaleavam.
Xenophonte estava completamente bebado, falla
va com difficuldade e não obstante pediu a palavra:
-Meus senhores, minhas senhoras. Inspirado
nas palavras de meu amigo D. Ribas, vou desenvol
ver a these que elle apresentou. O que ha n'este
mundo que não seja materia organica e inorganica?
Quem poderá affirmar que existe alma e que seja
immortal ? Deixemos essa crença para os imbecis,
deixemol-a como arma dos padres, d'esses hypocritas
de batina, deixemol-a para as beatas, as feiticeiras
no uso de suas bruxarias.
Quiteria soltou um gemido longo, bufou do fundo
do quarto.
Xenophonte continuou:
Eu sou materialista. Deus para mim é uma
palavra sem sentido. Desde a monera até o elephan
te, desde o protococus até o sycomoro, desde o ato
mo até á rocha, só se precisou do tempo, luz, agua
e calor !
A FOME 297
T

Tira! Xenophonte não podia ligar mais as idéas, venci


do pelo alcoolismo, cahiu sobre a cadeira e ficou a
ras, já resmungar baixinho palavras sem sentido.
zeram Quiteria rezava no seu quarto o Crédo, medrosa
cons de um desacato physico á sua individualidade.
As velas que estavam accesas, as unicas que ha
z, ain viam, bruxuleavam quasi a se extinguir. Aquella in
effeito termittencia de luz, a alternativa de claridade e es
osin curidão, dava ao quadro da orgia uns tons sombrios
umas e phantasticos. Escurecia ; as figuras dos pagodistas
confundiam-se na pretidão da noite, até que uma nova
falla scintillação brilhava como um clarão baço e duvi
arra: doso, e por um instante permittia a visão da baccha
rado nal. Via-se então a crapula em toda a nudeza.
wvol As prostitutas espojavam-se no chão, toman
este do posturas indecentes, provocando os amantes com
ica? os estimulos animaes e sem o correctivo do pu
dor.
seja
CIS, Simeão de Arruda, menos alcoolisado que os com
tas panheiros, abraçava-se com Victorina que, completa
ras mente ébria, n'um automatismo absoluto, cedia a to
dos os seus caprichos.
o As luzes se apagaram. Nem mais uma scintilla
ção permittiu vêr a onda de bebados a se revolverem
sem consciencia de sua degradação. Apenas ouve-se
o tinir de copos que se quebram, o cahir de cadei
a
ras que se viram, as gargalhadas das devassas e os
gemidos da innocente !
Fervia a bacchanal ! um som abafado como de
um aulido ouvia-se de vez em quando alternado com
298 A FOME

um estertor, mas um estertor de gozo sensual e não


da ultima agonia .
A noite se passou toda assim. A embriaguez dis
sipou-se pela manhã com o abaixamento da tempe
ratura.
Os pagodistas levantaram-se ; tinham no sem
blante estampada a estupidez do vicio. Os chapéos
estavam amarrotados, as gravatas tinham sahido dos
dominios do collarinho e laçavam o pescoço nú. Con
certaram as roupas e depois esfregaram com força
os rostos, afim de activar a circulação da pelle e
desapparecerem as manchas da sensualidade. Me
drosos da luz, foram sahindo um a um, olhando
para todos os lados e prestando attenção a tudo que
se movia !
As mulheres sahiram tambem por sua vez. A
crapula havia deixado n'ellas signaes mais fundos
do que nos homens. Algumas tinham os olhos com
pletamente injectados e a pelle das faces coberta de
ligeiras ecchymoses vermelhas.
Victorina sahiu incorporada á turma das prove
ctas no vicio. Ainda inconsciente de sua perdição e
meia aturdida pelo alcoolismo, seguia para o abarra
camento. Tinha os labios e faces pisadas e sem aquella
frescura e morbidez de sua idade e sexo.
Uma noite de crapula absorveu os perfumes e
aniquilou os encantos que quatorze primaveras ha
viam creado n'aquella plantinha infeliz.
le não

ez dis
tempe

Osem
hapess
Edo dis
Con
forga XII
Delle e
Me
hando
ogar

ez. A Quiteria do Cabo, quando teve certeza de que


ninguem mais se achava na sala, levantou-se. Que
undes
noite passou ella ! Havia de algum modo prevenido
com
que os visinhos presenciassem a orgia do commissa
ta de
rio. Muitos dias antes espalhou a noticia do appare
cimento de um phantasma na noite em que findasse
огра
a trezena : era uma alma penada que sahiria em pe
ãoe
nitencia pelas ruas logo que dessem nove horas, e pre
Ira
venia aos devotos para que se conservassem recolhi
ella
dos ás suas casas.
A feiticeira rezou o Crédo e o acto de contricção,
se
e armada de vassoura se dirigiu para a sala de en
17

trada. Ia tremula, suppondo encontrar o demonio es


condido em algum canto. Entrou pé ante pé obser
vando tudo. Parou no centro do aposento e resfole
21
300 A FOME

gou aquella atmosphera saturada de vapores de al


dehyde e de albumina animal. A feiticeira sentiu a
pituitaria impressionar-se com aquelles cheiros, e che
gadas que foram ao cerebro aquellas impressões, seu
olhar se amorteceu n'um requebro voluptuoso. A sen
sualidade adormecida pelos annos de continencia
despertou aquelle cheiro era o mesmo que sentia,
nas noites de crapula, junto do amante embriagado e
libidinoso.
Quiteria ficaria horas inteiras no gozo d'aquella
4,
recordação carnal se a necessidade extrema de pôr
os moveis da sala em ordem não a arrancasse
d'aquelle torpor.
Era grande a desordem da mobilia ; não havia
uma cadeira de pé, uma garrafa que não tivesse ro
lado, um copo inteiro . No ladrilho algumas manchas
de sangue e de vinho .
A feiticeira começava a arrumação quando che
ga-lhe á porta D. Josepha acompanhada da filha.
Quiteria perturbou-se, mas em tempo pôde do
minar-se.
A mulher de Freitas vinha desculpar-se de sua
falta.
A feiticeira, depois de chorar e de se maldizer
muito, contou o que se tinha passado em sua casa
depois da oração . Para inspirar mais confiança a Jo
sepha levou-a para o quarto e em segredo disse que
alguns libertinos e vadios tinham-lhe invadido a casa,
que ella quiz resistir, mas foi repellida com insultos
e pancadas, sendo obrigada, para escapar á morte e
A FOME 301

á sanha dos perversos, a abandonar a sala è se fe


res de al
char no quarto.
a sentin a
Josepha acreditou piamente nas palavras de Qui
TOS, eche
teria e consolou-a.
ssões, sen
Carolina, emquanto a mãe conversava com a fei
So. A sen
ticeira, sentada na sala com os olhos fitos no chão,
ontinencia
pensava em Edmundo. A abstracção tinha intervallos.
Je sentia
Em um d'esses instantes, mais em contacto com o
riagabe
que a cercava, viu que muito perto de si estava uma
carteira no meio de alguns papeis. Olhou-os com atten
d'aquella
ção e viu que eram cartas, e que entre outros nomes
a de pr havia o de seu pae. Levantou-se, apanhou os papeis
Tancas
e tirou d'elles duas cartas subscriptas ao coronel Ma
noel de Freitas. Ao lado dos papeis havia um maço
ão havia
de notas do thesouro. Carolina estremeceu vendo o
esseT dinheiro, não o tocou e voltou a sentar-se. A moça
s
mancha
recolheu as cartas ao bolso do vestido, e anciosa es
perava que a mãe acabasse a conferencia.
do che Josepha não se demorou muito a voltar á sala
ilha acompanhada de Quiteria, de quem com a filha se
cited
despediu depois de ter ouvido mil agradecimentos.
A feiticeira, logo que se viu só, continuou a arruma
desu
ção da sala, mas de porta fechada. Estava tudo em
ordem e ella concluia a varredella quando parou de
Paldie repente a vassoura, recuou como se tivesse visto uma
aCRY cascavel a seus pés. Os olhos verdes moveram-se rapi
aJ dos nas orbitas, mordeu os beiços, aproximou-se depois
sequ do objecto que a fizera recuar e apanhou-o do chão.
2123 Era a carteira do commissario Simeão de Arruda.
Quiteria examinou os papeis, reparou as notas do
*
302 A FOME

thesouro, contou-as, dobrou-as, reuniu os documentos


que estavam espalhados no ladrilho e recolheu tudo
á carteira. O dinheiro exacerbava-lhe a cubiça e a
impaciencia de occultal-o . A cada momento ouvia
bater á porta e entrar o dono reclamando-o. Era pre
ciso uma resolução e foi a astucia quem a ditou.
Abriu a mala e n'ella recolheu mais aquella quantia
pertencente aos soccorros publicos. Inquietavam-na
agora os dizeres dos papeis. O que diriam elles ! Se
soubesse lêr ! Olhou-os muitas vezes ainda antes de
guardal-os e tratou da concepção de um plano, cujo
fim seria disfarçar o furto. A carteira era a mesma
do commissario, conheceu ella. Elle viria reclamal-a
e talvez não se demorasse. Era preciso uma resolu
ção prompta e Quiteria voltou á sala, dispoz os mo
veis como havia encontrado, espalhou o cisco, virou
garrafas, emfim ninguem notaria differença no scena
rio. Feito isto, se recolheu ao quarto, depois de ter
aberto a porta da entrada da casa . Preparou-se para
a comedia amarrando um grande lenço encarnado na
cabeça e deitou-se na rêde.
Arruda não pôde almoçar, embora tivesse toma
do para diminuir a inappetencia do alcoolismo uma
boa dóse de pyretic saline. Levaria o resto do dia
n'essa apathia dos sentidos se, por um acaso, não désse
pela falta da carteira.
O commissario ficou attonito com a certeza do
prejuizo. Não pensou mais senão em rehavel-a ; sem
duvida acreditou achal-a na sala de Quiteria, e para
lá se dirigiu.
A FOME 303

Comentos Chegou á porta da feiticeira e espreitou.


Quiteria, o havendo presentido, começou a soltar
Then tado
gemidos doridos e compassados.
pea
to curia Arruda pôz-se de pé no batente da porta e exa
minava com olhar investigador a pequena sala. Tudo
Era pre
estava como havia deixado, parecendo-lhe não ter en
aditen
trado alli ninguem .
quartis
Ia voltar quando lembrou-se de que uma entre
TAFAM-D3
vista com a feiticeira podia oriental-o . Bateu palmas
e teve em resposta um gemido magoado. Esperou
actesde
alguns minutos e tornou a annunciar-se ; d'esta vez
120, CZY
ouviu Quiteria dizer muito a custo :
mesm
Se... é... christão... filho... de... Deus... en
clamala
tre... me... valha...
É Simeão de Arruda.
CS1 - Ai... ai... que... dôr... morro... sem... con
Ther
fissão... soccorro. . .
SERDA
O commissario não se fez esperar e entrou para
deter
o quarto de Quiteria. Ella representava com admira
Sep vel habilidade o seu papel. Quem a visse toda en
adora
volvida em um lençol, com o rosto extremamente
pallido, profundamente sulcado, os olhos cerrados, as
feições n'uma decomposição assustadora, as mãos
aveladas e frias, cruzadas sobre o peito, acreditaria
dodie que ella estava moribunda.
dear
Simeão contemplou - a por alguns minutos e plena
mente convencido de seus atrozes soffrimentos per
zad
guntou :
-Está enferma, D. Quiteria?
- Ás... portas... da... morte...
304 A FOME

Quer um medico ?
- Um... padre...
- É preciso ter quem cuide da senhora. Sósi

nha n'esta casa não vai bem. Quer que chame os


seus visinhos ?
Não... vêm... ai ……. ai……. ai……. ai…….
―― Ainda ninguem veio hoje aqui ?

D. Josepha... e... a... filha ...


Não quer medico ?
- Ámanhã... se... fôr... viva... quero... ir...

para... o hospital.
Então até ámanhã.
- Jesus... ai... ai……. ai……. eu ... morro... ai ...
Arruda sahiu crente que Quiteria estava ás por
tas da morte e que a carteira fôra apanhada pela
mulher ou pela filha de Freitas. 1
A feiticeira continuou a gemer por espaço de uma
hora.
Logo que teve certeza de que Simeão ia longe,
calou- se e foi tratar da vida. Fechou a porta da rua
e tratou de quebrar o jejum , o seu maior auxiliar na
farça que representára, fazendo-a empallidecer mais
e esfriando -lhe as extremidades.
Sósi
me os

XIII
.it.../

al...
A
is por
Lapela Na pequena sala do coronel, reunidos Freitas , a
mulher e a filha liam as cartas que Carolina achou
euma
em casa de Quiteria.
Concluida a leitura da primeira, que era de Igna
Junge cio da Paixão, passaram á segunda. Manoel de Frei
arua tas lia em voz alta :
arna «Meu respeitavel amigo. --- Minha carta vai sur
mais prehendel-o, não só por ser escripta do Recife, como
tambem pelos motivos de minha viagem. Fui victima
de uma traição. Em minha ultima visita a sua casa,
prometti aproximar-me de Simeão de Arruda para
conhecel-o e depois julgal-o, e esse contacto mais in
timo foi-me fatal. O laço que armou foi tão bem ur
dido que n'elle cahiria o mais astuto. Convidou-me
para um passeio a bordo, levou-me ao navio, e quan
306 A FOME

do o enjôo me prostrou de todo, elle voltou para ter


ra e deixou-me entre os infelizes que expatriavam !
Como dóe deixar forçadamente o torrão natal ! Ador
mecer contemplando o azulino céo da patria e des
pertar rodeado de irmãos desgraçados sem nada mais
que a prôa immunda de um navio, sem outra espe
rança a não ser um pedaço de pão esmolado na ter
ra alheia, sem outra aspiração mais que um desejo
vehemente de vingança ! Simeão de Arruda dester
rou-me á falsa-fé, porque não cogitou da intensidade
de meu odio e da grandeza de minha vingança.
Como é sombrio um deposito de retirantes ! Como des
alenta vêr uma familia enorme a chorar noite e dia
sem esperança de um conforto ! A ilha do Pina foi o
logar escolhido para o nosso supplicio. Além de todas
as dôres do corpo e d'alma, por cumulo de cruelda
de fecham-nos as cisternas ; até agua nos dão de ra
ção, por esmola ! Peço-lhe de apresentar á familia os
meus protestos de amizade. Quando eu fôr livre, o
meu primeiro passo será em rumo de minha terra, a
minha primeira idéa a vingança, o castigo de meu
algoz . Adeus. Seu amigo verdadeiro, Edmundo da
Silveira ».
Freitas findou a leitura da carta indignado e
commovido. Josepha meditava e Carolina, a quem
aquelle desastre mais feria, chorava em silencio.
Nenhum commentava o facto. O coronel acredita
va um aviso da Providencia. Urgia uma medida que
afastasse o commissario de sua casa. Cada vez sen
tia-se mais acabrunhado. A carta do amigo veio-lhe
A FOME 307

ater atribular mais o espirito já tão abatido pelas rudes


contrariedades. Cumpria-lhe rejeitar a protecção do
dor commissario, evitar o seu contacto. Que motivos po
des rém apresentaria para assim proceder, quando Arruda
nais nunca havia-lhe faltado com o respeito, pelo contra
spe rio era todo attenções ?
ter Josepha, depois de ter reflectido sobre o aconte
sejó cimento e ouvido a opinião do marido, opinião muito
er desfavoravel ao caracter de Simeão, tornou-se afflicta
ade e preoccupada. Não podia saber qual o interesse de
Arruda desterrando Edmundo. Parecia-lhe tudo aquillo

es mais obra do acaso do que uma cilada.
Hia Freitas tinha juizo formado sobre o commissario.
10 Por mais que a mulher mostrasse-lhe a possibilidade
de ter sido a viagem de Edmundo toda casual, não
se convencia.
Carolina se conservava silenciosa em todas as dis
cussões.
Simeão de Arruda cogitava os meios a empregar,
0
크 afim de obter sua carteira, que acreditava estar em
1 poder de Manoel de Freitas. Ainda uma vez lembrou
se da feiticeira para auxilial-o, porém a orgia a teria
prevenido contra elle, e mesmo talvez Quiteria tives
se morrido da enfermidade que atacou-a no dia se
guinte ao pagode em sua casa. Era preciso, entretan
to, explorar o terreno. Uma visita a Freitas e alguns
minutos com a feiticeira muito podiam oriental-o.
O commissario, depois de estudar o modo de se
apresentar ao coronel e a Quiteria, foi ter com elles.
Freitas continuava triste e abatido. Não havia re
308 A FOME

medio para aquella atonia d'alma ! Josepha consegui


ra, depois de judiciosas considerações, que guardasse
silencio, ao menos por algum tempo, sobre as cartas
encontradas por sua filha em casa de Quiteria.
A feiticeira, restabelecida de seus incommodos
phantasticos, gozava melhor que nunca uma saude
tão robusta como aos vinte annos. O dinheiro de
Simeão pôl-a mais esbelta, e mais rija a espinha,
para supportar o peso de meio seculo. Todas as noi
tes, depois do terço do costume, abria a mala e tira
va a carteira do commissario, os cartões, os papeis e
o dinheiro. Olhava para tudo, dava suspiros fundos
e recolhia tudo ao escondrijo, dizendo :
-Não saber lêr ! Não ter aprendido a contar di
nheiro grande ! ...
Arruda encontrou Freitas sósinho sentado no tóro
de madeira na sala de visita.
―➖➖
Como tem passado, meu caro coronel ? A illus
tre familia como vai de saude ?
-Arrastando o peso da velhice e sem nenhuma
esperança de melhorar de sorte.
- Acha-se doente ? Está abatido. A vida da ci
dade com o ar insalubre tem decerto concorrido
para alterar-lhe a saude .
- Os meus soffrimentos são moraes. Ao descren
te tudo aborrece, tudo amargura e a morte, como
termo aos padecimentos da vida, deve ser a unica
e mais legitima aspiração .
--- Alguma contrariedade o afflige, estou
certo,
Josepha, que do interior da casa ouvia as pala
A FOME 309

Segui vras do marido, appareceu na sala afim de desviar


dasse a conversação.
Cartas - Bom dia, snr. Arruda, como v. s. tem pas
sado ?
nodos -Atarefado de serviço como sempre, minha
Sande senhora. Como passam os pequenos, D. Carolina ?
To de - Vamos todos vivendo, graças á bondade e pro
inha, tecção de v. s.ª, melhor que nossos patricios.
noi O nosso coronel é que está hoje de mau hu
tira mor !
eis e ----- Não é fóra de razão sua tristeza, não vê como
ndos o inverno illudiu, como a sêcca continúa ? Manoel
esperava retirar-se por todo este mez. Contava que
-di dia do Senhor S. José cahissem chuvas copiosas, mas
n'esse dia o sol foi tão abrazador como grande de
toro pois o seu desanimo !
-Não deve desesperar, coronel ; quem teve tanta
Jus coragem, tanta energia nos momentos mais criticos.

da vida, é de suppôr que não se abata já no fim da


ma peleja.
-Hontem eu tinha illesa minha independen
cia, não tinha comido o pão da esmola ! Conservava
8
.

minha soberania e acreditava nunca perdel-a. Os


favores, as protecções humilharam-me, não porque
revoltassem o meu amor proprio, mas porque elles
=

eram inspirados por sentimentos iniquos e repro


ca vados. E sabe o senhor como degrada a esmola
quando quem a distribue procura matar a fome e a
honra...
Oh ! Manoel, como estás inconveniente ! Como
310 A FOME

é que esqueces a civilidade ! Queira desculpar meu


marido, snr. Arruda, são caprichos da velhice.
-Não se incommode, minha senhora. Compre
hendo bem a posição do coronel e sei que os soffri
mentos de todos os dias cançam o espirito.
―― Exactamente, snr. Arruda. Estou certa que sua

bondade desculpará estes momentos de tedio de Ma


noel.
-Por quem é, não falle mais n'isso, D. Josepha..
Sabe dizer quem mora alli ?
E Simeão indicou a casa da feiticeira.
- Uma pobre velha que vive de servir a Deus,

chamada Quiteria, respondeu Josepha.


- A minha pergunta não é ociosa. Voltava do
abarracamento uma noite d'essas e quando passava
pela porta d'aquella casa ouvi na sala um barulho
infernal ; aproximei-me e vi que alguns rapazes em
briagados tinham invadido a casa da pobre velha, e
insultavam-na. Apeei-me e obriguei-os a retirarem
se. Estavam, como disse, bebados e foi-me preciso
luctar com elles. Na lucta que foi um pouco séria,
cahiu, sem que presentisse, a minha carteira que con
tinha, além de papeis de importancia, mais de um con
to de reis em cedulas grandes . Annunciei pelos jor
naes e até hoje não me foram restituil-a.
▬ ▬ ▬ ▬ ▬ ▬ - Custou a v. s. a um prejuizo a caridade que
fez.
- Certamente. Recommendo ao coronel e a D.
Josepha, se porventura tiverem d'ella noticia, o favor
de me avisarem. O dinheiro sei que não me resti
A FOME 311

meu tuirão, mas os papeis se me entregarem, darei cem


mil reis de gratificação .
mipre - Sim... disse friamente Manoel de Freitas.
Soffri -Ficará a meu cuidado, snr. commissario.
1 - Queiram-me dar suas ordens, disse Arruda se
sua despedindo.
Ma Simeão estava quasi convencido de que Frei
tas tinha em seu poder o dinheiro e os papeis.
pha. Sua colera era devida, sem duvida, á leitura da
carta de Edmundo. Não podia admittir que o co
ronel alardeasse tanta independencia, tanta intei
eus, reza de caracter, sem ter na mala o seu dinheiro.
Era preciso ser ouvida Quiteria, e para lá elle se
do dirigiu.
ara A feiticeira tinha visto Simeão e escondida na
Tho rotula o esperava . 1
m Arruda entrou amavel como nunca.

e Ha de ter-me censurado pela ausencia que fiz


-- de sua honrada casa, D. Quiteria?
50 - Qual, meu capitão, nós os pobres somos pouco
a exigentes ; não temos direito de reclamar as visitas
dos ricos.
-Deixei de apparecer por motivos muito jus
tos, a morte de um de meus melhores amigos.
-Coitado ! passou v. s.ª por esse golpe !
A vida não é mais do que uma comedia.
Quem viu Xenophonte cheio de vida, esperanças e
illusões, e em poucas horas trocar um mundo de as
pirações pelo estreito espaço de uma sepultura, des
crê de todas as vaidades mundanas.
312 A FOME

Deus o tenha na gloria ; hoje á noite rezarei


um terço por sua alma.
Ore por sua alma de anjo .
- Deve estar no céo.
- Assim o creio.
-Console-se , meu capitão, esse é o caminho de
todos nós.
-Custa-me tanto sua separação !
-Essas lembranças o magoam ; mudemos de
conversa. Achou sua carteira ?
Qual ! já perdi a esperança. E quem disse-lhe
que eu a havia perdido ?
D. Josepha. Eu tenho esperança de alcan
çal-a.
-Descobriu alguma coisa?
-Talvez...
Diga-me o que sabe.
- Tenha paciencia.

-Já sei que pegou o ladrão.


―― Vi-o...
- - Como ?

- Sabe que lhe devo o meu coração . Desde o


dia em que soube do seu prejuizo amarrei os meus
santos e atropello as almas dos enforcados. Hontem
fiz o responso do Senhor Padre Santo Antonio e vi.
―― O que ?
- - A carinha da ladrona.
— Como ?
- -Dentro da tigela d'agua .
-E vê-se ?! E se conhece ?!
A FOME 313

Tão bem como o estou vendo. Ainda vi mais :


pedi ao santo que queria vêr a carteira e o logar
onde ella estava e vi.
-- Conte-me o resto.
A carteira está trancada em uma mala aqui
na visinhança.
- E quem a achou?
- A santinha loura por quem v. s.ª morre de
amores.
-Forte desgraça !
Por caridade não envergonhe a pobre familia.
---- E o meu dinheiro ?
Confia em mim?
Muito.
Prometto-lhe que muito breve terá sua car
teira.
-Promette ?
- Juro.
――――― Então ficamos justos.

E n'um aperto de mão o commissario e a feiti


ceira sellaram o seu accordo.
1
XIV
ļ

Victorina chegou ao abarracamento ainda meia


aturdida pelo alcoolismo. O espirito foi pouco a pouco
se desanuviando e n'uma penosa intellecção ficaria, se
os acontecimentos da ultima noite, como sombras erra
dias e dispersas, não se agrupassem na imaginação,
dando corpo a um phantasma hediondo. Eram ater
radoras aquellas reminiscencias ! A orpha viu-se na
sala da feiticeira cercada de meretrizes e libertinos.
Parecia estar vendo o olhar insolito de Roque, amea
çador e terrivel ! Ainda soavam-lhe aos ouvidos as
palavras dos pagodistas, os insultos dirigidos á sua
innocencia, á sua virgindade. Ella cavava o passado
e cada minuto que desapparecia servia de tumulo a
uma esperança, era o berço de um desgosto ! Pensa
va, entretanto, que ainda cingia-lhe a fronte a corôa
22
316 A FOME

de virgem. O espirito conservava as reminiscencias.


até o momento em que obrigaram-na a beber o se
gundo copo de vinho ; d'ahi em diante completamente
ébria, em perfeita coma alcoolica, não teve mais
consciencia de si !
Victorina sentia-se mal do corpo e da alma. Os
musculos em flaccido quebrantamento relaxavam-se
como se precisassem descançar de uma viagem lon
ga e trabalhosa . Além do espreguiçamento enfadoso
em que o corpo se estirava, vinha-lhe de quando em
vez uma impressão dolorosa, uma dôr physica, mas
que ruborisava-lhe as faces. A essa sensação succe
dia um pensamento, uma idéa aterradora que Victo
rina procurava afastar de si, e temia-a como um au
gurio de horrivel desgraça . O medo, o terror mesmo
que ao espirito infundia aquella idéa, não podia ser
por ella aniquilado, uma vez que existia a causa
geradora dos padecimentos physicos : uma lesão trau
matica. Emquanto a ferida não cicatrizasse, aquelles
maus pensamentos não deixariam de quando em vez
de fazer que o pudor lhe purpuriasse as faces.
O sol já estava muito perto do occaso e Victorina,
triste e desalentada até áquella hora, não pensou se
não na orgia e em se libertar da autocracia de Si
meão de Arruda.
Roque da Piedade havia cortido a bebedeira, e
roído de remorsos veio ter com a orphã :
-Boa tarde, Victorina.
A moça estremeceu, occultou o rosto e começou
a chorar. As lagrimas da orphã, muda resposta á
A FOME 317

niscencias saudação do chefe de turma, commoveram-no. Hu


milhado pela generosidade de Victorina que se la
ber o se
etamente mentava, mas não o maldizia, aproximou-se d'ella
para consolal-a :
eve mais
-Que tem, minha filha?
As palavras de Roque, ouviu-as a orphã com de
alma. Os
sespero e indignação. Considerou-as um escarneo á
avam-se
emlon sua dôr, um alarde de prepotencia, e com um gesto
de nobre altivez descobriu o rosto, mordeu como co
enfadoso
bra os labios e deixou de chorar. Havia chegado a
andoem
reacção ; outro sentimento a dominava agora.
ca, mas
-Porque chorava, Victorina ?
succe
Minha mãe ! ...
e Victo
A orphã sem prestar attenção a Roque, invoca
umau
va a memoria de sua mãe, implorava-lhe um auxilio
mesmo
n'aquelle transe.
dia ser
Console-se, minha filha, ella está no céo.
Causa
-O senhor atreve-se a consolar-me ! pronuncía
o trall
sem remorsos o nome de minha mãe ! Arrastou-me
melles
para uma festa de mulheres perdidas, sem lembrar
em rez
se que sou tão innocente como a mais innocente de
suas filhas !
torma ―――――― Duvido.
23

Ou se --- O senhor atreve-se a negar que quatro dias


de St
2
$

depois da morte de minha mãe obrigou-me a acom


panhal-o a um pagode, ameaçando-me com a cadeia
ir,a e se resistisse ?!
Roque havia-se irritado com a altivez com que
a orphã lhe fallava, e insultou-a :
Leçon -Convidei-a, porque vossê devia ser do mundo.
*
318 A FOME

-Miseravel ! duvída de minha honra?!


Console-se, menina, não apure muito as coi
sas...
-Meu Deus ! será possivel ?!
―――― E duvída ainda ?!
-- O senhor é um infame ! me insulta, me ca
lumnía ! Lembre-se de que tem filhas, que póde
morrer ámanhã e ellas ficarem á mercê dos Roques
da Piedade e dos Simeões de Arruda.
-A menina está-se esquentando muito ! Tenho
um segredo a confiar-lhe, quer ouvir-me ?
- Desejava mais nunca vêl-o, quanto mais ou
vil-o.
Sabe que posso atiral-a á rua, deixal-a mor
rer de fome ? Se continúa a responder-me assim,
lhe mostrarei para quanto presto .
-O senhor é tão perverso, quanto covarde ! Per
di minha mãe, posso morrer tambem. Antes que me
enxote, eu sahirei, mas ninguem me levará mais a
pagodes de prostitutas.
O que pensa a menina que é?
O que são suas filhas .
Ellas nunca dormiram com libertinos. O com
missario Simeão de Arruda nunca passou a noite
com nenhuma.
Victorina levantou-se como impellida por uma
força sobrenatural e pôz-se á frente de Roque em
posição ameaçadora :
-Mentes perverso ! e se suppões que temo
morrer de fome no meio da rua, que a ração que
A FOME 319

recebo me escravisa, a ponto de deixar de repellir


As col offensas á minha honra, te illudes muito ! Se duvi
das, repete a calumnia, que te mostrarei se saberei
ou não punil-a ! Já não duvido que tenhas vendido
ao commissario a honra de tuas filhas.
le ca Victorina disse essas palavras com vehemencia e
pode com os punhos cerrados a pouca distancia das bar
ogues bas de Roque. Foi o ultimo esforço de sua energia,
o derradeiro lampejo da luz que bruxuleia e apa
Tenho ga-se.
-Se me insulta, sua deshonra será publica.
is out A orphã não podia mais luctar ; estava esmagada
ao peso de um desgosto enorme.
―――- Deshonrada ! meu Deus !
mor
ssim E Victorina sentiu-se desalentar de todo.
O chefe de turma aproveitou o estado apathico
Per da orphã, aquelles momentos de perfeita demencia,
e me em que a tribulação torna o espirito incapaz de qual
ais a quer concepção e contou-lhe como ella havia sido
prostituida em casa da feiticeira por Simeão de Arru
da. Victorina chorava desesperadamente emquanto
Roque, com uma crueza que revoltava, assistia ao
com agonisar da ultima esperança d'aquelle coração ainda
tão novo. No livro intimo de sua existencia só encon
noite
trava conforto nas recordações do passado, mas o
uma passado cujas flôres perfumavam os dias de sua inno
cencia infantil. O presente era aterrador como uma
sepultura aberta, e marcava com um traço negro a

emo primeira pagina de sua desgraça. O futuro era o fu


turo, mixto de duvidas e mysterios.
que
320 A FOME

Tudo era triste para Victorina . Tinha a escolher


ou a miseria ou o lupanar. Era preciso, entretanto,
que ella sahisse do abarracamento , evitasse a presen
ça do chefe de turma e do commissario . Ella deixou
de chorar e disposta a affrontar o infortunio, abafan
do a dôr que a torturava, sahiu do abarracamento.
Victorina seguiu sem destino pelas ruas da cida
de . Passou por centenas de portas e não teve cora
gem de pedir uma esmola. Tinha fome, a inappeten
cia do alcoolismo havia desapparecido e a dôr moral
serenado. Anoiteceu , e desalentada, fatigada, onde per
noitaria? As casas se fecharam todas, tudo se reco
lheu para dormir e ella ficou só na rua entregue ás
lembranças de sua desgraça. O que fazer ? para onde
ir? foram os seus pensamentos , quando se viu sósi
nha em face da triste perspectiva da cidade adorme
cida, com as casas brancas e perfiladas n'um mutis
mo que fazia-lhe arripiar todos os póros da pelle.
Seguiu e quasi assombrada com a solidão que se
povoava de imaginarios duendes, ia gritar por soc
corro quando viu que estava proxima de uma igreja,
e que no adro havia gente. Encaminhou-se para lá,
subiu os degraus do patamar e achou-se em frente
da matriz da Fortaleza. Muitos companheiros, dos
centos que mendigam pelas portas o pão e que não
têm tecto, faziam d'alli o dormitorio. A luz irradiada
dos combustores da rua deixava vêr a onda de esfo
meados e maltrapilhos sobre o ladrilho do adro. Vi
ctorina incorporou-se a ella, estirou-se no chão e ador
meceu. Em sua idade o somno não foge dos pezares
A FOME 321
1.

e nem dos rumores. Dormiu profundamente até seis


horas da manhã. Ergueu-se pouco depois do sol. A
roupa estava molhada do sereno da noite, que evapo
rando-se mais esfriava-lhe a pelle transida da frial
dade da lage. Duas creanças e um velho tinham
amanhecido mortos ; os cadaveres ficaram no adro e
os retirantes continuaram o caminho.
Victorina foi tambem errar pela cidade ; sentia
fome, mas não tinha animo de pedir esmolas ! A ne
cessidade de alimentar-se augmentava, ao passo que
a vergonha de pedir diminuia. Era meio dia e Victo
rina desesperada de fome entrou na primeira porta

I que encontrou aberta e pediu uma esmola. Appare


ceu-lhe uma mulher e despachou-a :
- Tão moça, minha vadia ! vá trabalhar.

A orphã, chorando de vergonha, respondeu :


- Quero trabalhar, minha senhora, dê-me servi
ço, e basta dar-me em pagamento um canto para
dormir e um pouco de comida.
Todas dizem assim, mas depois que se acham
fartas e enroupadas fogem levando comsigo o que po
dem furtar.
A orphã seguiu chorando. A fome roía-lhe o es
tomago, e ella sem esperança de soccorro pedia nas
casas por que passava, não uma esmola, mas um lo
gar de creada. Ninguem a quiz e poucos não zomba
ram da sua pretensão . O sol já pendia muito para o
poente quando chegou ella casualmente á portaria
do collegio de N. S. da Conceição. A porteira distri
buia com os famintos os restos da mesa.
322 A FOME

Era um espectaculo que contristava ; a turma de


infelizes, de rostos escaveirados, macilentos, olhar
amortecido e sem luz, como cães esfaimados dos
monturos, a comer com avidez famelica até a ultima
migalha que a porteira lançava na fralda da rôta ca
misa ou na ponta do immundo lençol !
Essa onda de esqueletos animados, composta de
individuos de todas as idades e sexos, dava a côr
mais sombria ao lutuoso quadro da miseria. Derra
mavam-se por toda a cidade e acocorados nos calça
mentos das ruas catavam as migalhas que cahiam
das saccas de viveres que eram conduzidas aos cellei
ros. E quando um punhado maior de legumes per
dia-se no chão , elles se lançavam sobre as sementes
com uma gula de porco, disputando o maior numero
de grãos . N'essa lucta acotovelavam-se, esmurra
vam-se com a crueldade do faminto que peleja por
um pedaço de pão ! Ás vezes acontecia afundar algu
mas das aduélas dos barris de mel, que do porto
eram levados ao commercio, e o liquido vasando cahia
e se misturava com o lixo das ruas ; os famintos
agrupavam-se e lambiam as pedras molhadas de
mel até deixarem-nas completamente limpas !
Victorina olhou aterrada para os companheiros
que comiam á porta do collegio . Ella estava ainda
nutrida e forte. Tinha fome e pejo ao mesmo tempo
de fazer parte d'aquella turma de esfomeados ; mas
a fome, que tudo subjuga e avassalla, obrigou-a a in
corporar-se ao cortejo da miseria. Envergonhada,
aproximou-se da portaria. A religiosa deitou-lhe algu
A FOME 323

mas migalhas no vestido. A orphã comeu com avidez


e a porteira deu-lhe outra ração mais abundante.
Victorina ajoelhou-se e agradeceu o beneficio. Aquella
prova de gratidão raramente dada pelos retirantes
que mendigavam, penhorou e surprehendeu a religio
sa, e mais ainda quando a orphã ao retirar-se tomou
lhe a mão e beijou. A porteira olhou commovida
para Victorina e disse-lhe :
— Volte todos os dias, minha filha.

A orphã sahiu sem destino. A sua vida era de va


gabunda. Comia na portaria do collegio e dormia no
1 adro da igreja. Algumas semanas viveu assim, até
que um dia a religiosa, conhecendo a infeliz historia
da orphã, interessou-se por ella e empregou-a como
creada em casa de uma familia de sua amizade.
XV

A distribuição de soccorros publicos em dinheiro


e por meio de cartões o presidente liberal prohibiu-a
logo que assumiu a administração da provincia.
Manoel de Freitas vivia agora á custa dos viveres
que semanalmente recebia de Simeão de Arruda.
O commissario entendia que estava tardando
muito a realisação de seu plano. Quando fazia justiça
ao caracter de Freitas julgando-o incapaz de um furto,
acreditava possivel a seducção de Carolina rendendo-a
pela miseria. Ás vezes pensava que estavam armados
com o dinheiro e que não poderia realisar o seu in
tento. Era necessario pôl-os á prova e deixou de
mandar-lhes rações .
Chegou o sabbado do recebimento de viveres e em
casa do coronel não appareceu a esmola do governo. O
326 A FOME

fogão da cozinha passou apagado ! Os meninos chora


vam com fome e Josepha, desalentada, levava em si
lencio aquelle transe á custa da indiscrição do ma
rido.
Carolina, sem articular uma queixa, pensava no
noivo . Freitas concentrava em si todas aquellas ago
nias da familia, soffria por todos, porém mudo e taci
turno. Não se havia rendido completamente á discri
ção da miseria. Meditava. Passaram-se dois dias de
jejum e nem uma esperança de conforto ! O tercei
ro dia de fome veio encontrar o coronel de pé e
disposto a luctar pela vida, e pela conservação da
familia. Só havia um caminho a seguir para ganhar
honradamente o pão , era o da pedreira. Freitas não
reflectiu mais e seguiu para o Mucuripe. Tinha ca
minhado doze kilometros e no estado de abatimento
em que se achava, era um sacrificio enorme, um
acto de subido heroismo. Chegando á costa incorpo
rou-se ao bando de retirantes que seguia para a pe
dreira.
As praias adamantinas da Fortaleza eriçadas de
dunas e cobertas em parte de uma vegetação enfeza
da de salsa e gramma, tinham uma perspectiva de
deserto, que se casava bem com as figuras esqua
lidas das victimas da fome ! A solidão da beira-mar e
as ondulações sonoras das vagas a se espreguiçarem
na praia em plena baixa- mar, augmentavam as tris
tezas d'esses logares.
Freitas chegou á pedreira e voltou trazendo uma
pedra ao hombro. O calor do sol em duas leguas de
A FOME 327

caminho, depois de um jejum de dois dias, inun


ora
dava-lhe a fronte de um suor frio que se extravasa
n si
va dos póros em abundantes gottas e banhava a pelle,
ma
da qual a fome mais accentuava a cyanose... Alque
brado pelos soffrimentos do corpo e d'alma, o velho
a no
coronel conduzia o fardo ás costas para ter direito a
ago
uma ração dos celleiros do governo.
taci
Era enorme o prestito da miseria. Seguia para a
iser
pagadoria quando alguns retirantes que iam na van
s de
guarda pararam ao lado do trapiche. Os chefes de
rcel
turma adiantaram-se para fazel-os seguir e fizeram
pé e alto tambem. Em poucos minutos a procissão estacou
0 da toda em derredor de uma leva de escravos que ia
embarcar para o sul, e assistia a um espectaculo tris
S não
te e commovedor. A partida de captivos pertencia ao
a ca commendador Prisco da Trindade. Todos uniformi
mento
sados de panno azul com uma tristeza que doía vêr,
um obedeciam com um automatismo de charrúa ás ordens
orpo do corretor, que em crescente azafama os reunia
ape em lotes de vinte, lotação de cada jangada.
Algumas embarcações já tinham-se feito á véla
as de
levando a maior parte do magote ; ficava uma janga
fea da que, de panno ainda ferrado, recebia o resto dos
a de escravos. Fazia parte do ultimo lote a filha de
squa Filippa. A escravinha assistia áquelle espectaculo na
mare feliz inconsciencia de sua idade. Ao lado da mãe
arem continuaria contemplando o mar n'uma surpreza toda
tris infantil se lhe fosse dado ser livre. Chegou o mo
mento da separação. Filippa viu se aproximar o jan
gadeiro que devia arrancar-lhe dos braços o penhor
asde
328 A FOME

querido do seu coração, levar para sempre a derra


deira affeição da alma ! Em um instante ella mediu
a enormidade do transe que devia fulminal-a. O ma
rinheiro chegou-se a ella para conduzir a escravinha.
A liberta abraça-se com a filha e beija-a muitas
vezes chorando. O jangadeiro estacou dando tempo
áquella dôr serenar. Viriato menos compassivo or
dena :
-Leve este diabinho que a maré já enche .
O marinheiro arranca á força Bernardina dos
braços de Filippa e leva-a para a jangada. A liberta
acompanha a filha, que diz-lhe em prantos :
Mamãe, não me deixe levar ! não vou sem vossê.
Estas palavras da creança, sua ultima suppli
ca, Filippa ouviu quasi allucinada de dôr. Posta a
bordo a ultima peça, a jangada abriu a véla e sere
na deslizou sobre as ondas. A liberta como louca
ia atirar-se ao mar, seguir o batel que levava a vida
de sua vida, quando alguem a prende pelo braço e
diz :
-Desgraçada Filippa, tem resignação !
A liberta pára, volta-se e reconhece seu antigo
senhor. Um grito nervoso atravessa-lhe os labios e
a epilepsia ainda uma vez fal-a cahir e estorcer-se
em horridas convulsões.
Freitas conseguiu, ajudado dos companheiros, tirar
a liberta do alcance das ondas e ficaria velando a
seu lado, se as turmas de retirantes não seguissem,
e se um dos chefes de turma vendo-o ficar, não lhe
dissesse :
A FOME 329

erra -Fica, meu velho ? Perderá a ração e os filhos


mediu têm que jejuar mais um dia !
ma O coronel seguiu contrariado, porque ainda uma
inha. vez a fatalidade obrigava-o a ser ingrato para com
Quitas Filippa.

empo Freitas havia-se incorporado, sem saber, ás tur


mas de retirantes do abarracamento de Simeão de
TO OF
Arruda. Chegados que foram á pagadoria, depois de
alojada a carga na estrada de Mecejana, fez-se a cha
dos mada e cada um recebeu quinhentas grammas de
berta carne do sul. O commissario assistia á distribuição.
Todos foram pagos, excepto o coronel, cujo nome
não estava incluido na lista dos carregadores de
5
uppb pedras e não fôra chamado. Ia fechar-se a pa
sta a gadoria, e Freitas, vendo que perdia o trabalho,
sere aproximou-se do pagador e reclamou o seu di
reito.
louca
rida Arruda estava no armazem de viveres e viu
a reclamação do coronel. A figura respeitavel do
you
velho, seu ar sombrio e grave, pela primeira
vez impressionavam o commissario, que, enver
gonhado de suas suspeitas, evitou a presença
unti
de Freitas, sentindo-se humilhado diante de si
DIOS P
mesmo.
cer-s
Os empregados do armazem, acreditando mais.
nas necessidades do coronel do que na legitimidade
dos seus direitos, deram-lhe uma ração.
do!
Freitas voltou a casa.
Ssem
Arruda pôde dominar o sentimento bom que o
To

fizera pequenino diante do coronel, e quasi despeitado


330 A FOME

comsigo mesmo por ter-se deixado humilhar, vul


tou á concepção de seu antigo plano. Pensava agora
em raptar Carolina á força armada, uma vez que
Freitas, luctador invencivel, não se entregava á dis
crição da fome .

19
XVI

As victimas da sêcca soffriam atrozmente, quando


uma nova época de dôr veio abrir mais uma pagina
no livro negro de seus infortunios. A população
adventicia da Fortaleza se elevava a cento e quarenta
mil almas !
Muito criticas eram as circumstancias de toda a
provincia, quando uma calamidade de outra especie
veio augmentar com um enorme cortejo de padeci
mentos sua lastimosa situação. A variola acampou-se
traiçoeiramente em derredor da cidade da Fortaleza
e esperou o momento opportuno de dar o assalto.
As condições da população proporcionaram ao
mal os meios seguros de um ataque subito e terrivel.
A elevação da temperatura a 33° centigrados, a falta
de vaccina, o nenhum asseio nas habitações, a agglo
23
332 A FOME

meração de emigrantes nos abarracamentos abriram


mais o campo ao inimigo. E que repugnancia tinham
elles á vaccina ! ... Entre milhares alguns entregavam
os braços ao medico para serem preservados do mal ;
mas quasi todos fugiam espavoridos dizendo a uma
VOZ :
- Deus nos livre de metter a peste no corpo !

O inimigo estava acampado, esperando o instante


de dar combate.
Foi em dias de agosto, d'esse mez fatal para os
supersticiosos, que se ouviu o primeiro grito de alar
ma. A variola viera do sul pela estrada que liga o
Aracaty á Fortaleza. Deu-se o ataque. Cahiram feri
dos ao primeiro encontro ás dezenas, depois ás cen
tenas, depois aos milhares ; emfim, onde estava um or
ganismo não preservado pela vaccina, chegava a peste
e com ella a dôr, o desespero e a morte.
Os habitantes da capital estavam sitiados comple
tamente pela epidemia. Os abarracamentos dos reti
rantes circulavam a cidade, e onde existia um emi
grante, podia-se affirmar, estava um varioloso.
O governo construiu lazaretos provisorios, con
tratou medicos, nomeou commissões de prompto soc
corro aos pesteados, mas tudo isto apenas attenua
va um pouco os soffrimentos da população indigente.
Procurar debellar o mal, pôr o inimigo em de
bandada seria o mesmo que tentar suffocar um in
cendio em um campo sêcco e batido de fortes ventos !
Alguns dias depois da invasão da epidemia, cada
alojamento de retirantes era um lazareto de variolo
A FOME 333

sos ! As enfermarias regorgitavam de doentes ! tudo


era insufficiente para abrigar os pesteados. Muitos
enfermos tinham por tecto a sombra das arvores des
folhadas e ahi mesmo aos raios do sol, ao relento da
noite, deitados no chão, morriam á mingua de soc
corro e isolados, porque os parentes, os companheiros,
temendo o contagio, fugiam espavoridos deixando-os
abandonados ! Pensavam assim evitar a peste e leva
vam o microbio inoculado no organismo !
O terror era geral ! Por toda a parte via-se o
pranto e a desolação ! Raro era o dia em que os
¦
urubús não denunciavam uma carniça humana, um
corpo que apodrecia nos arrabaldes da cidade !
O centro da capital fôra respeitado pelo flagello,
devido isso ás melhores condições hygienicas da po
pulação e á vaccina. Este estado, entretanto, não du
rou muito. O cêrco foi-se apertando dia a dia, e pouco
tempo depois a peste entrava na Fortaleza e de um
modo assombroso.
Os cadaveres dos bexigosos eram conduzidos para
o cemiterio amortalhados com os trapos que vestiam.
Alguns tinham como esquife a rêde rôta e im
munda, outros mais desgraçados, nem esta possuindo,
iam amarrados de pés e mãos em um longo pau
para a valla e conduzidos por dois retirantes, aos
quaes o governo pagava quinhentos reis por cada
ver.
E a este espectaculo, tão repugnante quanto de
solador, assistiu por muitos dias a população das ruas
mais publicas da capital, até que o governo mandou
**
334 A FOME

que os cadaveres fossem conduzidos ao cemiterio pela


beira-mar .
A atmosphera da cidade cada vez mais se infec
cionava, pois, pedaços de carne pôdre e pús, não en
contrando logar onde ficassem depositados, cahiam
dos cadaveres nos passeios das casas e calçamento
das ruas .

A peste invadiu tudo, desde a palhoça do retiran


te até o palacio do presidente da provincia. Por toda
a parte ouviam-se os gemidos dos moribundos, os
gritos dos loucos no delirio- da febre eruptiva !
Era excessivo o panico e geral a consternação.
As ruas da cidade eram desertas, apenas durante o
dia transeuntes a conduzir remedios e dietas ! ... Ao
anoitecer fechavam-se as portas e accendiam-se peque
nas fogueiras de alcatrão nas ruas e praças, o que
dava á cidade um aspecto triste e lutuoso ! As vallas
do cemiterio recebiam mil corpos por dia e a peste
a recrudescer ! ... Os cadaveres ficavam ás vezes in
sepultos por mais de vinte e quatro horas, por não
haver coveiros em numero sufficiente para o serviço
dos enterramentos !
Os medicos não poupavam esforços, mas o que
podiam fazer dez facultativos entregues de um hos
pital de oitenta mil enfermos ?! Todo o trabalho e
abnegação era deficiente em face da enormidade do
mal!
Os cordões sanitarios não se fizeram, pois o ini
migo atacou de um modo terrivel e violento ! A vario
la se incubou de uma só vez em todos os organismos
A FOME 335

não preservados pela vaccina. Era a legião dos infu


sorios em numero de muitos milhares de bilhões que
se havia rebellado e, disseminada na atmosphera, le
vava a morte á tenda do homem. Eram os infinita
mente pequenos, que se levantavam das trevas onde
jaziam desapercebidos pela pequenez e atacavam os
organismos superiores e os destruiam ! O contagio era
inevitavel! O individuo não vaccinado escondia-se no
logar mais recondito de sua habitação e lá mesmo 4
o ar levava-lhe a peste, o microbio se inoculava !
Freitas com sua familia não estava immune da
peste. Desde que Arruda perdeu a carteira, que a
vida para elles tornou-se mais difficil. Estavam redu

FACE
zidos á pequena ração que o coronel recebia quando
ia á pedreira. A variola em sua onda devastadora os
envolveria tambem. Além das contrariedades e da
penuria que os affligia, veio Filippa tortural-os com
seus desvarios. Tornára-se louça do accesso de epile
psia no dia que embarcou a filha. Levaram-na ao pala
cete do commendador e elle mandou pôl-a na rua. A li
berta teria morrido de fome, se Freitas não a levasse
para casa. A chegada de Filippa em casa do coronel
foi um dia de augustias para a familia.
Josepha e Carolina foram-lhe ao encontro, abra
çaram-na chorando, e ella immovel, inconsciente, olha
va á tôa para aquelles semblantes anuviados de triste
za e pena; não entendia as perguntas que lhe eram
feitas, respondia com palavras sem sentido :
-Bernardina ! ... o chicote ! ... minha filha !...
As creanças rodearam-na e disseram -lhe :
336 A FOME

――
Mãe Filippa ! mãe Filippa, vossê chegou ?
A louca ouvia-lhes a voz, mas não comprehendia
as palavras .
Freitas contemplava com grande magoa aquelle
triste espectaculo.
Josepha sentia profundamente a desgraça de
Filippa . Ella era uma victima de sua fraqueza, de sua
ingratidão. As cicatrizes deixadas nas costas pelo chi
cote, o nome da filha pronunciado quasi sempre, tor
turavam a mulher do coronel, que roída de remorsos
procurava suavisar, tanto quanto permittiam os seus
recursos, os padecimentos da louca. Filippa recebia
hoje do mesmo modo o beijo e a bofetada.
A variola continuava a grassar com intensidade
por toda parte.
Arruda, que tinha assentado atacar a casa de
Freitas a deshoras e raptar-lhe a filha, adiou o plano
em consequencia da peste. Temendo o contagio, vivia
recolhido em casa, bebendo cognac. Os bebados por
indole aproveitaram-se da bexiga para se vaccinarem,
como diziam elles, com alcool. Arruda era do numero
d'estes, bebia como um cassaco.
A variola bateu á porta de Freitas... Em um
mesmo dia foram atacados todos da peste, excepto
Carolina, que tinha sido vaccinada pelo vigario de sua
freguezia. As dôres da terrivel enfermidade e a fome
reduziriam em breve aquella familia ao estado mais
lastimoso.
No mesmo aposento paes e filhos ardem na febre
eruptiva, e n'um quarto visinho a elles a louca, a des
A FOME 337

graçada Filippa, tambem pesteada, atordôa a casa


toda com gritos nos desvarios da razão enferma. Ca
rolina sente-se fraca em face de tamanho transe.
Sobra-lhe amor, dedicação, porém faltam-lhe conhe
cimentos e recursos para conjurar a crise, que amea
ça esmagar os penhores mais caros de sua alma.
Tem que servir de enfermeira a sete variolosos, que
reclamam um soccorro prompto, e não ha em casa
remedio, não tem com que fazer um caldo. Na sec
cura da febre que os queima, pedem agua e nem
2 uma gotta ha para lhes matar a sêde !
Carolina impressiona-se com os soffrimentos
dos seus e sem esperanças de lenitivo ás dôres
que os affligem, recorre á protecção da Virgem pros
trando-se diante de um pequeno registro e suppli
cando :

Virgem Santissima, protectora dos desgraçados,


conforto dos afflictos, vinde em meu auxilio e ajudai
me a triumphar do abatimento de que está possuido
o meu espirito ! Eu, indigna filha vossa, me lanço
com grande confiança a vossos pés, para vos pedir
misericordia para minha familia, que, atacada da
peste, morre á mingua de pão e de remedios. Tende
piedade de nós, oh piedosissima Virgem Maria, pe
las dôres de vosso amado Filho soccorrei-nos !
Carolina fez a oração com toda a confiança, e
crente de que suas palavras chegaram ao céo, to
mou um pote e foi procurar a fonte. Caminhava sem
destino e medrosa de tudo, quando encontrou um
menino que vinha d'aguada :
338 A FOME

- Ensina-me a fonte ?

É muito perto, disse a creança indicando-lhe
uma vereda, que a moça tomou.
Antes de chegar á aguada encontrou-se com
um homem de côr parda. Era elle um dos cabellei
reiros da cidade, e vivia de comprar os cabellos dos
retirantes para revendel-os. O mulatò fitou Caroli
na e ficou perdido por suas tranças louras que des
ciam até á curva da perna. Aguçada a cubiça pelas
lindas madeixas , dirigiu-se á moça :
-Quer vender os cabellos, sinhásinha?
Carolina estremeceu e estacou.
O quadro desolador da familia toda atacada de
peste e sem recursos collocou-se-lhe diante dos olhos.
Ao principio o espirito revoltou- se com a idéa de tão
torpe negociação, com a perda de um dos mais bel
los ornatos com que a natureza a havia mimoseado,
mas depois, ouvindo só o coração e tendo conscien
cia de que era aquelle o unico recurso de que dispu
nha para soccorrer honradamente os seus, respondeu
com voz firme :
— - Vendo ! ...

-Devemos fazer o preço antes de cortal-os.


Carolina não se conteve e desatou a chorar.
No espirito do cabelleireiro nada influiam aquellas
lagrimas. Acostumado a visitar os abarracamentos
diariamente e a tosquiar, como dizia, os retirantes
por qualquer meia pataca, não hesitou em continuar
a negociação.
--- Vejamos, quanto quer?
A FOME 339

Carolina pôde dominar-se, e resignada respon


deu :
-lhe
-Dê o que quizer.

com -Sou pouco generoso ; depois de tosquiada não


comece com lamurias e choradeiras.
llei
Carolina sentiu-se humilhada e muito offendida
dos
roli em seu amor proprio. N'um impeto de colera e indi
gnação quiz dar as costas ao mulato, mas os soffri
des
elas mentos da familia desarmaram-na ; assim desappare
ceria o unico meio de um soccorro aos enfermos que
morriam de fome.
―――――――― Córte os cabellos, senhor, e já disse, dê por
elles o que quizer.
de
E com um gesto tão nobre quanto altivo entre
hos.
gou a cabeça ao cabelleireiro, que, com mão firme
tão
e a golpes de tesoura, cortou as louras tranças.
bel
Carolina immovel como uma cataleptica abysma
ado
va-se n'uma saudade infinda de suas tranças. Olhou-as,
ien
acompanhou-as com um olhar angustiado, até que el
Spu
las desappareceram de todo no bolso do mulato. E
V

deu
quando se convenceu de que não as veria mais nun
ca, sentiu um pezar, que não fulminou-a, porque forta
leceu-a a consciencia de um acto nobre, de uma ma
nifestação heroica do amor filial.
-Agora devo pagar-lhe.
E o cabelleireiro contou com todo vagar trezentos
ntos
e vinte reis em cobre, e entregou á moça.
ntes
Custava a Carolina um sacrificio enorme a posse
Quar
d'aquellas moedas de cobre ! Resignada a soffrer tudo
pela felicidade da familia, foi caminho da fonte. Era
340 A FOME

necessario agua para os doentes ; as dietas ella já ti


nha com que compral- as.
A vereda morreu na barreira de uma profunda
TRA

excavação . Era ahi a cacimba . Carolina aproximou


Cana
HygieneacenVnda"t

se do buraco e viu que n'uma profundidade de mais


de quinze metros havia uma pequena poça d'agua.
A profundeza da excavação crispou-lhe os nervos
em medroso arripio. Chegou á rampa que conduzia
á aguada e teve medo de descer. Aquelle abysmo
tão fundo a horrorisava. Parecia-lhe que as barreiras
se uniriam, se fechariam logo que ella descesse. In
decisa implorava coragem á Virgem, porém do céo
não descia nada que a amparasse. Não apparecia um
companheiro, ninguem vinha tomar agua. O tempo
corria e os doentes em casa estariam a estalar de sêde !
Era preciso descer á fonte, e Carolina fazendo um es
forço supremo desceu a rampa. No fundo da exca
vação estava a fonte, pequena poça d'agua, que os
terrenos argillosos alimentavam gotta a gotta com uma
usura de judeu .
Carolina viu-se quasi assombrada dentro d'aquel
le abysmo. As barreiras perfiladas em circulo parecia
a ella que se inclinavam aos poucos diminuindo a
cada instante o circulo azul que apparecia do espaço.
A moça desviou a vista do precipicio, creado por sua
imaginação excitada, e tratou de encher o vaso e fu
gir, em tempo, de não ser victima do desabamento
das barreiras. Ia subir a rampa quando viu que des
cia a aguada um negro de feia catadura. Carolina
quasi se assombrou quando se viu só com o retirante,
A FOME 341

que, de uma magreza extrema e de olhar de louco,


÷

parecia no delirio famelico. Chegando perto da moça,


nda o infeliz, depois de ter saciado a sêde, olha para
LOU Carolina, a quem impedia de passar collocando-se

nais no caminho, ajoelha-se e pede uma esmola. A moça


entrega-lhe a quantia por quanto vendera os cabellos
gua.
IVOS e sobe apressada a ladeira.
uzia
smo
iras
In
céo
um
mpo
de!
es
Yea
208
ma

uel
ecia
70 a
aço
Sua
fo

des
2

nte
XVII

Carolina voltou a casa. Por um excesso de dedi


cação conseguiu agua para matar a sêde dos doentes ;
mas onde encontrar dietas e remedios ? A febre eru
ptiva seguia sua marcha regular. Os meninos des
acordados nada pediam, apenas no delirio da molestia
fallavam ou gritayam .
Filippa era o enfermo que mais cuidados dava.
Carolina já tinha ido á rua buscal-a mais de tres
vezes, pois ella no delirio da febre havia sahido por
ta a fóra quasi núa. Era-lhe impossivel ser enfermei
ra de sete variolosos e temendo que o estado dos
doentes mais se aggravasse, decidiu- se a pedir soccor
ro á primeira pessoa que passasse, e foi para a por
ta da rua. O primeiro viandante que se aproximou
344 A FOME

1
foi um padre ; vinha a cavallo e Carolina dirigiu-lhe
a palavra :
―― Snr. padre, pelo amor de Deus ouça-me.

O padre apeou-se.
--- Ás suas ordens, minha filha.

-Foi a Virgem Santissima que guiou v. rev.ma


até aqui ; rogo-lhe que entre e veja com os seus pro
prios olhos a nossa desgraça.
E Carolina, seguida do padre Clemente, foi ter
com os doentes .
- A paz seja comvosco , meus filhos, disse o sa
cerdote.
-Snr. padre, sois o enviado de Deus para nos
abrir as portas da eternidade, disse Freitas sentan
do-se na rêde.
-A Providencia póde-lhe restituir a saude, meu
filho.
-Tudo póde ser. Quero que ouça-me de confis
são , disse o coronel.
O sacerdote aproximou-se de Freitas e confes
sou-o.
Carolina consolava sua mãe.
Filippa gritava de vez em quando , levantava-se e
queria sahir para a rua. A febre trazia a louca n'um
constante desassocego . Ás vezes quebrava o silencio
com um grito agudo e desconcertado , que fazia es
tremecer as creanças. Josepha pedia-lhe que se ca
lasse e Freitas meneava a cabeça sem proferir pala
vras.
Era penosa a situação da familia. A liberta au
A FOME 345

gmentava-lhe as tribulações, lembrando inconsciente,


-lhe
a ingratidão de que fora victima :
-Me venderam ! ... me enganaram ! ... a liber
e.
dade ! ... a liberdade que ella me prometteu ! ... Ber
nardina onde está ! ... na jangada ! ... presa ! ... ven
D dida !... Bernardina ! ... aqui ! ... corre, te escon
Ter
de ! ... olha o homem ! ...
s pro
E Filippa procurava esconder a filha sob a roupa.
O padre, depois de confessar Freitas e Josepha,
317

pediu ao coronel que fosse com a familia para o la


zareto. Mostrou-lhe a impossibilidade de serem me
0 sa
dicados alli, onde muito difficil teria medico, enfer
meiros, remedios e dietas.
a nos
Freitas hesitou, mas Clemente, promettendo le
entan
val-o ao hospital, obteve seu consentimento.
-Seja feita a vossa vontade, snr. padre. Um
men
unico pedido tenho a fazer-lhe em nome de Deus ; é
tomar minha filha sob sua guarda e protecção. Eis
confis de agora em diante vosso pae, minha filha, disse di
rigindo-se a Carolina e chorando amargamente.
nfes Clemente chorava tambem.
Não, papá, não o abandonarei, o seguirei,
supponho que ninguem impedirá que lhe sirva de
a-see enfermeira. Quero estar a seu lado, velar junto de
num seu leito.
lenci E Carolina abraçou-se com o pae.
ia es -Irás tambem, minha filha, não haveria nin
guem tão cruel que te prohibisse de prestar os teus
a
pal . serviços a teus paes no momento em que mais pre
cisam d'elles. Irás, sim, irás.
aall
346 A FOME

A promessa do sacerdote, a certeza de que não


se separariam, fortaleceu-os.
Clemente retirou-se promettendo voltar dentro de
uma hora, afim de fazer transportar os variolosos
para o lazareto .
Accommodados os doentes pelo padre em quatro
padiolas, Carolina fechou a casa e com Clemente
acompanhou os enfermos ao lazareto da Lagoa Fun
da, a tres kilometros a oeste da Fortaleza.
Chegados que foram, o padre indagou do admi
nistrador se haveria accommodações para sete vario
losos.
--Talvez não. As enfermarias estão repletas.
Comtudo v. rev.ma não desanime, a morte abrirá em
breve logar a seus protegidos.
- E os mesmos leitos ?!
―― O que ha de se fazer, snr. padre ? Se quei
marmos os leitos servidos, não teremos onde accom
modar os enfermos .
-Deus queira se compadecer de nós.
- Só elle mesmo nos poderá valer.
-Desejava fallar com as irmãs de caridade.
-Estão nas enfermarias. V. rev.ma póde entrar.
Supponho que não precisará de guia ?
-Não ; conheço bem estes lugubres aposentos .
disse o padre entrando.
E a passo lento e grave atravessava aquelles tris
tes logares, e habitação da dôr. Affrontava com cora
gem e abnegação um espectaculo que repugnava-lhe
a quasi todos os sentidos, aquelle mar de pús onde
A FOME 347

não boiavam enfermos, moribundos e mortos. Elle resfo


legava com uma resignação evangelica aquella atmos
To de phera a tresandar a ulcera, a carne pôdre, sem pro
losos curar diminuir as funcções da pituitaria. Se o olfa
to se impressionava desagradavelmente com o fedor
uatro da enfermaria, o ouvido por sua vez se molestava
ente com os sons agudos e confusos que lhes abalavam o
tympano. Os gemidos surdos dos moribundos e os
gritos desconcertados dos variolosos que delirava m,
dmi formavam um concerto que commovia e aterrava.
Tario As enfermarias regorgitavam de doentes ! Elles eram
em numero superior a oitocentos ! O soffrimento alli

letas. tinha todas as phases. Havia de tudo, e de tudo que


ha de mais horrivel ! Corpos cuja pelle a inchação ha
á em
via estirado a ponto de fender-se em todos os sentidos
e assim em carne viva, sem mais o involucro prote
s ctor, sentia o desgraçado a aspereza da lona da cama
Jue
penetrar nos tecidos nús, como um ferro encandecen
com
te e produzindo as dôres de uma horrivel queima
dura !
Outros não menos infelizes, no ultimo periodo da
molestia, completamente desvairados, sem conscien
e.
cia da podridão dos tecidos, erguiam-se dos leitos, e
entrar
allucinados de dôr, gritavam emquanto a carne pu
trefacta, despregando-se dos ossos, cahia no chão do
ento
lazareto ! Alguns, com a razão completamente perdi
da, rasgavam com as unhas as pustulas, arrancavam
stris
lhes a crosta e mesmo coberta de pús e sangue co
COFF
miam-nas com avidez, tão profundas eram as desor
TRA dens de sua mentalidade.
ond 24
348 A FOME

Clemente percorria a passos lentos as enferma


rias. Elle palpava a enormidade d'aquella chaga phy
sica e moral com a grandeza de sua alma de santo !
Tudo fugira d'aquelles logares ! As illusões do mundo
haviam desapparecido e n'aquelle recinto pavoroso,
onde bem poucos têm esperança, pensava elle, geme
riam sós e esquecidos, se a caridade não os procu
rasse e lhes dissesse :
-
Estamos comvosco na hora do perigo ; sois
nossos filhos, porque sois desvalidos .
O padre tinha diante de si o horroroso e o subli
me ! O seu espirito, ao mesmo tempo que se abatia
contemplando as contingencias da vida com o cortejo
de dôres e miserias, se elevava ao incomprehensivel.
O sublime era a caridade. O bispo da diocese, enfer
mo e velho, sentado á beira do leito do enfermo que
apodrecia em vida, exhortava-o á paciencia e conso
lava-o com uma fé edificante. E na physionomia do
principe da igreja nem um gesto de contrariedade,
nem um traço de repugnancia ao pús fetido, que
muita vez salpicava-lhe o rosto e as vestes sagra
das ! ...
E em derredor dos leitos dos variolosos, ainda por
cumulo de obrigação e heroismo, viam-se algumas
irmãs de caridade.
Clemente fitou-as com respeito e admiração. Eram
os lyrios da castidade com o mais santo heroismo,
lavando com o carinho de mãe as chagas do desvali
do que apodrecia em vida ! O padre ainda uma vez
curvou-se em espirito com a maior reverencia diante
A FOME 349

erma d'aquellas santas mulheres, que, sem outra recom


pensa a não ser a emanada da fé nas promessas
phy
anto! do filho de Deus, faziam da humanidade sua fa
undo milia.

oroso, Durante uma hora tinham vagado vinte leitos,


e o administrador de bom grado recolheu á en
zeme
procu fermaria os protegidos do padre Clemente.

SOLS

subli
hatia
ortejo
sirel
enfer
oque
Conso
iade
dade
que
agra

lapot

ram

STRE

1975 *
XVIII

Quiteria do Cabo não escapou á peste. Dois dias


depois da sahida da familia de Freitas para o laza
reto, cahiu ella doente de variola, recolheu-se ao
quarto só e enferma. A febre queimava-lhe o corpo
como se a este cobrisse um caustico de louco, o de
lirio desvairava-lhe a razão, a seccura crestava-lhe
os labios, e n'uma lucta sem tregoas com a molestia
o organismo cada vez mais se enfraquecia, mais vul
"
neravel mostrava-se ao inimigo. Isolada em um quar
to, gemia a feiticeira sem os recursos da medicina,
os cuidados da familia. No primeiro periodo da doen
ça não teve consciencia do perigo. Voltou-lhe depois ‫را‬
a razão, e então Quiteria estremeceu de assombro ;
estava mais para a morte do que para a vida. Quiz
352 A FOME

levantar-se, pedir soccorro aos visinhos, mas embal


de ; os musculos entorpecidos não tinham forças para
a locomoção ; quiz assim mesmo erguer-se e cahiu
no mesmo logar !
Não podendo caminhar, tentou gritar, mas de
balde foi o esforço : a garganta estava crivada de
pustulas e mal deixou passar um som rouco e aba
fado, que perdeu- se , que extinguiu-se immediatamen
te depois de ter-lhe sahido dos labios. A idéa da
morte precedida de um martyrio lento e terrivel, es
tacionava na imaginação, e mais ainda a aterrava a
lembrança de morrer sósinha . A sêde fazia-lhe estalar
a mucosa da lingua, e ella não tinha a quem pedir
uma gotta d'agua. Tinha necessidade de alimento e
o fogão estava apagado ! A molestia seguia sua mar
cha terrivel. A inchação havia tornado disforme o
corpo da enferma. A pelle se estiraçava com o au
gmento de volume dos tecidos , e cada vez mais adel
gaçada, apresentava em diversos pontos manchas
de côr purpurea desde o tamanho de um grão de
milho até o de um ovo de pomba. Os exanthemas,
comquanto de pouco valor no prognostico das moles
tias, annunciavam em Quiteria a accentuação de um
terrivel estado morbido. Não era para prognosti
car uma fórma benigna de febre exanthematica
que o rash purpurique apparecia tingindo de pur
pura a epiderme da enferma. Elle era o signal pre
cursor e pathognomonico da variola hemorrhagica
da inoculação e desenvolvimento do microbio da be
xiga negra n'aquelle organismo que inevitavelmente
A FOME 353

seria destruido pela legião dos infinitamente pe


nbal
quenos. 1
para
Quiteria sentia um desassocego afflictivo ! To A
cahin
das as mucosas se congestionavam. Uma sêde horri
흡음

1 vel retalhava-lhe a lingua e a pelle da bôca. O - san


s de
gue começava a se extravasar das mucosas mais con
a de
gestas. As dos olhos foram as primeiras que verte
aba
ram sangue ! A feiticeira fitava, nas ancias da sêde,
men
um vaso d'agua que havia perto do leito. E como
a da
eram expressivas aquellas lagrimas de sangue a ca
ડી, સૂર્યન
hirem sobre as faces sulcadas pela angustia e lividas
ага а
por cruciantes dôres ! ... Se havia uma harmonia per
stalar
feita entre a lagrima e a expressão do rosto, um
pedir
contraste não menos perfeito fazia a côr verde do iris
nto e
esbatida pelo rubro do liquido extravasado das con
mar
juntivas. A agua, a poucos passos de distancia, ainda
me o
lhe exasperava mais a sêde ! Vêr o liquido que lhe
0 all
mitigaria a seccura dos labios e não poder to
cal-o ! ...
nchis
Quiteria impressiona-se com o seu estado. A he
ão de
morrhagia ocular aterra-a. As lagrimas de sangue
emas
cahem mais abundantes sobre os lençoes do leito, e
oles
vendo-as tingir o algodão dos vestidos, acredita na
le un gravidade da situação, e um resto de vida que a ani
t
Mos mava ainda, lucta com a molestia. Era a vida a enfren
t i a
Ma tar morte. A vontade reage e do ultimo lampejo
da energia, que se aniquila, gera-se um esforço su
1prè premo e um pequeno triumpho segue-se a elle. Qui
agric teria acredita conjurar a crise, vencer todas as diffi
Hah culdades e levanta-se para luctar. Tremenda illusão !
ment
354 A FOME

os musculos na atonia da doença não obedecem á


vontade e Quiteria ergue- se, porém cae ! tenta le
vantar-se de novo e torna a cahir ! Ainda assim não
se desillude, é preciso chegar ao vaso d'agua e de
rastos caminha para elle como uma cobra. A frialda
-
de do ladrinho impressiona-lhe desagradavelmente a
pelle a escaldar de febre. Sem embargo, n'um cons
tante arripio de frio, ella vai- se arrastando vagarosa
mente até chegar ao pote d'agua. As mãos tocaram
o vaso e viu-se-lhe na physionomia brilhar o conten
tamento d'alma. Fraca illusão que durou tão pouco !
Quiteria levou com avidez o vaso d'agua aos labios e
pensou esgotal-o de um trago. Encheu a bôca quan
to pôde e julgou poder com aquelle enorme gole re
frescar as entranhas, quentes como se recebessem o
calor de uma grande forja. Novo martyrio ! A gar
ganta meio fechada pela inflammação das mucosas
quasi não permittia a deglutição até mesmo de liqui
dos ! Quiteria quer engulir toda a agua que tem na
bôca e não póde. O liquido, não achando passagem
franca ao esophago, escapa-se pelo nariz, quasi suffo
cando-a. Quiz matar a sêde n'um segundo e agora
vê-se obrigada a engulir a agua gotta a gotta e isto
mesmo soffrendo dôres terriveis ! Acreditou saciar-se
e foi completo o engano, mallograda a tentativa. A
sêde continuava e a garganta parecia de ferro em
braza. A agua tocando n'ella parecia espherolidi
sar-se como n'uma superficie metallica incandes
cente.
Quiteria vê a morte á cabeceira, mas não acredi
A FOME 355

má ta que possa morrer. O seu estado aggrava-se mais


e mais, apparecem hemorrhagias nazal e uterina, as 1
não ecchymoses perdem a côr de purpura e vão pouco a
ede pouco cingindo - se de uma aureola negra. Ainda as

alda sim tem esperança de escapar e vai de rastos até á


nte a mala, onde está guardado o dinheiro, e a custo abre
a caixa e tira a carteira de Simeão de Arruda. A
cons
rosa physionomia transtorna-se, os pequenos olhos verdes
illuminam-se e as notas do thesouro fazem-na excla
aram
mar ardendo em cubiça :
nten
――――― Tanto dinheiro ! ...
Daw!
Dios e A feiticeira esquecida da situação ter-se-hia dei

uan xado ficar contemplando o thesouro se a molestia

e re não viesse despertal-a de um modo terrivel. Manifes

em o tou-se uma hemorrhagia pulmonar ; cahiram-lhe no


regaço golfadas de sangue. Quiteria amedrontrou-se, e
gar
ainda cravando os olhos na carteira do commissario,
Cosas
antes de fechal-a na mala, disse :
Tanto dinheiro !...
na
As hemorrhagias recrudesciam, parecia que todas
agem as mucosas vertiam sangue.
uffo
A feiticeira sentia-se enfraquecer e começava a
gora
temer a morte. Não tinha mais forças para luctar ;
isto
era-lhe impossivel qualquer reacção ; comtudo o espi
ar-se
rito se conservava lucido, as meninges não tinham
al
soffrido desordem alguma.
oem
Os orgãos da circulação e respiração gravemente
plid
compromettidos, a cyanose e os phenomenos de as
ndes
phyxia, cada vez mais se accentuando, amedrontaram
tanto Quiteria, que ella se decidiu a fazer um ultimo
eak "
356 A FOME

esforço já entre a vida e a morte. Era possivel pedir


soccorro, e, encontrando-o, escapar da peste. Acredi
tando n'isso, embalada por tão dôce esperança,
procura a porta de entrada da casa e vai de rastos
como um reptil, após si deixando uma fita de sangue
que escapava das mucosas das visceras abdominaes.
O caminho era curto, menos de dez metros tal
vez, e Quiteria gastou mais de um hora para vencel-o !
Chegou finalmente á porta e acreditou-se salva pelo
desejo ardente que tinha de viver. Era preciso pôr-se
de pé para chegar á fechadura da porta. Quiz levan
tar-se, mas lhe foi isso impossivel ! Dez vezes procu
rou com os maiores esforços que é possivel imaginar,
pôr a mão na chave da porta, alcançal-a, e tudo em
balde ! Sem esperança de abrir a fechadura, deitou-se
no chão para mandar por baixo da porta suas vozes,
seus gritos de soccorro aos visinhos, e gritou e gritou
muito, mas a sua voz não chegava aos labios, morria
na garganta. Deitada no ladrilho, via já com muita
pouca luz nos olhos a rua e os transeuntes. Fazia um
esforço immenso para tirar um som das cordas vo
caes, mas embalde : ellas continuavam em uma perfei
ta aphonia, o silencio não se quebrava !
N'esta ultima lucta perdeu o resto de forças que
a animava, e entrou na agonia, mas n'uma agonia
terrivel, cruciante. Quasi asphyxiada, com os olhos
fóra das orbitas e a nadar em sangue, a bôca es
cancarada procurando engulir ar como se o espaço
estivesse vazio e os pulmões d'ella não tivessem
cheias de sangue as vesiculas, estaria muito tempo
A FOME 357

edir moribunda, se uma onda de sangue subindo ao cere


edi bro não se derramasse das meninges, fulminando-a
nça, com a rapidez do raio.
stos Uma hora depois o cadaver tinha uma hediondez
igue que aterrava, e entrava em franca e apressada de
laes. composição.
tal
el-o!
pelo
r-se
van
ocu
inar,
em
u-se
ozes,
Titou
orria
Quita
um
STO
rfer

que
Zonis
olhos
BP
o
pap
88 2mm
impo
XIX

O anno de 1878 desappareceu no occaso ; fin


dou-se entre os gemidos dos afflictos e as maldições
de uma geração inteira ! Em sua passagem elle de
vastou tudo : searas, rebanhos e homens ! A fome e a
peste encheram os cemiterios !
A familia cearense passou n'esse periodo coberta
de pesado luto, as lagrimas correram em todos os
rostos, os lamentos ouviram-se em todas as habita
ções, a tristeza morou em todos os logares e a morte
passou em toda a parte !
Em meio de tanto desalento dardejavam-lhes
n'alma os raios de uma esperança , como um feixe
de luz que penetrasse n'uma camara escura. Era o
novo sol que dourava o oriente, era uma nova época
que começava e traria a redempção aos torturados
pelas leis irrevogaveis da natureza.
360 A FOME

- Bemvindo seja o novo anno ! era a saudação


que se ouvia por toda a parte.
O inverno, o bemfazejo inverno, regando a terra
a fecundará, os campos fertilisados produzirão espi
gas e a familia reunida no lar de novo viverá em
paz, liberta do humilhante jugo das dependencias.
Tudo levava a crêr na mudança da estação. Os
relampagos clareavam a abobada celeste, os trovões
rebombavam no espaço, a chuva regava a terra, era
emfim a festival imponente dos elementos que fazia
côro com as saudações do povo á nova éra que sur
gia.
Tudo se preparava para os labores da vida. Os
poucos braços que escaparam á grande hecatombe,
não estavam cruzados, não ; manejavam a enxada se
meando os campos.
Os retirantes abarracados na Fortaleza, anciosos
esperavam o momento de regressar ao torrão natal.
O inverno os convidava a entrar em suas antigas
occupações. Era tempo de voltar aos logares queri
dos da infancia.
Todos se julgavam salvos, quando a estação, que
começára com probabilidade de ser regular, transtor
nou-se. As chuvas escassearam de todo ! O dia 19 de
março, o dia fatal trouxe-lhes o desengano cruel. A
limpidez do espaço não a toldou mais nenhuma nu
vem de chuva ! Quanta esperança mallograda ! quan
ta desillusão ! Mais um anno de provações e dôres
nas choupanas do governo a comer o pão da esmola
que degrada e avilta ! E os infelizes do alto sertão,

1
A FOME 361

que sustentaram com todo o denodo uma lucta tre


menda de dois annos, que será d'elles ?! Quanto não
lhes custará vêr reduzido a nada o derradeiro esfor
ço de sua energia !
No campo preparado á custa dos mais penosos
sacrificios as sementes começaram a germinar, elles
contemplavam esperançosos o desenvolvimento da
planta, que lhes deveria matar a fome durante o
h anno inteiro, olhavam repassados de amor para ella,
o fructo de muitos dias de trabalho, o resultado do
poder da vontade ! Todas as illusões fugiram e ficou
a realidade, mas a realidade que aterra, que esmaga!
O sol matou a planta mal se completou a germi
nação da semente ; desfez em horas o trabalho de
tantos dias ! E agora o que resta ao lavrador ? o
abandono e a desesperação. Com tamanha decepção
elle não se abate, quer reagir contra o elemento que
destruiu a lavoura, tenta reparar o prejuizo e procu
ra novas sementes para semear a terra, mas tudo em
vão ! A sementeira havia-se acabado ! O que fazer
para escapar, para manter a vida? Aos habitantes.
do interior da provincia restava o recurso selvagem
e unico das venenosas plantas silvestres ou a humi
lhante ração á porta dos celleiros do governo, depois
de todos os soffrimentos de uma viagem longa e pe
nosa.
XX

O cadaver de Quiteria do Cabo apodrecia dentro


de casa. Os visinhos notavam com surpreza que a
porta da feiticeira, havia dias, estava fechada, e inda
gavam uns dos outros a causa d'isso, quando uma
manhã viram com pasmo muitos urubús pousando
sobre o telhado ; julgavam um signal de mau agouro
ou então o demonio disfarçado que vinha reclamar o
sangue da feiticeira, desde muito tempo empenhado
elle em troca do poder de fazer maleficios. Os uru
bús voaram do telhado e pousaram no batente da
porta de entrada ; isto despertou a curiosidade dos
menos supersticiosos, e foram verificar o que por lá
havia. Não foi preciso mais do que se aproximarem
da casa. Um cheiro de carniça empestava a rua toda.
Em pouco tempo se espalhou que a feiticeira tinha
25
364 A FOME

morrido e apodrecia dentro de casa. A noticia circu


lou com rapidez. Na visinhança não havia quem se
atrevesse a bater á porta de Quiteria e chamal-a
pelo nome, quanto mais forçar a entrada. Temiam ser
recebidos pelo demonio que estava de posse do ca
daver.
O facto chegou ao conhecimento da policia. Al-
guns soldados e o delegado vieram tomar conheci
mento do occorrido, como de um acontecimento muito
commum. Raro era o dia em que os urubús não de
nunciavam nos arrabaldes e mesmo dentro da cidade
cadaveres humanos que apodreciam insepultos.
A porta da feiticeira cedeu aos impulsos de al
guns braços e o cadaver de Quiteria, já em adianta
do estado de putrefacção , foi sacudido no meio da
sala.
A feiticeira estava medonha. A putrefacção havia
triplicado o volume do corpo, que, deitado a fio com
prido sobre um lençol de brancos vermes, era devo
rado por esta legião de sêres infimos, que gulosos
fervilhavam n'aquelle repasto de podridão . Os olhos
quasi fóra das orbitas, o nariz separado dos ossos
pelo apodrecimento dos tecidos esparrinhava-se sobre
os labios que, tambem sem fórma, eram apenas uma
papa de bichos e pús ! Eram de tal ordem as exhala
ções da materia putrefacta, que os soldados não se
atreveram a transpôr o limiar da porta.
O enterramento devia ser feito immediatamente.
Não havia quem se animasse a lançar a mão sobre
o cadaver. Queimal-o seria o meio melhor, mais se
A FOME 365

rcu guro e breve, mas corria risco a casa, que embora


n se de pouco valor, era de telhas. Se fosse de palhas te

al-a riam largado fogo, seria desinfectada pelo incendio,

ser como se fazia diariamente, em casas identicas, nos


arrabaldes da cidade.
ca
O tempo se passava e urgia uma providencia

Al qualquer. Do abarracamento mais proximo foram


chamados quatro homens da turma dos carregadores
Deci
uite de defuntos com paus e cordas. Apresentaram-se ao

de delegado, o qual ordenou-lhes que conduzissem o cor


po de Quiteria ao cemiterio.
ade
Os retirantes entraram na sala e sahiram imme
22

diatamente embebedados do fedor.


-al
A policia intimou-os a entrar e elles resistiram
dizendo ser impossivel pôr as mãos em um corpo que
da
tanto fedia. A ração dobrada que recebiam por cada
ver que levavam ao cemiterio, não pagava-lhes o sa
aria
crificio. Só a miseria podia pôr-lhes ás costas uma
om
carga de pús, e fazer com que caminhassem ao peso
ero d'ella tres kilometros e ás vezes mais !
Os carregadores recusavam-se com obstinação a
hos
transportar os restos de Quiteria. A policia amea
SOS
çou-os e elles resistiram.
bre
O delegado, comprehendendo a necessidade de ti
ma
rar d'alli aquelle fóco de infecção, mandou vir aguar
la
dente, que distribuiu á vontade com os carregadores,
se
promettendo-lhes pelo enterramento d'aquelle corpo
quatro rações em vez de duas. Os retirantes, bastan
te
te excitados pelo alcool, entraram na sala e foram
bre
tratar de amarrar o cadaver em um pau, para melhor
*
366 A FOME

poderem carregar. Depois d'esse trabalho, que tanto


tinha de insano quanto de repugnante, e ao qual só
se sujeitavam porque estavam quasi embriagados, fo
ram pôr o pau ás costas para seguir com a defunta,
quando esta desfez-se em muitos pedaços ; os tecidos,
não tendo resistencia para sustentar o proprio peso,
despegaram-se dos ossos, as visceras cahiram no chão ;
emfim o corpo de Quiteria desmanchou-se em podri
dão e fedor. A atmosphera da sala ainda mais tresan
dou a carniça, quando os gazes, comprimidos no
abdomen e thorax da defunta, ficaram livres.
O alcool havia embotado a sensibilidade dos car
regadores que, como verdadeiros corvos, estavam ás
voltas com o cadaver sem constrangimento algum.
Não podendo o corpo ser conduzido atado ao pau,
resolveram ensaccal-o e pozeram os restos de Quiteria
em um sacco de grossa estopa. Todos os pedacinhos
de carne, o menor ossinho, e até os cabelludos tapu
rús foram apanhados pelos carregadores e postos no
sacco. Fechada a bôca do sudario com uma corda de
embiratanha, foi elle amarrado a um comprido pau
e os carregadores conduziram-no ao cemiterio da
Lagoa Funda.
A humildade da habitação, a posição da proprie
taria, a pobreza da mobilia, fizeram que a policia não
tomasse mais providencia alguma e deixasse a casa
aberta e abandonada.
O povo agglomerado na rua fazia seus commen
tarios, quando foi surprehendido por um padre. Sau
daram com todo respeito o sacerdote.
A FOME 367

tanto Quem morreu aqui ? perguntou o padre Cle


al só mente.

s.fo -Uma mulher chamada Quiteria do Cabo, a


unta, feiticeira, responderam a uma voz.
eidos, O sacerdote reflectiu alguns segundos e se diri

peso, giu á porta de Quiteria.


hão; Os retirantes comprehenderam a resolução que o
dri padre tomára de entrar na casa e ponderaram-lhe
esan que não fizesse isso, que era uma grande temeridade
s no entrar n'aquella podridão.
Clemente não deu ouvidos aos conselhos, e trans
car pondo o limiar da porta, disse :
nás -Deus seja commigo.
E entrou com passo firme e resoluto.
Jum
paul,
teria
nhos

pul
no
de
pau

rie
Lão
258
2
XXI

A sêcca continuava.
Nem mais uma esperança de inverno !
A epidemia da variola havia-se extinguido ; fe
charam-se quasi todos os lazaretos, ficando apenas
abertos dois, onde continuaram em tratamento algu
mas centenas de doentes de ulceras atonicas.
Manoel de Freitas, Josepha e Filippa conseguiram
triumphar da molestia, mas depois de soffrimentos
crueis.
Os meninos morreram todos !
Carolina occultou dos paes quanto pôde a mor
te dos irmãos.
-
Faça-se a vontade de Deus, Elle m'os deu,
Elle m'os tirou, foram as palavras de Freitas quando
procurou pelos filhos e lhe disseram que haviam
morrido.
370 A FOME

Josepha ficou inconsolavel. Não tinha forças para 1


resistir á saudade dos filhos, essa separação cruel e
eterna. O tempo que tudo gasta, que tudo acaba , foi
pouco a pouco amortecendo aquella saudade funda,
aquella magoa pungente que a desalentava, que a.
fazia tão infeliz.
Freitas teve alta do lazareto com a familia. A
morte havia reduzido o numero dos filhos, mas ainda
eram muitas as pessoas que tinha de alimentar, en
fermo e sem recursos . Disposto a não voltar para a.
casa que lhe emprestára Arruda, abrigou-se á som
bra do primeiro cajueiro que encontrou , e disse a Jo
sepha :
Libertou-me o acaso de um jugo bastante pe
sado . A misericordia de Deus livrou-nos de ser a
nossa honra ultrajada, Josepha, fez-nos conhecer o
perigo a que estavamos expostos sob a protecção de
um homem sem consciencia. Somos hoje mais felizes,
porque a arvore que nos abriga não exigirá em paga
da sombra o menor sacrificio . Somos pobres, estamos
no numero dos desvalidos que precisam de pão, te
cto e vestuario, mas em tudo seja feita a vontade
de Deus. Irei á pedreira, continuarei a receber a
minguada ração até que se restabeleça a paz em nos
sa terra. Seja esta sombra de hoje em diante a nos
sa casa, viveremos n'ella mais contentes e mais segu
ros. Sinto -me forte, Josepha, parece que volta a ener
gia perdida ou agrilhoada pela humilhação. Sou li
vre ! A minha liberdade não está empenhada, com
ella voltou minha soberania. Que nos importa ter o
A FOME 371

chão por leito e por alimento uma ração, mas ganha


com o trabalho ? Josepha, eis a nossa casa, ajuda-me
a bater o infortunio e iremos adiante. Fica com tua
filha e Filippa, que eu vou á pedreira.
E Freitas seguiu para a cidade.
O coronel talvez ainda não tivesse chegado ao
Mucuripe, quando o padre Clemente, voltando do la
zareto, encontrou a familia de Freitas á sombra do
cajueiro.
O sacerdote aproximou-se, e Josepha e Carolina,
gratas aos beneficios do padre, beijaram-lhe a mão
com respeito e reconhecimento.
-Muito me alegro, minhas filhas, de vêl-as fóra
do perigo. Tive a felicidade de conduzil-as ao hospi
tal, terei o prazer de leval-as a sua casa. Deus não
quiz que voltassem todos ; comtudo rendamos graças
a Elle, pois peor poderia ter sido. O coronel onde
está? perguntou Clemente.
-Foi á pedreira, respondeu Josepha.
--
E quando volta para a sua habitação ?
- A nossa casa é hoje esta.
Esta arvore ?
-Sim, snr. padre, estamos mais felizes aqui.
-É impossivel ! não consinto que fiquem tão
mal abrigados. Carolina não está bem n'este des
campado, sua saude póde alterar-se e eu desejo que
ella viva, ella que é o mais bello exemplo que conhe
ço de amor filial.
O padre se affeiçoára sinceramente a Carolina. O
acto de sublime abnegação vendendo os cabellos para
372 A FOME

salvar a familia, havia despertado em Clemente uma


perfeita adoração pela moça.
Convencido de que Freitas ficaria com a familia
á sombra da arvore, e de posse dos segredos de Si
meão de Arruda e de Quiteria do Cabo, o padre dis
se a Josepha que voltaria na tarde d'aquelle dia, afim
de conferenciar com Freitas sobre a necessidade de
procurarem um abrigo melhor .
O coronel chegou á cidade quasi cançado . Como
ir á pedreira ? Viu-se nas ruas cercado de mendigos,
que imploravam a caridade publica, mas elle não sa
bia pedir ; a idéa da esmola não podia ser aceita
por seu caracter. O unico recurso compativel com
sua dignidade, o unico que considerava legitimo, era o
do trabalho, mas a pedreira era tão longe e seus mem
bros pela primeira vez moviam -se depois de uma
quietação de um mez no leito da doença. A familia
tinha fome e cumpria-lhe luctar pela conservação
d'ella. Seguiu para a pedreira. O trajecto foi penoso.
No caminho algumas vezes um supremo esforço da
vontade suppriu o vigor dos membros enfraquecidos.
A lucta foi enorme. A pedra foi posta no logar indi
cado pelos agentes do governo : estava ganha a ra
ção . Fez- se a chamada, todos foram pagos excepto o
coronel, cujo nome não estava alistado. A pagadoria
ia fechar-se quando Freitas apresentou-se reclaman
do seu direito : negaram-o e zombaram d'elle. O co
ronel não se perturbou, contou em poucas palavras
sua historia e os encarregados do armazem tiveram
piedade d'elle e pagaram-lhe o trabalho.
A FOME 373

Freitas chegando ao rancho, encontrou-se com o


padre Clemente, a quem agradeceu os grandes ser
viços que lhe havia prestado.
O sacerdote, depois de ouvil-o, disse -lhe :
Estava á sua espera, meu bom velho. Soube
com surpreza que não voltaria mais para sua casa e
que ficaria á sombra d'esta arvore. Não sei das ra
zões que o levaram a proceder assim, mas a decen
cia manda que procure abrigar-se melhor.

A casa que deixamos não é nossa, snr. pa
dre, foi um emprestimo que nos fizeram, mas que
resolvi não continuar a aceital-o.
――――
Não quero entrar na intimidade de sua vida.
Venho cumprir o meu dever offerecendo-lhe os meus
serviços.
Não tenho direito de recusar os seus offereci
mentos, snr. padre Clemente. Estou sem tecto e
sem pão ! Se em minhas palavras encontrou v. rev.ma
resaibos de desconfiança, é porque muito me custa
ram os favores recebidos ao chegar a esta terra.
――
Aceitando os meus serviços, não me terá em
penhado a sua independencia nem sacrificado a sua
liberdade.
Assim o creio. Os homens não são iguaes, é
verdade, mas quem poderá distinguir os virtuosos dos
hypocritas ? Amo a liberdade, me apraz a solidão,
porque sinto que me vivifica as forças. Este logar me
serviria perfeitamente bem, se eu fosse só ; mas te
nho que guardar minha mulher, minha filha e uma
infeliz louca. A Providencia talvez se compadecesse
374 A FOME

de minha situação e ainda uma vez foi v. rev.'ma es


colhido para nos salvar . Não tenho direito de recu
sar a verdadeira caridade. Em nome de Deus v. rev.ma
nos procurou para nos proteger, e em nome de Deus.
eu me entrego com minha familia á sua protec
ção.
-Suas palavras, bom velho, são ditadas pela ex
periencia, mas por uma experiencia amargurada de
dissabores. Quero tiral-o d'aqui porque em nossa ter
ra actualmente o vicio contamina tudo ! Os maus pe
netram no recinto das habitações honestas ; quanto
mais no descampado, onde nem ao menos humildes
palhas constituem a propriedade, o asylo inviolavel
de familia. Quero poupar-lhe o desgosto de um de
sacato á sua honra. Obtive uma casinha na estrada
empedrada de Arronches, uma das quatorze construi
das por um commerciante d'esta praça, e offerecidas
ao governo para recolher os retirantes. Supponho que
lá estarão mais seguros, mais resguardados da onda.
de viciosos que tudo devasta ! Terão por visinhos com
panheiros de infortunio, mas dos que ainda não se
deixaram corromper. São familias que ainda conser
vam a pureza de costumes da vida campezina. Estou
certo que lá viverão mais tranquillos e será maior a
paz de espirito .
- - Como é differente a verdade da mentira ! Ouvi,

snr. padre Clemente, as suas sabias palavras e cada


uma d'ellas me penetrou n'alma imprimindo n'ella
a resignação e o reconhecimento. Foram talvez ellas
as unicas expressões verdadeiras que ouvi em toda
A FOME 375

3 es a minha vida de infortunio. Seguil-o-hemos como


servos.
recu
ev.ma Sigamos, é tempo de descançar os membros
Deus fatigados e o espirito tantas vezes atribulado pela
contrariedade, pelo desgosto.
otec
E Clemente acompanhado de Freitas e da fami
lia encaminharam-se para a nova casa.
a ex
a de
0

ter
3pe
anto
ildes
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de

Crui

que
nda
-

se
Ser
tou
ra
ES

lla
as
XXII

Simeão de Arruda ignorava a morte de Quiteria.


Desde que a variola se manifestou com intensidade
fazendo mil victimas por dia, o commissario deixou
de ir ao abarracamento, de passear pelos arrabaldes
temendo o contagio. O serviço de soccorros publicos
a seu cargo era feito pelos chefes de turma.
O padre Clemente aboletou a familia de Freitas
e recebeu do coronel a chave da propriedade de Ar
ruda para pessoalmente entregal-a. O padre procurou
a casa de Simeão, que o recebeu amavelmente.
--- Venho trazer a chave de uma propriedade
de
v. s. , occupada outr'ora por uma familia de emigran
tes, disse o sacerdote.
O commissario perturbou-se e perguntou :
―――
-E onde pára hoje essa sucia de ladrões, reve
rendissimo ?
378 A FOME

-Ignoro o seu destino.


- Então ignora ?...

-Supponho que sim.


-Acha-se disposto sem duvida a pagar os alu
gueis atrazados, não, reverendissimo ?
-Vim aqui sómente entregar-lhe a chave ; eil-a.
E o padre estendeu a mão para o commissa
rio.
-Não é como pensa, reverendo ; conte o dinhei
ro dos atrazados, do contrario entregue a chave a
quem lh'a deu.
Clemente ficou perplexo diante do cynismo de
Simeão.
-Então rejeita a chave, snr. Arruda?
- Pois não, meu padre, supponho que ninguem,
nem lei humana e nem divina me obrigará a traba
lhar para vadios. A quadrilha que morou na casa de
que falla, além do mais, furtou-me uma carteira
com uma boa quantia. P
Está certo d'isso ?
-Perfeitamente. Deixei-me levar pelas lamurias
do velho astucioso e cahi na ratoeira . Não se encan
te com os olhos azues da mocinha, reverendissimo,
olhe o precipicio ! ...
-O senhor é audaz ! ...
E o padre levantou-se para sahir.
Alto lá , reverendissimo, fique sabendo que de
hoje em diante ficará obrigado pelos alugueis passa
dos e futuros ; á minha custa o reverendissimo não
faz favor á moça bonita .
A FOME 379

Clemente, por mais calma que procurou ter, por


mais humilde que procurasse ser, não pôde-se domi
nar ferido pelos insultos de Arruda, e atirou-lhe a
chave sobre a secretária ameaçando-o :
―― Não vingo-me de sua audacia porque
não que
ro ; existem em meu poder as provas de seus crimes.
E o padre sahiu bruscamente.
Os documentos perdidos com a carteira colloca
ram-se immediatamente na imaginação de Arruda e
humilharam-no.
Freitas com a familia passava regularmente.
Filippa depois da variola não teve mais accessos
furiosos, passava os dias em completo silencio. Só
abria os labios para na inconsciencia da loucura fal
lar na filha :
-Bernardina... a jangada...
A idéa do embarque da escravinha não a dei
xava.
Freitas continuava a carregar pedras do Mucuri
pe. Custava-lhe muito fazer todos os dias aquelle ca
minho. A minguada ração ajudada de quando em
vez com algumas esmolas de Clemente, os ia abrigan
do da miseria. Viviam mais contentes e relacionados
com os visinhos, que eram quasi todos conterraneos
seus.
Simeão de Arruda ignorava o domicilio de Frei
tas. Impressionado com as palavras do padre, e acre
ditando muito critica a sua situação, sahiu para se
orientar e foi ter a casa de Quiteria. Estava abando
nada. Indagou pela feiticeira e disseram -lhe que
26
380 A FOME

havia morrido de bexiga. Os documentos que perdeu,


pensou, estavam na mão do padre. Havia necessi
dade de rehavel-os, fossem quaes fossem os meios.
Como Clemente se teria apossado d'elles é que o
commissario não podia saber ; Carolina ou Quiteria
tinha dado ao sacerdote tão poderosa arma contra
elle. Simeão pensava que o sacerdote, apaixonando-se
pela moça, a seduzira no confessionario, e inteirado do
seu amor exigira d'ella os documentos e procurava
perdel-o. Se não foi Carolina que entregou os papeis,
foi Quiteria ; era beata, e quando tinha qualquer dôr
de cabeça, pedia logo um padre para se confessar.
Deu sem duvida o dinheiro que estava na carteira
I
a Clemente, para lhe rezar missas por alma.
Arruda, completamente desorientado, voltou a ca
sa. Uma idéa estava sempre fixa na imaginação : a
perseguição que o padre lhe faria armado dos docu
mentos do thesoureiro. Havia necessidade urgente de
rehaver os papeis, e o commissario com muita astu
cia e manha dirigiu-se a casa do padre Clemente.
- Venho pedir a v. rev.ma uma desculpa. Fui

por demais injusto, violento e brutal para com v.


rey ma quando me procurou a ultima vez em nossa
casa. Em um momento de tedio, em um instante de
mau humor esqueci-me de que tratava com um sa
cerdote virtuoso e digno, por seus dotes moraes, de
todo respeito e veneração. Reconhecendo minha falta,
peço-lhe perdão.
-Seja bem vindo, snr. Arruda . Esqueçamos
os momentos de colera e os seus desvarios. Temos
A FOME 381

necessidade de perdoar as faltas de nossos semelhan


erdeu, tes, para que Deus nos perdôe as nossas. O senhor
cessi vem pedir desculpa da offensa que me fez, ella foi
meios. esquecida no mesmo momento que a recebi. Eu mais
que o o offendi desde que ousei ameaçal-o, e eu que devia
iteria ser humilde, que não devia levantar a voz para mos
Contra trar o argueiro no olho alheio ! Denunciei os seus er
do-se ros, perdôe-me, snr. Arruda, essa falta.
dodo Denunciou-me á policia, snr. padre ? Perdeu
urara me, como me fez desgraçado !

apeis, Denunciei-o, não aos tribunaes publicos, mas


rdir ao tribunal da sua consciencia. Em liberdade tambem

essar se expia o crime : para o remorso morder não é pre


teira ciso carcere. Não quero magoal-o, não me compete a
mim censurar seus erros, me recolherei ao silencio.

a ca -Continue, snr. padre, seja o meu castigo a his


0:8 toria de meus crimes. Restabeleça-se o reino da ver
Jocu dade. Estão aqui o padre que tudo póde perdoar, e o
peccador que tudo espera da misericordia de Deus.
tede
stu Então permitte que o aconselhe ?
- Serei attento ás vossas sabias palavras, snr.
ente.
Fui padre.
―――― Passava uma manhã por um dos arrabaldes da
mr.
capital quando fui chamado por uma moça que se
lossa
mostrava afflictissima. Pediu-me que entrasse em
tede
sua casa para vêr a miseria dos seus. Entrei e tive
1sa
de vêr um quadro triste. Estava toda a familia ata
, de
cada de bexiga. Levei-os ao lazareto onde se cura
alta,
ram, excepto as creanças que morreram todas. Dei
xaram a enfermaria, e foram- se recolher á sombra
mos *
mos
382 A FOME

de uma arvore, onde os encontrei . Affeiçoado a elles


por suas virtudes, agasalhei-os melhor. O chefe da
familia entregou-me a chave de uma casa que v. s.ª
The havia emprestado. Elle desejava vir trazer-lh'a e
agradecer-lhe, mas eu reprovei sua resolução, para
v. s. ignorar o destino da familia, arrefecer assim a
paixão que nutria por Carolina. É tempo ainda de
se emendar, snr. Arruda. Suas faltas foram graves,
mas póde ainda o senhor reconciliar-se com Deus, e
rehabilitar-se perante a sociedade dos bons, dos vir
tuosos. Quando a paixão do vicio quizer arrastal-o,
olhe para a esposa, medite na sorte de suas filhas e
depois lembre-se de que não devemos fazer aos ou
tros aquillo que não queremos que se nos faça.
- Mil vezes obrigado, snr. padre Clemente, vol
tarei ainda algumas vezes para ouvir os seus sabios
conselhos.
Simeão havia-se galvanisado bem e, uma vez lon
ge de Clemente, dizia comsigo :
-
Prégaste tua moral no deserto , meu padreco,
queres-me afastar de Carolina para conseguires me
lhor os teus desejos. Não deixarei de seguir-te e ve
remos quem triumpha.
O commissario não tinha illesas as qualidades
psychicas. O abuso do alcool dando em resultado
pequenas mas repetidas congestões para o cerebro,
havia produzido desordens no systema nervoso, des
ordens que se manifestavam por accessos mais ou
menos intensos de delirium tremens.
Arruda, desde o dia que soube que os documen
A FOME 383

elles tos estavam em poder do padre, bebia desesperada


fe da mente. Uma garrafa de cognac mal chegava para
V. 8.3 um dia. A embriaguez fazia esquecer sua posição e
ae o perigo que corria sua liberdade.

para No dia da conferencia com Clemente, chegando


im a em casa, bebeu muito e á tarde já governando mal
ade os membros, que começavam a tremer, sahiu a visi
aves, tar a casa que emprestára a Freitas. Esperava en
us, e contral-a vazia, mas illudiu-se. As cadeiras empoeira
vir das ; todos os moveis emfim estavam alli para attes
14. tar a probidade de Freitas. Arruda sentiu-se humi
As e lhado ; pela primeira vez conheceu que elle era me
011 nor do que o retirante de quem duvidava. A mudez
d'aquelle recinto foi-lhe excitando mais os nervos.
тор Annunciava-se um accesso de delirium tremens. As

DIOS allucinações começaram, e começaram pelo ouvido.


Uma gargalhada zombeteira, estridente, soou nos
on tympanos de Arruda e elle, olhando para todos os
lados, achou-se só entre paredes mudas e perfiladas.
CO Sentiu que as idéas confundiam-se e aquella solidão
‫با‬

se povoava de sombras, que se moviam lentamente :


Te eram as allucinações da visão que principiavam. As
retinas, que não impressionava imagem alguma que
es aterrasse, não impediam o cerebro de vêr horríveis
do phantasmas, ligeiros duendes a fazer evoluções por
toda a sala.
TO,
As allucinações do ouvido e da visão cada vez
S

mais se accentuavam. Novos personagens chegavam


ou
e fallavam. Simeão ouvia vinte vezes por segundo a
voz rouquenha da feiticeira promettendo-lhe a honra.
=

11
384 A FOME

de Carolina, alternar com os gemidos de Victorina


na orgia ; via a figura implacavel de Edmundo de
punhal em punho e prestes a feril-o. Cercado de to
das essas sombras que o apavoravam fugindo d'ellas,
pedindo protecção á parede, á qual cosia-se, ficava
immovel como um cataleptico . O suor brotava-lhe
dos póros ; o olhar fito, sem luz e morto , dava-lhe á
physionomia uma expressão morbida.
Clemente voltava dos abarracamentos quasi ás
seis horas da tarde, e passando em frente á casa em
que morou Freitas, parou movido de curiosidade
pela postura em que estava o commissario. Reconhe
cendo Arruda, entrou e comprimentou-o. Simeão não
viu o padre.
- Que estranha immobilidade ! ... Estará petri
ficado ?... disse Clemente comsigo.
O padre com grande curiosidade poz-se na frente
de Arruda e examinou-o com um olhar minucioso.
A quietação do enfermo continuou. O sacerdote cha
mou-o pelo nome em voz alta e o som de seu grito
perdeu-se nos vazios aposentos . O commissario con
tinuava no somno dos sentidos. Clemente encosta-se
a elle e batendo-lhe com força ao hombro, excla
mou :
Acorde, snr. Arruda.
Simeão estremeceu como se todos os musculos e
nervos tivessem recebido uma descarga electrica. Mo
veu-se com agilidade da onça e collou- se á parede
interna da sala.
Clemente não comprehendia aquelle mysterio. O
A FOME 385

commissario estava possesso, não havia duvida ; era


rina conveniente exorcismal-o e talvez fosse preciso para
de
enxotar o demonio muita reza e agua benta.
to
-O que soffre, snr. Arruda ? gritou-lhe ao ou
llas, vido o padre, como se fallasse a um surdo.
Cara -A feiticeira ! ... de batina ! ... crédo ! não lhe
-The dei tanto dinheiro...
ne á E Simeão collou-se mais á parede, procurando
occultar o rosto entre as mãos.
SP

――――― É o padre Clemente com quem esteve hoje,


desperte !
ade Arruda descobriu o rosto, arregalou quanto pô
he de os olhos, para conhecer o seu interlocutor.
não -Já é outro, mudou-se, é peor, é Xenophonte,
ai ! solte-me ! gritou o commissario a tremer, e pro
tri curando livrar-se das mãos que suppunha agarral-o.
O padre começava a inquietar-se com o estado
ente de Arruda ; lamentava não ter agua benta alli e o
SO. seu cordão de S. Franscisco, que acreditava mais
ha
efficaz do que uma injecção hypodermica de mor
ito phina ou uma dóse de chloral. Louco ou possesso,
on
não devia abandonal-o. O padre continuou a fallar
-se
lhe e elle a responder ás suas palavras contando as
scenas da orgia e o desfloramento de Victorina.
A crise nervosa não devia durar sempre, o acces
so foi diminuindo, e antes de anoitecer de todo Ar
se
ruda, quasi restabelecido, era acompanhado a sua
10 casa pelo padre Clemente.
ede

0
(
XXIII

A pedreira do Mucuripe continuava a matar a


fome a milhares de retirantes, onda de maltrapilhos,
afeiados pela variola e vomitada pelos lazaretos.
Manoel de Freitas, com o rosto semelhante a um
ralo de cobre velho, fazia parte das turmas de carre
gadores de pedras.
Os famintos levantavam-se ao primeiro clarão do
dia e moviam-se vagarosos em direcção ao Mucuripe,
como uma enorme serpente de escamas negras.
Aquella pobre gente convalescia ao sol, fortalecia
os membros enfraquecidos pela doença, morosos pela
quietação n'uma viagem de doze kilometros todos os
dias.
Quasi todos tinham uma physionomia triste e
doentia ! Entre elles, no entanto, havia espiritos zom
beteiros, que, a luctar embora com as mais rudes
388 A FOME

contrariedades, tinham nos labios um riso de mofa


para tudo ridicularisar. Emquanto o espirito forte re
colhia-se e meditava, e depois com um olhar investi
gador media a profundeza do abysmo, que cada vez
mais fundo se fazia, o leviano alegre caminhava a rir
de tudo. Zombavam da propria magoa.
Morreu gente como formiga e não fez falta !
-Parece que estão sahindo do cemiterio !
―――
Olhem aquella velha, o diabo das bexigas co
meram-lhe o nariz que quasi não ficou com que to
mar folego.
Crédo !
-Peor é aquelle curiboca que vem alli ; as pa
pocas pregaram-lhe as orelhas e o fizeram mouco.
- Gentes, não riam assim dos castigos de Deus.

-O mal quando vem é para todos.


- Olhem o velho Damião lá da Telha ; escapou,
porém tão fuchicada tem a cara, como um sacco mal
arremendado.
- Pena fazem os céguinhos, orphãos de pae e

mãe ! Sahiram dos lazaretos para o meio da rua a


pedir esmolas.
-E cantando !
Vi hontem mais de cincoenta, era um fieirão
bonito e uma gralhada dos infernos.
-Diabos os levem com o seu barulho.

« Eu peço por caridade


Pelos mysterios da cruz,
Meus irmãos dêem uma esmola
Pelo sangue de Jesus ».
A FOME 389

nofa -
- É assim que elles pedem, gritou uma retiran
re te depois de ter cantado a quadra.
esti - Arremeda agora como elles agradecem, Jose
vez phina.
Arir - « Deus lhe pague a sua esmola
Deus lhe dê muita alegria
No reino do céo se veja
Ita!
Com toda sua famia ».

CO -Bonito, Josephina ! és um quem-quem para


-02
arremedar !
-A cantarola d'elles vai-se acabar ; o presidente
vai fazer uma colonia para prendel-os .
―――
pa Só elles, não : tambem as duzias de vadios que
uco. andam soltos na rua a fazer diabruras.
eus. Não ignorem as baldas dos filhos alheios,
gentes !
---
Dou E a companhia da russéga ?
nal De que, tio Bernardo ? !
― A russéga , meninos.

e Ora tibis, as gentes da cidade sabem de coi


sas !
E vossês sabem de um caso succedido hontem
na feira?
- Conte lá.
B00

Foram presos mais de vinte e cinco.


- E como ?
――
Fecharam os portões da ribeira e ficaram como
preás em fojo.
- -Então o facão comeu côro de gente ?!
――――-Como sem duvida.
390 A FOME

-Crédo, que malvadexa !


-E o Manoel Beicinho apanhou como cavallo
acuado.
-O filho do subdelegado de Milagres ?
Ora se...
Está em que deu os mal ensinos do rapaz.
-Acostumou-se a furtar pombos, e como o pae
era authoridade e lhe passava a mão pela cabeça,
entendeu que aqui seria o mesmo.
-
E o que furtaram elles ?
Ora, entraram n'uma casa de gente rica e le
varam até as panellas !
-Será verdade, tio Bernardo ?
Como sem duvida. O delegado achou o couto
e foi um Deus nos acuda.
E elle que não é molle.
-Só aquelle bigode ruivo faz a gente tre
mer.
-E o que acharam ?
-Tinha de tudo ; estavam todas as gallinhas da
cidade lá guardadas.

E de quem era a casa ?
-Isso é que não sei bem ; ouvi dizer por bô
cas pequenas que era de um sujeito até de pale
tot !
Então era o chefe ?
- Coisas do mundo . Abafaram o negocio, porém
metteram os ratos pequenos no chilindró.
-E porque chamam russéga, tio Bernardo ?
- Lá isso não sei.
A FOME 391

▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬ Sei eu, gritou um rapaz que ficára atraz accen

dendo um cigarro.
arallo
- Diga lá, Felismino.
- É por mode o vidrinho de cacos de garrafa
que elles levam escondido para furar as saccas de
generos e os bolsos dos homens limpos.
Estás a basofar, pedaço de vadio !
pae Eu fui convidado para entrar no pagode e não
Jeça,
quiz.
――― Então és do bando ?
- Duvido !... O Beicinho me convidou, mas eu
£
1

que não tenho meu couro para bainha de facão, puz


me fóra.
- Fizeste bem, filho de sacristão.
uto -A russéga, tio Bernardo, é aquelle vidro que
a meninada da cidade amarra nos rabos dos papa
gaios de papel para cortar a linha dos outros, não é,
Te meu tio ?
-Eu sei lá d'essas inventivas !
-Então viva eu, que já aprendi as sahidas das
da gentes d'aqui.
Marchava assim a turma da miseria, quando foi
surprehendida pela voz de um retirante :
Lá vem a cavallaria ! ...
-Santo Deus ! temos tribusana, gritaram todos
a uma voz.
A falta de disciplina na companhia de cavallaria,
11 organisada ás pressas para policiar a capital, as atro
cidades que os soldados commettiam todos os dias es
pancando a torto e a direito, e assassinando mesmo,
392 A FOME

e sem a menor punição, aterrava os retirantes. A no


ticia da aproximação dos soldados impressionou vi
vamente os carregadores de pedras.
A soldadesca desenfreada esporeava os cavallos,
que corriam a galope. Via-se já muito perto o luzir
das espadas. Pouco tempo gastariam elles para al
cançar os retirantes. Entre estes infelizes era com
pleto o silencio . As respirações estavam quasi sus
pensas !
Tinham corrido para evitar o encontro, mas em
balde ; os cavallos voavam, seriam alcançados antes
da pedreira. Pararam, agruparam-se intimamente ;
dir-se-hia ligados por um estreito amplexo fraternal.
Formou-se um quadrado de miseros despojos da
peste e fome, que longe de resistir a um ataque,
cahiria vencido ao primeiro choque.
A soldadesca se aproximava mais e mais. A vo
zeria dos soldados voava levada pela briza do mar.
As palavras insultuosas já se ouviam perfeitamente.
As mulheres tremiam de medo com o olhar supplice
para o céo. Os homens envergonhados de sua fraque
za, cravavam o olhar na chão !
Os soldados chegaram em frente ao grupo.
Os cavallos, instigados pelas picantes esporas, par
tiram mordendo os freios, sobre a columna inerme.
As patas dos animaes pisavam os infelizes, que a
prancha do soldado embrutecido lançava por terra !
Na areia rolavam estorcendo-se de dôr, homens e
mulheres, cuja epiderme ainda coberta de cicatrizes
havia sido rasgada pela espada brutal !
A FOME 393

no
Debandou-se em um instante o grupo. Como um
1 vi
7
.

bando de aves fugitivas, erravam á tôa pela costa


núa do oceano .
allos,
Os soldados continuavam a perseguil-os quando
luzir
o commandante os chamou a postos :
a al
-Basta por hoje de ensino, não faltará occasião
com
de surrar esta canalha.
SUS
A soldadesca açulada pela certeza da impunidade
dos crimes, na mais infernal algazarra, na mais estu
em
pida zombaria, corria a galope em direcção ao Mucu
ntes
ripe, emquanto mais de cem infelizes gemiam deita
nte;
dos na areia da praia.
rnal
Doía vêr as contusões feitas pelas patas dos ca
da
vallos ! A epiderme ainda nova e cobrindo uma cha
que,
ga mal cicatrizada, rasgou-se e o sangue ainda de
-01 pauperado cahia das lividas feridas.
Fugiram os mais fortes e os fracos ficaram á
mar.
mercê da crueldade dos algozes.
ente.
Quadro pungente offereciam esses infelizes a ge
plice
mer, emquanto concertavam os miseraveis trapos en
Que sanguentados que lhes cobriam a nudez.
A dôr das espaldeiradas é nenhuma á vista do
soffrimento moral que os acabrunha, da certeza de
宣言

par. que n'aquelle dia o jejum da familia será absoluto !


Manoel de Freitas foi tambem uma das victimas.
nea Assim mesmo manietado pela inanição, ergueu
rra! se, e antes que o ferro do soldado bruto o ferisse,
ms e elle estalou uma bofetada na face do primeiro que se
Tizes
The aproximou. Se tivesse uma arma teria aberto
caminho, mas inerme, teve de resignar-se á sorte dos
394 A FOME

companheiros , cahir tambem derribado por uma es


paldeirada que lhe vibrou no dorso um vigoroso mal
fazejo.
Dispersou-se a turma inteira . No logar do confli
cto apenas como testemunha d'aquella scena de can
nibalismo, ficaram trapos e manchas de sangue !
Freitas voltou a casa. A familia esperava-o com

a impaciencia de quem tem fome. Na cozinha fervia


uma panella d'agua em que devia ser escaldada a
carne do sul.
Filippa , acocorada junto ao fogo, cravava o olhar
demente nos tições roídos pela labareda.
Josepha e Carolina receberam o coronel á porta
da entrada. Elle vinha pallido como uma figura de
cêra. A agitação do espirito mostrava-se no rosto em
profundos sulcos que lhe alteravam as feições .
-Que tens, Manoel, que voltas tão contrariado ?
-Se tivesse morrido hontem teria sido feliz,
porque morria sem ter sido desfeiteado.
― - Papá... meu Deus? ensanguentado !

E Carolina olhava com toda piedade as costas do


velho.
Sim, minha filha, teu pae foi tambem uma das
victimas da sanha da soldadesca desbriada de nossa
terra !
Meu Deus ! Manoel, feriram -te ? deram mesmo
em cima das marcas das bexigas ; malvados ! disse Jo
sepha examinando as costas do marido.
Dá licença ? fallou á porta o padre Clemente .
Ah ! snr. padre, sempre nos acode em nossas
A FOME 395

afflicções ; seja bem vindo, disse Carolina indo recebel-o


aes e fazendo-o entrar .
mal ―― O que ha, minha filha ?
- - Papá que voltou da pedreira todo ferido !
onfli
- Coronel, D. Josepha, bom dia.
can - Bom dia, snr. padre Clemente, disse
Freitas.
!
-Oh! snr. padre, que malvadeza fizeram com o
com
meu marido, quasi o matam !
Ferria
- Como, minha filha ? !
da a
Veja que enorme panno de espada !
Que crueldade ! ... como e porque foi isso, co
olhar ronel ?
Nada mais que procurar viver de meu traba
22

porta lho.
ra de -Não houve causa a tamanha perversidade ?
0em -Nenhuma ! Seguia com meus companheiros
para a pedreira, quando fomos surprehendidos pela

cavallaria que nos espaldeirou !


feliz -Oh! senhor, isso é incrivel !
-Mas infelizmente é verdade.
Que malvados, snr. padre, papá não offende a
isde ninguem .
Sim, minha filha, os perversos atacam indis
das tinctamente, disse Clemente.
ossa -Este ferimento será perigoso ? perguntou Jo
sepha.
smo Não, basta applicar sobre elle pannos de vi
Jo nagre com agua fria, disse o padre .
-Não ha vinagre, nem com que compral-o, pon
nte. derou Carolina.
ssas 27
396 A FOME

-Não se mortifiquem por isso, minhas filhas ;


me sobraram hoje alguns tostões que lhes offereço de
muito boa vontade, disse Clemente entregando a Jo
sepha algumas moedas de nickel.
- - Agradecido.
-A jangada ! ... Bernardina ! ... vendida ! ...
corre ! ... o mar ! gritou do corredor Filippa, a quem
o som estranho d'aquellas vozes fôra acordar da de
mencia e chamar á sala para, pelo prisma do idiotis
mo, vêr aquella scena..
O padre despediu-se deixando á familia o neces
sario para passarem o dia.
filhas:
reçode
o aJo

ida !...
quem
dade
idiotis
XXIV

neces

Manoel de Freitas passou o dia triste e desalen


tado. A scena do espaldeiramento elle a via a todos
os instantes sem poder vingar-se ! As palavras con
soladoras de Clemente, os desvelos da esposa e da
filha não dissipavam a caliginosa noite em que pai
rava o seu espirito.
A idéa de vingança rompia frenetica da multidão
de pensamentos que a imaginação creava, como o
primeiro raio de luz nas trevas de uma noite de tor
menta.
Freitas acreditava que lhe haviam ultrajado a
honra, e o unico recurso legitimo de que dispunha,
era lavar com sangue a nodoa da affronta.
O sol levantou-se do leito de purpura e inundou
de luz o azulino espaço. O céo, como um plano de
*
398 A FOME

saphira, mirava-se vaidoso de sua belleza , no vasto


espelho do mar.
Freitas saudou de pé o novo dia . Tinha os olhos
cingidos de lividas olheiras e o rosto ainda humido
do suor da insomnia. Passou a noite inteira a olhar
a luz da vela, que esbatia as sombras dos objectos do
aposento com movimentos phantasticos.
Era dia e não havia pão em casa. A pequena es
mola do padre mal chegou para uma minguada re
feição .
O coronel lia um papel verde : era um cartão do
Gabinete Cearense de Leitura, á vista do qual lhe
seria entregue por ordem da Commissão Domicilia
ria a quantia de doze mil reis.
Havia mais de quatro mezes que Clemente o ti
nha dado a Freitas, mas o coronel ainda não tinha
se utilisado d'elle.
――― É uma boa esmola, mas eu jurei, por minha

honra, só recebel-a quando estivesse esgotado o ul


timo recurso, disse Freitas guardando a guia.
Josepha e Carolina vieram ter com elle.
Vaes aceitar a mensalidade do padre Clemen
te, Manoel ?
-Não, estava lendo o cartão e quando suppu
nha encontrar o meu nome achei um numero ! Acho
me forte, irei á pedreira.
――――――――――― Santo Deus, Manoel ! Queres-te expôr á ira
dos malvados ?!
-O cartão do Gabinete só me servirá quando 1
eu não dispozer mais de recurso algum.
A FOME 399

no vasto —Papá, não faça isso, não vá á pedreira ; olhe


que o podem encontrar !
Queres que fique aqui acovardado e vendo-te
os olhos
com fome ?
humido
-Não me queixarei.
a a olhar
-E Filippa poderá tambem jejuar?
ectosdo
Ella não diz o que sente, nada pede, não tem
vontade.
uena es
-Por isso mesmo, minha filha, é que devemos
uada re
cuidar d'ella. Não ha remedio senão ir ; se temes al
guma coisa, vai rezar por mim.
artão do
E Manoel de Freitas sahiu para a pedreira, Em
Qualthe
vez de seguir pela beira da praia, caminhava sobre
micili
as dunas da costa. O caminho por ahi era mais lon
go e penoso, porém era mais seguro, estava livre dos
te ot
malfeitores.
A praia estava deserta e soturna ; apenas se ou
via o canto monotono das vagas, que em saudosa
mi nha 1
toada espreguiçavam-se na costa em plena baixa
70ul
mar. Além, a ponta do Mucuripe, como uma espada
de gêlo, entrava de mar dentro.
Freitas tinha a pedreira debaixo de vista e admi
emen
rava-se de vêl-a deserta ! Algumas manchas de san
gue espalhadas á tôa pela praia o surprehendiam !
A pedreira já a poucos metros de distancia sur
Acho
gia das ondas como o dorso de um enorme jacaré.
Nem um retirante ! apenas dois jangadeiros conver
áin savam sentados nos tauassús das jangadas.
Freitas deixava o espirito vagar pelo magestoso
ando panorama que se desenrolava á sua frente. O olhar
400 A FOME

n'uma estagnação melancolica e a alma toda absor


ta n'uma meditação infinda ficariam , se o dialogo dos
pescadores não o chamasse á realidade da vida. Frei
tas ouviu-os com attenção .
- Malvados ! acabaram com a raça dos Cabugis.
Pobre gente, que vivia na paz de Deus traba
lhando para ganhar o sustento.
—- E os soldados vieram sós ?

Qual, o negocio foi de combinação. Ante-hon


tem veio a patrulha patrulhar não sei o que ; toma
ram cachaça e depois se haviam de ir cortil-a, come
çaram a provocar.
-Não atalhando o que vossê vai dizendo, foi
canna, mesmo porque antes do disturbio eu vi na
venda do Chico Piaba elles estarem tomando.
- -É como sem duvida que a rusga começou,
porque um d'elles faltou com o respeito á mulher
do Pedro Cabugi. Ella sahia da novena e o cabra
atravessou-se adiante e desauthorisou-a. O cabôco
lo, que não é molle, mandou - lhe o pau ; então tro
vejou cacete, tiniu facão e fechou-se o samba.
―――――-E foi tribusana feia ; eu vinha no morro alto
e já ouvia a trovoada.
-Apanharam que amolleceram. Os seis camara
das correram logo ; mas os dois que ficaram por mais

homens, sahiram amassados como genipapos, e tão


molles, que foram em rêdes para o hospital.
-Cabras de fama ! Nas primeiras pelouradas os
soldados ainda quizeram inchar na coronha, mas de
pois amonhecaram .
A FOME 401

―― E hontem como foi o samba ? Conte-me que


La absor
eu estava no mar.
logo des
-Uma malvadeza de mil diabos. O comman
da. Frei
dante do batalhão, que é uma féra, dizem por bôcas
pequenas, ficou injuriado com a sóva que os solda
Cabugis.
s traba dos levaram, e então escolheu no meio dos famana
zes da guerra do Paraguay vinte curibocas do olho
vermelho e mandou-se vingar.
— Crédo ! que entranhas de pintada !
ate-big
-Vieram os diabos, e logo em caminho tiraram
;toma
o couro dos retirantes que vinham buscar pedras, e
come
sem que nem p'ra que. O official, que os comman
dava, e que era tão bom como elles, ficou no Meirel
do, foi
les tomando um trago na casa da Rosa Fateira, e os
vina
bichos ganharam a praia.
Com mil diabos ! e não houve quem désse
Nepin um aviso ?
mulber
-O inspector do quarteirão, aquelle filho de cas
cabra
cavel, era quem podia avisar, mas estava mancom
abôco
munado com a patrulha.
o tro ―
-Que me diz ! O Estevão, que vivia de cama e
mesa com os Cabugis, fez isso ?
alto ――
- É como sem duvida. Poz-se á frente da pa
trulha e foi quem ensinou a casa d'elles. Os solda
nara dos entraram, arrastaram os pobres e os picaram
mais
a facão na beira da praia.
ta
-Que onças ! maus raios te partam, jararacas
de vereda.
805 -E o velho Cabugi ! fez cortar coração. Sahiu
da casinha, ajoelhou-se com a imagem do Senhor
402 A FOME

Christo na mão e pediu que não matassem seus fi


lhos. Ahi mesmo os malvados o atravessaram com
as espadas.
-Ah! diabos ! a ponta de minha faca se fez
para um caso d'esses . E vossês que fizeram ?
- Nada, homem, era a authoridade. E o Pedro

Cabugi, aquelle pescador de fama, cabra do mar,


com a mulher com a barriga á bôca para ter seu
bom successo d'ella.
- Mataram tambem ?
― Vinha encalhando a jangada do patrão e ain
da não tinha ferrado bem a vela, o inspector apon
tou para elle e os soldados avançaram, e em menos
de um minuto elle deu alma a Deus, varado pelas
espadas. A mulher sahiu gritando como douda e el
les por muito favor não a mataram, deram-lhe ape
nas dez espaldeiradas para ensino.
- Que malvados !

-Um d'elles ainda ameaçou-a de rasgar-lhe a


barriga e tirar o cabugisinho.
Freitas, depois de ouvir a historia da carnagem
no Mucuripe, voltou a casa.
seus fi
am com

se fer
a.

?
Pedro
Lo mar,
Cer seu

XXV

e am
apon
menos
pelas
eel
ape Manoel de Freitas vinha para casa triste e des
alentado, pensando no jejum da familia ; não sabia
como honradamente ganhar n'aquelle dia o pão. Pe

he dir esmolas pelas portas, isso o horrorisava ! Voltava


elle sentindo esse desconforto, que tanto abate o es
pirito na vida de infortunios, quando a alma sem as
crem
pirações e o coração sem esperanças amoldam-se ás
condições do meio, e deixam-se ficar em completa
acidia.
Caminhava o velho pensando n'um meio de tro
car o trabalho pelo pão e não encontrava. Havia só
mente o recurso da esmola, a do cartão verde do
Gabinete de Leitura. As necessidades talvez o obri
gassem a aceital-a. Seguia a passos largos, quando
movido de curiosidade parou em frente ao palacio da
404 A FOME

presidencia. A praça estava coalhada de povo ! Mais


de mil mulheres retirantes acotovelavam -se debaixo
das varandas do palacio do governo e gritando :
Queremos o nosso commissario , não queremos
outro ; se for demittido, ha barulho ; fecha-se o tem
po ! ...
Era uma verdadeira conspiração do sexo fragil
causada pela noticia da demissão do commissario
do abarracamento de . Este agente tinha expos
to á venda no mercado publico generos do governo,
e que foram apprehendidos pela policia, e d'ahi o boa
to de demissão. As retirantes instigadas por elle e
temendo o successor, que dizia elle ser um homem
de entranhas de féra e de proposito escolhido para
maltratal-as, levantaram-se e responderam a uma
VOZ :
― Viva o nosso santo commissario ! não sahirá !
vamos ao palacio !
E sahiram fazendo uma assoada infernal.
O presidente havia effectivamente dispensado os
serviços do commissario, unica pena ao estellionato
que tinha commettido ; mas vendo o ajuntamento, ce
deu á imposição das retirantes reconsiderando o acto,
o que elle proprio communicou-lhes da janella de seu
palacio.
As mulheres ouviram-no e voltaram ao abarraca
mento commentando o facto em vozes altas e mais
ou menos assim :
― Viva o nosso commissario ! o governo teve

medo da tribusana ! se não cede, havia rolo !


A FOME 405

poro!Mais Freitas, sciente da causa do ajuntamento, conti


se debato nuou seu caminho. Chegou a casa e o mesmo silen
Cando : cio, a mesma apathia. Nem Filippa denunciava pela
queremis palavra os desvarios de sua razão !
-se otem O coronel tirou da maca o cartão do Gabinete,
releu-o dez vezes e guardou-o no bolso da calça. Ia
sexo frac utilisar-se d'elle. Josepha animava-o a receber a men
mmissario salidade. Carolina fiel á sua promessa, se conservava

ha expos em silencio ; a fome a torturava. Branca como uma


govern estatua de cêra, sentava-se confronte a Filippa, que
ahi obu fitava-lhe um olhar demente.
or elle e Freitas sahiu para o Gabinete de Leitura. Depois
de atravessar algumas ruas, de andar mais de um

Lido para kilometro, chegou em frente ao edificio publico, onde


a uma por favor do governo funccionava a sociedade parti


cular Gabinete Cearense de Leitura.

sahira Não foi preciso que lhe dissessem que alli se


distribuiam os dinheiros do Estado. A agglomeração
dos retirantes sentados ao sol nos passeios das casas

Sado es e calçamento das ruas revelava a negligencia com


lionato que era feita alli a distribuição dos soccorros publi

nto, co cos. O zelo, a dedicação, a probidade era n'essas


oact commissões uma utopia ! A igualdade fugira enver
gonhada d'aquella atmosphera fratricida ! Voltava a
desen
época dos cartões, não com o arrojo com que fôra
iniciada, mas em escala sufficiente a produzir gran
Track
des damnos.
mas
Manoel de Freitas era portador de um cartão,
Pe

que arbitrava uma mensalidade de doze mil reis ao


numero 1:612. Aproximou-se de seus companheiros
406 A FOME

e indagou o que seria preciso fazer para ser despa


chado.
-Ha tres dias que aqui quaramos e nada ! en
tre lá que talvez seja mais feliz, disseram-lhe.
Freitas dirigiu-se ao portão com difficuldade ; to
dos queriam entrar ao mesmo tempo, acotovelavam
se, esmurravam-se, queixavam-se da falta de atten
ção dos empregados do Gabinete.
Uma grade de ferro separava os thesoureiros
pagadores, dos indigentes, e quatro soldados de ter
çado em punho garantiam a ordem. Algumas mulhe
res bem trajadas desfructavam a commodidade de
boas cadeiras na área ajardinada.
A physionomia respeitavel de Freitas fechada
pela fome não lhe deu o direito de preferencia. Já
ia perdendo a esperança de chegar a sua vez, quan
do foi chamado o seu numero. A grade foi aberta e
o coronel introduzido no salão.
-Sua guia? o recibo ? perguntou um dos paga
dores.
-- Aqui está o cartão, o recibo
não passei por
não ter dinheiro para comprar papel .
E o que fez dos doze mil reis do mez passado,
que não deixou um vintem ?
É a primeira vez que venho receber a mensa
lidade.
--
E o mez passado quem recebeu ?
-Ninguem.
E n'esse tempo quem estava de posse d'esta
guia?
A FOME 407

er despa Eu. Ha quatro mezes que a possuo .


―――― Sem receber?! está mentindo, velho ! ...

ada ! er O coronel Freitas nunca mentiu.


e. -Mente, sim, disse o director do Gabinete de
lade; fo pois de ter aberto a pagina onde estava escripturada
Telaram a guia n.º 1:612.
le atten -Os senhores podem negar o pagamento do
cartão, mas não me podem insultar.
oureiros — Mentiste, velho, está lançado no livro o paga
deter mento feito a Rosa Maria da Conceição, portadora
mulhe da guia n.º 1 :612, da quantia de doze mil reis e cujo
ade de recibo foi a rogo d'ella assignado por um dos empre
gados d'esta casa. E atreve-se a negar que mandou
echada a mulher ou a filha receber a mensalidade ?

cia. Já Então existem cartões falsos.

quan Quem deu-lhe esta guia ?


-
Derta e Não dê confiança a este canalha, rasgue a guia,
pois quem não precisou d'ella quatro mezes, póde
muito bem dispensal-a o resto da vida, disse o dire
pag
ctor com estupida arrogancia.
- Podem inutilisal-a, mas com isso não escon
ipt
dem o dolo, os estellionatos que se praticam aqui,
disse Freitas.
sada
-Soldados, lancem na rua este miseravel.
―――― Podem até me mandar assassinar, mas não
183.
podem duvidar de minha innocencia.
- Fóra, velho, nem mais um piò, disse-lhe um
soldado, pondo-lhe a mão no hombro.
-Não me toque, guarde distancia ; um soldado
ESTA
é um inferior.
408 A FOME

-- Conduzam para fóra este insolente, disse o di

rector carregando os sobrolhos grisalhos e dando ao


rosto aparvalhado uma ferocidade de besta, mas de
besta mofina.
―― Sahirei,
mas juro denunciar o que vai aqui
por dentro. Bandidos que saqueiam o Estado a titu
lo de leaes servidores da patria !
-Soldados, conduzam este miseravel para a ca
deia.
-Não me toquem, repito, não posso ser condu
zido por inferiores ; sou coronel da guarda nacional.
-- Condu
zam, que a farda que elle veste é de
mendigo.
Os soldados aproximaram-se com os refles em
punho. Freitas, exasperado de indignação, quiz resis
tir, mas pôde em tempo dominar a colera, obedeceu
e seguiu escoltado para a cadeia.
O povo, que estava agglomerado á porta do edi
ficio e que em parte havia presenciado as scenas que
se tinham passado, longe de apupar o coronel, rece
beu-o com saudações :
― Viva o coronel ! viva o velho honrado ! morra
a muamba ! fóra os muambeiros !
As manifestações da populaça chegaram aos ou
vidos do director, que, offendido em seu orgulho e
prosapia, e não podendo mandar prender a todos que
preguejavam, suspendeu o pagamento por quatro
dias, afim de castigal-os de sua audacia.
Elles commentavam o facto que dera logar á
prisão de Freitas :
A FOME 409


se o di Ora não haverá justiça n'esta terra ! O pobre
ndo ao vem receber sua mensalidade, não recebe e além
mas de d'isso ainda vai preso!
- -A muamba não se acaba mais ! ...

i aqui E como ha de acabar, se ella é filha da sêcca ? !



- E corre mais que o vapor !


a titu
- - Já anda do Crato a dentro !

a ca -E só sendo assim, poderão elles dar cem mil


reis por mez a gente rica de meia nos pés!
candy -Crédo ! malvados ! tiram dos pobres e dão a
ional quem não precisa !
20

-Elles hão de augmentar, permitta Deus, como


correia no fogo.
- E rasgaram a guia do velho?
S em
- Qual ! ficou inteira e tão verde como folha de
Tesis
coroatá.
lecen
―――
Servirá para pagar amas de leite para os filhos
dos compadres.
--- Estas gentes sabem de coisas ! ...
que
ece -E a filha da Rosa Preá não recebe aqui dez
mil reis para dar de mamar á filha de um homem

Orra de relogio ?!
- Isso é inventiva, não façam juizos temerarios.

--Inventiva o que ! e a graça é que ella tem ca


017
deira e é despachada logo..
ов
Manoel de Freitas seguia escoltado pela rua da
que
Palma ; tinha os olhos baixos e o semblante carrega
atro
do de indignação. Os soldados com os terçados nús
o acompanhavam silenciosos, os transeuntes olhavam
-j
no com indifferença e a canalha nunca respeitou tan
410 A FOME

to um preso. Ao passar em frente do passeio publico,


enfrentando com a rampa que vem da praia para a
cidade, encontraram-se com dois passageiros vindos
no paquete do sul, fundeado havia poucas horas.
Um dos passageiros, depois de ter encarado o
coronel, se dirigiu a elle :
-Coronel Freitas ?
- Edmundo !
-Meu amigo dr. Gervasio, coronel ! -Gervasio,
meu amigo coronel Freitas, disse Edmundo.
Comprimentaram-se e Edmundo perguntou aos
soldados :
-Á ordem de quem vai preso o coronel ?
―――――――――― Saberá v. s. que á ordem do director do
Gabinete Cearense de Leitura.
- Levam o mandado da authoridade?
Não senhor.
-A prisão é illegal. Iremos em primeiro logar
á presença do chefe de policia.
Os soldados levaram o preso acompanhado de
Silveira.
Mais tarde te procurarei no hotel, Gervasio,
disse Edmundo.
- Estimo que te saias bem.
- Ás tuas ordens.
--- Adeus.
blico,
ara a
indos
as.
ado o

Tasio XXVI

u a08

or do

O padre Clemente voltava uma noite dos abarra


camentos de retirantes, onde ia todos os dias prestar
aos infelizes os soccorros de seu ministerio. Tonifica
va-lhe a atonia da velhice prematura a paz da cons
ciencia, que nos arroubos ardentes da fé confortava-o
lo de
com a esperança de uma futura recompensa aos sa
crificios d'agora. Esperava-o como sempre a solidão
rasio
da cella, que, pobre como a habitação dos verdadei
ros apostolos do Christo, tinha as commodidades de
um horto, e tão confortavel era como o lar de qual
quer indigente. Dava-lhe claridade a pouca luz irra -
diada de um combustor da rua fronteiro á janella .
Era aquella pobreza a synthese da virtude .
Clemente era infatigavel apostolo da religião do
crucificado. O cançaço a extenuar-lhe os membros, a
28
412 A FOME

fadiga das longas horas a missionar os retirantes, as


victimas da secca, não lhe alteravam a placidez da
physionomia. Voltava sempre calmo e satisfeito, como
se tivesse provido a todas as necessidades da vida.
Era já noite quando se recolheu a casa e apenas
o estomago havia recebido uma unica e pequena re
feição !
A cella offerecia a solidão de todos os dias e a
imagem do crucificado em seu mutismo parecia rei
terar a Clemente a promessa sagrada aos que, como
elle, vêem na humanidade a sua familia.
O padre entrou e ajoelhou-se em frente do cruci
ficado com tanta reverencia, como se estivesse na
presença do proprio Deus, e orou . Era a humildade
e a fé na mais perfeita união aos pés da Divindade,
era a crença descortinando o infinito, rasgando o véo
que esconde o desconhecido , e vendo com os olhos da
fé o Creador, a quem eleva sublime preito . O som
d'aquelle hymno entoado por aquella alma de anjo,
devia echoar nos páramos celestes .
Clemente levantou-se commovido , com o olhar
angustiado de Christo e procurou o leito ; n'este mo
mento entrou no quarto um homem velho, e pergun
tou-lhe com respeito :
Posso trazer o jantar ?
-E temos alguma coisa, meu bom Constantino?
Sobrou com que fazer um prato.
Aceito a sua boa vontade.
O creado sahiu e voltou pouco tempo depois tra
zendo uma pequena refeição. A pobreza do jantar não
A FOME 413

tirantes, as era menor que a do leito, o qual constava de algu


mas taboas de pinho cobertas com um lençol de al
placiderdi
godão !
feito, come
Clemente serviu-se de metade da refeição, dei
es da vida
xando a Constantino tambem com que matar a
Ea e apenas
fome.
equenare
O creado retirou-se e o padre deu volta á chave
da porta que communicava o aposento com o interior
s dias ea
da casa. Ficando incommunicavel, tirou da gaveta
Darecia re
d'uma mesa uma carteira e sentou-se na cama.
que,com
Tinha nas mãos o necessario para tirar-lhe o
somno toda aquella noite. Era uma questão grave a
docrue
decidir e cuja decisão seria do mundo ignorada, mas
tivesse na
por isso mesmo deveria ser muito justa.
A carteira era a de Simeão de Arruda, perdida
ivindad
na noite da orgia.
ndooré
O padre, depois de examinar todos os papeis, en
Solhosd
tregou-se a profundas meditações. Arruda era um
0.0.s
grande criminoso e como tal merecia ser levado aos
de agi
tribunaes, entregue á justiça. As cartas do thesourei
ro provavam as delapidações que elle havia feito dos
dinheiros do Estado, a sua publicação entretanto im
estem
portava a violação do sigillo da confissão.
eperga Clemente ficou de posse de todos aquelles segre
dos no confessionario.

i Elle tirára da mala de Quiteria do Cabo a car


tart
teira com os documentos e dinheiro, e era necessario
dar um destino áquella quantia que não era sua.
Restituil-a a Simeão, nunca ; entregal-a ao governo,
OISB
seria preciso dizer a verdade sobre a procedencia, e
ntar *
414 A FOME

isso se tornaria um crime ainda maior - o abuso do


confessionario . Doal-a ás victimas da sêcca tambem
não ; não lhe ficava bem doar o que não lhe perten
cia.
Clemente pensava em tudo isso quando lhe bate
ram á porta.
Está em casa o snr. padre ?
―- Sim, senhor.
E recolhendo a carteira á gaveta dirigiu-se para
a porta.
―――
Alguma confissão, meu filho ? perguntou sem
dar volta á chave.
-É Simeão de Arruda que deseja aconselhar-se
ma
com v. rev.
Clemente presentiu uma cilada e respondeu :
-Se é em artigo de morte estou prompto, ao
contrario me queira desculpar ; cheguei do abarraca
mento ha pouco tempo e estou bastante fatigado.
-Póde abrir, snr. padre, é dever do sacerdote
dar conselhos a qualquer hora do dia ou da noite.
-Se não está em perigo de vida, volte ámanhã ao
romper do dia, que me encontrará prompto a ouvil-0.
-Voltarei .
O padre voltou ao leito .
Arruda afastou- se da porta e se incorporou a
tres individuos que o tinham acompanhado e guarda
vam distancia. Seguiram rua fóra conversando :
-O diabo do padre é sabido, disse o commis
sario.
-E v. s.a paciente de mais.
A FOME 415

o abuso do
Com as suas posses eu não aguentava que
ca tambem elle me estivesse atubibando.
-
The perter Nós estavamos promptos ao primeiro signal.
- Entravamos de casa dentro e levavamos tudo.
o The bate -
O que não se pôde fazer hoje, se faz ámanhã,
disse Arruda.
— E elle nem desconfiava de v. s.ª...
-Podia desconfiar.
iu-se para -Qual, snr. commissario, v. s.ª entrava e quan
do estivessem entretidos conversando, nós rebentava
ntousem mos de casa dentro.
---
- O padre tinha medo, e v. s.a fingia-se desespe
selhar rado com a falta de respeito, e se botava para nós e
luctava.
deu: -E até para o negocio ficar mais confeitado nos
mpto, ar mettia o pau á vontade.
barrac -Um de nós se atracava com v. s.a, emquanto

cada os outros carregavam o bahú, a cama, a mesa do pa


e
acerdot dre.
lanoite ――― -Era bem feito, mas o diabo cochichou com elle,

anhãa disse Arruda.

our-4 -Ámanhã nós voltamos e não precisamos mais


de v. s. Sabemos da casa e havemos de vir chamal-o
para uma confissão.
--
oran3 E quando elle abrir a porta, nós limpamos-lhe
t a casa.
uan

Sim, mas no dia que eu marcar, disse o com
):
s
mumi missario.
Será.
-Mas não offendam o padre.
416 A FOME

- Crédo ! por dinheiro nenhum .


- Se fazemos isso , é para salvar a honra de
V. s.a
-E será motivo de excommunhão ?
Qual, só ficariam excommungados se dessem
no padre.
E o commissario, separando-se dos companheiros,
seguiu para casa.
Clemente não pensou na visita de Simeão e mui
to menos na cilada, de que escapára. Era preciso de
cidir a questão do dinheiro. Meditou e meditou mui
to, e depois proferiu a sentença :
-Seja o dinheiro distribuido com os famintos,
reparta-se elle igualmente com os necessitados ; a
obra da caridade será completa e o sigillo da confis
são não será violado.
honra de

dessem

anheiros
XXVII
демо
ecisade
oumui

mintes
adis:
Aos primeiros clarões do dia o padre Clemente
cons
levantava-se do leito, sempre disposto a continuar a
ardua tarefa de seu ministerio.
Simeão de Arruda o encontrou de sahida para os
abarracamentos.
-Bom dia, rev.mo padre.
Bom dia, snr. Arruda.
――――- Esta noite vim interrompel-o em suas orações ;
4
estava com o espirito enfermo e desejava o conforto
de suas palavras.
―――――――――
Senti não poder prestar-lhe attenção ; acabava
de chegar dos abarracamentos e precisava de repouso.
-E verdade, snr. padre, que está em seu po
der uma carteira com dinheiro e documentos que
me pertencem ?
Sim, snr. Arruda.
418 A FOME

E não pretende restituir-m'a?


- - Não , senhor.
―― E acha justo e regular este seu procedimento?
-Perfeitamente.
-E porque ?
- Porque o dinheiro não lhe pertence.

E que destino pretende dar ao meu dinheiro ?
- Distribuil-o com os famintos ; restituil-o ás
victimas da sêcca, seus legitimos donos .
- E em
que v. rev.ma firma-se para negar-me
a posse d'essa quantia ?
-Permitta-me tambem que o interrogue. Com
que direito chama seu o dinheiro do Estado ? Com
que direito reclama a posse de uma propriedade, que
com sua propria assignatura affirma não lhe perten
cer ? Quer que continue ?
――― O dinheiro que estava na carteira decerto
não me pertence ; estava de posse d'elle sómente o
tempo necessario para distribuil-o com os retirantes.
-Não está isso escripto nas cartas do thesou
reiro.
— E como v. rev.ma obteve esses papeis
?
-E como perdeu-os ? em que logar, não se re
corda ?
— Na rua.
- N'uma orgia.
―― Um crime enorme commette v. rev.ma violan
do o sigillo da confissão !
- Não, eu repito uma historia que o senhor con
tou-me.
A FOME 419

Permitta dizer-lhe que mente !


-Já que muito ingrata tem a memoria, permit
edimento? ta que me justifique lembrando-lhe um facto muito
recente. Recorda-se da tarde em que encontrei-o
n'uma casa abandonada ? Quem, horrorisado de si
proprio, tremulo, hirto, proferia o nome de Victori
dinheine na? Quem fugia diante do punhal de Edmundo ?
tuil-o as Quem implorava a protecção da feiticeira, offerecen
do-lhe rios de dinheiro pela honra de Carolina ?
negar-me Basta, snr. padre, distribua o dinheiro com
os famintos, mas me entregue os documentos.

ue.Com -Ainda é cedo ; ficam em meu poder até que o


senhor se corrija .
?Coa
Em nome de Deus dê-me os papeis, snr.
ade, qu
padre .
perter
-Não ; de posse d'elles, eu tenho um freio a
ecerte seus desvarios. Não receie que sirvam de arma á vin

Tenteo gança, que venham a cahir em poder de outro. No

rantes dia em que boas razões me convencerem de sua re


1
generação, lh'os restituire .
Leson
Então não me envergonhará ?
Não.
Arruda retirou-se completamente desorientado.
Sere
Clemente tirou da carteira do commissario o di
nheiro, que importava n'um conto e duzentos mil
reis. Dava para soccorrer a dez familias com a men
salidade de dez mil reis e por espaço de um anno.
O padre, acostumado a visitar diariamente os do
micilios dos necessitados e conhecedor de suas pri
vações, levaria perfeitamente bem a esmola aos que
420 A FOME

mais precisassem d'ella. Tirou da carteira a quantia


para dez mensalidades e foi cumprir fielmente a sen
tença que proferira na solidão da cella.
Clemente deixára Freitas doente e apenas alguns
tostões lhe dera, para com a familia se alimentar.
Seria o coronel um dos primeiros soccorridos.
A porta da entrada estava cerrada ; o padre fez
se annunciar com algumas palmas, que Carolina ou
vindo veio recebel-o .
A moça estava livida como uma figura de mar
fim. Parecia que a fome havia tragado com avidez
famelica todos os globulos vermelhos do sangue ar
terial. A tristeza lhe amortecia o olhar e n'aquella
dôce languidez da vida que desfallece á mingua de
seiva, de forças , estendeu a mão tremula ao sacerdo
te. Aquelle desalento havia feito-lhe realçar mais
belleza !
Clemente fitou-a e sentiu deleital-o a morbideza
d'aquella carnação feminina em contacto com a sua
mão. Fitou-a mais e, sem que elle o quizesse, os tra
ços correctos d'aquelle formoso rosto de mulher pas
saram das retinas ao coração. Haviam impressionado
a alma do homem sem attender o voto do padre !
Clemente sentiu que o olhar desalentado de Carolina
n'um languido esmorecimento dos sentidos havia-lhe
feito mal.
Fechou os olhos para não vêl- a, mas embalde ;
a imagem sem que elle o presentisse, ou quizesse,
dos olhos passára á alma !
Clemente era forte e virtuoso. Percebeu a tenta
A FOME 421

aa quantia ção e pôde em tempo dominar-se, matar aquelle


ente asen desejo da carne, e fiel ao seu voto, suffocar os senti
mentos que podiam fazel-o perjuro. Era preciso en
nas alguns tretanto evitar a estrella que lhe dardejava n'alma
alimentar raios tão fortes e deslumbrantes. Continuar a fital-a

los. era expôr-se a cahir ; a tentação cresceria á custa


padrefar dos escrupulos da consciencia, que facilmente se
arolina or submetteria a todos os caprichos da carne.
O padre, conhecedor do espirito humano, temia
de mar mais a sua fraqueza do que confiava em sua virtude.
om arila Era preciso fugir, procurar no trabalho, na mortifica
Sanguear ção apagar os ultimos traços da imagem que lhe ha
n'aquells viam ficado dentro d'alma. Sahir precipitadamente
unguade sem deixar a esmola, acovardar-se, submetter-se á
sacen vontade da besta que pretendia dominar o homem e
maisa subjugal-o, era um jugo tremendo e ao qual o cara
cter de Clemente não se sujeitaria sem resistir muito.
der
Vorbil -Chame sua mãe, minha filha, disse o padre.
m asu O sacerdote por um supremo esforço havia trium
ostre phado dos botes que á sua virtude atirava sua ani

Therpa malidade. Era agora sómente o apostolo de Christo,



SSTÓR o apostolo sublime da caridade que procurava o des
e
Pad valido para soccorrel-o e não para ultrajal-o, para
l y
Caro profanar-lhe a innocencia a preço de beneficio.
Carolina entrou e o padre já não pensava em
n!
sua belleza, mas na fome que roía-lhe as entranhas !
ball Clemente tirou do bolso dez mil reis e esperou Jo
T sepha para lhe dar a mensalidade.
IDEN
Freitas entrou n'essa occasião com Edmundo.
O coronel apresentou ao padre o seu amigo.
422 A FOME

Josepha e Carolina vieram á sala suppondo achar


se ahi sómente o sacerdote. Agradavel surpreza !
Edmundo se aproximou d'ellas e saudou-as com
bondade e respeito.
Carolina experimentou uma sensação que se con
fundia n'um mixto de alegria e surpreza, e viu- se ro
deada de todas as suas virentes esperanças .
Freitas e Josepha liam em silencio o que estava
se passando no coração da filha.
Edmundo se inebriava no gozo ineffavel de seus
pensamentos, nos desejos de noivo. Acariciava as
imagens louras que se succediam de instante a ins
tante na mente incendida pelas chammas do primei
ro amor. Entre os sonhos côr de rosa, de quando
em vez um pesadelo ; o odio e a vingança ao com
missario, estes sentimentos lhe assaltavam o espirito,
e no meio das illusões que o deleitavam, pareciam
.
abysmos profundos e terrorosos alumiados pelo sol,
que de quando em vez scintillava e uma nuvem lhe
escondia o disco luminoso.
Clemente guardava com toda piedade nos sacra
rios da alma as impressões de todas aquellas sce
nas.
Passára a tempestade. Foi um momento de allu
cinação na vida do padre, um instante de amor, de
adoração na vida do homem.
-Foi ao Gabinete, coronel ?
______ Sim, snr. padre, e muito mal succedido. Os

dias para mim parece que estão sendo aziagos.


――――― Então não recebeu a mensalidade ?
A FOME 423

-Negaram o pagamento, e como reclamei-o, fui


ndo achar
preso.
surpreza! - Prenderam-no ?!
Du-as com — E se não fosse o snr. Edmundo, teria ido á
cadeia e lá ficado até quando quizessem os meus se
le se con
nhores.
viu-sero
-Nunca vi tão grande arbitrariedade, disse
Edmundo.
e estara
-Então não chegou a ser recolhido ? perguntou
o padre.
de seus ―――
O chefe de policia teve o bom senso de pôl-o
ciara as
em liberdade, não é duro de cabeça como a cavalga
e ains
dura que dirige o Gabinete, disse Edmundo.
prime Os commissarios têm abusado muito, disse
o
quand Clemente.
0 com --- E eu que o diga. Estive expatriado mais de
spirito, um anno, graças á infamia e perversidade de um
reciam
d'estes agentes do governo, mas jurei nas agonias
ई 3

lo sol de meu tormento, na solidão de meu desterro, vin


in the gar-me e vingar-me de um modo terrivel.
-
O perdão é nobre e a vingança é vil, snr.
Sacra
-905 Edmundo. A religião manda perdoar as faltas de
nossos semelhantes, para que Deus nos perdôe as
nossas, ponderou Clemente.
all ――― A justiça pune o criminoso do mesmo modo
de que a religião condemna o culpado a penas eternas .
--Nada de odios e de paixões quando tivermos
de julgar os outros, disse o sacerdote.
05 -Minha sentença não é obra do momento, não ;
a consciencia ditou-a e eu meditei longos mezes, e
424 A FOME

cada dia que passava eu a conhecia mais justa. Não


é uma vingança ; é uma punição .
-Tenho de ir aos abarracamentos e não dispon
do de mais tempo agora, peço - lhe, snr. Edmundo,
o favor de suspender o golpe sobre quem quer que
deseje ferir até que conferencie commigo, o que pode
rá ser quando quizer em nossa casa á rua de ……….
n.º .... das cinco ás oito da manhã e das seis ás
nove da noite.
- Ámanhã o procurarei.
Clemente sahiu para os abarracamentos deixando
na despedida entre as mãos de Josepha a esmola. O
modo de dal-a não passou desapercebido a Edmundo,
que, depois que o sacerdote retirou- se, disse a Frei
tas :
Deixa o obolo da caridade como manda Chris
to. Não pertence á raça terrivel dos impostores que
fazem alarde do beneficio ; não é dos que mettem a
mão no bolso para tirar a esmola ao mesmo tempo
que põem a trombeta na bôca para denuncial-a.
- Achamo-nos com elle á hora angustiada das
provações mais crueis ! Encontrou-nos enfermos e
abandonados, e nos recolheu ao hospital ; achou-nos
ao tempo e nos abrigou, disse o coronel.
-Verdadeiro apostolo do crucificado !
- É o nosso bemfeitor e amigo, disse Josepha.

Carolina precisava estar só ; as impressões abala


ram-lhe muito os nervos, e sentindo necessidade de
chorar se recolheu ao quarto.
Edmundo seguiu-a com a vista , e cada vez mais
A FOME 425

justa. N apaixonado por ella, sem dominar-se se dirigiu a Frei


tas :

não disper -Meu amigo, ha muitos annos que meu coração


Edmund vive do amor que tem a sua filha ; a sorte fez que
quer que nos encontrassemos n'um terreno menos accidentado,

quepol e o destino nos aproximou. Se meu caracter e con


uade.... ducta não lhe merecem censura, eu peço a mão de
D. Carolina.
as ses
A moça havia chorado, mas de olhos enxutos já
voltava á sala ignorando o que se estava passando.
deisand -Ousei, D. Carolina, sem consultar a sua opi

esmola nião, pedil-a em casamento. O coração não se domi


Edmark na quando sentimentos ardentes vibram as suas mais
intimas fibras. Abro em suas mãos a primeira pagina
a Fr
do livro de minha vida, abençôe a minha aspiração
de tantos annos e eu serei feliz.
JaChi
Carolina ouviu as palavras de Edmundo com os
toresque
olhos fitos no chão. Irradiaram-se-lhe n'alma os cla
ettemi
rões de uma nova aurora. O silencio foi a resposta á
o temp
supplica de Silveira, mas não um silencio dos que
l-a
Tadade nada dizem, não ; a palavra foi substituida pela ex
pressão de um olhar, que, retemperado no estreito
rmos
espaço de um quadro no ladrilho, ergueu-se altivo e
how-me
nobre e fitou-se em Edmundo, que comprehendeu
n'aquelle casto mutismo o amor que illuminava a
alma da virgem.
osephs
Freitas assistia commovido áquella scena. Devia
alal
sanccionar as aspirações do amigo, os desejos da filha,
ade& e fallou :
――――
Sejam abençoadas as vossas affeições, meus
m
426 A FOME

filhos. Deus queira cobrir de felicidades a vossa união,


amparar os vossos passos no tortuoso e difficil cami
nho da vida.
A voz do coronel, grave como a consciencia, ca
lou-se e tudo voltou ao silencio. O futuro, mixto de
duvidas e incertezas, estreitava no circulo da imagi
nação os pensamentos de todos que alli estavam. To
dos queriam devassar o que só é permittido ao tem
po, excepto Filippa que, roída de fome e sem ser pre
sentida, viera collocar-se á porta do corredor e expri
mia por palavras a esmo a necessidade que tinha de
comer :
-Foi no mar ! ... Bernardina ! ... O homem ! ...
a Jangada ! ... foge ! ...
As palavras da louca arrancaram o grupo áquella
profunda meditação . Fitaram-na e Edmundo pergun
tou :
Filippa, a sua escrava, coronel ?
Hoje louca e liberta !
Edmundo tudo comprehendeu, e sem proferir
mais palavra, se despediu e seguiu para o hotel.
Tossa una
ifficil cam

ciencia,
mixtode

aram.T
do ao tem
m serp
or eexpr. XXVIII
etinhade

voaquella
penge
Edmundo seguia pensativo. As emoções por que
passára, actuavam-lhe ainda no espirito, encarcerando
em apertado circulo a imaginação exaltada.
ni Chegára á patria e não tivera tempo de saudar
profe
o céo do torrão natal ! A situação em que encontrou
te.l
Freitas, absorveu o tempo destinado á contemplação
de sua terra, depois de um desterro de quasi dois
annos !
O caracter de Edmundo se retemperou mais no
cadinho das provações. Desembarcado do vapor Per
nambuco na inhospita ilha do Pina, no Recife, achou
se entregue á miseria e sómente á miseria, rodeado
de mais de quatrocentos companheiros de infortunio,
maltrapilhos e famintos ! Emquanto nas aguas do
29
428 A FOME

Ceará lançavam-se todos os dias os generos que apo


dreciam nos celleiros do governo, os retirantes eram
forçados a sahir da provincia. A ilha do Pina, desti
nada para alojamento d'esses malaventurados, era
muda testemunha de scenas pungentes .
Não era o calor do sol durante o dia, a humida
de ao relento da noite, a ração insufficiente e atirada
de má vontade , as cisternas trancadas aos que tinham
sêde, os soffrimentos, as privações, não ; por cumulo
de crueldade eram o escarneo, o motejo a amargurar
lhes a existencia já tão depauperada de conforto, de
paz, de felicidade !
Edmundo achou-se envolvido n'essa onda de in
felizes e sujeito tambem aos mais atrozes soffrimen
tos. Quatro dias depois de sua chegada ao deposito,
appareceu alli um senhor de engenho da Escada, ho
mem de meia idade, de maneiras bruscas, que vinha
observar os retirantes, afim de escolher alguns para
empregar na lavoura. Mal avisado andou o agricul
tor ; encontrou-se com esqueletos animados, achou-se
frente a frente com a miseria, que, como uma panthe
ra, cravava as garras no coração d'aquella pobre gente.
O senhor de engenho ia retirar-se quando viu
Edmundo . A presença agradavel do moço despertou
lhe a attenção e não demorou-se em convidal-o para
seu empregado.
Qualquer proposta lhe seria vantajosa. Edmundo
acompanhou o agricultor ao engenho e entregou-se aos
seus serviços com a dedicação, a solicitude do escra
visado que trabalha pela liberdade. Longo foi o tempo
A FOME 429

do degredo. E que somma de sacrificios não lhe cus


eros que ap
irantes eram tou ! além das horas amargas de saudades da patria,

Pina, dest o testemunho de scenas repugnantes de escravidão !

turados, e O tronco, a gargalheira, o carro, a fornalha, supplicios


infligidos pelos desalmados que chamavam sua pro
ahumil priedade a outro homem, traziam-no em um estado
nteeatial afflictivo ! A nostalgia minava-lhe a alma, todos os
gozos valiam menos do que a idéa de voltar ao torrão
quetinha
porcomp natal. Em troca de tantos sacrificios pôde alcançar o
preço do resgate. A obra estava completa.
amargu
oc nforteé Silveira apresentou-se ao senhor de engenho e
disse-lhe que deixava a casa, para regressar ao
Ceará.
ondade
e O agricultor fez-lhe propostas vantajosas, para que
Ssofrim
elle continuasse, mas Edmundo tudo recusou e par
ao depist
a tiu para o Recife. Chegando áquella capital tomou
Escad
passagem para a Fortaleza. O dia da sahida do pa
quer
quete foi para Silveira de completa alegria ! Os pri
algunspar
meiros passos da escada do navio foram como os do
gm
naufrago, que, depois de luctar muitas horas com as
&achr
r ondas, pisa terra firme!
mapa
A felicidade tem caprichos como a desgraça,
Polre
Edmundo chegava á idade de ouro. A bordo estava
uan preparada para elle uma agradavel surpreza : um
desper
collega de collegio era tambem passageiro do vapor
que elle ia tomar. Encontraram-se na camara, conhe
ceram-se e um apertado abraço e estas palavras :
Edg Edmundo !
gons Gervasio !
does
e Havia dez annos que não se viam. Os seus pen
diot *
430 A FOME

samentos voltaram-se immediatamente para o passa


do e as recordações dos dias de collegio os absorvia.
As sabbatinas, os sabbados que precediam os domin
gos de sahida, o dia de ferias, os artigos do periodi
co, as pilherias do gaiato da classe, emfim tudo recor
daram em um instante. Elles não cessavam de se
olhar, achavam as physionomias pouco differentes,
apenas a barba e o corpo mais desenvolvido .
Edmundo contou a Gervasio sua historia e rece
beu d'elle a promessa de empregal-o bem, logo que
chegassem .
Edmundo chegou ao hotel onde Gervasio o espe
rava com uma boa noticia. Tinha obtido o emprego.
Ao dr. Gervasio, despachado juiz de direito para uma
das primeiras comarcas da provincia e amigo da si
tuação, era impossivel que o presidente faltasse, não
satisfazendo um pedido, embora nas repartições não
houvesse mais uma vaga. A portaria estava assignada
e Edmundo da Silveira feito empregado publico e com
bons vencimentos.
- Agradeço-te do coração a collocação que aca
bas de obter para mim, mas talvez não me venha a
servir.
▬▬▬▬▬▬▬▬ Como assim ?
―――- Tenho que saldar uma divida de honra e sahi

rei da lucta para a cadeia ou para o cemiterio.


Estás louco ?
Ainda mais que louco , desesperado ! ...
-Não te comprehendo .
-Contei-te minha historia. Jurei castigar o per
A FOME 431

e para opass verso, que me atraiçoou, matando-o logo que desem


io os absur barcasse aqui.
----E Carolina ?
liam osdomi
-- Hoje minha noiva,
os do perif pois pedi-a.
Tua noiva ? ! ...
im tud
ssaram de - Fizemos, ha pouco, os nossos esponsaes.
s
co differente -Ficará viuva antes do casamento, não ?
-
Iride Ah! Gervasio, o destino continúa a perseguir
storia ere me. Já não tenho mais forças para luctar ! O amor

m, logo f e o dever batem-se em duello de morte e do qual


não sei o termo ! ...
Despreza o covarde que te offendeu, esquece
rasio
Oempres a villeza de teu inimigo pequenino e terás-te elevado.
-Nunca; prefiro a morte. O meu desejo de vin
topara
gança é hoje uma necessidade, uma allucinação do
migo dir
espirito.
s -E Carolina, Edmundo ?
rtive ai
mp
asste -Sim, ella, a quem ha pouco prometti um fu
turo, morrerá de dôr !
licoecu
— Se quizeres. Por seu amor, por sua paz, por

sua felicidade, esquece a offensa ; ao contrario serás


que
i um tresloucado. Fazer esponsaes quando se tem em
renh
vista commetter um crime, só se explica por um des
arranjo mental !
Não posso perdoar.
esub
Serás um assassino.
10.
-Um assassino, não !
-Um assassino, sim. A sociedade te apontará
como o homem que matou sem ser em defeza
propria ; te condemnará, porque não tens direito de

30%
432 A FOME

tirar a vida de outrem ; te accusará como o assassino


que dois annos premeditou o crime!
- A sociedade puniu o crime de meu algoz ? ou
viu os meus gemidos no degredo ? escutou o pranto
que derramei longe da patria ? Não, ella nada ouviu
de meus lamentos, agora seja tambem cega, que vou
punir um criminoso .
――――
Querias que a justiça entrasse no conhecimen
to de uma offensa toda particular ?
-
-E para que ? Para escarnecerem de mim?
Não ; ha offensas que não se levam ao publico antes
de se terem lavado em sangue .
- Medita bem esta noite
ámanhã me dirás se
persistes em ser um assassino.
-Boa noite , Edmundo.
-Boa noite, Gervasio.
á como oassas
‫اد‬
lemen alg
escutou opr
ella nadaori
em cega, que

?no conhecime

Prem de min
XXIX
to publico ants

ha medir

Simeão de Arruda estava enfermo. Os membros


inferiores pesavam-lhe como chumbo, uma inappeten
cia invencivel obrigava-o a rejeitar toda sorte de ali
mentação, emquanto o estomago parecia digerir uma
montanha de ferro. Depois da ultima visita ao padre
Clemente, os soffrimentos augmentaram. A molestia
havia collado diante dos olhos do commissario um
quadro sombrio, tinha-lhe encarcerado o espirito no
escuro circulo da tristeza. Tentava fugir dos phantas
mas que o perseguiam, mas elles eram o producto
de um estado morbido, que cada vez mais se accen
tuava.
A voz de Victorina chorando a deshonra, o deses
pero de Edmundo cobrindo-o de maldições no de
434 A FOME

posito de retirantes da ilha do Pina, soavam-lhe a


todos os instantes nos ouvidos. O conforto suave da
familia, o recurso da sciencia não lhe minoravam o
tormento.
As funcções do cerebro a doença havia mais ou
menos pervertido. Os erros do commissario, como
sombras pavorosas, passavam incessantemente pela
imaginação, e a consciencia implacavel atirava o re
morso, esfaimado abutre, para lhe dilacerar o co
ração.
Arruda não encontrava nas paginas do livro in
timo de sua vida registrado um acto bom ! Tudo o
accusava, tudo se erguia para esmagal-o ! Queria um
conforto, um lenitivo, e a propria consciencia aponta
va-lhe as faltas ! Na agonia de seu abandono moral,
nada o confortava ! Uma noite, depois de ter- se de
batido nas angustias da insomnia, Arruda chorou ! A
idéa de uma reconciliação , não com a sociedade, por
quanto talvez não fosse mais possivel, mas com Deus,
assaltou-lhe o espirito, como o unico recurso legitimo
que lhe restava.
Precisava de um medianeiro entre si e a Divin
dade, de quem o ajudasse a vencer os obstaculos que
lhe vedavam o caminho. Quem o auxiliaria , pensava
elle, quando de repente uma imagem desenhou-se-lhe
na imaginação : era a figura respeitavel do padre Cle
mente. Arruda cobriu o rosto com as mãos e chorou .
Pela manhã levantou-se a custo e procurou a casa
do sacerdote . Caminhava com difficuldade, os passos
eram vagarosos e uma dyspnéa afflictiva opprimia-lhe
A FOME 435

Soaram-he o peito. Só um esforço supremo fazia com que ven


rto suare da cesse a distancia que o separava da casa de Cle
minoraramo mente.
Depois de penosos sacrificios, chegou ao almejado
via mais on porto.

sario, com A porta do padre já estava aberta e elle prepa


rado para continuar a ardua tarefa.
mente pel
firara or Simeão a custo conseguiu transpôr o limiar da
Cerar oa porta e cahiu extenuado em uma cadeira.
O padre lançou-lhe um olhar commovido e se

To limi aproximou d'elle.


- O que tem, snr. Arruda ?
n!Tudo
ueria um O commissario estava quasi desfallecido. Banha
va-lhe o rosto o suor gelado da vertigem. A dys
a speat
no mor pnéa augmentava alimentada pela cinta beriberica,
que, como um espartilho de ferro, constringia-lhe o
Tersed
thorax ! Os pulmões pouco se dilatavam, embora a
Zoria!!
boca aberta procurasse enchel-os de ar ! O beriberi
tade,par
havia dias traiçoeiramente destruia aquelle organis
Deas
mo, e agora com marcha accelerada completava a
egitime
obra. Triumphava a legião dos infinitamente peque
nos !
Deri
Arruda quasi não podia mais fallar. Com grande
esforço disse ao padre :
ensara
-
Estou... ás... por... tas... da... mor... te...
me... per.... doe... te... nha... pena... de...
Cl mim...
n
Moro
Clemente, penalisado, ajoelhou-se ao lado do en
CART
fermo. Era um desgraçado que se estorcia nas ago
nias da doença e pedia protecção. Prestou-lhe os min
436 A FOME

guados recursos de sua pobreza e os soccorros espiri


"
tuaes .
A molestia progredia de um modo incrivel ; o en
fermo já não podia estar recostado á cadeira. Com os
olhos a saltar das orbitas, quasi asphyxiado, n'uma
anciedade mortal, o commissario sentia que lhe es
magavam o coração entre dois cylindros de ferro.
O padre conheceu que Arruda estava ás portas
da morte. Não havia duvida ; elle era um moribundo
e a familia ignorava o seu estado .
Clemente, desejando que a mulher e filhos do en
fermo lhe assistissem aos ultimos momentos de vida,
deixou o creado velando á cabeceira do commissario
e sahiu apressado.
Edmundo da Silveira levou a noite toda a pensar.
Pela manhã tinha os olhos pisados pela insomnia e
o coração mortificado pelo desespero. As palavras de
Gervasio nada lhe influiram no animo. Fiel á pro
messa, antes de castigar Simeão de Arruda, foi á
casa do padre Clemente conferenciar com elle.
Parou á porta do sacerdote e viu estendida na
calçada uma retirante. A immobilidade do corpo, al
gumas manchas de sangue proximas a ella, chama
ram sua attenção .
Silveira aproximou-se mais ; a infeliz tinha o rosto
coberto com a ponta do rôto e immundo lençol. Des
cobriu-o e quasi viu sómente uma caveira !
Que faz aqui, mulher ?
A desgraçada respondeu a custo, mostrando uma
creança recemnascida.
A FOME 437

orros espiri Baptise, para não morrer pagão.


Aquella infeliz acabava de ser mãe na rua, ex
crivel;o posta como uma cadella sem dono.
ira. Comes Edmundo a tomou nos braços e entrou na casa
ado, n do padre .
- Dá licença, snr. padre Clemente ?
quelhees
e ferro. Constantino ficou surprehendido com a visita, em

ásportas quanto Arruda, reconhecendo Silveira, pôz as mãos em


moriband attitude de supplica, antes que o ferisse o raio de sua
colera.

lhosdo er Edmundo agasalhou a retirante e o filho na cama


osde ni do padre, e, quando voltou-se para interrogar o crea
i do, reconheceu o commissario :
mmissar
-Miseravel! Eis-nos emfim face a face ! ...
E marchava para Simeão.
apensat
nsomnia -O que é isso, senhor?! Pretenderá porventu
ra espancar um moribundo ?! Se não respeita o en
larras
fermo, ao menos guarde o decoro devido á habitação
Tel &por
de um justo, disse Constantino se collocando em
frente de Edmundo.
elle
-Ia privar-me de um gozo infinito acabando
ndida
com a corrente de crimes que te foi a vida. Ignora
orp,o
m va que estavas moribundo, miseravel ! Apraz-me vêr
cha
te agonisar ! De cada um dos teus estertores eu te
rei um contentamento, pois é infindo o odio que te
90
voto. E tens as mãos supplices ! ... A quem pedes
CalDe
compaixão ?! A mim ?! Responde tu mesmo, infame,
se eu posso commover-me com tuas desgraças ! Per
gunta ao teu coração se elle se enterneceu quando á
do m
falsa fé me desterraste ! Riste de minha desventura,
438
A FOME

é justo que eu escarneça ás gargalhadas de teu mar


tyrio ! Morres, Simeão de Arruda , quando eu queria
que vivesses para gozar das delicias de cravar-te o
punhal no coração .
Meu Deus !! ... interrompeu a retirante sen
tando-se na cama.
Edmundo correu ao lado d'ella.
-Simeão de Arruda ! ... O commissario ! ... 0 O
auctor de minha desgraça ! ... O pae d'este infeliz !
exclamava Victorina quasi fóra de si.
-Ouviste, miseravel ! A tua victima te amaldi
çôa ! Deus a enviou até aqui, permittiu que teu filho
nascesse no meio da rua, bem perto do logar onde
agonisava o monstro que o procreou, commettendo,
quem sabe quantos crimes, disse Edmundo.
-Toma teu filho, perverso ! Abusaste da força,
obrigando-me por intermedio de teus assalariados a
ir a uma festa de mulheres perdidas quatro dias de
pois da morte de minha mãe ! Me embriagaste entre
ameaças, e depois... ai ! ... depois abusaste covarde
mente de minha inconsciencia e eis o fructo de tua
perversidade !
Victorina, por um esforço supremo, levantou-se
da cama, se aproxima de Simeão e lança-lhe o filho
nos braços ; depois cahiu exhausta de forças e suc
cumbiu instantaneamente , victima de uma hemorrha
gia violenta.
Edmundo commoveu-se com aquella scena. A re
tirante, como uma figura de cera , jazia no chão den
tro de um lago de sangue .
A FOME 439

Constantino chorava commovido e aterrado.


alhadas de t
O commissario debatia-se nas agonias da morte.
quandoe
Os membros se relaxavam, os olhos já sem luz se
cias de cran
volviam para o céo e os gemidos abafados dos ulti
mos instantes sahiram dos labios.
a retirante
Constantino, vendo que Simeão se aproximava do
termo da viagem, tirou da banca a imagem do cruci
ficado, accendeu uma vela do santo Sepulchro e se
mmissari.o..
aproximou do moribundo.
e d'este
Edmundo lavou o recemnascido nas aguas do
i baptismo, assistiu-lhe o ultimo suspiro e já cadaver
ima te am
deitou-o no regaço de sua mãe.
queter T
O commissario agonisava, tendo a imagem de
dologar n
Christo sobre o peito e uma vela accesa na mão.
commettent ___
Eis a imagem do crucificado ! Aperta-a com
inda
força ao coração : reconcilia-te com Deus, arrepen
ste dafi
es de-te de teus erros que estás á beira da sepultura.
salarid
Eu te perdôo, porque não levo o meu odio ao tumulo ;
atrodiasd
não porque sejas digno de minha compaixão, disse
gasteente
Edmundo afastando-se do commissario.
tecoran
Constantino, fiel continuador dos costumes de seus
ctodefo
ante-passados, ajoelhou-se junto ao moribundo para
ajudal-o a bem morrer. Estupida e barbara ceremo
rantor
nia que tantos seculos de civilisação ainda não po
beof deram acabar até nas classes mais cultas da socie
sesa dade !
mord
A agonia se prolongava. O creado de Clemente,
apertando a vela accesa na mão do morto, gritava-lhe
aAr ao ouvido em voz cavernosa e sombria :
―――――- Lembre-se do nome de Jesus, irmão ! Lembre
440 A FOME

se do nome de Jesus, irmão ! Lembre-se do nome de


Jesus, irmão ! Jesus seja comtigo ! Jesus seja comti
go ! Jesus seja comtigo ! Jesus, misericordia ! Jesus,
misericordia ! Jesus, misericordia ! Irmão, chegou a tua
hora ! Irmão, chegou a tua hora ! Irmão, chegou a tua
hora ! Jesus seja a tua guia ! Jesus seja a tua guia!
Jesus seja a tua guia ! Jesus ! Jesus ! Jesus !
Constantino calou-se, apagou a vela ; Arruda ti
nha morrido. A imagem foi retirada e collocada sobre
a banca. Edmundo estava impressionadissimo. A voz
de Constantino, ajudando o commissario a bem morrer,
o tinha aterrado. Era cruel, era estupida e barbara
a ceremonia. Quando ella começou, Arruda agonisava,
mas a consciencia ainda não se havia embotado de
todo. Ouvia e sentia. Não ajudaram-no a bem morrer,
mataram-no mais depressa. A esperança de viver não
se havia acabado, e no entanto Constantino diz-lhe
com uma crueldade de fanatico que elle vai morrer,
estupidamente mostrava-lhe os apparatos funebres da
ultima hora e por cumulo de fanatismo, põe-lhe na
mão uma vela accesa, e com agudas exclamações
fere-lhe os tympanos, ajudando-o a dizer o ultimo
adeus ao mundo, a separar-se das affeições que fica
vam, mas de um modo barbaro e cruel. Porque aterrar
o agonisante com os apparatos funebres da morte ?!
A cella do padre havia-se transformado em pouco
tempo em um necroterio . O silencio era sepulchral.
Edmundo estava de pé, de braços cruzados, e Cons
tantino, ajoelhado entre os mortos, rezava em voz
baixa.
A FOME 441

mbre-se dono O padre Clemente entrou acompanhado da fami


lia de Arruda.
Jesus se
A viuva viu o cadaver e cahiu sobre elle suffoca
misericordia!Je
Irmã chega da em pranto. Os filhos cercaram-no chorando as la

rmão,chegar grimas da orphandade.


O padre, ajoelhado a pouca distancia do grupo,
sseja a tu
s 'Jesus! orava com fervor, entoava preces pela alma do morto

rela;Ard e pedia a Deus o conforto, a resignação para a deso


lada familia.
ecollocadas
Edmundo rendera-se completamente ás emoções.
nadissima
Tioabemm Prostrado, commovido, implorava a paz da eternida
de para os mortos e lenitivo ás dôres cruciantes
upidaebar
d'aquelles que se deixavam abysmar em tamanha
rudaa
desventura.
la embota
Clemente, depois de orar, foi surprehendido pela
abemm
presença de mais dois cadaveres. Edmundo e Cons
adenier
tantino contaram-lhe o que se havia passado.
antino del
O padre abriu a fonte consoladora da religião de
de rai mor
Christo, levou ao coração dos afflictos em palavras
sfunebres
r piedosas e edificantes o balsamo suave da resigna
apiste
a m a t ção.
excl
A viuva e os orphãos ouviram-no attentamen
er ouká
te. As phrases ungidas de ternura e consolação
esgutt
d'aquelle coração virtuoso e justo, lhes penetraram
queaver
e n'alma, e todos juntos na mais fraternal união pros
lamort!
traram-se diante do crucificado e oraram fervorosa
ts mente.
Spul
e Clemente conservava a energia de seu espirito
Sel
forte e depois da oração consolou ainda os tristes, e
em procurou enterrar os mortos.
442 A FOME

O cadaver de Simeão de Arruda foi conduzido


para a casa da familia acompanhado d'ella e do padre
Clemente.

Edmundo e Constantino ficaram guardando os


corpos de Victorina e do filho até á tarde, quando se
fizeram os enterramentos .
ངས
Truda foi con
do d'ellaedi

guarda
á tarde qu

XXX

O dr. Gervasio foi pela manhã procurar Edmun


do e já não o encontrou. O dia cresceu, declinou e
nada de voltar o amigo ao hotel. Havia justas ra
zões para o doutor se inquietar, pois elle já havia dado
um passeio pela cidade, afim de ouvir alguma coisa
.
que o orientasse, e nada ! ... Resolveu-se a ir ao pa
lacio da presidencia ; lá poderia saber se o conflicto
se teria dado.
A secretaria do governo, ás cinco horas da tarde,
ainda funccionava. Sem se fazer annunciar, o dr. Ger
vasio entrou para o gabinete do presidente.
O secretario, official de gabinete e o administra
dor da provincia sentados ao lado de uma banca so
bre a qual estava um grande maço de officios fe
30
444 A FOME

chados e abertos, liam algumas d'essas peças, em


quanto a pouca distancia sentados em um sophá e
cadeiras de descanço conversavam e fumavam al
guns amigos da situação.
O doutor comprimentou o presidente e os cir
cumstantes e foi-se incorporar ao grupo, que pales
trava. O crescido numero de visitantes indicava gran

de novidade .
A hora estava adiantada , era tempo de cada um
se retirar para satisfazer as necessidades do estoma
go, e, em vez de diminuir, o numero das visitas au
gmentava sempre. Havia individuos que se mostra
vam enfastiados de esperar, creaturas pacientes que
desde uma hora da tarde iam-se deixando ficar, na
esperança de os deixarem a sós com o presidente.
Mas qual ! Todos tinham isso em vista e ninguemse
retirava .
O presidente, acabrunhado de trabalho , importu
nado com a presença d'aquelles ociosos , deixava- se
na mesma posição em uma postura toda estudada,
com os olhos pregados no papel , que fingia lêr, mas
pela expressão abstracta da physionomia podia-se

affirmar que sua imaginação errava muito longe


d'aquelle sitio . O secretario pedia attenção sobre al
gum periodo dos officios que lia ; elle lançava um
olhar demente sobre o papel, deixava depois coar-se

através do bigode negro uma lenta baforada de fu


maça do charuto e ainda em completa abstracção,
n'uma postura toda comica meneiava a cabeça mos
trando -se entendido . A tarde adiantava-se bastante.
A FOME 445

Já entre os visitantes reinava absoluta falta de assum


dessas pes
pto. Depois de uma palestra indigesta, arida, insuppor
s emums
tavel, o silencio da espectativa !
e fumaram
O cabo de ordens entrou com uma carta para
presidente. N'ella se fitaram olhares curiosos. Se fosse
sidente e
possivel devassar-lhe o segredo ! Lida a carta, disse
Tupe, que
o administrador para o secretario :
es indie Morreu o commissario Simeão de Arruda.
Gervasio perturbou-se vivamente e perguntou :
po decada
De que ?
ades do est
-Não dizem, respondeu o presidente com ama
das visitas
bilidade.
quesemest
O cabo de ordens voltou um instante depois com
s
paciente
o mais quatro cartas.
a n
r f! d e r
A vaga do commissario dava assumpto a toda
it
0 os
op
aquella correspondencia.
em ei n g
Os amigos da situação e que ahi se achavam to
dos, sabiam da morte de Arruda e vinham apresen
alho,imp tar á clemencia do administrador os nomes de al
Os, deiar
guns protegidos.
daestud
E com que titulos os recommendavam para um
gialet logar não remunerado ! Além das virtudes civicas,
mapl dos predicados de honrado, activo, intelligente, mais
mwi
ainda o de liberal !
ãosobe
As cartas recebidas pelo presidente eram de re
n
Janga commendação e a todos sobresaltavam.
DOISCAR
Era comica e ridicula a teimosia do grupo de
politicos. A impaciencia e anciedade manifestavam-se
r
abst bem na falta de quietação dos corpos a se mover
alear procurando posição commoda e sem a encontrar. Seis
*
446 A FOME

horas sentados em attitude respeitosa , era já um sup


plicio , mas elles se sujeitavam de boa vontade.
O administrador, depois que leu a ultima carta,
disse ao secretario :
-Está acephalo o abarracamento de ...., é preci
so nomear um commissario .
Havia necessidade urgente de ser provido o logar
que acabava de vagar, mas o presidente deleitava o
seu orgulho vendo subordinados á sua vontade todos
aquelles typos. Cevava o amor proprio á custa da

subserviencia d'aquelles cortezãos .


A pertinacia dos pretendentes ao logar de com
mis sar io iria longe ; não enfraqueceria com a noite

inteira.
O jantar presidencial estava servido . O creado
veio ao gabinete e communicou isso ao amo em voz
bastante clara . Ainda assim a assembléa não se dis
solveu ! Olharam uns para os outros e foram -se dei
xando ficar.
O presidente levantou-se e os convidou á mesa.

Deixaram as cadeiras e, em vez de procurarem a rua,


se espalharam pelos corredores e jardim, nos logares
por onde devia passar o administrador.
Um dos chefes politicos seguiu conversando com

o presidente. Deram alguns passos e ficaram de pé


conversando, n'uma palestra importuna, difficil de
termo ! Era a nomeação do commissario para um

martyr da situação. Havia um quarto de hora que


durava o pedido, quando o administrador, homem de
grande talento e conhecedor das fraquezas do espiri
A FOME 447

to humano, fez uma meia promessa, despediu-se e


osa,erajáum
continuou o caminho. Não dera dez passos quando
hoa vontade
eu a ultimaed outro typo sahiu-lhe ao encontro.
Foi longa a palestra. Lembraram-se serviços ao
partido, necessidades politicas a satisfazer, compro
tode....ép
missos antigos, e finalmente o dever de amparar o

ole correligionario que estava a morrer de fome com a


erprovid familia.
O presidente viu-se abarbado com o importuno, e,
ua vontade
para se vêr livre d'elle, disse-lhe que tomaria na devi
pris á cast
da consideração o pedido. Mais adiante aguardava a
passagem do governo um outro amigo. Não havia re
logarde medio senão parar e ouviu a mesma historia. Esta foi
Tia com a
mais longe, durou talvez meia hora.
O presidente seguiu suppondo que ninguem lhe
rido.Oa estorvaria mais o caminho, mas enganou-se. Seis ty
ao amoen
pos como sentinellas perdidas esperavam sob as ar
léamire!
cadas da extensa galeria a passagem do administra
foram ! dor.
De estação em estação, parando em todos os
rikuin
passos, como em penitente via-sacra, seguiu o presi
em
Curar a
dente, até que, morto de fadiga, chegou muito depois
1, 110slegat
de oito horas da noite, á sala de jantar. A todos ti
nha ouvido e promettido attender. Faltava-lhe som
nd
versa mar o valor politico e official dos protectores, e o que
m
Gearu & attingisse a maior algarismo, seria o preferido.
Gervasio, que nada pretendia além da noticia do
по ра amigo, logo que o administrador entrou, voltou para
o hotel.
home Edmundo já o esperava.
sdef
448 A FOME

Absorto ainda na contemplação das scenas do dia,


se deixára ficar no quarto, sentado em uma cadeira,
com a fronte sobre a mão.
Gervasio foi encontral-o assim .
- Edmundo, morreu o commissario Simeão de
Arruda ?
- Ouvi-lhe o ultimo suspiro.
Como ? mataste-o ? falla ! dize !
- Não, Gervasio, não.
Eu te desconheço ! estás triste, pensativo, pal
lido ! Estás doente ?
-Não, Gervasio depois da successão de scenas
tristes, o espirito adoece. E preciso o repouso, o som
no. Sinto-me cançado. Minha fadiga é toda moral.
-Queres que te deixe só ?
―― Não, vou contar-te o que se passou.
E Edmundo relatou os acontecimentos que tive

ram logar em casa do padre Clemente.


das scenas doda
em uma calen

sario Simen

pensatira,pa XXXI

são dese
pouse,osa
toda max

Oll Continuava a sêcca. Mais alguns millimetros


osquete d'agua durante a ultima estação invernosa alenta
2

ram a esperança de salvação nos habitantes da pro


vincia, que no mais completo desconforto arcavam
contra o flagello.
Os victimados pela calamidade applaudiram as
primeiras espigas de milho e vagens de feijão vinga
das nas serras á custa de chuvas finas e parciaes.
Recordavam-lhe do tempo da abastança ; aquelles
cereaes e legumes como que preludiavam uma época
de paz, de abundancia. Ainda assim a duvida os per
seguia e queriam emigrar, queriam sahir, para o es
pirito convalescer das dôres com que o infortunio des
apiedadamente os ferira !
450 A FOME

Ignacio da Paixão ouvira contar sempre historias


fabulosas, verdadeiras maravilhas dos seringaes do
Amazonas. A arvore da borracha, diziam-lhe, é a ar
vore do dinheiro, cada gotta de leite que vertem os
vasos se transforma em ouro ! Com o fim unico de
accumular riquezas tomou passagem na barca Laura,
que seguia em lastro para o Pará.
Os jornaes da Fortaleza, dias depois da sahida do
navio, noticiaram que elle havia naufragado , morren
do passageiros e tripulação .
A ser exacta a noticia, Ignacio era morto. Deu-se
o sinistro, mas elle escapou com muitos passageiros,
e logo que chegou a Belem, foi engajado pelo pro
prietario d'um seringal do rio Purús. Lá o esperava o
trabalho e a doença. O organismo estranhou o clima
quente e humido, e o estomago recusou a alimenta
ção do pirarucú e tartaruga. O costume, que tudo A
do bra, em pouco tempo amoldou Ignacio áquelles ha
bitos. Mas ás intemperies, ao veneno palustre ema
nado dos vegetaes que apodreciam ao sol á margem
dos rios e nos alagados, se habituaria tambem?
Não ; a febre o derribou, e só depois de uma lucta
terrivel de mais de trinta dias, pôde da molestia

Ignacio triumphar. Veio a convalescença, as forças


voltaram e com ellas saude. Dois mezes de soffri
mentos foram o tributo de acclimação n'aquelle clima
insalubre . O patrão , no dia que elle deu- se por prom
pto e continuou a trabalhar , disse-lhe que não per
desse tempo, pois estava grande o seu debito . Ignacio
contrariou- se muito. As despezas com dietas e reme
A FOME 451

tar sempre hist dios eram excessivas, e sobre ellas o premio de dez
s dos sempe por cento ao mez !
diziam-left Ignacio da Paixão ficou moralmente enfermo ; o
ite que rerem seu captiveiro seria de muitos annos ! Passada a má
mofim unie impressão, pensou seriamente na vida e se decidiu a
na barcaL vencer tudo pelo trabalho. Redobrou de esforços e
internou-se nos seringaes em uma lida afanosa, a lu
pois dasuba ctar pela liberdade. Era uma vida de selvagem ! Pas
sava os dias dentro dos alagados, ás vezes com agua
fragado, mana
até á cinta, mal alimentado e ainda por cumulo de
amorto.D soffrimento exposto ás picadas dos carapanãs piuns
e de outras pragas, que vivem n'aquellas regiões .
tos passag
Assim viveu dois mezes, findos os quaes se apresen
jadepeli
tou ao patrão e pediu a conta do que devia. Surpre
á o esperan
inhouoch za horrivel ! Apenas a borracha que tirára e entregá

aaliment ra, dera para o pagamento da alimentação e juros do


dinheiro. A borracha descera de quatro mil reis para
ne, queta
es mil e poucos reis o kilo, e os prejuizos do patrão
aquell b
pagal-os-hiam os engajados.
lustre em
Ignacio cahiu em um estado de desanimo peno
ámargen
sissimo : a divida antiga ficára de pé ! Nunca mais
abem?
se libertaria ! tentou fugir, mas a fuga só se podia
umaJust
effectuar em canôas. Foi ter á margem do rio, e á
molesti
primeira montaria que appareceu, fez signal que
as fas
aproasse. Aproou e minutos depois elle estava á falla
de soffi
com o mestre :
lechie
-Póde levar-me como passageiro ?
траг Conforme. Traz o passe do patrão ?
Não tenho amo. Ando a passeio. Leve-me.
smai
Não caio eu n'essa ; assim me têm dito muitos
452 A FOME

que são captivos, porque devem os cabellos da ca


beça.
E o mestre manobrou a montaria , se afastando
da margem do rio.
Ignacio perdeu a esperança de fugir. Ninguem o
levaria. Entre os proprietarios de seringaes, authori
dades, mestres de embarcações havia um contrato
de lucros reciprocos, afim de vedarem inteiramente
o transporte dos engajados quando não conduzissem
8
o passe. Essa infracção das leis garante aos proprie
tarios dos seringaes o meio seguro de fazerem gran
des fortunas á custa do trabalho do engajado, sempre
cearense, que, uma vez lá, é difficil e muito difficil se
libertar .
Ignacio da Paixão continuou a trabalhar, mas
sem esperança. A alimentação, o vestuario, o fumo,
a aguardente eram fornecidas pelo patrão e por preços
exorbitantes ! Agora lhe custaria mais soffrer as pra
gas, o frio, a fome. Elle expiava de um modo cruel
a sua falta. E que nuvens escuras sombreavam-lhe
futuro ! Procurava as inhospitas regiões do Amazonas
para ganhar com que saldar a divida de honra. E
a divida
agora fechavam- se-lhe os horisontes ! Nem
paga, e mais nunca os beijos da esposa, o cari
seria
1
1 nho dos filhos, a patria, a liberdade !
Ignacio é um infeliz que é perseguido por pesa
delos terriveis ! As vezes chora como uma creança,
outras occasiões ha que tem para tudo e para todos
um riso alvar, um d'esses risos que o homem sómen
te aprende na adversidade, quando as injustiças de
A FOME 453

os cabells seus semelhantes e o infortunio têm-lhe morto a ul


tima esperança .
ntaria, seal A paixão pelo jogo acompanhou-o ao degredo.
Foi ella o algoz, o genio mau que precipitou-o no
fugir.Ninet abysmo, e no entanto é agora o seu melhor amigo,
s de
seringae,an o suave conforto nas tribulações. Quando joga esque
avia um c ce tudo.
rem interne Uma noite jogavam os engajados o trinta e um
não condu de boca. Ignacio aperuava. Alguns tostões, unico fru
cto das pequenas economias, pesavam-lhe menos n'al
ante asp
gibeira que o desejo de atiral-as á sorte na mesa do
de fuere
engyinda jogo. Foi uma tentação irresistivel ! A ultima vez que
muitodiffe jogára a dinheiro foi no trombone. Não se conteve,
não se dominou. Sentou-se e parou. Ganhou e con
r tinuou a ganhar. Em pouco tempo passaram a seu
trabalha
r i o
ua ,ofa poder as economias dos companheiros : importavam
em nove mil reis .
Toepar
Na manhã do dia seguinte appareceram os nego
fter
modod ciantes ambulantes que em canôas levavam merca

Hurt dorias a vender. Entre elles havia um que vendia


bilhetes de loteria.
toAma
eboun Ignacio examinava os generos, quando viu os bi
lhetes. Ficou fascinado ; comprando algum, era uma
o
at

Osaoar esperança que nascia, uma esperança que valia tudo


nos dias de desgostos e tribulações.
Empregou todo o dinheiro em bilhetes. Um mez de
porpa
CREA pois voltavam os mercadores e traziam a lista da lo
teria.
arabr
Ignacio examinou a lista com impaciencia, e qual
s não foi o seu espanto quando viu que um dos nu
hea!
454 A FOME

meros que possuia estava premiado com dez contos


de reis !
-Dez contos de reis !! exclamou elle chorando.
O pranto de Ignacio tinha a nobreza do senti
mento a saudar a liberdade que resuscita ! Ser livre,
saldar a divida de honra, voltar á patria, abraçar a
esposa, beijar os filhos, foram os seus primeiros pen
samentos, as imagens que lhe deleitavam o espirito.
Ignacio apressou- se em descontar com o cambista
o premio e recebeu nove contos de reis.
Depois dirigiu-se a casa do patrão . Pagou-lhe o
que devia, recebeu o passe e partiu para Belem,
onde se demorou sómente o tempo necessario a es
perar a passagem do paquete.
A bordo do Bahia embarcou para o Ceará,
como passageiro de prôa. Um dia, depois da estada
no navio, viu que alguns dos companheiros jogavam.
Ignacio entristeceu-se vivamente. Tinha descoberto um
abysmo a seus pés. Afastava-se quanto possivel do
jogo, e sentia que o arrastavam. Acovardado, tremu
lo, pallido, se dirigiu ao commandante do vapor, e
pediu-lhe que guardasse o dinheiro que conduzia.
O commandante se recusou tratando-o com acri
monia.
Ignacio ouviu-o com humildade, e com o coração
nas mãos supplicou :
-Senhor, por piedade guarde este dinheiro ! É
elle o futuro de meus filhos, o salvador de minha
honra. Volto dos seringaes do Amazonas onde soffri
por espaço de dois longos annos. Este dinheiro em
A FOME 455

do com de meu poder o perderei antes de chegar ao Ceará ! Jo


gam a bordo, e o vicio do jogo é uma tentação que
ou ellechur me domina, a que não posso resistir. Senhor, guarde
o pão de meus filhos.
obreza dosat
usaita Safe Tal foi a franqueza de Ignacio, que o comman
dante recebeu o dinheiro. Salvo de perigo, elle voltou
atria, abra
tranquillo á prôa do navio, mas gastava as noites e
primeins
os dias em aperuar o jogo.
Tam 0
Quatro dias durou a viagem de Belem á Forta
Comocamis
leza.
18. O Bahia fundeou ás duas horas da tarde, e mo
PAN
mentos depois Ignacio da Paixão pisava as alvas
pursBeis
areias de sua terra.
essario al

a 0 Clas

m
wjie
oc berto
al
destit

ript!
uJ zik
JI BE

pt
Cora


XXXII

Ignacio da Paixão chegára, havia quatro dias, e


ainda não lhe tinha sido possivel saber noticias da
familia. Embalde percorreu a cidade e os arrabaldes
e sempre infructiferas eram as pesquizas ! Visitava
quasi todos os abarracamentos e nada de novo ! Não
descançava, caminhava sempre como o Ashaverus da
lenda e o mesmo silencio, o mesmo desconforto a
minar-lhe a alma ! Á noite procurava o leito e o
somno fugia. Se dormia alguns instantes, os mais
horríveis pesadelos o atormentavam. Erguia-se com
o sol e errava de palhoça em palhoça, a tudo
consultando, ouvindo a todos e murmurando a cada
instante :
Onde elles estarão ?
458 A FOME

Ninguem lhe respon dia ! ...


A noite chegava e com ella o desengano ! Mais
um dia perdido, mais uma esperança morta.
Ignacio não pensava senão em descobrir os filhos.
Faltava-lhe ir á pedreira ; talvez a mulher se confun
disse na onda maltrapilha dos carregadores de pedras.
Era esta a ultima esperança. Assim animado, foi ao
trapiche e, encostado a uma das columnas, esperou
que os retirantes voltassem do Mucuripe.
Ignacio olhava pensativo para a vastidão do mar.
O murmurio das vagas, os assobios monotonos do
vento coando-se nas fendas do assoalho lhe augmen
tavam as saudades dos filhos. Aquella alma de pae
se recolhia, e sem alento meditava.
As turmas de retirantes já se avistavam ao longo
da praia. Ignacio tinha- as visto e esperava-as com
impaciencia.
O cortejo se aproximava cada vez mais. Já se
divulgavam os rostos bronzeados dos indigentes, já se
distinguiam bem os trapos que lhes cobriam a nudez,
ouvia-se distinctamente o som da vozeria dos levia
nos a zombar de tudo .
Os retirantes começaram a passar pelo trapiche
e Ignacio não perdia uma só das physionomias. O
semblante de um velho, que seguia a passo lento, de
longe o tinha impressionado. Olhava-o com attenção
e quando o indigente hombreou-se com elle, excla
mou :
―― Valentim ! ...
-Ignacio ! ...
A FOME 459

O velho largou a pedra e um estreito abraço


an aproximou os corações dos dois amigos, havia muito
eseing .We
tempo separados.
morta.
-Minha mulher, meus filhos, Valentim ? ! ...
cobrir osfills
Retiraram-se para aqui tambem, e nunca mais
lherseconfir
os vi ! ...
oresdepele ―――― E o primo Manoel de Freitas ?!
mimade fis
Vem ahi.
nnas,espe Ignacio reanimou-se ; era uma esperança que
de. procurava alentar.
tidiodo
-Eu sigo, Ignacio, minha turma já vai longe, eu
omoties!
caminho muito devagar ; adeus.
The augm -Adeus, Valentim.
Ignacio afastou-se um pouco do logar em que

g estava, e ancioso aguardava a passagem de Manoel


amal de Freitas.
ara-as ou
O seu desejo foi em breve satisfeito. Appareceu
a figura respeitavel do ancião, grave e severa como
s sempre. Trazia uma grande pedra ao hombro, passo
firme, porém pausado, e olhos fitos no chão.
amuds
Ignacio não pôde-se dominar e chorou. Quiz ir
dosleni
ao encontro do primo e não teve forças ! As recorda

d ções do passado lhe chumbavam os pés no sólo.


trapi -
Amesquinhado perante a idéa de seu crime, enver
omis gonhado diante da propria consciencia, que lhe mos
Lent trava os andrajos de Freitas e a penuria a que esta
llege va reduzido, se deixou ficar sem coragem de se en
frentar com o coronel, que passou a pouca distancia,
mas sem vêl-o. Ignacio seguiu-o commovido.
Os retirantes, depois de deixarem as pedras na es
31
460 A FOME

trada de Mecejana, voltaram á pagadoria a receber as


rações.
Distribuidos os generos, os retirantes se disper
saram .
O coronel seguiu para casa e Ignacio o acompa
nhou guardando distancia.
Josepha esperava o marido á porta da rua.
Freitas entrou e o primo ficou de pé, a alguns
passos, sem coragem de se aproximar. Estava indeci
so. Em si luctavam a vergonha do seu erro e o dese
jo ardente de noticias da familia.
Ignacio não pôde mais resistir, chegou á porta
e se annunciou com algumas palmas. Freitas sahiu
a recebel- o.
-Ignacio ! ...
- Primo Manoel ! ... disse commovido Ignacio
abraçando o parente.
-Estou surprehendido, tinha-te por morto ! ...
-Antes de tudo, por quem és, perdoa a minha
falta !
E quiz se prostrar aos pés do coronel.
Freitas não consentiu que se ajoelhasse e disse :
-―- Perdoei-te desde o dia em que chegou a meu

conhecimento a tua fraqueza. A tua falta arrastou-me


ao estado que vês e comtudo eu não te amaldiçoei.
Perdoei-te, Ignacio, se bem que me doesse mais tua
ingratidão, o abuso de confiança, do que a penu
ria a que me reduziu a tua falta. Não pretendia di
zer- te uma palavra sobre o passado, mas o coração
estalava de sentimento, a amizade de tantos annos
A FOME 461

exigia uma reparação, a confiança sem limites de


doria areceber
parente e de amigo clamavam contra meu silencio !
Perdoei, como já disse, tua falta ; corra-se agora um
antes se dige
véo sobre o passado e o presente. Os soffrimentos do
degredo serviram-te de lição, e de agora em diante
nacio oact pede a Deus que te ajude a não te afastares mais
nunca do caminho da honra e do dever.
ta da rua
Ignacio chorava de vergonha !
Tepé s ―――
Obrigado, mil vezes obrigado, Manoel. A gran
Estavain
deza de tua alma, a generosidade de teu coração fize
erroeod
ram-me conhecer a minha pequenez e que me en
vergonhasse d'ella. A enormidade de minha falta é
hegouáp tal, diz-me a consciencia, que só merecia a tua mal
Frete dição ! E quando esperava que me ferisse um raio de
tua colera, que tu me fizesses sahir de tua casa como
um bandido, me abres as tuas portas e complacente
oridoJa procuras suavisar as minhas dôres perdoando o gran

k de crime que commetti contra ti e ainda mais contra


ormar
tua esposa, contra teus filhos ! Mil vezes obrigado,
Chias Manoel !
Esqueçamos o passado, Ignacio.
I Minha mulher, meus filhos, onde estão ?
‫المحلية‬ - Emigraram antes de mim. Deixei-os partir, por
81
COU que, como elles, eu era tambem desvalido. Retel-os era
sacrifical-os, e por isso consenti que procurassem a
k
Wa salvação. Depois que cheguei aqui nunca mais os vi.
3 ――
M2 Meu Deus ! quanto terão soffrido elles ! Eu
P a y
previa tudo isso ! Como sou desgraçado ! ... Que an
gustia sinto quando ouço dentro de mim a voz da
consciencia bradar : foste o algoz de teus filhos, ho
*
462 A FOME

mem vicioso ; cortaste a arvore, á sombra da qual


elles se abrigariam ; fizeste mendiga a mão que deve
ria soccorrel-os ! Dize, Manoel, se não é o desespero
tudo quanto me resta !
Coragem, Ignacio, ainda os poderás encontrar.
Talvez resistissem á calamidade e vivam por ahi
esquecidos em algum recanto dos abarracamentos.
Procura-os com esperança, com calma, e talvez não
continuem infructiferas tuas pesquizas.
Josepha e Carolina, que do interior da casa
tinham conhecido a voz de Ignacio, appareceram na
sala.
- Primo Ignacio ! ...
Dirigiram-se a elle e o abraçaram.
Ignacio chorava, como tambem as primas.
Freitas ouvia-os commovido.

Manoel, as chagas do coração talvez não se


curem mais nunca ; porém, um dos pesos que dia e
noite esmaga-me a consciencia, quiz a sorte que eu
em parte podesse alliviar. Posso saldar a divida de
honra que contrahi quando me fiz mau. Tenho que
te pagar religiosamente a quantia de que me apossei
sem o teu consentimento.
E tirando do bolso um maço de notas do the
souro, papel e lapis, continuou :
-Quero prestar-te minhas contas, dar-te sciencia
da venda de teus escravos.
O coronel suspirou ; a posse d'aquelle dinhei
ro, embora nos dias escuros da indigencia, o con
trariava ; era o producto de infelizes creaturas, que
A FOME 463

foram tão suas amigas, e muitas das quaes vira


á sombra dig
nascer.
za amãoque
não éode Ignacio entregou a Freitas papel, lapis, e disse
lhe :
s -Faze a conta, Manoel.
poderá encats
O coronel recebeu o papel com a mão tremula
e vivam para
e disse :
abarracame
-
Podiamos dispensar essas formalidades.
ma,etale
-Ellas se tornam indispensaveis, por quanto não
as sei ao certo em quanto sommam as parcellas.
terior da
cerias Freitas resignou-se a passar por mais uma scena,
appare
que devéras o contrariava.
-Posso começar? perguntou Ignacio.
O coronel moveu affirmativamente com a ca

es beça.
prim Simeão, vendido por um conto de reis.
Pobre Simeão !... Ai, quantas vezes carregaste
z
talve m
em teus hombros o meu Joãosinho ! interrompeu
osqued
Josepha soluçando.
sorteque!
Freitas escreveu tremulo a primeira parcella no
adirik!
alto do papel.
Tembo Ignacio continuou :
meapar -Anacleto, novecentos mil reis.
-Infeliz Cleto, mamãe ! Se me fosse possivel
23 doth
pagar-lhe com a liberdade aquella divida de gratidão !
Elle salvou-me a vida arriscando a sua, disse Carolina
chorando.
s -Sebastião, julgado pelo medico doente do co
Link
0 ração, vendido por cem mil reis.
40 ――――
Desgraçado ! além de enfermo, vendido, e
Spo
464 A FOME

quem sabe a que senhor ! Tão humilde que era ! tão


manso, que nas minhas horas de mau humor não
tinha uma palavra aspera para sua senhora ! Ti
nha um coração nobre, era tão amigo de seus senho
res ! ...
E o pranto interrompeu Josepha.
Freitas chorava tambem .
―――- Filippa vendida por seiscentos mil reis.

Josepha e Carolina não poderam resistir mais


áquella scena e se retiraram para a pequena alcova,
onde choravam sem consolo .
Ignacio continuou :
-Bernardina, a ultima da partida, vendida por
oitocentos mil reis .
-Bernardina ! ... a jangada ! ... foge ! ... vendi
da ! ... o mar ! ... exclamou Filippa, que tinha vindo
sem ser vista unir-se ao portal mais proximo de
Ignacio da Paixão. Depois soltou uma gargalhada
desconcertada, aguda, estridente, que pareceu abalar
até os alicerces da habitação. A louca arregalava os
olhos querendo reconhecer Ignacio. Seus esforços
eram baldados, porque a razão estrebuxava enferma
e as idéas erravam á tôa no estreito espaço do cere
bro doente.
Freitas, triste e commovido, assistia aquellas sce
nas. A ultima nota do grito da louca ainda echoa
va como uma maldição em sua alma angustiada.
Ignacio fallou :

- Emquanto somma ?
Freitas entregou-lhe o papel.
A FOME 465

-Tres contos e quinhentos mil reis, não incluin


e era !tão
do os juros. Dize a taxa para fazer o calculo, disse
umor não
Ignacio depois de ter sommado as parcellas.
hora ! T
-Não me pagarás um real pelo empate da
us senho
quantia que me queres restituir.
Ignacio entregou o dinheiro ao coronel, que o re
cebeu com mão tremula. Depois pediu a Freitas que
fosse depositario de outra quantia, e entregou ao pri
is mo um maço de notas do thesouro.
tir mais ――― Onde estás, Ignacio ?
a alcora
-Tomei um quarto em uma hospedaria.
-Esta casa está á tua disposição.
---
Aceito, Manoel, porém não te inquietes se eu
dida pr não voltar antes da noite ; vou errar por ahi procu
rando o que talvez já não existe.
rend E Ignacio, apertando com reconhecimento a mão
a rind do primo, sahiu afim de continuar a tarefa.
imo de
Onde estarão, em que pedaço da terra se escon
as
Calh
derão aquelles innocentes ?... pensava elle caminhan
r
aba a
l do sem destino.
lara o Andou o resto do dia, revolveu quatro abarraca
er
Stop mentos, indagou de todos e sempre o mesmo silencio,
a
nf m
e r
sempre a barreira escura do mysterio a separal-o dos
filhos !
Ignacio da Paixão voltava pela rua da Palma, já
13877 ao pôr do sol, e tão triste que fazia dó vêl-o. Gela
ching va-lhe o coração, e o desconforto e a atonia do des
alento coava-se-lhe até o fundo d'alma.
Uma menina cega cantava á porta de uma casa
a copla seguinte :
466 A FOME

— « A ceguinha que aqui vêdes


Tinha olhos, via a luz ;
E agora, irmãos, pede esmolas
Pelo sangue de Jesus ».

Ignacio ouviu o verso e parou. As notas d'aquel


la supplica lhe atravessaram o coração, e, commovido
com a doçura da voz, se aproximou da céguinha.
Que contraste ! A voz harmoniosa sahia de uma crea
tura horrivelmente deformada pela variola ; feia como
um sapo e repugnante pelas ulceras que cobriam-lhe
os membros inferiores.
Ignacio olhou-a com interesse.
A céguinha acabou de receber a esmola e agra
deceu :
- Bemdito seja quem ouve
Da pobre cega o pedir
Jesus o queira amparar
Quando estiver p'ra cahir ».

Ignacio cada vez mais se impressionava com a


voz da céguinha. Lembrou-se da filha mais velha ;
facilmente a reconheceria ; porém, assim completa
mente desfigurada, com mascara bronzeada da va

riola, era impossivel. Não se conteve e aproximou-se


mais da cega.
— Aqui está uma esmola que tambem lhe dou.
A céguinha não recebeu a moeda e surprehendi
da levou as mãos aos ouvidos protegendo-os contra
a corrente de ar e procurando recolher todas as mo
dulações d'aquella voz que parecia conhecer ; depois
perguntou :
A FOME 467

Quem falla?
les
Ignacio da Paixão.
18 Papá !! papá !!
——— Minha filha !!

E o mais apertado abraço aproximou aquelles


notas d'ap
corações que pulsavam do mais santo e sublime dos
e,commora
sentimentos.
da cég
Passados os primeiros accessos d'aquella violenta
adeumac
emoção, Ignacio perguntou á filha :
ola:feia
-Tua mãe, Maria, teus irmãos ?
ecobrian
-Morreram todos de bexigas no lazareto.
E tu onde ficaste, minha filha ?
-Na rua, sós inha e cega. Sahi do hospital, onde
modae p
ceguei das bexigas, andei de porta em porta pedindo
esmolas e á noite dormia no adro da matriz. Assim
vivia quando esta mulher que me guia, levou-me
para a casa d'ella.
Ignacio commovido com a historia da filha, voltou
se para a retirante :
ara
Agradeço-lhe os favores que fez a minha filha,
ais rel
esta infeliz.
t
csga
-Não, papá, agora que já não estou só no
dada
S mundo, conto-lhe como esta mulher me maltrata
XIMOR
va. Obrigava-me a andar, desde que amanhecia até
ao anoitecer, cantando a pedir esmolas, e quando
Thedis
d cançava e pedia descanço, ella me açoitava. Veja
reben
D E estas feridas, doiam-me tanto ! Quando caminho mui
CO
to, botam tanto sangue, que chegam a me mo
lhar os pés ! E nem um dia ella me deixava ficar
-depe em casa para descançar ! Recebia todo o dinhei
468 A FOME

ro que me davam de esmolas e quasi não me dava


de comer !
Ignacio voltou-se encolerisado para a perversa que
tanto maltratava-lhe a filha, mas achou-se só, a re
tirante havia desapparecido . Quiz seguil-a, mas a filha
conteve-o :
― Papá, não me deixe só, deixe ir aquella mal
vada.
- -Então ella te castigava, Maria?
Todos os dias !
- Miseravel ! não se contentava de subsistir á cus
ta da creança ainda mais surral-a sem motivo !
E os olhos de Ignacio faiscaram de colera.
――――― Irás viver de agora em diante junto de teu
pae ; elle viverá sómente para ti, minha filha.
――――- Sim, papá, vossê não me deixará mais nunca,
não é assim ?
―――――――――― Não, Maria, não te deixarei .

E Ignacio da Paixão tomando a filha pela mão,


dirigiu-se para a casa de Manoel de Freitas.
Durante o trajecto não trocaram mais uma pala
vra. A menina porém ouvia de quando em vez um
soluço, que se estrangulava na garganta do pae.
asinão medan

a apervers
Lou-sesh
1-4.mait

ir aquell

XXXIII

try
Subsis
mmoti
calen
juntode
filha
MAISDES Edmundo da Silveira partiu com o dr. Gervasio
para o interior da provincia. As despedidas á noiva
fel-as na vespera da viagem.
Carolina ficou triste e chorosa.
a
pel
Os dois amigos seguiram para a villa de Canin
dé onde se deviam separar, indo Gervasio para a co
D
marca e Edmundo á cidade natal tirar as certidões
TH
para o casamento, e receber alguns bens, herança do
pale
seu tio padre.
Na manhã do quarto dia de viagem entraram na
villa. Algumas ruas de casas de taipa e tijolo, mal
alinhadas faziam um perfeito contraste com um bo
nito templo edificado em uma pequena elevação do
sólo. A leste da igreja deprimia-se o terreno forman
do quasi uma espiral, marginada por grandes barrei
470 A FOME

ras entre as quaes na estação invernosa serpeava o


rio, mas agora o leito de areia estava completamente
sêcco e exposto ao sol.
A igreja, cuja celebridade vem de longa data, é
uma das mais ricas da provincia.
S. Francisco das Chagas é o orago. Recebe an
nualmente visitas de milhares de romeiros, que de
todos os pontos do Ceará, e até das provincias limi
trophes, vão levar-lhe suas offerendas, tal é a fama
de que goza o santo. O povo acredita piamente na
influencia do bemaventurado junto á divindade. Raro
é o dia em que á igreja não chega um crente para
se prostrar diante da imagem de S. Francisco das
Chagas e entregar ao seu procurador dinheiro, cêra
branca, azeite dôce, etc.
Além do pagamento da promessa, muitas vezes
o sacrificio de dezenas de leguas a pé e descalços !...
Fanaticos, acreditam comprar a misericordia de Deus
como se compram as vaidades da terra ! E além de
tudo, como testemunha do milagre, como attestado
da graça a provocar a admiração das gerações futu
ras, deixando o favor, que receberam do santo, em
toscas esculpturas de madeira. E que verdadeiros mi
lagres cobertos da poeira do tempo na sacristia da
igreja ! Factos tão estupendos como a resurreição de
Lazaro !
Gervasio conversava com Edmundo atravessando
as ruas ; admiravam o templo em relação á pobreza
da edificação particular. Iam pedir hospedagem, quan
do foram surprehendidos por um rumor longinquo e
A FOME 471

que vinha do sul da villa. A bulha se aproximava.


nosa serpear
Já se percebia o som de muitas vozes .
acompletament
Os viajantes pararam, e voltados para o sul fica
ram attentos. Não esperaram muito. Um sequito
elonga data
immenso appareceu ao longe. A vozeria era infernal.
r Os sons das palavras fundiam-se n'um só ruido que,
go. Recele
confuso e surdo, perdia-se no espaço em pausadas on
meiros,que
dulações.
Drurina's
A população da villa, avistando o sequito, se reco
taleat
lheu.
nte
Capalme Gervasio e Edmundo ficaram sós na rua, em fren
d a k
Tin
te do grupo, que marchava para elles. O que será
m crente
aquillo perguntava um ao outro quando se abriu uma
Francis
porta com que enfrentavam ; appareceu um homem
dinhein
e disse-lhes fechando-se logo depois :

s - Fujam ! os Calangros !
muita Calangros, Edmundo?
e
lesal ! Sim, salteadores que atacam, roubam e ma
co hiadel tam.

t -Então fujamos.
Buttes
t -Não ha mais tempo, elles nos têm á vista.
s
chi Morra o malvado ! morra o Punaré !
Estes gritos haviam-se destacado da vozeria e
chegaram aos viajantes, que immoveis e firmes espe
N
ACTI ravam a aggressão com a mão no cabo dos revolwers.
Teja O sequito tinha chegado ao centro da villa e pa
rado á porta de uma casa das melhores da rua.
PAN -
Não são salteadores, Gervasio. Vê que estão
s
pul de pé e armados de cacetes. Os calangros andam
yo montados e debaixo do cangaço. Vamos até lá ?
472 A FOME

Vamos.
E partiram a galope para o logar do ajunta
mento.
Um grupo de mais de cem homens, descalços,
vestidos de camisa e ceroula, com cacetes, cercavam
um individuo de côr preta.
-Saia a authoridade ! saia a authoridade ! gri
tavam á porta, que se conservava fechada.
Os viajantes apearam-se e romperam o ajunta
mento até o centro. Estava alli a causa da reunião.
Um homem bastante alto, musculoso, côr preta, de
feia catadura, olhar feroz, tendo os braços amarrados,
vinha preso á presença da policia. Perto d'elle o es

queleto de uma creança dentro de um cesto.


Gervasio dirigiu-se ao individuo que segurava as
cordas do preso :
- Que fez este homem?
-Este malvado, senhor, esta féra matou um
menino e comeu-o ! ...
Será possivel?
Estão n'aquelle cesto os ossos ; foi pegado
como a onça na carniça !
O preso olhou o informante com a ferocidade do
tigre e rosnou como um cão de fila.
Essa manifestação de odio não passou desaper
cebida.
Bota agua nas cordas, João, para a onça ros
nar mais.

Um rapazito se aproximou do preso o molhou as


cordas que lhe apertavam os braços. O preto olhou-o
A FOME 473

com uma ferocidade inaudita ! Depois rangeu com

legar d tanta força os dentes, que se partiram alguns, cahin


do-lhe das gengivas sobre o peito gottas de sangue !

homen,s dese Gervasio compadeceu-se do anthropophago e fallou :


-
Porque o torturam fazen do apertar mais as
Cacetes c
cordas ?
- É pouco, senhor ! Diz assim v. s.a porque não
viu a mãe do menino correndo douda pelo matto
chala
quando reconheceu a cabeça do filho, do unico filho
peramogi
que tinha ! ...
Causada
As cordas haviam apertado tanto os braços do
airp
preso que quasi tocaram o humero ! Os ante-braços
açosames
e mãos estavam disformes pela inchação !
rtodaly
A indignação era geral, todos gritavam :
m cesto Morra o Punaré ! morra o malvado !
ese Gervasio, temendo que em uma d'aquellas exas
perações mais se exaltassem os animos e punissem o
crime commettendo outro crime, aproximou-se da
ra mat
porta da authoridade policial, bateu e disse :
-O povo traz um criminoso para entregar á
justiça.
Minutos depois o delegado de policia receioso
d abria a porta e conferenciava com Gervasio.
Geral
Preenchidas as formalidades da lei, o preso foi
introduzido na sala das audiencias e deu-se começo
ondep
ao inquerito. Mandaram-no sentar, recusou-se ; per
guntaram-lhe o nome, não respondeu. De testa cober
LAOLJE" ta de grossas rugas, olhos injectados e fitos na pare
de, parecia nada vêr e nada ouvir. O povo exaspera
va-se com o atrevimento do criminoso, com a falta
474 A FOME

de respeito á justiça . A indignação crescia e talvez


chegasse ao desespero, á allucinação , se Gervasio não
procurasse demover o criminoso do proposito em que
estava de não prestar homenagem á lei. Era tarefa
difficilima domar aquella fera.
-O povo tral-o á presença da justiça como um
criminoso e no entanto o senhor póde sér um inno
cente. Accusam -no e é preciso que se defenda . A lei
pune o culpado como protege o innocente. Nós deve
mos respeito a ella. O senhor está na casa da justi
ça, deve obedecer-lhe ; não lhe negamos o direito de
defeza e para lhe mostrar que aqui a pessoa do accu
sado é inviolavel, que não póde haver punição sem
crime provado e sem a condemnação da justiça, eu
lhe restituo a liberdade .
E Gervasio cortou as cordas, que amarravam
o preso .
O povo exasperou-se e vociferou :
-Fóra o protector da fera ! o amigo do malva
do ! morra o Punaré !
Gervasio havia assumido grande responsabilida
de, o povo o ameaçava, mas elle com grande pre
sença de espirito lhe fallou :
— Nada mais tendes com o preso , uma vez que
elle está em poder da justiça.
E voltando-se para o delegado, disse :
-Cumpra a lei, o preso responderá o que lhe
fôr perguntado .
Punaré fitava agora Gervasio surprehendido de
tanta generosidade . Segundos antes, como a féra en
A FOME 475

-To cressed raivecida e presa na jaula, estava disposto a ser


lo.seGerris morto pelo povo, e não dizer palavra sobre o crime.
e A coragem de Gervasio lhe restituindo os meios de
propost ay
le Enter acção, quando todos o torturavam, despertou em seu
espirito enfermo o sentimento de gratidão pelo dou
tor.
justac
de sérm O povo investia para a sala das audiencias, e o
se defolal delegado, ainda aturdido com a idéa dos Calangros,
wenteJik deixava de conter a onda que já invadia todo o re-
cinto.
acasadj
10sodira. Gervasio comprehendeu a posição falsa da autho
der ridade, e a bem da justiça decidiu-se a invadir as
pesu
attribuições do delegado.
erpunja
-Em nome da lei, como authoridade que sou
dajoj
por S. M. o Imperador, a quem Deus guarde, mando
a todos que se retirem da sala das audiencias menos
eamarr
o preso e as testemunhas, sob pena de ser levado o
procedimento dos que resistirem, á presença do Im
perio, do nosso real senhor.
godo t
A sala esvasiou-se, mal Gervasio concluiu a allo
st cução. Os que não tinham ouvido as palavras do dou
Wa
nd tor gritavam na rua :
Sta
Fóra o homem da cidade ! fóra o amigo do
Punaré !
Za re
Mal chegou lá por fóra a noticia de que Gerva
sio fallava como authoridade fez-se silencio, apen as

e diziam em voz baixa uns para os outros :


Oqu !
-O homem é da lei! traz ordens do Impe
h rio ! ...
ndi
Gervasio teria sido victima da furia popular se
fera
32
476 A FOME

por aquelle meio não contivesse a turba de ignorantes .


Começou o inquerito ; o doutor sentado ao lado

do delegado, interrogou o preso :


Qual o seu nome ?
Joaquim Manoel , conhecido por Punaré .
- - De onde é natural?
Da freguezia de Quixeramobim .
- Onde reside ou mora ?
―――- Na Baixa da Areia.
-Ha quanto tempo alli reside ?
Ha muitos annos.
-Qual sua profissão ou modo de viver?

Viv caçva
o deesta
nde ar. no tempo que se diz ter prati
-Ao

cado o crime?
Punaré carregou os sobrolhos, lançou um olhar

feroz para Gervasio e não respondeu .


- Responda ! ordenou o doutor.
- Não sei.
- Tragam os ossos que foram encontrados.
-
Uma das testemunhas conduziu o esqueleto da

creança, que foi collocado sobre a mesa.


aré fitou os olhos no chão.
PunDe
- quem são estes ossos ? perguntou o dou

Responda
tor. Punaré .
recusou-se. Gervasio mandou tres vezes
que respondesse, e, não sendo obedecido, levantou-se
levando a caveira, que collocou a poucos centimetros
Ida barba do preso. Punaré desviou o rosto, e com a
agilidade da onça deu um salto para a esquerda.
A FOME 477

Gervasio voltou a seu logar. Mal se tinha senta


aturbadeim
T ater sentabr
e do notou que o povo abria caminho a uma mulher,
dizendo :
J: ―――-A mãe do menino !!

Entrou na sala das audiencias uma mulher alta,


doporPunt
morena, olhar desvairado, semblante taciturno, esfar
rapada e caminhando a passo lento. Olharam todos
Jobim para ella menos o preso.
Era infeliz mãe da victima.
Gervasio perguntou-lhe o que queria ; mas ella
le? não respondeu. Olhou a todos e se dirigiu para Pu
naré.
oderite?r
O negro perturbou-se, alteraram-se-lhe mais os
traços da physionomia, a côr preta tornou-se fulva.
e sedite
A mulher chegou o rosto bem junto da barba do
a preso e depois de tel-o olhado alguns segundos, sol
Jany in
tou uma gargalhada aguda, que retumbou em toda
=

a sala, afastou-se depois para um canto e sentou-se


no chão.

tras Punaré, com a physionomia visivelmente transtor


ncon
le nada, tremia de assombro. Gervasio aproveitou o in
oesque cidente e continuou o interrogatorio :
sa. Aonde estava no tempo em que se diz ter
commettido o crime ?
on
gunt a -Em S. Seraphim.
-Conhece as testemunhas que vão depôr? Des
don tres! de quando ?
nt
lera
Conheço a todas e de pouco tempo.
t
SCen
Como se deu o facto de que é accusado ?
sta e Eu fui a casa de Maria Ligeira em dias do
ent
esqu *
478 A FOME

mez passado e ella me pediu para levar á caça em


minha companhia o filho José, o qual sahiu commigo
para o rio Curú ; voltando, cheguei a S. Seraphim,
onde resolvi logo matar o menino, o que realmente
fiz no dia seguinte á tarde, descarregando-lhe uma
cacetada na cabeça. Depois de bem morto concertei
e pellei no fogo o corpo, depois asseio-o todo por não
de
ter sal e comi-o com mel de abelhas por espaço
tres dias.
- E o logar de S. Seraphim tem caça e mel, e fica
distante de casas ?
Tem caça, mel, fica a uma e meia legua

d'uma fazenda onde ha muita criação de ovelhas.


― Porque não lançou mão de outros meios para
evitar o crime ?
- Vi-me vexado da fome que não permittia ou
-
tros meios.
- Porque motivo, tendo saciado a fome, conti

nuou a comer carne humana por espaço de tres


dias ?
--Não sei.
Em que estado se achava a creança quando a

matou?
- Estava farta por ter trazido de casa alguma
-
comida.
- Para onde foi, depois que matou o menino?
- Para a casa de minha mãe, na Baixa da Areia.

- Alguma pessoa mais foi cumplice no crime?


-
- Ninguem.
- E não tem remorsos de um tão grande crime ?
A FOME 479
I

Não. A risada d'aquella mulher, sim, me doen


par leurin
mais do que todas as dôres de minha vida.
Jualsahi
Terminado o interrogatorio Gervasio conduziu o
ela&S
réo á cadeia publica.
a oquemi
o O dia estava bastante alto quando o doutor con
Scarregand de
cluiu a tarefa.
marto
Hospedou-se com Edmundo em casa do juiz
d
de direito até á manhã seguinte, quando segui
Thaspirespe
riam, elle para a comarca e seu amigo para a ci
dade de ** *.
caçaem
Pela madrugada Gervasio despediu-se de Silvei
ra e cada qual tomou seu caminho.
maema Edmundo, apenas caminhou uma legua, sentiu-se
do demade
doente. Uma cephalalgia intensa obrigou-o a apear.
utrosmes
A marcha do cavallo, embora moderada, o incommo

til dava muito ! Tinha febre e uma repugnancia inven


Opermi
civel ao vento. Sentia calefrios quando o alcançava
1 uma corrente de ar mais forte. Os membros inferio
afomed
res doiam-lhe como se elle tivesse feito uma marcha
youar
forçada e de leguas ! Experimentava na columna ver
tebral uma sensação de cançaço afflictiva. Estava a
uma legua da villa e não sentia-se com forças de
Yilfor voltar. Recostado ao tronco de uma arvore á margem
da estrada, esperava algum viandante que o soccor
A resse. O dia crescia e ninguem passava no caminho.
Edmundo se inquietava com o seu estado. Resolveu
i
Dem
voltar á villa, e, se aproximando do cavallo, tentou
montar, mas embalde ! O menor esforço exacerbava
lhe a cephalalgia, a ponto de parecer que estalava
lhe o cerebro. Desalentado, voltou ao mesmo logar e
480 A FOME

á mesma posição . Minutos depois estava completa


mente adormecido aos raios ardentes do sol.
Assim passou á beira do caminho o resto do dia
e a noite inteira.
Pela manhã alguns retirantes passaram por elle,
chamaram-no e como não despertasse seguiram, e
disseram na villa que na margem da estrada esta
va um homem morto ou muito doente. Pelos si
gnaes desconfiaram ser o companheiro do dr. Ger
vasio .
O delegado de policia dirigiu-se ao logar, e Ed
mundo foi transportado para a casa do juiz de direi
to . Estava gravemente doente , pouco fallava, parecia
indifferente a tudo.
A doença prolongou - se, a febre sempre intensa, e
apenas para debellal -a o recurso unico das dóses ho
mœopathicas applicadas pelo vigario da freguezia,

bom padre, mas pessimo medico .


A natureza e só a natureza a luctar com a moles
tia ! Nem um medicamento a auxilial-a !
Os desarranjos gastricos se accentuavam mais, e
uma diarrhêa rebelde acompanhada de dôres vivas e
gargarejo na fossa illiaca direita atormentavam o
enfermo . No tronco algumas manchas ovaes côr de
rosa, mas que desappareciam quando eram compri
epistaxis cons
midas. As mucosas nasaes, em uma
tante, pouco repouso permittiam ao doente.
Na manhã do vigesimo primeiro dia de doença
Edmundo tinha o ventre tympanico, a lingua com
pletamente sêcca e os labios fuliginosos . As feições
A FOME 481

profundamente alteradas e de uma côr livida indica


estara c
vam perigo imminente. A bronchite, o delirio, o solu
esdosol
ço, a parotibe eram o cortejo terrivel da febre typhoi
ho orestodo!
de adynamica, que seguia a marcha fatal. Era a crise
vinte e um dias ! O vigario não abandonava o doente.
assaram pr Lia noite e dia um medico homoeopatha, e procurava
se seguin
dar as dóses por elle indicadas, embora sem diagnostico .
da estra
O doente tinha febre ; elle ignorava que febre é
ente.Pl effeito e não causa, e dava aconito, alternando com
To do t outros medicamentos. Para elle toda a febre curava
se com aconito e bryonia.
tolog Edmundo estava mais para a morte do que para
juizdel a vida. Ás duas horas da tarde começou a se mani
allara, p festar a carphologia. O doente não parava com as

s mãos um segundo. Ora parecia apanhar moscas, ou


preinten
tras vezes desfiar um novello de linha. Algumas horas
lasdist
levou n'esse constante desassocego e a delirar sempre !
da fem Ás oito horas da noite uma convulsão distendeu-lhe
todos os musculos, contrahiu-os depois dando ao cor
omamile
po a fórma de um arco, que tivesse as extremidades
sobre um plano.
Amm Julgaram a convulsão da morte, e o vigario
res rink
com todos os apparatos funebres chegou-se ao enfer
entarz mo para ajudal- o a bem morrer. O ataque durou
esd vinte minutos, findos os quaes voltou o corpo do
doente á posição natural ; cessou o delirio e o croci
LTSON dismo ; elle abriu os olhos, pediu agua, que bebeu
com avidez e adormeceu profundamente. Entrava o
edot enfermo em convalescença ; a crise passára, sómente
UBOF a natureza batera a molestia.
#
XXXIV.

Em casa de Manoel de Freitas conversava o co


ronel com o padre Clemente.
-Pretendo mudar-me d'esta casa, snr. padre.
-Porque ? algum desgosto com os visinhos ?!
――
Não, senhor. Recebi uma quantia que me de
viam e desde que posso alugar uma casa, não devo
continuar a utilisar-me d'esta, quando muitas fami
lias vivem por ahi desabrigadas .
― É louvavel o seu procedimento, coronel.

-De hoje a quatro dias irei-lhe entregar a cha


ve e desde já beijo-lhe as mãos pelos grandes favo
res que nos ha feito.
Sempre á sua disposição.
-Communico-lhe que Caro lina foi pedida a ca
samento pelo snr. Edmundo da Silveira, hoje empre
484 A FOME

gado na secretaria do governo . As nupcias celebrar


se-hão em março proximo, e desejava que fossem
celebradas por v. rev.ma
-Desejava ter recursos para offerecer a Carolina
o enxoval do casamento ; em falta reservo para mim
a honra de casal-a.
--
- Obrigado, snr. padre Clemente.
-As certidões estão promptas ?
- Edmundo foi ao sertão e as trará.
Ao sertão ?
- - Sim .

- Deus seja com elle.


O padre despediu-se do coronel e foi para os abar
racamentos. Nem um dia faltava áquella tarefa diaria,
ardua, porém voluntaria.
Ignacio da Paixão veio com a filha morar em
casa de Freitas .
Josepha recebeu Maria como se fosse sua filha.
Á creança não faltavam cuidados e desvelos, mas tudo
isso apenas lhe minorava os soffrimentos. As ulceras
atonicas, e algumas de grandes dimensões, provavam
o estado de discrasia profunda em que se achava o
sangue. Os labios lividos , as faces de uma côr terrea,
indicavam a pobreza de globulos vermelhos na seiva
d'aquelle organismo, que definhava á mingua de ele
mentos vitaes .
Ignacio da Paixão receiava perder a filha ; chamou
um medico, que prescreveu-lhe uma medicação tonica
e reconstituinte, a par de uma alimentação apropria
da a levantar as forças da doente. Entretanto aquel
A FOME 485

ias celebra le estado continuava, a atonia progredia e a enferma


que fossem definhava cada vez mais ! O estomago e intestinos
n'uma fadiga morbida rejeitavam os alimentos mais
er a Carolin digestiveis, sem que os succos gastricos os atacassem.
го рага шір As ulceras, longe de cicatrizarem, se abriam mais,
eram de um livido azulado, e em vez de pús, segre
gavam uma serosidade viscosa, uma especie de sal
moura fetida.
Maria estava profundamente anemica. Mesmo em
repouso a sua vida era afflictiva. Cançava na posição
mais commoda, na mais completa quietação. O san
gue havia perdido a densidade e d'ahi os desarranjos
ra osalar penosos no apparelho da circulação. A dyspnéa a
refadian affligia. A hematose era incompleta e a vida por isso
mesmo era um fardo e pesado. O tedio, o desgosto
morarem de tudo faziam a pequena enferma pedir o termo da
vida, que começava. Uma manhã Maria disse ao pae
Suafilh que queria morrer. Ignacio consolou-a promettendo
mastod lhe a saude.
s
sulcer A enferma caminhava para a morte, que se annun
r a r a m ciava pelo resfriamento dos membros inferiores. O pae,
ro
desalentado, não deixou mais o leito da filha. Á tarde
chara
rterrea Maria pediu que lhe dessem agua. Deram-lh'a, mas
laseir ella não pôde mais beber. Beijou as mãos do pae e
morreu.
deel
Ignacio da Paixão chorava sem consolo á beira
do leito da filha, como á borda de um tumulo em que
cham
e se houvessem sumido todas as suas esperanças !
tomi
ri Freitas, Josepha, Carolina, a pouca distancia, cho
rop
ravam tambem.
a
gm
486 A FOME

Chegava a hora das saudades, o pôr do sol. As


dôres de Ignacio augmentaram as tristezas da Ave
Maria, e elle soluçava cada vez mais. Era o remorso
que ficava depois do desapparecimento da ultima
affeição da terra. Era a angustia que esmagava -lhe
o coração n'uma tribulação infrene !
Á noite, depois de accesas as velas mortuarias,
Ignacio pediu aos parentes que fossem descançar,
que elle guardaria o corpo da filha.
Sentado ao lado do cadaver, com o olhar fito nas
velas, que ardiam, o infeliz pae cavava o passado,
cada vez mais horrorisado de si. Já se tinham passado
mais de dois terços da noite, nem um pensamento
tivera que não fosse mau, nem uma idéa lhe surgira
1 que não fosse um desalento ! Era preciso um castigo
á sua falta ――――――― o abandono da familia.
Pensava nos erros do passado quando Filippa en
trou na camara funebre com passo firme e pausado.
Collocou- se em frente de Ignacio tendo de permeio a
morta. Levou de pé, immovel, mais de duas horas,
depois olhou para Ignacio e perguntou :
Quem é ?
Maria, minha filha.
― Morta a sua, e a minha vendida ! ... A janga
da ! ... o mar ! ... foge ! ...
Filippa havia tido um momento lucido , um raio
de luz da razão scintillou por um instante na escu
ridão pavorosa da enfermidade mental . E depois tudo
voltou á irracionalidade, ficou de novo a besta e nada
mais.
A FOME 487

opôr dosal As palavras de Filippa abriram na mente de


Stristezas da Ignacio um caminho a seguir. Queria um castigo a
ais. Era o r seu crime e seria elle o resgate de Bernardina, que
mento da lhe custaria, além do dinheiro, os sacrificios de uma
que esmagns viagem longa e talvez penosa.
Ao alvorecer do dia Filippa estava ainda de pé
Telas motor e no mesmo logar, e Ignacio cada vez mais triste e
Ossemdescar acabrunhado.
Freitas veio ter com o primo e disse-lhe que ia
oolhar h procurar o padre Clemente para fazer o enterro, e
sahiu.
Tara opa
O coronel encontrou o sacerdote já de pé e dis
tinham
posto a continuar a tarefa sublime de seu ministerio.
mpensand
lea Thesup Estava pallido e tremulo. O jejum do dia ante

iso umca rior havia sido quasi absoluto ! Apenas tomára a


hostia e o vinho do sacrificio ! Não recebera a espor
tula da missa.

t Freitas estava admirado da pobreza do padre. Era


eepaza
i a primeira vez que ia a casa de Clemente. Commu
deper m e t
nicou-lhe a morte de Maria e pediu-lhe que se en
duas bit
carregasse do enterro. O padre prometteu procural-o
logo que voltasse da igreja.
O coronel voltou a casa. Ignacio continuava in
consolavel.
Ajugg
Clemente, fiel á sua promessa, tratou do enterra
mento de Maria, e com Ignacio e Freitas acompanhou
UM19
o cadaver ao cemiterio de S. João Baptista.
Da Ás dez horas da manhã estava tudo consummado.
OU's th
Ignacio quiz remunerar os serviços do padre, mas
Rem
este recusou a esportula.
488 A FOME

Clemente seguiu para o abarracamento ; o coro


nel e Ignacio voltaram a casa.
Ignacio isolou-se triste no seu quarto. Cavava o
passado, e agora mais que nunca a consciencia cla
mava contra seus erros. Tudo o accusava e por cu
mulo de angustia apparecia mais uma victima, era
Manoel da Paciencia. Até então não se tinha lembra
do d'elle ; a esposa, os filhos o absorvia todo ! Ignacio
estava desalentado. Como reparar o mal causado ao
leal servo , caso fosse elle escravo no sul ? Era já noite
e aquelle desgraçado não repousára um segundo ! De
angustia em angustia via o tempo passar e vagaro
samente, contando os minutos por milhares de idéas
tristes e desoladoras .
O padre avaliou bem os soffrimentos de Ignacio
pelos traços que haviam ficado em sua physiono
mia.
Com o fim de consolal-o procurou-o. Freitas acom
panhou-o ao quarto do primo :
-O snr. padre Clemente vem visital-o, Ignacio,
disse o coronel retirando-se.
-Seja bem vindo, snr. padre, disse Ignacio
offerecendo uma cadeira ao sacerdote.
- Vim procural-o, meu filho, porque comprehen

di a enormidade de seu pezar. Nas grandes dôres


nós precisamos de conforto, de ter quem nos ajude
a triumphar das tribulações do espirito. São os ami
gos os preferidos n'essas occasiões. Não tenho a feli
cidade de occupar agora esse logar, mas como indi
gno apostolo da religião de Christo eu vim procu
A FOME 489

acamento;o ral-o, ao menos para ser seu companheiro nas pri


meiras horas atribuladas de sua dôr.
―――――
Quarto,Cana Ah ! snr. padre Clemente ! eu não merecia
a consciènci a Deus tão grande favor ! A sua misericordia é infi
nita e se assim não fosse não enviaria Elle um jus
asara epr
uma richi to á tenda de um grande culpado ! Ha mais de dois

setinhal annos que perdi a paz ! Durante esse tempo nem um


momento de socego, nem um instante de felicidade !
ia todo
Eu fui, bem sei, o causador de todos os meus males.
mal causali
O vicio levou-me ao crime, e uma vez perdido descri
?Er
de tudo. Entretanto na minha adversidade eu alimen
m
In so tava uma esperança, um sentimento bom, voltar á
a r
ass eng
aresdeid patria e viver para a esposa, para os filhos, que eu
havia como um tyranno abandonado ás garras da
miseria.
Ignacio interrompeu a narração, cobriu o rosto
uaphras
com as mãos e chorou alguns minutos ; depois conti
nuou :
Telitasa -
A sorte favoreceu-me e voltei á provincia. Errei
de palhoça em palhoça, de abarracamento em abar
70,James
racamento procurando a familia, e sempre o des
engano ! Um dia voltava de meu caminhar á tôa
se Ignit
quando encontrei a creança a quem v. rev.ma deu
ds sepultura. Era a minha filha mais velha, que cega
mpri
mendigava pelas ruas. Perguntei-lhe pela mãe,
pelos irmãos, tinham morrido das bexigas nos la
zaretos do governo ! Acolhi-a, acariciei-a, como o
08 unico laço que me prendia ao mundo, e a espe
03# rança que desejava vivesse para minorar os meus
Toins
pezares, em poucos dias finou- se, e me deixou com
490 A FOME

pletamente orphão de affeições n'este valle de lagri


mas .
Ella foi viver a vida eterna dos bemaventura
dos. Deus quiz que passasse por mais essa provação,
deve-se submetter aos seus altos juizos.
――――― O tempo tudo gasta, snr . padre, matará as sau
dades dos filhos, virá a resignação ; mas o remorso,
que me dilacera a alma, como extinguil-o, como do
minal-o ? Uma das minhas victimas talvez a esta
hora nas senzalas do paulista me amaldiçôe. Era li
vre, era meu servo fiel eu á falsa fé o vendi como
meu escravo ! Os damnos que causei a esse honrado
velho Freitas, que reduzi á penuria, abusando covar
demente de sua confiança, pode rei reparal-os algum
dia ? Ainda a noite passada quando guardava o corpo
de minha filha, a louca Filippa aproximou-se de mim
e perguntou-me de quem era o cadaver ; respondi
lhe e então disse-me : « Sua filha morta e a minha
vendida ! » As palavras da infeliz mãe feriram-me
o coração como um punhal. Diga-me, snr. padre
Clemente, se eu poderei ter mais paz n'este mun
do ?
-Não se considere perdido , meu filho ; Deus
perdôa sempre que nos arrependemos. E fôra incom
pativel com sua misericordia negar perdão ao arre
pendido. O homem é susceptivel de regeneração , e se
assim não fosse, muito pequeno seria o numero dos
virtuosos. Todos nós cahimos e ainda cahem mais os
que se julgam perfeitos. Póde-se rehabilitar perante
Deus e a sociedade dos bons. Nunca se julgue forte,
A FOME 491

considere-se sempre fraco, evite quanto possivel as


ralledele
occasiões, temendo a sua fraqueza, e se não quizer
cahir, nunca ponha em prova a sua virtude. Peça a
bemarent
Deus perdão das faltas que commetteu contra sua
essaprovga esposa e filhos ; procure restituir a liberdade a seu
78. servo, a quem pedirá a absolvição do crime que com
natara
metteu contra a liberdade d'elle. Não se envergonhe
as oremi
de se prostrar aos pés do seu creado uma vez que o
1-0, com tenha offendido .
alrez & Ah! snr. padre, quão suave é o conselho
Eri
de um justo ! Ha pouco tempo só havia para mim o
r de
e n
desespero com seu innumero cortejo de allucinações !
As suas sabias palavras abriram á minha fronte um
mundo novo, um mundo onde ha probabilidade de
al-es encontrar uma esperança que me alimente a vida.
araoco
Cumprirei religiosamente o que me acaba de acon
selhar. Partirei no primeiro paquete para o sul, e te
nt
regna nho fé que Deus me ajudará a saldar todas as mi
nhas dividas.
NS
CIGI Ignacio levantou-se e commovido beijou a mão
mr.poë do padre .
-Adeus, meu filho, Deus o acompanhe.

0;De

2025
HDP
HOE
22

33
EPILOGO

Começava o anno de 1880 e com elle nascia uma


esperança, que o povo cearense, acossado pela sêcca,
procurava alentar.
O governo continuava a soccorrer os famintos,
mais pela magnanimidade do imperador do que em
observancia á lei constitucional do imperio.
O espirito publico se impressionava com a conti
nuação da calamidade e nas altas regiões officiaes a
desconfiança era tal, e a falta de patriotismo dos re
presentantes da provincia, tão grande, que um mi
nistro da corôa, por abuso de mando, chegou a sus
pender por decreto os soccorros publicos !
É que á côrte só chegavam noticias de furtos
mesquinhos de alguns commissarios delapidadores e
ficavam no esquecimento os serviços de outros, que,
*
494 A FOME

sem remuneração alguma, sacrificavam saude e for


tuna, e eram, por cumulo de injustiça, nivelados
com os maus cearenses, que defraudavam o es
tado .
Os sacrificios do governo eram grandes, é verda
de ; quarenta mil contos se tinham gasto em alimen
tar os famintos, mas a fome no Ceará era uma rea
lidade medonha e não uma farça, como levianamen
te no parlamento affirmavam alguns senadores ! E
que bofetadas infamantes na face de um povo que
havia ficado indigente, não pela indolencia, pela ocio
sidade, pelo vicio, mas na lucta com um flagello con
tra o qual se nullificavam a energia humana, os
meios mais fortes de acção !
Quarenta mil contos já se haviam gasto e a sec
ca ainda continuava !
O administrador da provincia, delegado de um
governo que já de muito má vontade atirava a esmo
la ao faminto, elle que havia mais de dois annos,
palpava dia e noite as grandes feridas abertas no
peito dos heroes de 24 DE MAIO, temendo a suspensão
dos soccorros publicos, cujo resultado seria o ani
quilamento de toda a população indigente, ou a guer
ra civil, tendo como causa a lucta pela vida, ordenou
a internação dos retirantes.
Fazel-os voltar quando não havia um signal de
inverno, era temeridade inaudita ! Só por um presen
timento, pois o calculo, a sciencia, o estudo eram
nullos quanto á previsão de mudança da estação, se
podia explicar a medida desesperada do governo !
A FOME 495

Dharam sand: Os retirantes alegres se preparavam para voltar


stj aos lares queridos da infancia.
defraudarem A floresta tocada de morte, os rios sem uma got
ta d'agua, e entretanto elles acreditavam estar muito
grandesfr proxima a aurora da salvação.
gostoen Não se illudiram! O dia 14 de março veio reali
earáera u sar os seus presentimentos. Logo ao amanhecer o
comolevice trovão ribombou no espaço e chuva copiosa lavou a
Is senades terra ! Os alisios emmudeceram e o norte franco im
pellia as nuvens para o sul.
l
Jencke Seria uma illusão, que se transformaria em bre
comde s t ve n'uma realidade crudelissima, ou a paz que se
bump annunciava ás victimas do flagello, trazendo o bem
fazejo inverno, o fertilisador dos campos !
to
gas est Nos abarracamentos, que alegria nos famintos !
Humilhados pela ração, insultados por alguns gran
id des do paiz, olham fortalecidos e esperançosos para
gat :
a nova época que surge, e longe de ficar, como tinham
agoirado alguns senadores levianos em pleno parla
atente mento, feitos cães de monturo, comendo migalhas de
carne secca pôdre e farinha derrancada, partem fe
lizes, porque os espera a independencia do traba
ema
lho.
Olla
dont O contentamento havia chegado tambem á tenda
de Freitas.
O coronel ouvia contente salvar o festival dos
elementos, a artilheria do espaço.
11pres
Queria tambem voltar, mas Edmundo não chega
va ! Nem uma noticia sua em mais de dois me
acin
zes !
496 A FOME

Carolina definhava todos os dias. A idéa de uma

desgraça não a deixava.


Tinham -se mudado da casa offerecida pelo padre
Clemente e moravam á rua Formosa .
Freitas sentiu-se forte. A atonia da dependencia
havia desapparecido . Olhava para os dias idos, como o
convalescente para o tempo em que gemeu no leito
da doença.
Voltou-lhe a energia de outr'ora.
O inverno continuava copioso das praias ao sertão.
Freitas embevecido passava contemplando horas
inteiras as saudosas tristezas do espaço coberto de
nuvens pardacentes, os cumulos acastellados no hori

sonte , como fortalezas de gesso .


O dia fatal tinha chegado ; era o dia 19 de mar
ço !. Para mais fortalecer a crença dos retirantes , foi
de completo inverno. A chuva foi uma só de manhã
á noite ; as nuvens carregadas de electricidade choca
ram-se no espaço por sobre toda a provincia !
Freitas continuar na Forta
leza .ErTod osaos
a um tursavia
tordia para
passar os companheiros para
o sertão e elle a ficar ! Uma manhã sahiu a passeio
e ouviu lêr nos jornaes do dia as noticias chegadas
do interior. Eram por demais lisongeiras ; os campos
verdes, os rios cheios , as lagoas e açudes a vasar e
em breve a abastança por toda a parte. Não se con
teve mais , voltou a casa e communicou a Josepha

o seu plano de viagem que se effectuaria no dia se


guinte. Sua mulher fez -lhe vêr a necessidade de es
perarem a volta de Edmundo , mas isso não o demo
A FOME 497

veu de seu proposito. Seguiriam pela estrada de fer


idea de
ro de Baturité até Canôa, estação terminal e inaugu
rada, havia seis dias.
idapelopači Ao amanhecer, quando Freitas e a familia sahiam
para tomar o trem, encontraram Edmundo, que che
dependa gára havia poucas horas.
sidos,am Estava forte e robusto.
menmolt
Carolina não pôde occultar o contentamento que
lhe causou tão agradavel surpreza.
Adiaram a viagem.
asanse Edmundo contou o perigo em que estivera e a
landehis resolução de voltar de Canindé, temendo o regresso
t
ocober de Freitas.
k
Asu O dia 30 de março foi marcado para a realisa
ção do casamento, e o coronel com o noivo procura
0
190 ram a casa do padre Clemente.
e s
tirant O sacerdote estava na igreja ; tinha ido cele
dem brar.
taledo Constantino os recebeu com respeito .
eis! Freitas não cessava de admirar a pobreza da ha
naFre bitação do padre. Entre os objectos que estavam na
eD resp sala, não havia um que não fosse pauperrimo ! Acos
apr tumado a frequentar os vigarios do sertão, amadores
de dos gozos da vida, o coronel não comprehendia como
8Cal Clemente se sujeitava voluntariamente a viver assim.
A Não sabia da vida do padre ; conheceu-o nas horas
082 mais angustiosas da vida e d'elle só tinha ouvido até
então conselhos e consolação. Era a segunda vez que
visitava o sacerdote e agora mais detidamente obser
vava tudo que o cercava.
498 A FOME

Freitas não pôde dominar a sua curiosidade e


interrogou Constantino, que discretamente guardava
distancia :
por eco
Perdôe a indiscrição, meu velho. É
nomia que o padre Clemente goza tão pouco dos bens
da vida ?
―― Elle nada possue, senhor. Herdou fortuna e
nunca teve mais que os gozos d'esta pobreza. Re
partiu com os necessitados o que tinha ; elles fo
C ram os legitimos herdeiros dos bens que lhe deixa
ram seus paes. Sempre viveu como vive das espor
tulas dos fieis e d'estas mesmas, senhor, quantos

dias mal chegam para comermos uma vez !...


Porque ellas são distribuidas tambem com os desra
lidos .
O padre entrou e Constantino calou-se.
Freitas e Edmundo estavam surprehendidos de
tanta virtude. Foram ao encontro de Clemente, e o
coronel, por uma d'essas emoções que não se podem

dominar, tomou a mão do padre e beijou-a com toda


a veneração.
-Bom dia, coronel ! ... Snr. Edmundo !
E abraçou o noivo.
――
Mais um favor, snr. padre : quero realisar o ca
samento de Carolina no dia 30 e venho pedir-lhe o

seu valioso auxilio .


- Os meus fracos serviços estão á sua disposi
ção, coronel.
Adoeci em caminho e não pude continuar a

viagem e d'ahi a falta das certidões de idade.


A FOME 499

a sua cons -A camara ecclesiastica aceita justificações,


disse Clemente.
Jetamentegu
- - Vamos dal-as então, e a v. rev."ma communica
remos o resultado, disse Freitas.
a pr
vell.E
-Ámanhã os acompanharei á secretaria do bis
Lãoposso dir
pado.
Freitas e Edmundo agradecidos se despediram de -
Hendsfor
Clemente e sahiram.
esita poleca
tinha f
isquelhed
vitedaser
sember f

U-SH
that

20sepo
- Cubs
20

disa
4TTM3
II

Era o dia das nupcias. Ás 7 horas da manhã a


fortaleza de Nossa Senhora da Assumpção annun
ciava com um tiro de peça a chegada do paquete do
sul, e uma hora depois os passageiros desembarcavam
em jangadas que, com as velas latinas enfunadas,
corriam ligeiras com todos os ventos.
Entre os passageiros vinha Ignacio da Paixão
acompanhado de uma rapariga de côr preta. Era
Bernardina, a filha de Filippa.
Chegando a terra, Ignacio dirigiu-se a casa de
Clemente.
O padre, havia pouco tempo, voltára da igreja.
- Snr. Ignacio !
-Snr. padre Clemente!
E abraçaram-se.
502 A FOME

As minhas dividas estão quasi todas pagas. Me


foi difficil seguir os conselhos de v. rev.ma, mas obser
vei-os tanto quanto humanamente era possivel. Con
sistia a primeira difficuldade em saber quem na côrte
era o correspondente do commendador Prisco da Trin

dade. Era preciso ir ter com elle, mas como, se eu ha


via commettido em sua casa um grande crime ? Para a
realisação de meu plano era imprescindivel conferen
ciar com elle. Resolvi arriscar a minha liberdade, disfar
cei-me quanto pude e apresentei-me em seu palacete.
Achei o commendador mais velho, mais rico e mais
infeliz. Carregava uma cruz pesadissima, sua mulher
estava histerica . Mudei de nome e pedi que me dés
se um saque de duzentos mil reis para a côrte. Dei
o dinheiro e recebi uma letra contra Taveira, Cunha

& C. Prisco não me conheceu. Me seria facil desco


brir os escravos. Embarquei para a côrte dizendo a
1 Manoel de Freitas que ia viajar, ia procurar a conva
lescença do espirito. Chegando á praça do Rio de
Janeiro, fui ter com os traficantes, e, antes de receber

o saque, indaguei do paradeiro de Bernardina ; con


sultaram o registro e me disseram ser ella escrava
em uma fazenda de Campinas. Por Manoel da Pacien
cia não foi preciso perguntar, me contaram elles o
logro que havia soffrido o commendador. Alentei-me
mais. Pedi -lhes que me informassem sobre o escravo
Sebastião ; eu queria saber se deveria indemnisar
Prisco ou Freitas. Examinados os livros Sebastião
estava tambem em S. Paulo e fôra vendido por um
conto e oitocentos mil reis. A molestia havia sido
A FOME 503

pretexto para depreciar a mercadoria. Parti para


quasitodaspes Campinas e fui ter á fazenda onde Bernardina era
V.re.r escrava. Ah ! snr. padre, apertou-se-me o coração
te erapessi diante do quadro que vi ! Era horrivel e repugnante !
saber quem A perversidade humana ahi fazia ostentação. Escravos
adorPrand e escravas sómente de tanga no trabalho, vigiados
has comese por uma fera domesticada chamada ➖➖➖ - feitor que,
andecrime por qualquer segundo de repouso, dava-lhes barbaras
at
Sandrel vergastadas, lembrando-lhes assim que elles não
e
laliberdad& tinham o direito de cançar ! E os desgraçados nem
eem seupaul uma palavra, nem uma queixa, temendo a gargalhei
mais now ! ra, o tronco, o carro ! Pedi uma conferencia ao fazen
Sima,Sa deiro e fui levado á sua presença. Recebeu-me como
se elle fosse de melhor barro ou de especie superior.
ara adife Moço formado, porém tôlo e presumido, uma d'essas
n
Tareti& creaturas filhas de paes ricos e vaidosos, de ingenuos
riafatal que acreditam que um pergaminho na familia au
rtedie gmentava-lhe o merito e o respeito. Era doutor e por
cura3r 4 isso os nescios dos parentes e visinhos acatavam sua
adb opinião como infallivel. A falta de intelligencia au
esde gmentava-lhe a presumpção. Não me mandou sentar.
ardina Disse-lhe a que ia, e entramos em negociação. Atten
deu-me melhor depois que viu que, além de um
እኔታ conto e quinhentos mil reis que dei-lhe pela carta de
all2 liberdade de Bernardina, me ficavam ainda algumas
notas do thesouro ; fez-me sentar, mostrou-me os

POB dentes e offereceu-me hospedagem. Recusei o agasa


lho em seu palacete luxuoso ; aquella opulencia repre
sentava annos de fadiga, de dôres de milhares de
desherdados da fortuna. Voltei com a liberta á côrte
504 A FOME

e d'ahi á Fortaleza. Eis, snr. padre Clemente, o que


se passou depois que deixei de vêl-o .
- Fizeste o teu dever, meu filho .
--- Vou a casa de Freitas.
- Hoje casa-se Edmundo com Carolina.
-――――― A que horas, snr. padre ?
Ás cinco da tarde na igreja do Rosario.
-Então permitti que fique em vossa casa até
áquella hora. Quero -lhes fazer a surpreza depois do
casamento.
- A casa é sua, meu filho . Esteja á vontade, eu
}
vou aos abarracamentos.
E Clemente sahiu.
Era cas
o dia nupcias.
Em a dedeFreitas os preparativos do casamen

to absorviam todos.
Carolina sentia em si um mixto de prazer e tris
tezaFilippa, ava-se a mil
; entregtaciturna, pensam
passava entos.
por todos sem vêl-os,

ouvia-os
Á horea não
marcos entendia.
ada , Edmundo, acompanhado das tes
temunhas, se dirigiu a casa de Freitas. Esperava-0
já a noiva sentada ao lado dos paęs na sala de vi

sita.
Carolina
Traj estava
ava um formosa.
vest ido de cambraia branca, fina,
transparente , simples, mas bem acabado. Emmoldu
rava- lhe o rosto oval o véo de linho e cingia-lhe a
fronte a grinalda de flôres de laranjeira por sobre o

sombreado do véo nos cabellos louros.


A FOME 505
B

Edmundo apertou a mão da noiva ; e o prestito


padre Clements
Mofid se dirigiu para a igreja.
O padre Clemente minutos depois dava a benção
- bit .
nupcial aos noivos e os acompanhava á casa de Frei
tas.
om Carolina
Ignacio da Paixão assistiu sem ser visto ao casa
mento. Logo que suppoz os noivos em casa, se diri
giu com Bernardina á residencia do coronel.
em TINY
es A pequena sala, aberta e illuminada, estava em
Surpr de
festa.
Os noivos estavam sentados no sofá, tendo o
padre Clemente á direita e as testemunhas á es
querda.
Ignacio entrou com Bernardina e se dirigiu aos
noivos.
sdi
A liberta beijou a mão de Carolina, que a abra
çou, e choraram juntas.
Freitas e Josepha saudaram Ignacio e indagaram
S como elle fizera aquella resurreição.
ossem
-Libertei-a, e venho restituil-a á mãe.
Filippa estava sentada no pequeno corredor.
Ignacio foi ter com ella e trouxe-a á sala. Era
8.Expe geral o silencio. Todos fitavam a louca e espera
vam.
Ignacio deixou-a de pé, no centro da sala e dis
se a Bernardina :
rames ―――― Tua mãe ! ...

A rapariga correu para ella e abraçou-a choran


do.
Filippa olhou-a e disse :
!

506 A FOME

-Omar !... ajangada ! ... foge ! ... o homem ! ...


-Que ! minha mãe, não me conhece ? Bernardi
na, sua filha.
Filippa segurou no rosto da filha como exami

nando -lhe as feições , murmurou ainda palavras im


perceptiveis , e depois, abraçando-a com consciencia,
exclamou :
――― Minha filha ! ... Ah ! Deus misericordioso e

justo ! ...
E um abraço longo, estreito, aproximou aquelles
corações que a injustiça dos homens havia separado

e torturado tanto !
Todos estavam commovidos . Filippa, ainda aturdi
da pela emoção, olha tudo que a cerca e reconhece
os antigos senhores . A commoção foi violenta e a ne
vrose atirou - a ao chão, forte como nunca .
Instantes depois a vida cedia o seu logar á mor
te, e Filippa succumbia victima de uma hemorrhagia

cerebral.
O padre Clemente mal teve tempo de dar-lhe a

absolvição, tão violento foi o ataque .


O quadro que se apresentava com todos os esplen
dores das alegrias e das esperanças, cobriu-se deluto!
Foi elle a cópia viva das felicidades da terra : —ri- .,

e lagrimtela,
sos Aquella as.
havia pouco tempo, era a encar
nação do prazer, a mocidade em frente de um mun
do de gozos. Agora um cadaver e as tristezas da

morte.
A noite de nupcias passaram os noivos, testemu
A FOME 507
I

nhas, convidados e o padre Clemente guardando o


corpo da morta.
1 habetBart
Pela manhã se fez o enterro á custa do coronel,
e no dia seguinte no trem de seis horas da manhã
tomavam passagem para Canoa, Manoel de Freitas,
lapt
Ignacio da Paixão, Josepha e Bernardina. Deixavam
COMCUNY
a Fortaleza, ouvindo como despedida do padre Cle
t mente, que os acompanhou á estação, as seguintes
misma
palavras :
-Em homenagem a Deus, aos favores d'Elle
Min recebidos, meus filhos, quando chegardes á vossa
brig terra, se tiverdes inimigos, perdoai-lhes, aos fracos,
protegei, e Deus será comvosco. Adeus.
Daand
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34
INDICE

Rodolpho Theophilo. Pag.


Exodo. VII
A casa negreira . 1

Miserias . 119

Epilogo · · . 205
· 493
47
Princeton University Library

32101 051142972
702

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